Melancolia
2 ou 3 parágrafos | Melancolia
Há os filmes muito ambiciosos, cheios de ideias e intenções: os superfilmes. Mas penso que às vezes nós, os espectadores mais esperançosos, nos esforçamos demais para encontrar num longa-metragem as reflexões urgentes e panorâmicas sobre grandes coisas – quando não sobre todas as coisas. Queremos que a fita de ação norte-americana nos diga algo importante sobre o governo Bush (e ela diz, se prestarmos atenção), enquanto que o drama sérvio pode ser que aponte para a crise de identidades no capitalismo globalizado. E, nessa ânsia de querer sempre muito assunto, talvez percamos de vista os filmes em si. Nos jornais, leio que Melancolia fala sobre o “mal-estar do mundo”. Talvez fale mesmo (Lars von Trier não é um cineasta de gestos pequenos). Só que prefiro encará-lo como um filme, me perdoem, menor. Não sei se pode. Pode?
Menor no sentido de que, na minha interpretação, ele não quer abarcar todas as crises do planeta (ou do século 21) dentro de suas 2h20 de duração. Não o vejo como um filme sobre o “mal-estar do mundo”, mas sobre um mal-estar específico, possivelmente sobre um estado de espírito: a depressão, o vírus da melancolia, o desencanto sem fundo (chame como preferir). A personagem principal é uma noiva deprimida (Kirsten Dunst, que ganhou Cannes), que vai congelando lentamente. O contraponto a essa mulher-estátua é a irmã da noiva (Charlotte Gainsbourg, que rouba a cena), sempre muito ativa, preocupada com todos os problemas. Trier opõe as personagens da forma distanciada e simétrica como costuma fazer, e nisso o filme lembra um pouco a estrutura de Dogville: tudo nos devidos lugares, quase didaticamente (as cenas iniciais, aliás, resumem a trama num slow-motion rococó).
Não é um filme para ser amado, acho (a primeira metade, que reprisa a ironia cruel e blasé de Festa de família, chega a ser tediosa). No entanto, ele cumpre um objetivo até “pequeno” de uma forma muito rigorosa: contamina a narrativa com a desilusão da protagonista, com essa desconfortável insensibilidade, e usa a premissa bombástica (à la disaster movie, na linha de Impacto profundo) como uma espécie de metáfora/hipérbole para a lente cinzenta que afeta o olhar de quem é atingido por esse apocalipse íntimo. Trier escreveu Anticristo enquanto estava abatido por uma depressão. O longa novo soa como o “day-after” dessa crise pessoal: imagens que remetem, agora “de longe”, a uma condição psicológica. Nesse sentido aí, me parece um filmezinho extraordinário. Mas que, pra mim, não quer explicar grande coisa alguma.
Vomit | Girls
Quase prosaico (mas muito apropriado) este vídeo para a música nova do Girls, também conhecida como A Melhor Música do Girls de Todos os Tempos. Vomit. E não a julgue pelo nome. A direção é de Austin Rhodes – e a vontade que dá é de sair dirigindo a noite inteira, just to feel like you’re okay.
Os discos da minha vida (top 10)
E não é que a interminável lista dos 100 discos da minha vida está chegando ao fim? Conforme o prometido, nada de textos pomposos antes dos álbuns propriamente ditos. Dois informes, apenas (e velhos informes, para quem já conhece esta brincadeira): 1. o ranking é absolutamente pessoal, então nem venham com a história de que o outro disco da banda é melhor; 2. recomendo, as usual, o download.
009 | Unknown pleasures | Joy Division | 1979 | download
Sombrio. Taí um adjetivo que deveria vestir o casaquinho e se retirar do salão (e sim, estamos falando no Grande Salão da Música Pop).
Há palavras que, de tão reprisadas, perdem o sentido. Reconhecemos a sonoridade, entendemos razoavelmente as emoções evocadas, mas temos a impressão de que elas podem se adaptar a todos os ecossistemas — para se referir a qualquer coisa, pessoa ou evento. Merecem, portanto, o ostracismo.
O termo tem tantas utilidades que me pergunto: o que não é sombrio? Há canções sombrias em discos do Green Day e da Beyoncé. Há quem observe, aqui e ali, a faceta sombria da Lady Gaga. Aposto que há dissertações sobre a fase sombria de Madonna. O visual de Trent Reznor é definitivamente sombrio. Radiohead circa Amnesiac? Sombrio de chorar.
A little bit longer, do Jonas Brothers? É um cadinho sombria, sim senhor.
Mas, se retornarmos à raiz musical da expressão, na pré-história do chavão, tropeçaremos em Unknown pleasures. Será um tombo inevitável – o disco praticamente criou um estilo (e de um clichê, de um lugar-comum) que perduraria nas décadas seguintes, aplicado como modelo para dezenas, centenas de álbuns sombrios.
Closer, o disco posterior do Joy Division, me parece ainda mais tenebroso. Quase insuportável de tão ocre. Ele poderia estar nesta lista. Mas Unknown pleasures me atingiu como uma tentativa de sufocamento. Quando ouvi pela primeira vez, a minha vontade era de não ouvi-lo nunca mais. “É o suficiente”, pensei. Me parecia uma viagem sem volta – a um lugar muito, muito escuro.
Na época (18 anos de idade) eu era fã de fitas de horror, e ficava todo prosa quando desenterrava um italiano mais medonho, obscuro. Mas o terror de Unknown pleasures me assombrou de uma forma mais incômoda que qualquer longa-metragem. Era uma história terrível, mas com que eu me identificava. Não era um tempo feliz.
Há quem trate Closer como uma carta de suicídio ou um bilhete de despedida. Ian Curtis morreu dois meses antes do lançamento do disco, aos 23 anos — o que só fez engrossar um halo macabro que nunca o abandonaria. Unknown pleasures, em comparação, é um álbum até vibrante: o som de uma nova banda inglesa ansiosa para registrar canções de punk rock (mas sem saber exatamente como).
Após o lançamento, a própria banda estranhou o disco. Ele soava ruidoso, abrasivo e abafado demais, como se gravado dentro de uma quitinete apertada, e sem janelas. Quando ouvi pela primeira vez, pensei em pedir outro CD para testar a qualidade do som – talvez o meu estivesse com defeito. Mas não. Em 1979, uma banda de rock tinha o direito de lançar um long-play com aquela sonoridade “errada” e, ainda assim, ser admirada em semanários. Obviamente, no entanto, o álbum foi um fracasso de vendas.
O que não reduz em nada (talvez só aumente) o desconforto que ele provoca. Se produzidas com polidez esmerada, canções como Isolation e She’s lost control estariam entre os hits da época. Existe algo corajoso, contudo, na forma como elas são esmagadas pela mixagem, afogadas num lodo instrumental de teclados, baixo e bateria eletrônica que, apesar de arrancar o couro das melodias, compõem um ambiente único, original, que distancia o Joy Division de todas as grandes bandas daquele período.
E talvez nem seria correto incluí-los entre os grandes, porque o Joy Division ainda soa como uma experiência. Que serviria de rascunho para uma ótima banda pop (o New Order) e de referência para grupos extraordinários, mas que não ousaram desafiar o público tão frontalmente (o Radiohead, por exemplo, não gravou um disco tão sujo, e taí uma adjetivo-clichê que também renova o sentido quando associado a um álbum do Joy Division).
Não bastasse isso, Unknown pleasures (tal como Closer) está entre os discos mais desencantados que ouvi. Não existe disfarces para a sofreguidão de Ian Curtis: ele materializa uma persona romântica, atropelada e arrebentada, em canções que desabam abraçadas a ele. Não existe alívio, não há remédio: o disco vai quebrando aos poucos, se segurando para não cair.
A diferença é que, ao contrário de Closer, este álbum ainda tenta se inscrever no salão da música pop. Tente tocar as canções no violão: elas têm início, meio e fim. As danadas, apesar de arredias, convidam os fãs a criar versões que as banalizem (Moby e The Killers, por exemplo, tentaram simplificar o jogo e se deram mal). Mas não, não há sensações iguais às que encontramos num disco do Joy Division. Eles nos machucam, é verdade. Mas álbuns sombrios não deveriam, pelo menos de vez em quando, nos ferir de verdade? Top 3: She’s lost control, New dawn fades, Disorder.
Após o pulo, confira os discos que já apareceram neste ranking.
We’re new here | Gil Scott-Heron & Jamie xx
Meu primo mais crescido – o primo que imitávamos, o primo que venerávamos, o primo que queríamos ser quando um pouco mais velhos – fazia música. Sim. Não que ele soubesse algo sobre a técnica do violão ou da guitarra (era um vexame até no pandeiro, que todo mundo pensa que sabe tocar), mas entrou para a nossa história como o sujeito das melodias fantásticas, o chapa da ginga, o bacana e o máximo.
Ok, sem rodeios: meu primo era funkeiro.
Funk carioca, manja? Início dos anos 90, ‘o que eu quero é ser feliz’, o som ingênuo e tosco que invadia as festinhas e puxava as meninas para dançar passinhos coreografados. Lembra? Lembra? Eu lembro.
E lembro porque meu primo foi um dos tantos aspirantes a Claudinho, a Buchecha, a MC Qualquer Coisa – no bairro onde morávamos, no Rio de Janeiro, era um sonho que toda uma comunidade de petizes parecia compartilhar. Mas meu primo, como acontecia muito, tombou na pista. Abandonou o batidão para cuidar das três filhas, trocou de esposa duas vezes, trabalhou para encher panelas, até fez de conta que nunca pensou em ser médico, mas tudo isso é outra história e cá estamos fugindo novamente do assunto.
Voltemos ao funk, que este é um post sobre o funk.
Para meninos como eu, o funk não era nada. Era uma brincadeira, no máximo uma boa bobagem, uma distração, uma troça. Ao mesmo tempo, era um mundo. Era uma música, sim, mas não qualquer música. Era uma música que parecia ser nossa, dos garotos da periferia, dos subúrbios, dos bairros pequenos. Parecia brotar dentro dos nossos quartos. E às vezes brotava mesmo.
Testemunhei pelo menos três músicas nascendo – e nascendo de parto normal, na varanda do meu primo. Ele sorridente, malandro, sobrepondo batidas singelas e criando versinhos tolos, depois gravando as camadas e exibindo o mix a meninos perplexos, abismados, estupefatos com a novidade: ‘diga a verdade, primo, foi você quem fez? Você? De verdade?”
Era o barulho de uma revelação. Pedíamos para que ele rodasse a música de novo. A mais ordinária. A mais vazia. A mais barata. E rodava de novo. Mais uma vez, e a danada rodando, grudando nos nossos pensamentos, se instalando para sempre.
Lembro daquela sensação febril. De querer engolir uma música. De querer papar a canção com ketchup, maionese e fritas. De querer tomá-la e não devolvê-la. Roubo. Coisa feia e suja. Um susto. Ouvir os funks ridículos do meu primo – que nem funk eram, meu primo nem sabia quem era George Clinton ou James Brown – fez de mim um devoto da arte pueril e anêmica, que nasce quase por acidente, que não tem valor algum, que nos agride inocentemente. Tudo isso, percebi naquela época, pode ser algo belo.
E (pode parecer uma heresia, mas não consigo evitar) lembro dos funks do meu primo – em frangalhos, ocos, mas, na minha infância, mais inspiradores que a sétima de Beethoven – a quando ouço discos como a estreia de James Blake (meu favorito de 2011, por enquanto) e estes remixes de Jamie xx para Gil Scott-Heron.
Não porque são discos paupérrimos, juvenis – nada mais distante da realidade. Mas porque eles provocam em mim o tipo de entusiasmo ingênuo, de criança, que aquelas aberrações domésticas provocavam. São discos que apontam para nossas fuças e dizem: eu sou um pouco como você; e você, se tivesse um pouco mais de talento, poderia ter me criado.
São álbuns que podem despertar uma intensa impressão de proximidade (ainda que falsa). Existe um quê de motivação punk nesses projetos. Do it yourself. No caso de Jamie xx, ainda mais. Temos aqui um disco incomum de remixes, que só encontra pontos de contato nos mashups de Danger Mouse, especialmente The grey album. Com a arrogância feliz de um adolescente, Jamie desmonta e reinventa o linguajar de Scott-Heron.
Um daqueles discos complicados que soam fáceis, sim. Mais do que isso, um daqueles discos atrevidos, que impõem uma identidade à prática do decalque, do “recortar e colar”. Eu admiro.
Desde a estreia do The xx, Jamie exercita um pop lacunar e sutil. É com essa palheta de cores escuras que ele cria uma atmosfera onde os versos, a fala de Scott-Heron se movimentam e respiram. Isso sem a necessidade de preencher todos os espaços, todas as crateras que marcam as canções do sujeito que, há um ano, lançou o assombrado I’m new here.
Aquele é um disco, aliás, que ainda me perturba um pouco. Não consigo escrever sobre ele, talvez por me parecer autoexplicativo. O que temos é a voz de um velho poeta americano, que viveu muito, que talvez nem esteja mais tão lúcido quanto imaginamos (hematomas expostos) – isso, a voz, as ideias, as lembranças, e quase nada mais. Mas, diante desse retrato saturado, por que cobraríamos mais? (eis a questão). O que o inglezinho Jamie faz é se apropriar desse discurso, desse “personagem”, e inseri-lo num filme. Que poderia se chamar No silêncio da noite.
A exemplo dos álbuns de Blake e do The xx. há uma mise-en-scene noturna, fantasmagórica, ao redor dessas canções. Tal como Blake, Jamie se limita a apontar pequenas variações entre uma faixa e outra, ainda que, aqui, a eletrônica minúscula saia dos limites do dubstep para às vezes soar como a arquitetura de uma colagem do DJ Shadow: camadas de samplers sujos, mofados, colhidos de uma antiga coleção de vinis.
Os três momentos mais diretos do disco, que renderiam singles excelentes, mostram as oscilações de uma obra que, numa primeira audição, soa uniforme (às vezes irritante de tão uniforme; se você cair em tédio, eu entenderei). My cloud, o algodão-doce do parquinho, é trip hop manso, acolchoado. Já NY is killing me mergulha em paranoia, sob chuva de pedras digitais. O disco termina com, I’ll take care of U, uma faixa que leva ao pé da letra um ensinamento de Heron: “Jazz music is dance music”. E não é? Jamie dá uma risada de moleque e entra na pista.
Não dá para dizer que é um disco inventivo, que entusiasma pela originalidade. Que nos leva a recantos desconhecidos. Essas canções, no entanto, têm algo de espontâneo, de lúdico (é apenas música pop, não é nada muito importante, mas essa besteira pode acabar salvando as nossas vidas), que me leva às tardes em que meu primo reunia os meninos na varanda para apresentar a criação da semana. Silêncio total. Três minutos depois, ele deixava de ser gente – e se transformava no nosso herói.
Disco de remixes de Jamie xx, a partir do repertório de I’m new here, de Gil Scott-Heron. Produzido por Jamie xx. Lançamento XL Recordings. 8/10
(anteontem, saída do trabalho, 19h)
Eu: Aí aconteceu: era quase meia-noite, eu sozinho no carro, relâmpago gritando pra todo lado, a chuva começando a apertar. E aquela pista vazia, vazia, ninguém. Sabe qual? Saindo do Setor de Clubes, perto ali do Eixo Monumental, a ruazinha que todo mundo pegava quando o cinema ainda tava funcionando. A ruazinha sinistra que corta o matagal. Meti o pé no acelerador pra passar logo, pra chegar depressa a algum lugar, se eu pudesse teria fechado os olhos, aí aconteceu. Nem sei como descrever. Não vou dizer que foi uma sensação estranha, vai parecer óbvio. Foi como se… Foi como se eu levitasse, entende? Acho que a palavra é essa. Levitação. Eu tava suspenso num limbo: mato, chuva, neblina, o vidro embaçado, o carro vazio, aquele céu pesando.
Ela: Comigo acontece sempre. Quando acordo, abro a janela e é domingo e não tem ninguém na rua. Só uns três meninos jogando bola no estacionamento, sem som, nada. Pergunto se não é sonho. Daí desco do prédio e vejo as duas pessoas de sempre que saem todos os domingos pra andar de bicicleta. E é um filme mudo. A gente sabe que não é uma cidade fácil. Mas você começou dizendo que tava feliz, Tiago.
Eu: É. Mas dá pra notar, não dá? Segunda-feira e eu já querendo contar pra todo mundo, parando as pessoas no corredor, na porta do banheiro: ei, olha o que aconteceu comigo! E foi engraçado, foi amargo porque cada uma das pessoas me respondia com um ‘parabéns, Tiago!’ e depois completava com um ‘mas a vida não tá fácil, meu velho’. Todos, todos sofrendo por algum motivo. Separações, falta de dinheiro, falta de amor, doença, uma tristeza pesada, tudo numa onda cinza. Comecei a me sentir culpado por estar feliz, daí parei de contar, fiquei na minha. Acho que o clima ajudou: o tempo chuvoso, todo mundo automaticamente melancólico. Aí comecei a pensar na cidade.
Ela: Que talvez não tenha nada a ver com isso. Quando faz sol, pode ser a coisa mais linda.
Eu: É lindo. As nuvens branquinhas. Comprei até um livro sobre nuvens! Mas não sei. Deve existir alguma diferença sinistra nas pessoas que crescem tendo que cruzar essas ruas vazias, esses terrenos muito abertos, essas caminhadas solitárias até o ponto de ônibus, esses domingos silenciosos, e se acostumam a isso, se fecham nos carros, sempre sozinhas, todas as noites flutuando entre um lugar e outro, dirigindo e estacionando, sempre as mesmas paisagens, e a certeza de que as ruas vão crescer pros lados mas a vida não vai mudar.
Ela: Deve ser por isso que elas vão embora, Tiago.
Eu: Pode ser que sim.
The king is dead | The Decemberists
Entre todos os discos de Bob Dylan, se eu tivesse que escolher só um, Nashville skyline seria aquele que eu salvaria de um desastre atômico.
Não é o que transformou a minha vida (talvez Blood on the tracks). Talvez não seja o mais relevante, se começarmos a raciocinar como pesquisadores sisudos de música pop (Blonde on blonde). Mas eu o exibiria aos sobreviventes da tragédia para provar que sim, é possível criar uma obra-prima sobre o bem-estar – o marasmo bonito dos sentimentos agradáveis.
Era Goethe, talvez exageradamente, quem dizia: “Nada é mais difícil de suportar do que uma série de dias belos”. Os críticos que trataram Nashville skyline como uma passatempo, uma “obra menor”, talvez tenham procurado nuvens pesadas num céu quase sempre azul e claro. Como poderia um artista com essa imaginação, essa importância, e em 1969!, nos entregar uma coleção de canções singelas de country e folk? Soava como uma piada sem desfecho.
Se um menino de 15 anos começa a fuçar o passado da música pop, pode parecer estranhíssimo: no ano do Woodstock e de Altamont, de Abbey Road, de Let it bleed, de Stooges e Jimi Hendrix, o que Bob Dylan teria a nos dizer? Que a vida em família pode ser gloriosa, que o amor nos preenche de satisfação, que existe um sorriso sob o chapéu de palha. A ideia de plenitude parecia ter afetado até a voz do nosso ídolo, agora cristalina, serena.
O disco, apesar de tudo o que se escreveu contra ele, foi recompensado por gerações posteriores, já protegidas contra as paixões intensas e os radicalismos daquela época. Por bandas como The Coral, por exemplo, ou Wilco e toda a onda de “country alternativo” dos anos 90. Por críticos mais jovens que puderam ouvir o álbum exatamente como ele é: 10 faixas, 27 minutos e uma música chamada Country pie. Tão simples quanto eterno.
The king is dead, do Decemberists, é um dos muitos discos contemporâneos que provocam a sensação de afinar as mesmas ambições de Nashville skyline. Como aconteceu com Dylan, a banda de Colin Meloy se refugiou no campo (uma fazenda de 32 mil metros quadrados em Oregon) e selecionou um repertório que sugere um dia de verão na relva. É um álbum que passa por nós como uma brisa suave – sem intenção algum de provocar abalos ruidosos no nosso cotidiano.
Apesar da referência de Smiths logo no título, não é um disco tão ornado quanto The queen is dead. Pelo contrário. A referência declarada do Decemberists é o R.E.M. do começo de carreira. O guitarrista Peter Buck participa de três faixas – uma delas, Calamity song, soa como uma lembrança não tão distante de Murmur (1983). Mas, ao contrário da banda de Michael Stipe, que adensava o folk, o Decemberists adoça as experiências com gêneros tradicionais que eram comuns nas college radios do início dos anos 1980. The king is dead é primaveril, arejado, quase sempre muito objetivo.
O desafio de Meloy é muito parecido ao enfrentado por Jeff Tweedy em Sky blue sky (outro que deve muito ao tom de Nashville skyline): desnudadas, as canções passam a exibir o que elas têm de mais primário. Temos a canção e nada mais que a sustente – o disco nada mais é do que uma costura dessas canções autossuficientes. Pode parecer mais fácil do que gravar um álbum revestido por um ambicioso, cheio de firulas, efeitos de estúdio e ideias extravagantes. É mais difícil: para cada Nashville skyline (um disco com canções amáveis e aparentemente singelas, mas que ficam, que se impõem por si só), há muitos Sky blue sky e The king is dead.
E com isso não estou desqualificando totalmente o disco. Não. Este é um passo até inusitado para o Decemberists, uma banda que valoriza a pompa e sabe como tratá-la dignamente (Picaresque e The hazards of love são exemplos disso). Em comparação, The king is dead é quase um unplugged: mesmo quando usa todo o arsenal de instrumentos típicos do country rock (gaita, violão, slide guitars etc), a banda nos transmite a imagem de uma gravação descompromissada, de um outtake que, por acaso, foi vendido como disco oficial.
Para quem se sufocava com os excessos dos álbuns anteriores, é o momento de respirar. E fica difícil negar: existe força em canções como Dear Avery (a favorita de muitos que ouviram a minha mixtape de dezembro), June hymn e Down by the water. Se o clima despreocupado remete ao Dylan de Nashville skyline, a atmosfera das letras é mais melancólica, introspectiva, num flerte contínuo com referências pop (a América de 2011 pouco tem a ver com a de 1969), como se Meloy estivesse declarando amor não a uma pessoa, a uma família, a um estilo de vida ou a uma época, mas aos discos que o emocionam.
Um belo disco de country/folk rock escrito por um aluno estudioso, ainda que um tanto apressado nos sentimentos e nas referências que tenta evocar. De qualquer forma, ele engrandece a aura de Nashville skyline: aquele sim, um álbum que ainda parece tão simples, tão mundano. Mas ainda não encontrei quem conseguisse fazer igual.
Sexto disco do Decemberists. 10 faixas, com produção de Tucker Martine. Lançamento Capitol Records. 7/10
Mixtape! | O melhor de novembro
A mixtape de novembro foi criada na base do improviso, do fluxo de consciência. Sabe como? Não defini conceito nem bolei ideias malucas nem saí em busca de uma atmosfera específica para envolver as canções escolhidas para este humilde cdzinho. Ele é o que ele é. Ele é assim e pronto.
Não sei se ele espelha meu temperamento – talvez sim, mas com a mesma intensidade dos anteriores?
Ouvi duas vezes (enquanto lavava as minhas cuecas) e notei algumas características que me surpreenderam. 1) é um cd quase sempre em tom menor, ainda que a primeira parte possa provocar a sensação de que eu estava procurando um foco para a mixtape como quem surfa em estações de rádio até achar um pouso (no caso, o pouso é dolorido, como indica a segunda metade). e 2) existe unidade nessa coletânea, mesmo que você não a perceba de imediato.
É, como de praxe, a melhor mixtape amadora de todos os tempos. Mas, por ter sido gravada de um jeito impulsivo, ela revela algo sobre a minha pessoa que nem eu sei explicar. Tenho quase certeza de que, na faixa de abertura, sou eu falando.
A intenção, no entanto, não era que soasse complexo demais, nem sombrio demais, nem ambicioso demais. É um cd para ser ouvido nos fins de tarde, no último dia de férias, depois de despedidas que apertam o coração ou quando se sente saudade de amigos que estão muito longe. Tem isso: é um disquinho que machuca nos momentos mais dóceis. Cuidado, portanto.
Aos amigos, então: dedico ao Michel e à Alê. Espero que, lá de longe, eles ouçam e gostem (pelo menos um pouco).
Quem está na foto lá de cima é o habitué Kanye West, que gravou o meu disco favorito do mês: My beautiful dark twisted fantasy. Ele aparece na mixtape junto com o comparsa Kid Cudi e uma gangue da responsa: Girls, Jim Noir, Daft Punk, Atlas Sound, Warpaint, Beachwood Sparks (interpretando Sade), Neil Young e Beck com Nigel Godrich (numa faixa do filme Scott Pilgrim contra o mundo).
Estou aqui ouvindo o disco pela terceira vez e pensando: deus, ficou MUITO BOM!
Faça o download aqui (link atualizado).
E, depois de ouvir a mixtape, mande um alô e faça um comentário simpático. Estamos no mesmo barco, não estamos?
All delighted people EP | Sufjan Stevens
No dia 12 de outubro, Sufjan Stevens lança um disco novo. Por enquanto, sabemos duas ou três coisas sobre ele: que se chama The age of adz, que não tenta decifrar nenhum estado norte-americano, que faz uso pesado de efeitos eletrônicos e orquestra, que não é um “álbum conceitual”.
Mas, ao mesmo tempo, não temos certeza de coisa alguma. Uma das manias de Sufjan Stevens, lembre-se, é sabotar as nossas expectativas. Talvez seja isto o que mais queremos dele: o inesperado.
Stevens é o compositor de melodias tenras, pessoais. Também é o sujeito das ambições loucas, dos grandes planos, das ideias impraticáveis (um disco para cada um dos 50 estados americanos, por exemplo). Mas, além de tudo, é o songwriter autoirônico, que olha no espelho e ri da imagem que vê. O indie rock tem um quê patético (talvez por se levar excessivamente a sério, como um culto excêntrico disseminado em rituais on-line), e Sufjan entende a graça.
Daí que, antes de The age of adz, ele lançou um EP de oito faixas chamado All delighted people. Parece um aperitivo, uma distração, um brinde. Mas, quando você ouve o disquinho, descobre que se trata de um álbum completo, de quase 60 minutos de duração, robusto e cheio de si.
Talvez Stevens queira que tratemos o disco com a leveza como tratamos EPs. Mas não dá. All delighted people pode até ser uma obra “menor” se comparada a álbuns como Illinois (2005) e Seven swans (2004). No entanto, é mais atrevido do que a maior parte dos discos lançados por qualquer outra pessoa em 2010.
As faixas do álbum foram construídas em torno da canção-título. Que é, segundo Stevens, uma homenagem “ao Apocalipse, ao tédio existencial e a Sounds of silence, de Paul Simon”. Cada um desses temas inspiraria um grande disco – o impressionante é que, na faixa, eles são explorados com a grandiosidade de uma ópera-prog, que vai do folk sessentista a Beatles e, é claro, Simon & Garfunkel. Stevens não quer pouca coisa: com cordas fulminantes, coros e solos de guitarra à space-rock, ele vai à lua e volta. Talvez não seja a melhor canção que gravou. Certamente é a maior.
É tão desregrada que se desdobra em duas. A primeira, de 11 minutos, vai se desdobrando feito um réquiem para o fim do mundo. Stevens resume toda uma longa trajetória em cenas curtas, enquanto o mundo explode. Já a segunda, de oito minutos (e apelidada muito marotamente de Classic rock version), parece celebrar a destruição com sopros e atmosferas roubadas de um disco do Pink Floyd. É como se Elliott Smith tivesse ouvido menos #1 Record, do Big Star, e mais Wish you were here.
Uma canção FEROZ que provavelmente devoraria qualquer disco em que fosse incluída – o EP, portanto, é uma forma de enjaulá-la com o devido respeito.
Mas o disco não é apenas isso (se fosse, já seria grande). Para equilibrar os excessos desse turbilhão pop, Stevens cria algumas das canções mais delicadas da carreira – com violão, voz, ecos e quase nada mais. A começar por Enchanting ghost, que cita explicitamente um arranjo de Elliott Smith como para simular uma sensação de intimidade, de confissão sussurrada. É comovente. Tanto quanto Heirloom, com violões dedilhados e uma voz que parece transmitida do fundo de um beco, e From the mouth of Gabriel, triste como poucas.
Como de costume, Stevens nos engana, nos atira no olho de um paradoxo: apesar do título, All delighted people fala sobre pessoas desencantadas, tateando um mundo que perdeu o sentido. Corações quebrados, medo disso e daquilo, incertezas, Paul Simon. E melodias tão assustadoramente macias.
Parece pop. Mas isto é hardcore.
EP de Sufjan Stevens. Oito faixas, com produção de Sufjan Stevens. Lançamento on-line da Asthmatic Kitty. 8/10
Os discos da minha vida (3)
Voltamos a apresentar, após um breve intervalo, o ranking sentimental dos 100 discos que viraram a minha vida pelo avesso e não foram embora na manhã seguinte. Não me venham com cobranças de coerência ou bom senso – não desta vez, ok? Com vocês, meus amigos, mais um capítulo de uma incrível saga que começou há duas semanas (possivelmente num dia em que bati a cabeça na porta ou comi cereal estragado) e termina nem-deus-sabe-quando. Voilá.
096 | Summer in Abaddon | Pinback | 2004 | download
Um álbum que, desde 2004, ouço semanalmente, religiosamente. É um mantra. Contém memórias do meu namoro (que se segura firme e forte) e de um dos melhores períodos da minha vida. E talvez nem seja um disco muito bom (mas garanto que ele é, no mínimo, intrigante). A arte do Pinback, aparentemente muito simples (construir, desmontar e reconstruir pequenos fragmentos de melodias, riffs e solos), sempre me impressionou por parecer exata, irretocável. Ouço os discos como quem admira uma cidade de miniaturas onde cada prediozinho se encontra no único lugar onde poderia estar. Mas Summer in Abaddon é especial já que acrescenta um elemento irracional a essa matemática: é como se um rio de lava derretesse lentamente essa cidadezinha e nos devorasse junto. Desta vez, a emoção venceu. top 3: Fortress, Bloods on fire, AFK.
095 | #1 Record | Big Star | 1972 | download
Quando comecei a juntar as peças desta lista, prometi a mim mesmo que não incluiria tantos discos de power pop. Mas cá estou me traindo, e logo de começo: não há como subestimar esse tipo de belezura (que, especialmente no lado B, soa tão pungente quanto os momentos mais pungentes dos Beatles e do Beach Boys, acredite em mim). Mesmo quando a belezura em questão me leva a um período terrível, em que eu era um rapazinho solitário que ficava no meu quarto remoendo amores platônicos por meninas impossíveis. That 90’s show. Mas passou. Hoje, ele soa como pop perfeito sobre sentimentos por vezes sangrentos: amor adolescente, nostalgia, pequenos prazeres, decepções e, claro, pôr do sol. “É ok olhar lá para fora”, eles avisam. Siga o conselho. top 3: Thirteen, Watch the sunrise, Feel.
Superoito e a morte do cão
Meu cachorro, o beagle encardido e magricelo, morreu.
Recebi a notícia do modo mais frio. Uma mensagem de celular. “O cão morreu”. O motor estava ligado e permaneceu assim por uns três, quatro minutos. Nenhum movimento, apenas o zumbido irregular de todas as manhãs. As peças chacoalhando preguiçosamente, aos soluços. Uma névoa seca, alaranjada, borrando a paisagem. Um vulto desceu no retrovisor. E eu agarrado ao volante, fixo e tenso, como quem resolve acelerar para dentro de um tufão.
Depois consegui sair do estacionamento e o dia, que deveria ter seguido mais ou menos como os outros, começou a me parecer hostil. O que havia acontecido?
Telefonei para minha irmã e ela improvisou o obituário. O cão, que estava internado há uma semana em um hospital canino, sofria de uma infecção renal que o maltratava a cada dia. Era pele e osso, o pobre mamífero. Mal se aguentava sobre as quatro patas. Quando fazia frio, ele se encolhia feito um tufo de lã enrolado num graveto. “Era a hora”, minha irmã explicou. “Mais cedo ou mais tarde…”, continuou. E eu preenchi as lacunas. Ficamos em silêncio. Dizer o quê? Murmurei algo como “é uma pena, mas…”, e continuamos naquele passo, fazendo rodeios no reino do subentendido.
Certamente havia um ritual a ser seguido em casos como esse. Quando um cachorro morre, o que se faz? Eu não sabia. Até hoje, meus cãos não morriam. Eles não morriam. Obviamente, todos, sem exceção, partiram dessa para uma pior. No entanto, não acompanhei as etapas finais, as agonia dos últimos dias.
Meu primeiro cachorro, um poodle muito peralta, mudou-se para a casa de uma dentista e não mandou notícias. Os cães da minha avó morriam à rodo, atropelados, espremidos e alargados feito massa de macarrão, lançados à estratosfera sempre que se atreviam a desfilar numa avenida perigosíssima que começava lá no início do mundo e terminava no juízo final. Eram uns infelizes, uns sem-futuro.
Desde pequeno, me convenci de que, como acontece com as pessoas, cães morrem todos os dias, atropelados ou não. E cães geralmente somem muito antes das pessoas (e bem depois dos peixes, por exemplo).
Hoje descobri (tarde demais?) que nenhuma dessas certezas se sustenta quando o cão que morre é o seu cão.
O que senti, para ser sincero, foi um misto de tristeza e constrangimento. Primeiro a tristeza, depois do constrangimento. Em seguida, os dois juntos. Constrangimento por ter me sentido tão triste com a notícia, com aquela mensagem lacônica de celular. Desconfio até que chorei um pouco, umas fungadas descontroladas que se perderam dentro do barulho do carro, mas me recuso a confirmar essa informação. Suspeito até que cheguei a pensar em algo muito sentimental e tolo como “meu cãozinho!”, mas não, isso não deve ter acontecido.
Me surpreendi, isso sim, com a intensidade desses sentimentos. Todo aquele drama por conta de um beagle temperamental? Um animalzinho ranzinza e feioso, que, ao contrário do meu golden retriever (esse sim, um gentleman), sequestrava minhas cuecas e se entortava no vão da porta para mijar no tapete da sala? Do que eu sinto tanta falta?
Talvez eu sofra com as memórias onde o beagle aparece. Meu padrasto na varanda, a melancolia em pessoa, já adoecido e perplexo com a doença, acarihando aquelas patas quase invisíveis. Ou o dia em que, internado no hospital canino para tratar das orelhas, o beagle reuniu minha família inteira dentro de um cercadinho fedorento, de ladrilhos sujos, como bichos no zoológico. E, mesmo sem querer, foi o responsável por uma daquelas cenas lindas e ridículas que resumem a existência.
Pode ser (não descarto a hipótese) que tenha a ver com a ausência dele, o espaço em branco que o cão deixou. Isso, de alguma forma, me machuca.
Há três anos, adotamos o beagle. Nenhum outro dono queria saber dele. O cão era inofensivo porém arruaceiro. Só fazia o que dava na telha. Montava nas cadelas dos vizinhos e devorava as plantas do jardim. Era uma peste. Nos primeiros dias, ele travou guerras desastradas com meu golden retriever. Perdeu todas. Semanas depois, um não conseguia viver longe do outro. Melhores amigos para sempre.
Assim que o beagle foi levado ao hospital, meu golden retriever se recusou a dormir fora de casa. Era uma novidade. Mais educado e metódico do que qualquer pessoa que conheci, o cachorrão só entrava em casa em dias de tempestade ou jogos de futebol (ele teme os fogos de artifício como quem se arrepia com imagens de explosões atômicas). Sem o beagle, no entanto, ele resolveu nos desobedecer. Eis o legado do cachorro morto: a desobediência.
Daí que compramos outro cão: um labrador de quatro meses que, talvez à procura de uma saída, cava buracos profundos na terra e continua cavando.
Ainda um tanto estremecido (e envergonhado: cães morrem todos os dias), telefonei para minha mãe. Ela soava miúda. “Chorei a manhã inteira”, confessou. “É complicado…”, eu arrisquei. “Mas é só um cachorro, Tiago. E tudo o que vem acontecendo com a gente…”, e ela quase continuou, mas ainda é difícil chegar ao assunto número um. “Não era só um cachorro”, eu consertei. E eu, novamente: “Tudo o que está acontecendo talvez nem tenha a ver com isso, com o cachorro, sabe? O cachorro estava morrendo há semanas, estava fraco, então não tem a ver”. “Pois eu acho que tem sim”, minha mãe disse, com muita convicção, e eu acreditei nela. Desligamos o telefone quase ao mesmo tempo.
Eu não disse mais nada. Nem ela. Tentei mudar de assunto e perguntei sobre meu padrasto. Era a questão de todas as noites. “Como ele está?” E a resposta costuma ser: “Como sempre”. Uma resposta falsa, mas reconfortante. No dia anterior, ele se perdeu no caminho de uma loja que conhecia melhor do que todos nós. Antes disso, perto da barbearia onde ele corta o cabelo, meu padrasto olhou para mim (olhos vazios) e perguntou: “O que estamos fazendo aqui?”
Os flocos de memória se desintegrando como pulgas sob uma chuva de inseticida.
O que estamos fazendo aqui? O que estamos fazendo aqui? Eu forcei um sorriso. Está tudo ok, meu sorriso dizia. Mas meus ombros pesavam. “Cortar o cabelo, lembra?”, eu tentei orientá-lo. E ele (olhos vazios) respirou fundo.
Hoje pela manhã, quando soube de notícia, parece que meu padrasto chorou. Dizem que ele chorou. Deve ter chorado, ou sentido o mesmo vulto terrível que me paralisou ao volante por alguns minutos. Deve ter acontecido. Mas não conheço quem confirme a informação.
2 ou 3 parágrafos | Toy Story 3
Antes que perguntem: não chorei em Toy Story 3 (3.5/5). Nada, gente, lágrima nenhuma. Nem no finalzinho, que praticamente inundou o multiplex. Eu sei: a reação desapaixonada faz de mim um bruto. Mas vejam: nunca me afeiçoei aos meus soldadinhos do Comandos em Ação nem me vi obrigado a, aos 17, abandonar o ninho e transportar minhas tralhas para uma universidade da Ivy League (saí para morar sozinho, é, mas minha família está logo ali). Então este filme me parece apenas uma aventura sobre brinquedos falantes com algumas metáforas afetuosas sobre o valor da amizade (mesmo quando com seres de plástico) e doloridos ritos de passagem.
No filme, um adolescente vive um dilema: não sabe se guarda os bonecos no porão, se doa tudo para uma criancinha, se deposita os amiguinhos numa creche ou se os manda ao triturador de lixo. Enquanto isso, os bonecos entram em parafuso, coitados. Sei que esse conflito pode ser extremamente tocante e sei que ele nos diz tanta coisa sobre a aventura humana, mas preciso analisá-la com um pouco de distanciamento (tudo bem?). O que vejo no filme, acima de tudo, é a fase de acomodação da carpintaria da Pixar, com todos os truques a que tem direito. Eu já havia notado essa característica (que não chega a ser um problema) em Up – Altas aventuras, que começa maravilhosamente bem, mas acaba se acoplando a uma narrativa muito quadradinha e segura (traduzindo: eles não querem, não podem ou não sabem fazer um filme completamente lírico ou deliciosamente louco como os do Hayao Miyazaki).
Toy story 3, por isso, não me parece tão bem bolado quanto Toy story 2, apesar de funcionar (e odeio essa palavra, mas ela é muito precisa nesse contexto) muito bem, como uma máquina bem calibrada. O roteiro é todo esquemático, engraçadinho e quase tão satírico quanto as comédias da Dreamworks, com climas de fitas de presidiários (uma versão censura livre de O profeta, digamos) e cenas de ação até cruéis (se bem que a solução para o clímax tenso me frustrou completamente). Mas, apesar de ter deixado boas lembranças, o filme me deixou com a impressão de ter visto um brinquedo sob medida, montado com peças de sucessos da Pixar: o coração mole de Up e Procurando Nemo, os hormônios de Os incríveis, a graça meio nonsense de Monstros S.A., etc. Tudo bem. Divertido até. A pipoca do ano. Mas prefiro a Pixar que deixa os diretores pintarem e bordarem: mais Brad Bird, menos Lee Unkrich.
Thank me later | Drake
Você conhece Drake? Então está na hora.
Até porque, nos próximos meses, será impossível não reconhecê-lo por aí. Nas rádios. Na MTV. Nas trilhas de cinema. O rapaz tem bons amigos (Lil Wayne, Jay-Z, Kanye West, Timbaland, The-Dream, T.I., Alicia Keys), vem no embalo do marketing da Universal Music e está prestes a lançar um disco de estreia que, se tudo der certo, o transformará num astro do R&B.
Está escrito.
O plano, aparentemente, é fazer de Drake um novo Usher, um novo The-Dream, um novo sexymothafucker (e é provável que isso aconteça). Mas, é claro, não é por isso que você precisa conhecê-lo.
Dou três motivos:
1. Na mixtape So far gone, lançada no ano passado, a terceira música é uma balada robótica, na linha do Kanye West de 808s and heartbreak, chamada Successful, que virou single e rodou até no VH1. A faixa seguinte é uma versão para Let’s call it off, de Peter, Bjorn and John. Isto é: o sujeito não ouve qualquer coisa.
2. O refrão de Successful (muito simplezinho, até: “tudo o que quero ser é bem-sucedido”) não vem embalado no tom fanfarrão típico dos novos-ricos da black music, mas, surpreendentemente, existe nele uma certa melancolia, como se o intérprete da canção soubesse que o sucesso é doce e amargo.
3. Drake é um ator de 23 anos, ex-astro teen de seriado de tevê. E canadense.
Se nenhum desses argumentos parece suficientemente forte para que você dê uma chance ao moço, então não há nada a ser feito. Provavelmente, o álbum não vai colar. Não é sua praia. Vá por mim. Não perca o seu tempo.
Para começo de conversa, o disco soa conservador: não rejeita um modelo muito típico de R&B, pelo contrário. É quase um disco-de-gênero, songs for the lovers com alguma marra hip-hop. Nada que Kanye West, The-Dream ou Jay-Z não tenham feito. E Thank me later pode até ser ouvido dessa forma: como um álbum pop muito eficiente, coleção de hits, tudo nos devidos lugares, arquive entre Justin Timberlake e Rihanna.
O instigante na história, no entanto, é como Drake pega esse formato industrial e, sutilmente, se apropria dele. Sutilmente. O tom desiludido como o vocalista – que se chama Aubrey Graham – interpretou Successful é a colcha sonora do disco. Um fantasma que está sempre lá.
Há artistas que só se decepcionam com o sucesso lá pelo quarto álbum de estúdio. Pois a primeira música de Thank me later, Fireworks, abre com versos como “o dinheiro mudou tudo” e “meus 15 minutos de fama começaram há uma hora”. Novamente, Drake soa dúbio, na contramão das estrofes: a letra celebra a boa fase, o “sonho”, mas não existe alegria alguma na interpretação. A melodia é mecânica, cheia de lacunas e ecos.
Estranho.
Felizmente, todos os produtores – e são muitos! – parecem entender esse perfil introspectivo do cantor, que vai flutuando sobre névoa de teclados e efeitos metálicos. Nas primeiras faixas (as melhores do disco), não há festa: Drake narra dramas familiares (a separação dos pais, aos cinco anos), decepções amorosas e transformações da idade adulta. O sucesso não cura nada disso, e ele sabe disso. “Do que tenho medo? Isso deveria ser meu sonho. Mas todas as pessoas olham para mim e dizem a mesma merda: ‘você prometeu que nunca mudaria'”, ele desabafa, em The resistance.
A soul music de pesadelo atinge a catarse logo na quarta música, que se chama (olha aí) Over. Nesse ponto, Drake beira a esquizofrenia. “Conheço muitas pessoas que eu não conhecia há um ano. O que aconteceu? Fizemos de tudo ontem à noite, mas não lembro de nada. O que estou fazendo? O que estou fazendo?”, ele pergunta. Em seguida, porém, muda o discurso: “Eu estou me divertindo, estou vivendo a vida, e vou continuar assim até o fim.”
O hit é narrado com uma atmosfera dramática, tensa, que os produtores Boi-1da e Al Khaliq pressionam ao limite. O videoclipe mostra Drake fuzilado por canhões de luz, sozinho em um quarto de hotel.
Já ali, na quarta faixa, dá para concluir que Drake tem o “algo mais” que falta a muitos aspirantes ao trono do R&B: o intérprete paira acima dos produtores, das canções, de tudo. O álbum soa coeso, quase uniforme, porque é um retrato do cantor (ou talvez do personagem que o ator criou para si).
Na segunda metade, esse clima asfixiante das primeiras músicas vai se dissipando, ora em faixas mais animadinhas como Find your love (produzida por Kanye West), ora quando o “padrinho” Lil Wayne entra em cena, em Miss me. Mas até aí o show é de Drake. Em Miss me, o que fica na memória não é o falatório nonsense de Wayne, mas o apelo infantil, carente do vocalista. “Você vai sentir minha falta quando eu for embora?”, ele pergunta.
Superprodução programada para cumprir expectativas de uma indústria, Thank me later equivale a uma fita de fantasia dirigida por Sam Raimi: sob os efeitos especiais, há um coração que bate.
Primeiro disco de Drake. 14 faixas, com produção de Lil Wayne, Birdman, 40, Al Khaliq, Boi-1da, Crada, Francis and the Lights, Jeff Bhasker, Kanye West, No I.D., Omen, Swizz Beatz, Timbaland e Tone Mason. Lançamento Universal Music. 7.5/10
Mines | Menomena
Entendo por que tanta gente se espelha em bandas como o Grizzly Bear, o TV on the Radio. Eles, os nova-iorquinos, correram atrás de uma marca, de um lugar no mundo, e encontraram tudo isso.
Também compreendo que muitos tenham o enorme desejo de gravar discos como Veckatimest e Dear science. Álbuns coesos, duros, determinados, densos – a cristalização de um estilo! – mas também fascinantes, misteriosos.
Mas a vontade de ser uma banda como o Grizzly Bear ou o TV on the Radio e de gravar discões como Veckatimest e Dear science, é claro, muitas vezes é apenas uma vontade: concretizar essa ambição é que são elas.
Pois bem: Mines, o disco mais ambicioso do Menomena, mostra que não é fácil desenvolver uma trajetória particular, inimitável, dentro do indie rock. Não é fácil ser o novo Grizzly Bear, muito menos o novo TV on the Radio.
O Menomena, um trio de Portland, Oregon, está no quarto disco e, até agora, não pareciam muito interessados em definir uma identidade sonora. O anterior, Friend and foe (2007), era um tiroteio de promessas. Uma sacola de cacos de vidro. E um ótimo disco, com faixas fortíssimas como Evil bee e Wet and rusting. Ainda hoje, gosto muito dele.
Era complicado definir o som da banda e, por isso, muitos diziam que eles criavam arranjos “angulosos” (o que é verdade), com um emaranhado instrumental imprevisível (um quebra-cabeças de loops) que acenava para o math-rock de um Battles, por exemplo, mas com uma tendência a melodias sentimentais, doces. Era mais ou menos isso.
Essa definição também pode ser aplicada a Mines, mas trata-se de um disco menos brincalhão e arejado que o anterior. Naquele, cada música parecia ter sido gravada num dia diferente. Neste, as 11 faixas soam como se tivessem saído de um mesmo ensaio e, três minutos depois, lacradas a vácuo.
Antes, havia lacunas no quebra-cabeças. Essas lacunas soavam misteriosas. Algumas faixas não soavam exatamente como canções, mas como esboços de canções. Desta vez, o Menomena resolveu usar as peças do puzzle para formar canções bem acabadas, às vezes redondinhas.
Mines é um disco bitolado numa “ideia-fixa”: as canções soam mais melodiosas (e menos aventureiras), sutis, mais detalhistas e, alguns momentos, sisudas, cabisbaixas, como capítulos de uma história triste. Em vez da caixinha de surpresas, um bloco maciço daquilo que eles entendem por maturidade.
Se fosse possível catalogar toda a história da música pop em dois tipos de álbuns – os juvenis e os adultos -, Mines seria um álbum adulto. Friend and foe, um juvenil (mas não se preocupe: essa catalogação maluca é uma bobagem).
É uma bela reviravolta na carreira da banda, que será defendida por muita gente (procure na web: há fãs tratando o disco como um dos melhores do ano), mas a questão é: eles conseguem bancar o salto?
Fato: o Menomena aprendeu a usar uma aquarela de timbres, loops e efeitos (e tem de tudo: guitarras, sintetizadores, sopros dissonantes, piano de casa do espanto, coros fantasmagóricos, percussão, palminhas, etc) para compor uma imagem harmoniosa. Perto disso, Friend and foe era Jackson Pollock.
Há canções aqui, como Dirty cartoons e Tithe, que poderiam ser confundidas com baladas do Coldplay e do Snow Patrol. E do Elbow. São quase convencionais. E, ainda assim, soam belas, cuidadosas, corretas.
Meu problema com o disco está nessa última palavrinha: ele soa corretinho. E, para uma banda de rock que parecia solta no mundo, tateando possibilidades, essa tendência ao comodismo me parece meio assustadora. Era só isso que eles queriam? E, nessa perspectiva, como fica o disco anterior?
Ainda assim, Mines não parece errado: existe um lugar nas rádios para o Menomena, eles soam sinceros e verdadeiramente desiludidos com alguma coisa (as letras, escritas na primeira pessoa, lidam com inseguranças e responsabilidades da idade adulta, temas com que podemos nos identificar, e há um tom surrealista, um clima de paranoia urbana que deixa tudo mais complexo). Junto do Morning Benders, do Dodos e de alguns outros, eles entendem que é possível arredondar referências de rock psicodélico sem tomar o rumo de elevadores e consultórios de dentistas. E isso é bom.
Não estamos falando de um disco aguado como o terceiro do Band of Horses.
Mines é um álbum coeso, para ser montado e desmontado lentamente? Sim. Indica a possibilidade de algum sucesso comercial? Talvez (eu não duvidaria). A certidão de nascimento de um estilo? Ainda não.
De qualquer forma, fico imaginando o que teria acontecido ao Menomena se eles tivessem mergulhado no caos colorido de Friend and foe e descido mais fundo naquele laguinho. As bandas de rock não devem ser o que queremos delas. Elas são o que são. Mas fico aqui imaginando.
Quarto disco do Menomena. 11 faixas, com produção da própria banda. Lançamento Barsuk Records. 7/10
Trecho | A parte dos críticos
“Ela se perguntava (e de passagem perguntava a eles) até que ponto alguém pode conhecer a obra de outro.
– Eu, por exemplo, adoro a obra de Grosz – disse indicando os desenhos de Grosz pendurados na parede -, mas conheço realmente sua obra? Suas histórias me fazem rir, em certos momentos creio que Grosz desenhou para que eu risse, por vezes o riso se transforma em gargalhada, e a gargalhada num ataque de hilaridade, mas uma vez conheci um crítico de arte que gostava de Grosz, é claro, mas que ficara deprimidíssimo quando via uma retrospectiva da sua obra ou por motivos profissionais tinha de estudar alguma tela ou desenho dele. E essas depressões ou esses períodos de tristeza costumavam durar semanas. Esse crítico de arte era amigo meu, mas nunca havíamos tocado no tema Grosz. Uma vez, porém, lhe contei o que acontecia comigo. No início ele não podia acreditar. Depois pôs-se a sacudir a cabeça de um lado para o outro. Depois olhou para mim de alto a baixo, como se não me conhecesse. Pensei que ele tinha enlouquecido. Rompeu sua amizade comigo para sempre. Faz pouco me contaram que ele ainda diz que eu não sei nada de Grosz e que meu gosto estético é igual ao de uma vaca. Bem, por mim pode dizer o que quiser. Eu rio com Grosz, ele se deprime com Grosz, mas quem realmente conhece Grosz?
– Suponhamos – continuou a senhora Bubis – que neste momento batam na porta e apareça meu velho amigo, o crítico de arte. Ele senta aqui, no sofá, a meu lado, e um de vocês saca um desenho sem assinatura e nos garante que é de Grosz e que deseja vendê-lo. Olho o desenho, sorrio, tiro o meu talão de cheques e compro. O crítico de arte examina o desenho, não se deprime e tenta me fazer mudar de ideia. Para ele não é um desenho de Grosz. Para mim é um desenho de Grosz. Qual dos dois tem a razão?
– Ou formulemos a história de outro modo. O senhor – disse a senhora Bubis apontando para Espinoza – saca um desenho sem assinatura e diz que é de Grosz e tenta vendê-lo. Eu não rio, observo-o friamente, aprecio o traço, o pulso, a sátira, mas nada no desenho estimula meu deleite. O crítico de arte o observa cuidadosamente e, como é natural dele, fica deprimido e ato contínuo faz uma oferta, uma oferta que supera suas economias e que, se aceita, o mergulhará em longas tardes de melancolia. Tento dissuadi-lo. Digo que o desenho me parece suspeito porque não me provoca o riso. O crítico me responde que já era hora de eu enxergar a obra de Grosz com olhos de adulto e me felicita. Qual dos dois tem a razão?”
Trecho de 2666, de Roberto Bolaño.