Together through life | Bob Dylan

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bobTogether through life conta como o 33º álbum de Bob Dylan. Tudo bem. Um longo, longo caminho. Muita história para contar. Um mundo. Uma vida. Uma saga. Mas alguém precisa saber disso? Melhor seria tomá-lo como parte de um entardecer iniciado em Time out of mind, de 1997. Um quarto disco. E, por um momento, esquecer o resto.

É que nada será como antes, sabe? Depois de gravar dois álbuns revisionistas, com interpretações para antiguidades do folk (os incompreendidos Gone as I been to you, de 1992, e World gone wrong, de 1993), Dylan criaria ele próprio uma sonoridade descolada no tempo, de costas para o pop contemporâneo — a simulação de um passado musical muito distante, anterior ao período em que um jovem Robert Allen Zimmerman traçou as coordenadas de uma das maiores revoluções do rock.

Em algum momento, alguém perderia a vergonha e lançaria a pergunta: é um jogo interessante, mas que sentido isso faz? Há uma hora em que a brincadeira termina?

Existe um clima de frustração em muitas das resenhas de Together through life (aqui não falo das revistas que automaticamente aprovam todas as criações do cantor, mas de uma NME da vida, de uma Spin), e acredito que ele se explique pelo fato de que eu, você e todos nós esperamos incansavelmente pelo retorno de um Bob Dylan que pertence ao nosso passado. Queremos indícios do ídolo rebelde, quase inconsequente, iconoclasta e insolente, que implode festivais de folk com guitarras elétricas e resgata o country em meio ao frenesi psicodélico do final dos anos 60. Mesmo que inconscientemente, temos a esperança que a agonia que ainda existe nos versos do compositor termine por contaminar a música, exploda em acordes transgressores e novamente maltrate nossas expectativas. Mas, ao mesmo tempo, amamos o Dylan que não respeita nossos desejos, não anda nos trilhos, não se adapta em antologias musicais — o poeta ao sabor do vento.

Como conviver com um ídolo que insiste em nos apontar as direções que não queremos seguir? Talvez seja mesmo impossível agarrá-lo. Daí as biografias incompletas, as lendas urbanas, as declarações falsas em entrevistas, as anedotas, as múltiplas personalidades, I’m not there e todas as reentrâncias do mito Dylan, ainda nebuloso, imprevisível até quando parece repetir-se.

Aos 67 anos, Dylan busca um som. Talvez não mais que isso. Por coincidência, dia desses assisti a um documentário sobre o processo de gravação de um disco de Brian Wilson. O maestro tortura os músicos e repete takes obsessivamente até extrair os acordes e o clima já perfeitamente construídos em sua cabeça. É por aí.

Principalmente a partir de Love and theft, Dylan (ou Jack Frost, pseudônimo usado para a produção do álbum), encontraria satisfação na ideia de usar a tecnologia de estúdios para registrar um sentimento sonoro. O tema dos álbuns passaria a ser a própria descoberta de uma sonoridade. Se temos a impressão de ouvir um antigo disco de blues da Chess Records ou da Sun Records, então Dylan cumpriu o objetivo. A produção é parte importante da mensagem.

Together through life leva essas experiências ao limite. A seu modo, é um disquinho impertinente. Ao aceitar o convite do diretor francês Olivier Dahan para compor uma canção a ser incluída no filme My own love song, Dylan inspirou-se para um álbum inteiro. Com domínio da técnica de produção, gravou rapidamente acompanhado da própria banda e com participações de David Hidalgo, do Los Lobos, e Mike Campbell, do Tom Petty and the Heartbreakers. Diretor do próprio filme, Dylan sabe exatamente o álbum que quer: cru como um bootleg, fluente e despretensioso como Nashville skyline, calcado em blues e acordeão: uma coleção de canções de amor que poderiam ter sido gravadas nos anos 50. Ou nos 80. Ou em 2020 (acelere o andamento, inclua distorção e Beyond here lies nothing renderia o primeiro hit digno do Kings of Leon).

Imagino que, com o passar dos anos, a velhice de Dylan será compreendida como o período em que o artista finalmente conseguiu assumir controle integral da própria arte. Em entrevistas, ele confessa a insatisfação com o resultado de gravações que transformaria em clássicos. Não mais. Together through life é um filme de estrada. A dois. E a fotografia granulada não está lá por acaso.

Se os versos parecem ir sempre direto ao assunto (e a parceria com Robert Hunter, do Grateful Dead, já é histórica), eles criam conexões com os três álbuns anteriores ao levar a sério aquilo que o crítico Allan Jones define como um mandamento do blues (que não funciona muito bem quando traduzido para o português): “you might get better, but you will never get well”. São narrativas que não escondem a desilusão (Life is well é uma patada) e a falta que sentem de uma época irrecuperável (O personagem de Life is hard lamenta a solidão, o protagonista de If you ever go to Houston quer de volta as memórias dos antigos bares onde se perdeu, e talvez seja a mesma pessoa que canta Forgetful heart) e a proximidade da morte. “Sinto uma mudança se aproximando. E a quarta parte do dia está quase no fim”, admite, na a obra-prima I feel a change comin’ on.

Que sentido isso faz? Talvez nenhum. Os novos discos de Bob Dylan possivelmente querem nos lembrar que a vida é dura e às vezes segue caminhos incompreensíveis. Os amores passam. A dor não diminui. A saudade arde. E o rock ainda nem nasceu.

Trigésimo terceiro álbum de Bob Dylan. 11 faixas, com produção de Jack Frost. Lançamento Columbia Records. 8.5/10

19 comentários em “Together through life | Bob Dylan

    Felipe Queiroz disse:
    abril 29, 2009 às 3:49 pm

    Bob Dylan é Bob Dylan!

    Vazou o novo álbum de outro gigante – Sonic Youth

    Rodrigo disse:
    abril 29, 2009 às 4:49 pm

    É meio chato ver que essa fase do Dylan é infelizmente bem subestimada (fora do meio crítico, especialmente). Eu acho esse um disco menor na carreira dele (mas também não tem nenhuma pretensão em ser grande), bem inferior ao Modern Times, mas ainda assim acho que é um trabalho de grande valor. As letras mais simples do que o normal (mais ou menos como no Time Out of Mind), mas ainda assim são lindas, não expressam nenhuma acomodação nesse ponto. Engraçado você ter falado dessa sensação de “road movie”, é algo que eu sinto também (com o carro sendo dirigido por alguém com uma sensação meio mórbida de estar chegando ao fim da vida, de já ter passado por tudo, com memórias passando pela sua cabeça como em um fluxo). Não é dos meus favoritos dele, mas é um belo disco, tenho nem dúvida.

    Tiago respondido:
    abril 29, 2009 às 5:01 pm

    Esse fica pra outro dia, Felipe.

    Eu não colocaria entre meus favoritos, Rodrigo, mas acho que é um disco à altura do Modern times sim. E aquém do Love and theft, meu preferido desta fase.

    Filipe Furtado disse:
    abril 29, 2009 às 11:33 pm

    Seu texto fica ainda melhor quano lido pouco depois da coluna do Thiago Ney na Folha de hoje.

    Sobre o disco concordo está no nivel do Time Out of Mind e do Modern Times e um tanto abaixo do Love and Theft.

    Rodrigo disse:
    abril 29, 2009 às 11:48 pm

    Dessa fase, meu preferido, de longe, é o Time Out of Mind, acho melhor que até alguns clássicos dele dos anos 60 ou 70 (colocaria no meu top 5, hoje). Eu gosto do Love and Theft também, acho superior ao Together, mas fico com o Time e o Modern Times mesmo.

    Tiago Superoito respondido:
    abril 30, 2009 às 2:01 am

    Só prefiro o ‘Love and theft’? Hehe.

    Caramba, Filipe, e o mais engraçado (ou trágico, a depender do ponto de vista) é que li a coluna do Thiago Ney logo depois de ter postado o texto. Ou seja: era como se eu tivesse preparado uma resposta para ele, mas não foi o que aconteceu. De qualquer forma, que texto triste, cara! Triste mesmo. Foi só o que consegui sentir: tristeza pelo sujeito, coitado. Escrevendo as maiores bobagens num jornal de grande circulação, que uma multidão acaba lendo… Sei lá, acabo ficando até constrangido. É triste.

    Eu nem arriscaria a dissecar os argumentos – nem vale muito a pena. Mas o interessante é que o texto dele aponta a arma contra uma resenha elogiosa do Dylan que saiu na própria Folha e que, por sua vez, já me parecia bastante oca. Enfim: não há para onde correr. Mesmo quando morde o próprio rabo, não existe sustentação para a crítica (nada além de polêmicas vazias, como dizer que o disco do Caetano dá sono e o Bob Dylan está ‘datado’). Ficaremos com lamentações do estilo “por que o Brasil não tem uma banda tão completa como o Yeah Yeah Yeahs, meu deus?”, batendo cabeça contra a parede.

    Diego disse:
    abril 30, 2009 às 2:13 am

    Não sei o que faria se me pedissem para escrever sobre o disco para um jornal como a Folha, já que não conheço muito a obra do cara. Numa hipótese de mau humor no dia, sairia algo parecido com o texto do Thiago Ney, acho.

    No mais, Tiagão, você tem uma sensibilidade absurda pra música e consegue traduzi-la como ninguém que eu conheça. Vou invejar/admirar isso pra sempre.

    Diego disse:
    abril 30, 2009 às 2:15 am

    Ninguém que eu conheça ou ninguém que eu conheço?

    Tiago Superoito respondido:
    abril 30, 2009 às 2:21 am

    Diego, mas o cara tem uma coluna, ninguém o obrigou a escrever sobre o disco… Eu também acho dificílimo escrever sobre o Dylan. É daqueles textos complicados, trabalhosos.

    Cara, obrigado pelo elogio. Puts, muito legal. Sério. Não mereço, mas tá valendo, haha. O mais legal do blog é ler os comentários. Sei que você entende perfeitamente, mais que ninguém, o quanto me importo com eles. Os posts são só pontapés, provocações, brincadeiras, tentativas de chegar a algum lugar, impressões meio rasas, nada além.

    guilherme disse:
    abril 30, 2009 às 2:59 am

    as duas estão corretas. “conheça” é mais forte, diego, pressupondo que você virá a conhecer gente nova e, ainda assim, aquém da suposta sensibilidade musical do tiago.

    “conheço” é mais apropriado, tem muita gente lá fora, não dá pra subestimar.

    gostei das tags. keep things lively.

    Tiago Superoito respondido:
    abril 30, 2009 às 3:13 am

    Não sei se o uso de “conheça” é exatamente esse, Guilherme. Mas concordo que, no caso, “conheço” seria a melhor opção.

    Diego disse:
    abril 30, 2009 às 12:12 pm

    Obrigado, Gui.

    Daniel Pilon disse:
    abril 30, 2009 às 12:16 pm

    Gostei muito do disco. Também não acho o melhor da fase recente, mas é o mais gostoso de se ouvir.

    Filipe Furtado disse:
    abril 30, 2009 às 8:02 pm

    O engraçado do texto é que ele parte de dois argumentos que não casam, de um lado a idéia de que o Dylan é um intocável e de outro desancar a atual fase dele a partir do que ela teria de datada, só que este status de intocável foi conquistado justamente com os tais discos datados, eu sou uns 5 anos mais novo que o Thiago Ney e me lembro como a reputação do Dylan lá por 94 era baixa.

    Tiago Superoito respondido:
    abril 30, 2009 às 8:03 pm

    Sim, e o engraçado é que ele ELOGIA os três discos ‘datados’. Vá entender.

    Daniel Japiassu disse:
    maio 12, 2009 às 6:01 pm

    Caro Tiago. Sou editor de um portal para solteiros que curtem a vida solitária chamado Portal Alone (www.portalalone.com.br) e estou sempre em busca de bons textos para notas sobre discos, shows, DVDs, viagens, restaurantes etc. Navegando pela web, encontrei o teu blog e uma resenha excelente sobre o último disco do Bob Dylan, que queria muito indicar para os nossos leitores/internautas. Queria saber se podemos publicar trechos dessa resenha no nosso portal, com crédito (evidentemente) e link para o blog Superoito. E, se fosse possível, que vc colaborasse com a gente sempre que quisesse. O que vc acha?

    Um abraço

    Daniel Japiassu
    Editor Executivo
    Portal Alone
    Revista Living Alone

    everi rudinei carrara disse:
    agosto 24, 2009 às 3:41 pm

    gostaria de postar seu texto sobreo disco do DYLAN emmeu site telescopio,há10 anos no ar,sempre divulgando DYLAN E NARA LEÃO…

      Tiago Superoito respondido:
      agosto 25, 2009 às 2:54 pm

      Ok, Everi, pode postar.

    ADELSON disse:
    setembro 28, 2009 às 8:51 pm

    Meu caro Tiago, parabéns pelo texto sobre o novo cd de Bob dylan.Fico muito feliz quando alguém faz um comentário justo e equilibrado,principalmente sobre algo tão subjetivo quanto música.Parabéns mais uma vez.

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