Memórias

Paul McCartney, 21 de novembro, São Paulo

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Tentei telefonar para meu pai. Ninguém atendeu. Tentei novamente e nada. Talvez o homem estivesse na casa da minha avó, foi o que pensei. Liguei para minha avó. E nada. “Saiu, não disse pra onde”. Pedi a bênção. “Não vejo a senhora há quanto tempo? Quanto tempo mesmo? Dois anos? Três?”

Eu, o neto melancólico. Ela, a avó invisível. O tom de voz era aquele que eu conhecia desde pequeno. Sereno. Se o tom de voz estava ok, então minha avó seguia ok. Irradiando otimismo e bondade para todo o sempre, amém.

Antes de desligar o telefone, perguntei sobre meus primos. Tudo bem? Tudo bem. Então tudo bem. Então ok. Ligue mais. Vou ligar, vou sim.

Voltei ao início da aventura. Telefonar para meu pai: uma aventura. Mais três tentativas. Três e, sem resposta, finalmente desisti de procurar meu velho. Só por hoje. Volto a telefonar amanhã (era esse o plano). Depois do almoço, no período da tarde (é esse o plano).

É como as coisas funcionam: posso falar com meu pai quando bem entendo. Para isso, preciso clicar um botão no meu telefone que dispara um número memorizado na minha agenda. Meu pai pode ligar para mim quando bem entende. Para isso, precisa discar o DDD, o número do meu telefone e pagar uns trocados a mais. Um processo simples, banal, mas raramente conversamos.

E raramente conversamos porque não temos o que conversar. Estamos cada vez mais separados um do outro. Fisicamente, psicologicamente; de todas as formas. Uma relação que se tornou impossível. Talvez por culpa dele (mas não o culpo; eu o amo). Talvez por minha culpa (ainda que eu não identifique culpados no nosso drama). Talvez porque as nossas histórias de vida tenham apontado para direções inevitáveis, que nem sempre nos matam de orgulho.

O que sobra do meu pai é um reflexo, vestígios, filetes de memórias, uns cacos miúdos. Nada muito sólido. Lembro das feições do rosto (e lembro quando olho o espelho; sou uma cópia fiel). Lembro do jeito como ele anda (como um gorila de desenho animado, e também ando um pouco assim). Lembro do sorriso, das desculpas preguiçosas que ele usa para não resolver os problemas, do raciocínio manso; acredito que, mesmo sem ter vivido com ele, herdei tudo isso.

Mas encontro meu pai, principalmente, quando volto às canções que ele me ensinou a ouvir.

E todas elas, todas essas músicas e lugares e memórias (minha infância, minha família, meu passado, o que lembro e deixo de lembrar), estão armazenadas em discos dos Beatles.

A música, você sabe, sequestra nossos sentimentos e os arquiva para sempre. Um acorde pode disparar lembranças longínquas, impressões confusas, cenas traumáticas, acidentes e desilusões, o medo e os amores, o cheiro da adolescência. O tempo passa, mas o passado permanece congelado dentro das músicas que (talvez contra nossa vontade) mapearam a nossa vida.

Por isso, a associação é imediata: ouço Beatles e vejo meu pai. As canções remontam cenas muito específicas, criam uma narrativa. Meu pai na sala gravando Rubber soul em fita cassete para que eu ouvisse no meu quarto. Meu pai ensinando as diferenças entre Revolver e Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band. Meu pai recomendando para que eu ouvisse Abbey Road “mais tarde, não é um disco simples”. E que o Álbum Branco era para adultos (o que só fez disparar minha curiosidade em relação a ele, o meu favorito da banda).

Meu pai defendia o Paul McCartney e, talvez como uma reação instintiva, me tornei um grande entusiasta das loucuras de Lennon. Para meu pai, o segredo do universo está codificado na melodia de Yesterday. Sempre fui do time de Dear Prudence.

O importante é que, por muito tempo, os Beatles eram o único ponto de contato entre as minhas experiências e as do meu pai. Nossa passarela. Sem os Beatles, eu não admiraria o sujeito da forma como o admiro. Ele seria apenas um pai ausente. Talvez ele se diluiria por completo da minha vida.

Era por tudo isso, por todos esses significados contidos nessas músicas, que hoje eu queria tanto, tão desesperadamente, falar com meu pai. Conversar com ele. Abriria a conversa com um bombástico “ei, pai, vi o Paul” – só para ouvir a reação do homem. Susto? Indiferença? Uma risada? Nada?

Além de espetáculo extraordinário (um dos mais tocantes que vi na vida), um show de Paul McCartney desperta todo tipo de impressão e lembrança num público que une jovens e adultos, crianças e avós. As canções pop, essas cápsulas de sensações, se adaptam ao temperamento de quem as ouve. No caso dos Beatles, que escreveram algumas das mais queridas do século 20, esse efeito de catarse ganha o poder de um fenômeno natural incontrolável. São as músicas que nós escolhemos (ou que nos escolheram) para encapsular as nossas memórias, trechos das nossas vidas.

Durante o show, me peguei tentando adivinhar o que All my loving representava para a menina de 13 anos que acompanhava os movimentos do ídolo com uma câmera digital. Qual era o sentido que ela impregnou àquela canção? Depois, notei um quarentão tirando os óculos para secar lágrimas que caíam durante Something. Qual teria sido o poder daquela canção naquela pessoa? Não sei. Possibilidades infinitas.

No meu caso, me surpreendi com canções que me emocionaram. No início do concerto, admito que não consegui criar o elo entre o homem de 68 anos que entrou no palco e aquele rapaz corretinho de Liverpool que, nos anos 60, interpretou as músicas que me aproximaram do meu pai. Algo parecia errado. Algo parecia solto no tempo, desprendido do espaço, como se aquele homem não tivesse o direito de reavivar uma canção como All my loving, que deveria existir apenas nos nossos discos, nos nossos cérebros, nas nossas fitinhas antigas e gastas.

Aconteceu que, pouco depois, o show começou a fazer sentido com tanta velocidade que me engasguei, perdi o ar. Foi durante Drive my car, uma canção não tão pungente quanto Yesterday ou Something ou Hey Jude, mas que, para mim, soou fatal. Soou como um estrondo. Quando as 64 mil pessoas começaram a cantar em coro, aconteceu o milagre: eu estava novamente na casa do meu pai, conversando com ele, ouvindo Rubber soul numa tarde de sábado. Senti até a temperatura da sala. Senti a paisagem fora da sala.

O segundo golpe veio com Blackbird. Paul vai ao centro do palco, a banda se recolhe e sozinho, ele é acompanhado apenas pelo dedilhado de violão. O público reconhece a música e grita, quer chutar a porta da canção. Mas é a voz de Paul que flutua sobre o coro. A confusão está feita: quem canta a música? O Paul de hoje ou de ontem? O que aconteceu com o tempo? Por que aquela canção que ouvimos tantas vezes voltou a nos tocar? Antes que eu tentasse responder qualquer uma dessas perguntas, chorei mais uma vez.

Chorei sem saber por que eu chorava. Depois tentei entender. Mas tai algo que, horas depois do show, ainda me parece um tanto misterioso.

Depois de A day in the life, imaginei como seria se meu pai estivesse comigo naquele show. Possivelmente ele esconderia o choro. Tai: nunca vi esse cena, meu pai chorando. Nem aos 30 anos, nem aos 40, nem aos 50. Desconfio: não conheço meu pai. Dele tenho apenas uma imagem superficial. O rosto duplicado no meu rosto, projetado numa canção de Lennon e McCartney.

O show de Paul é simples o suficiente para permitir que entremos nele. Não nos afasta; nos abraça. Não é maior do que as nossas memórias – está à mesma altura delas, ele as envolve. O único momento de pirotecnia (em Live and let die) soa mais como um exorcismo (nossa catarse explodindo em fotos de artifício) do que mera demonstração de poder e dinheiro. Estamos em outro mundo. Não somos ingênuos, entendemos a máquina milionária que opera um show cujo repertório se repete, até de forma previsível, noite após noite. Mas aceitamos o jogo, precisamos do jogo, o jogo nos alimenta: Paul nos conduz a esse túnel largo onde confrontamos nossa própria história e o passado da música pop.

Yesterday, portanto, é a chave do show (e talvez da carreira de Paul).

E, depois da música, lá no segundo bis, o espetáculo passa a parecer até didático. Paul revê a própria trajetória, dos anos 60 aos 2000, para comprovar a eternidade das canções que escreveu. Elas sobreviveram. Mais do que isso: elas se renovam. Elas estão no ar. Elas venceram. Elas estão acima da nossa capacidade de compreender o efeito que elas provocam em nossos corpos, na cabeça, no peito, nos nossos ossos.

Duas horas depois do show eu ainda não sabia por que havia chorado em Blackbird. Descobri hoje pela manhã, quando o avião aterrissou em Brasília e encontrei uma cidade coberta por neblina. Lembrei de um dia em que eu viajei com meu pai para uma cidade muito fria (não lembro o nome, infelizmente) e Blackbird era a música que eu ouvia insistentemente no Walkman. Um período complicado: o velho não parecia confortável dentro de um segundo casamento, havia perdido o controle de uma rotina que não o entusiasmava. Era terrível de ver. Num dia, muito cedo, pediu o Walkman e começou a ouvir a fita. Ele estava recolhido na varanda, mas espiei a cena. Meu pai assobiando a música, com o olhar perdido, triste, pássaro sem penas.

Ali (eu tinha uns 14 anos) percebi que aquele homem nunca não me defenderia de nada. Era uma pobre alma. Um fraco. E um exemplo que acabei seguindo, mesmo à distância. Quando Paul interpretou Blackbird, talvez eu tenha sentido um tanto daquele desespero que meu pai sentiu. Hoje, aos 31 anos, já desencantado e cansado, eu o entendo.

Acredito que foi por isso, por causa de Blackbird e Drive my car, que tentei telefonar para ele logo que cheguei em casa. Para falar do show, talvez só por isso. Não: para pedir ajuda. Um conselho, uma informação útil, uma dica. E agora, pai, pra onde eu vou?

Sei, sei bem, que ele responderia com uma frase vaga, inútil, ficaríamos em silêncio. Um, dois, dez minutos. E nosso único elo voltaria a se esconder em canções que, quando amplificada pelas caixas potentes de um megaconcerto de rock, ainda me fazem chorar.

Os discos da minha vida (2)

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Um ranking sentimental dos 100 discos que (pausa dramática) marcaram a minha vida. Dois por semana, talvez às segundas-feiras (mas, pensando bem, possivelmente às quartas). Pelos meus cálculos, terminaremos esta jornada antes do fim do mundo. Hold tight.

098 |  Grievous angel | Gram Parsons | 1974 | download 

Eu tive uma momento country-rock: ele durou mais ou menos uns seis meses (acho que por volta de 1997), mas foi tão intenso, tão dedicado, tão obsessivo que eu poderia incluir nesta lista quase todos os discos que ouvi naquela época. Meu quarto cheirava a slide guitars. Neil Young era meu pastor; Bob Dylan, meu arcebispo. Perto deles, Gram Parsons era só um coroinha. Mas, com Grievous angel, o branquelo do cabelo esvoaçante me ensinou a entender o que há de fundamental no gênero: alegria e dor, em cores primárias. E quando eu soube que o sujeito morreu de overdose de morfina pouco depois de gravar essas canções quase sempre tão tranquilas, o disco se transformou num mistério. Ainda é. top 3:  Brass buttons, Hearts on fire, In my hour of darkness.    

097 | Gentlemen | The Afghan Whigs | 1993 | download

O terceiro disco do Afghan Whigs começa com o som de um vendaval. O que vem depois soa ainda mais arrepiante: a voz de um homem confessando segredos por vezes constrangedores. Numa década de discos-de-catarse (uma das especialidades do grunge), poucos soaram tão críveis quanto este aqui. Talvez por parecer tão direto: Greg Dulli compactou o estilo do Afghan Whigs e, quase acidentalmente, acabou criando um padrão para o indie rock dos anos 90, com riffs repetitivos, às vezes dissonantes, quase sempre tristíssimos, engolidos por tufões de guitarras. Para mim, é um álbum que representa o início da adolescência: ódio e medo, mas não sabemos exatamente de quê. top 3: Gentlemen, Debonair, Be sweet.

Os discos da minha vida (1)

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Os discos da minha vida, parte 1. Uma série de posts que começa hoje e só termina pra lá do fim do mundo. Nem desconfio quando.

A ideia é muito, muito simples: 100 discos que marcaram a minha vida, 2 por semana, quando possível com links para que você os ouça.

Não é, portanto, uma lista com a pretensão de elencar os “melhores discos de todos os tempos” ou os “discos mais influentes” ou os “discos para você ouvir antes de morrer” ou os “discos que mudaram o mundo”. É apenas um longo ranking de álbuns que se confundem com algumas das minhas melhores (e às vezes piores) lembranças.

Um top 100 muito pessoal, cheio de idiossincrasias que vão irritar quem entende um pouquinho de música pop. Francamente: é uma listinha insignificante.

A maior parte dos discos vem dos anos 90, a época em que comecei a ouvir música compulsivamente. Mas é apenas o ponto de partida para uma viagem mais extensa (espero que vocês acompanhem com um pouco de paciência).

Tentarei ser breve nos comentários, até para que isto aqui não se transforme numa sessão aborrecida de autoanálise. Aviso que os textos explicam pouco sobre os álbuns e, no máximo, tentam recuperar a minha relação com esses discos. Não espere tratados. E é uma questão delicada, afinal de contas: não costumo ouvir estes discos, até para não ser tragado por terríveis flashbacks.

Mas sugiro que você os ouça. São bons.

100 | Grand Prix | Teenage Fanclub | 1995 | download  

Hoje soa como o álbum de power pop mais direto que se fez: um refrão, um riff, coros agradáveis, emoções frágeis, alguma tristeza e quase nada mais. Quase uma cartilha. Lá nos anos 90, foi um disco que me perseguiu quase contra a minha vontade. Nas primeiras audições, não levei muito a sério: achei aguado e choroso (o oposto do grunge, por exemplo). Eu tinha 15 anos. Mas cresci e Grand prix foi crescendo junto comigo, como um amuleto. “Este sentimento não vai embora”, eles avisavam. Não foi. top 3Don’t look back, Sparky’s dream, Neil Jung.

099 | Ten | Pearl Jam | 1991 | download

Eu juro que não me lembrava disto: a estreia do Pearl Jam sempre começou com essa atmosfera pseudo-oriental que mais tarde seria aplicada a discos do Kula Shaker e da Alanis Morissette? Mas taí: esse tipo de excesso era uma característica da onda grunge que o Pearl Jam soube aplicar com despudor e sisudez. E, saudosismo à parte, ainda considero o melhor momento deles. Menos aventureiro do que No code, mas gloriosamente single-minded (não consigo encontrar outro termo). Eu tinha a fita-cassete e admito que preferia o lado B (a começar por Oceans, ainda tocante). Hoje acho que eu ficaria com lado A, que tem o cheiro das minhas blusas de flanela. top 3: Oceans, Black, Jeremy.

Avi Buffalo | Avi Buffalo

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(Um texto sobre o disco Avi Buffalo, da banda Avi Buffalo. Com anotações sobre Becoming a jackal, do Villagers)

(Não, não vou fazer isso sempre. Fiquem tranquilos)

Há muito tempo, talvez uns bons cinco anos, entrevistei o Todd Solondz. O cineasta. Vocês sabem quem. Ele é, de fato, um sujeito esquisito. Sim, um pouco como o Milhouse, amiguinho do Bart Simpson. E, mais importante do que isso, o homem parecia um tanto desconfortável.

Talvez estivesse incomodado com a cidade (Brasília é um susto, e é por isso que eu a amo), talvez com os jornalistas que o acossavam (gravadores em riste!), talvez com as perguntas enviesadas de uma repórter que o confundiu com o Larry Clark. Talvez, na hipótese mais curiosa, ele fosse daquele jeito mesmo. Suava ao responder às perguntas. Uns vinte minutos depois, já exausto, pediu uma garrafinha d’água e zarpou para o quarto do hotel.

Antes de sair, respondeu à inevitável questão sobre esse tal de cinema independente. Azar de quem perguntou. O tio geek estava farto, exausto, irritado, uma pilha. Daí que respondeu algo ríspido, quase uma cusparada (e traduzo o desabafo para o português, para poupar-lhe trabalho):

“Cinema independente? Bull-shit! Isso não existe! Isso nunca existiu! Isso é uma farsa! O único cineasta independente que eu conheço é o George Lucas, que tem grana pra filmar o que bem entende. Poupem-me desses clichês ridículos”, e foi (se não me falha a memória) isso.

Obviamente (e vocês, que são mais inteligentes do que eu, perceberam isso), trata-se de uma declaração tão inconsequente quanto muitos dos filmes do diretor de Felicidade. Também: uma declaração que, apesar de feia, tem um quê de verdade – como são os filmes do diretor de Felicidade.

O que acontece é que sempre penso nela, naquela declaração, quando ouço um disco “independente” que me parece tão cômodo quanto aquilo que esperamos de álbuns lançados por corporações do mal. É o Solondz no meu ouvido: rock independente? Bull-shit!

Mas, se é assim, se todo maniqueísmo é ilusão, por que os selos independentes ainda despertam em mim infinita simpatia? Mais do que isso: por que eles evocam uma certa aura de pureza, de espontaneidade, como se fossem gerenciados por um bando de hippies que vive dentro de cabanas e se alimenta de frutas e peixe assado? E eu não sou o sujeito mais ingênuo. Eu também perdi a inocência quando descobri que meu pai e minha mãe resolveram fazer por conta própria o que deveriam ter encomendado à cegonha. Então… Por quê?

Bem-vindos, amigos, ao mundo de Avi Buffalo, uma banda californiana. E do Villagers, um projeto irlandês. Ambos saudáveis e esguios. Ambos agradabilíssimos. Ambos confortavelmente independentes.

A estreia do Avi Buffalo saiu pela Sub Pop, talvez o maior selo indie dos Estados Unidos. O do Villagers, pela Domino Records, um dos maiores da Europa. Antes que alguém me recrimine, são dois belos discos.  Você deveria tê-los no seu iPod.

Não existe, pelo menos não que eu saiba, um “som Sub Pop” ou um “som Domino Records”, mas, naturalmente, existe uma certa coerência na forma como os selos escolhem as bandas contratadas e lançam discos.

Sabemos, por exemplo, que a Sub Pop prefere álbuns concisos (quando lançaram o CSS, foram logo cortando as gorduras do disco) e, depois de um tufão chamado The Shins, procura bandas que sigam uma certa linha folky, dreamy, levemente psicodélicas: daí vieram Band of Horses, Fleet Foxes e, agora, Avi Buffalo.

E sabemos também que a Domino Records tem a capacidade de facilitar o acesso a outsiders: foi o que aconteceu com o Animal Collective em Merriweather Post Pavilion e com o Dirty Projectors em Bitte Orca. Outro dia mesmo, eles lançaram um disco elegantemente melodioso do Wild Beasts. O slogan do selo seria algo como “estranheza sim; mas com ternura”.

Becoming a jackal, do Villagers, parece ter sido formatado para nos fazer lembrar de Two dancers, do Wild Beasts. Da mesma forma como Avi Buffalo está coladinho ali em Oh, inverted world, do Shins, e no primeirão do Fleet Foxes. 

A história, portanto, funcionaria mais ou menos assim: se você gostou de Wild Beasts, ouça Villagers. Se curtiu Shins, vá de Avi Buffalo. Mais ou menos quando a Universal Music, digamos, tenta nos empurrar a nova Rihanna, o novo Kanye West. Não muda muita coisa.

O interessante, nos dois casos, é como as bandas lutam (discretamente) contra as expectativas criadas pelos selos. Sim, já que o Villagers não é o novo Wild Beasts e o Avi Buffalo não veio ao mundo (felizmente) para clonar os genes do Shins.

Daí que, resumindo, são dois discos no meio do caminho. Entre pontos de partida problemáticos (tudo o que eles deveriam ter feito era seguir caminhos já planejados) e alguns belíssimos desvios de rota. 

O do Avi Buffalo, por exemplo, aos poucos vai se transformando numa cria até muito convincente de Neil Young e Grateful Dead. Five little sluts é algo muito mais próximo de um Thurston Moore do que de um Band of Horses (é claro, amaciado pelos travesseiros da Sub Pop). E Avigdor Zahner-Isenberg, o prodígio de 18 anos que escreve essas canções, canta maltratando a faringe, sentindo cada nota.

O disco do Villagers – projeto do faz-tudo Conor J. O’Brien, de Dublin – parece mais adaptável à programação das rádios que veiculam as baladas de Damien Rice e Jamie Cullum. Como o Wild Beasts, Conor vai do mundano ao bizarro. A primeira faixa, I saw the dead, resume esse equilíbrio: o compositor nos convida para entrar num porão onde vivem crianças mortas. Na faixa seguinte, avisa que está vendendo a alma (e, aparentemente, somos nós os compradores). 

É um personagem forte, esse homem atormentado, esse lone ranger, essa pobre alma assombrada por sabe-se lá quantos fantasmas.

Mas, tal como o Avi Buffalo, o que há de singular nessa sonoridade é arredondado por uma produção que deixa tudo nos devidos lugares. A produção vende o disco muito bem. Faixas como Home e Pieces justificam a indicação do disco ao Mercury Prize: são corretas e, se você estiver no clima, tocantes.

Por curiosidade, eu gostaria de ouvir um disco do Avi Buffalo que não passasse pelo crivo da Sub Pop. E um álbum do Villagers sem a grife da Domino Records. Outro dia mesmo, eu comentei por aqui que as pressões de grandes gravadoras às vezes estimulam os nossos ídolos a nos surpreender. Nesses dois casos, no entanto, eu queria muito menos: o que eles fariam se tivessem toda a liberdade do mundo?

Talvez nada muito melhor do que isso. Veja o George Lucas. Mas seria um desafio.

Avi Buffalo. Primeiro disco do Avi Buffalo. 10 faixas, com produção de Aaron Embry. Lançamento Sub Pop. 7/10

Becoming a jackal. Primeiro disco do Villagers. 11 faixas, com produção de Conor J. O’Brien e Tommy McLaughlin. Lançamento Domino Records. 7/10

Guns N’ Roses em Brasília

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O palco do Guns N’ Roses é um campo minado. Um rojão explode a cada 10 minutos. Ninguém está seguro. O bombardeio, quando chega, é tão extremo que solta algum cheiro de apocalipse. O estádio estremeceu? Em tempo de terremotos emmerichianos, não há como não ficar (pelo menos um pouco) estressado. Mas tudo é artifício. A terra treme, espalha fumaça, cospe fogo, dispara faíscas coloridas de festas juninas e, depois do vigésimo estouro, estamos anestesiados. É só um show de rock.

Antes de começarmos, um rápido flashback: comprei ingresso para o show do Guns N’ Roses (domingo à noite, no ginásio Nilson Nelson, Brasília) talvez disposto a reencontrar o Tiago meninão que, em 1991, queria ser Axl Rose. Chamem de masoquismo. Minha pré-adolescência, como muitas outras, foi estranha. Ainda não entendo como, naquela época, eu conseguia amar simultaneamente os hits medonhos do Information Society, Roxette, Skid Row, The Simpsons (sing the blues!), Paula Abdul, New Kids on the Block e… Guns N’ Roses. November rain era minha Bohemian rhapsody.

Dois anos depois, eu me envergonharia disso tudo. É natural. A pré-adolescência, como eu ia dizendo, pode ser pavorosa. Daí que entrei no ginásio, 30 anos no meio da testa, com aquela aparência esnobe de quem assiste a um megashow de rock com o distanciamento de quem se submete uma “experiência pop”. Ã-hã. Mal sabiam que o Tiago pré-adolescente, tinhoso e cruel, pulsava de saudades, faminto por sucessos radiofônicos moribundos. O show de abertura (Sebastian Bach!) provocou arrepios de nojo e nostalgia. 18 and life é mesmo um horror, mas diz muito sobre o babaca sentimental que eu era naquela época (e que ainda está um pouco vivo, e vaso ruim não quebra).

O que mais me agrada na ideia de escrever textos em blogs é que temos o direito de mandar os bons modos às favas: desculpem-me os fãs mais talibãs e os adeptos tardios da axlmania, mas o show do Guns N’ Roses em Brasília foi uma bela merda. Uma fedida, imensa, cafona, barulhenta, estúpida, bela merda. Mas, antes que o primeiro fanático grude este post numa comunidade odiosa do Orkut, peço para que reparem no adjetivo: uma bela merda não é qualquer merda. E, quando eu digo que o show foi uma bela merda, estou fazendo uma espécie de elogio. Acreditem em mim.

No início dos anos 90, essa fanfarronice ganharia o apelido da moda: farofa. Como todo legítimo espetáculo farofeiro, a turnê do Guns não tem limites. Perde a medida logo nos primeiros cinco minutos. É Onde vivem os monstros dirigido por Baz Luhrmann. A produção escolheu uma banda de heavy metal de Brasília para abrir os trabalhos, mas a quem eles querem enganar? Guns N’ Roses nunca escondeu no armário a quedinha por Queen, Elton John e Kiss. Se existe uma definição para esse som escancaradamente festivo, seria algo como glam-hard-rock. Sabe Extreme? Sabe Mr. Big? Axl Rose pairou sobre tudo isso feito um urubu-rei.

Não é um show que pede licença, e isso me agrada. Axl Rose não mira o cérebro, mas o intestino. Daí as explosões desagradáveis no palco. Que irritam. E pregam sustos no público. Daí a chuva de confete e serpentina. E a lista de pedidos estranhos à produção (muito champanhe, alguma cachaça, toalhas brancas). As imagens nonsense exibidas no telão (em You could be mine, o que significam as cenas de corrida de Fórmula 1, tio Axl?). Os solos ridiculamente exagerados. Cada música é devassada numa escala monumental. Impossível sobreviver às 2h45 de show sem ficar pelo menos um pouquinho cansado.

Eu admito: fiquei exausto. Às 2h45 da madrugada, quando Axl deixou o palco, tudo o que eu queria era deitar meus neurônios num balde de gelo.

Lá pela terceira música, quando meus tímpanos zuniam com o eco de uns cinco cabeções-de-nego, notei que o Guns N’ Roses que estava no palco não era exatamente o Guns N’ Roses da minha pré-adolescência. Não é nem poderia ser. A banda estava totalmente remodelada (um septeto formato por tipinhos calculadamente exóticos) e o próprio Axl era um avatar inflado daquele ídolo que, lá por volta de 1994, morreu e voltou na pele de um esquisitão obcecado por new metal e política chinesa.

E àqueles que me perguntam se o Axl ainda canta, respondo o seguinte: não sei. Pergunte a outro. Da arquibancada, ouvíamos absolutamente tudo (a bateria, a percussão, os chocalhos, o piano, a metralhadora de bombinhas, os ruídos bizarros à rock industrial), menos a voz de Axl Rose. Não é curioso? O que esperamos encontrar de aparentemente genuíno num show do Guns N’ Roses é a figura de Axl, a celebridade-problema, o monstro congelado no início dos anos 90, o Macaulay Culkin crescido. E tudo o que vimos foi um sujeito de bandana gesticulando agoniadíssimas canções de amor. Um videokê.

Coisas assim acontecem, eu sei. Shows são imprevisíveis, eu sei. Lembro de um da Marisa Monte: espremido na beirada da arquibancada, não consegui ver o palco (que estava aprisionado por um freezer luminoso de arte moderna) e não ouvi o som (cheio de delicadezas sussurradas). Em Brasília, no ginásio Nilson Nelson, esse tipo de coisa acontece com certa frequencia.

Sorte a minha que, no caso do Guns, consegui entender o que acontecia no palco. Os músicos improvisam melodias engraçadinhas (o tema de James Bond, David Bowie, Pantera cor de rosa) enquanto Axl some no camarim (e ele sumia tantas vezes que começamos a suspeitar que ele estaria assistindo ao Oscar e tocando nos intervalos da transmissão). Axl retorna e intercala um hit com uma faixa desconhecida de Chinese democracy. Bombas explodem. É uma guerra, é uma guerra, e ela continua assim por quase duas horas.

A banda (cover) o acompanha com muita precisão. No telão, vemos imagens de meninas depressivas e suicidas. Axl, para quebrar a rotina, vai ao piano e toca November rain. O povo chora, mesmo sem ouvir a voz do moço. Daí ele toca Patience (e dá a deixa pra todo tipo de piada maldosa – esperamos 1h30 para a montagem do palco). O povo se emociona e grita “esta é minha música!”, mesmo sem ouvir a voz do sujeito. Ele sai do palco e volta. Canta outra faixa obscura do Chinese democracy. E termina com Paradise city, que reprisa o entusiasmo com que recebemos o momento bombástico e irado da noite, Welcome to the jungle. Chove serpentina. É carnaval na farofalândia. Axl, bonachão, pede desculpa aos pais que precisam levar os filhos ao colégio. Muita gente boceja. 

E é isto: um showzaço escroto e safado e muito ca-fo-na que esfrega na nossa cara o quão grosseiro era o nosso gosto musical em 1991. Tomem isto. Dancem com isto. Chorem com isto. E ainda houve quem disesse que Brasília nunca viu um evento tão grandioso, tão espetacular, tão bonito e poderoso. Então é isso que vocês querem, é? Farofa, suor e rock ‘n’ roll? Nós, brasilienses, ainda seremos devastados pelo nosso complexo de inferioridade.

Para mim, funcionou como uma espécie de terapia. Agora entendo por que, na minha autobiografia íntima, pulo essa temporada confusa da minha vida. Para todos os efeitos, nunca tive 11 anos de idade. Nunca comprei fitas cassete do Guns N’ Roses. Nunca usei bandana em bloco de carnaval. E nunca, em nenhum momento, juro que não quis ser Axl Rose quando eu crescesse.

Quero menos ainda. Pelo menos até o dia em que o fantasma da minha pré-adolescência resolver me atazanar de novo. Eu era um menino muito estúpido, já disse isso? Mas e o Poison, ainda faz turnês?

Together through life | Bob Dylan

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bobTogether through life conta como o 33º álbum de Bob Dylan. Tudo bem. Um longo, longo caminho. Muita história para contar. Um mundo. Uma vida. Uma saga. Mas alguém precisa saber disso? Melhor seria tomá-lo como parte de um entardecer iniciado em Time out of mind, de 1997. Um quarto disco. E, por um momento, esquecer o resto.

É que nada será como antes, sabe? Depois de gravar dois álbuns revisionistas, com interpretações para antiguidades do folk (os incompreendidos Gone as I been to you, de 1992, e World gone wrong, de 1993), Dylan criaria ele próprio uma sonoridade descolada no tempo, de costas para o pop contemporâneo — a simulação de um passado musical muito distante, anterior ao período em que um jovem Robert Allen Zimmerman traçou as coordenadas de uma das maiores revoluções do rock.

Em algum momento, alguém perderia a vergonha e lançaria a pergunta: é um jogo interessante, mas que sentido isso faz? Há uma hora em que a brincadeira termina?

Existe um clima de frustração em muitas das resenhas de Together through life (aqui não falo das revistas que automaticamente aprovam todas as criações do cantor, mas de uma NME da vida, de uma Spin), e acredito que ele se explique pelo fato de que eu, você e todos nós esperamos incansavelmente pelo retorno de um Bob Dylan que pertence ao nosso passado. Queremos indícios do ídolo rebelde, quase inconsequente, iconoclasta e insolente, que implode festivais de folk com guitarras elétricas e resgata o country em meio ao frenesi psicodélico do final dos anos 60. Mesmo que inconscientemente, temos a esperança que a agonia que ainda existe nos versos do compositor termine por contaminar a música, exploda em acordes transgressores e novamente maltrate nossas expectativas. Mas, ao mesmo tempo, amamos o Dylan que não respeita nossos desejos, não anda nos trilhos, não se adapta em antologias musicais — o poeta ao sabor do vento.

Como conviver com um ídolo que insiste em nos apontar as direções que não queremos seguir? Talvez seja mesmo impossível agarrá-lo. Daí as biografias incompletas, as lendas urbanas, as declarações falsas em entrevistas, as anedotas, as múltiplas personalidades, I’m not there e todas as reentrâncias do mito Dylan, ainda nebuloso, imprevisível até quando parece repetir-se.

Aos 67 anos, Dylan busca um som. Talvez não mais que isso. Por coincidência, dia desses assisti a um documentário sobre o processo de gravação de um disco de Brian Wilson. O maestro tortura os músicos e repete takes obsessivamente até extrair os acordes e o clima já perfeitamente construídos em sua cabeça. É por aí.

Principalmente a partir de Love and theft, Dylan (ou Jack Frost, pseudônimo usado para a produção do álbum), encontraria satisfação na ideia de usar a tecnologia de estúdios para registrar um sentimento sonoro. O tema dos álbuns passaria a ser a própria descoberta de uma sonoridade. Se temos a impressão de ouvir um antigo disco de blues da Chess Records ou da Sun Records, então Dylan cumpriu o objetivo. A produção é parte importante da mensagem.

Together through life leva essas experiências ao limite. A seu modo, é um disquinho impertinente. Ao aceitar o convite do diretor francês Olivier Dahan para compor uma canção a ser incluída no filme My own love song, Dylan inspirou-se para um álbum inteiro. Com domínio da técnica de produção, gravou rapidamente acompanhado da própria banda e com participações de David Hidalgo, do Los Lobos, e Mike Campbell, do Tom Petty and the Heartbreakers. Diretor do próprio filme, Dylan sabe exatamente o álbum que quer: cru como um bootleg, fluente e despretensioso como Nashville skyline, calcado em blues e acordeão: uma coleção de canções de amor que poderiam ter sido gravadas nos anos 50. Ou nos 80. Ou em 2020 (acelere o andamento, inclua distorção e Beyond here lies nothing renderia o primeiro hit digno do Kings of Leon).

Imagino que, com o passar dos anos, a velhice de Dylan será compreendida como o período em que o artista finalmente conseguiu assumir controle integral da própria arte. Em entrevistas, ele confessa a insatisfação com o resultado de gravações que transformaria em clássicos. Não mais. Together through life é um filme de estrada. A dois. E a fotografia granulada não está lá por acaso.

Se os versos parecem ir sempre direto ao assunto (e a parceria com Robert Hunter, do Grateful Dead, já é histórica), eles criam conexões com os três álbuns anteriores ao levar a sério aquilo que o crítico Allan Jones define como um mandamento do blues (que não funciona muito bem quando traduzido para o português): “you might get better, but you will never get well”. São narrativas que não escondem a desilusão (Life is well é uma patada) e a falta que sentem de uma época irrecuperável (O personagem de Life is hard lamenta a solidão, o protagonista de If you ever go to Houston quer de volta as memórias dos antigos bares onde se perdeu, e talvez seja a mesma pessoa que canta Forgetful heart) e a proximidade da morte. “Sinto uma mudança se aproximando. E a quarta parte do dia está quase no fim”, admite, na a obra-prima I feel a change comin’ on.

Que sentido isso faz? Talvez nenhum. Os novos discos de Bob Dylan possivelmente querem nos lembrar que a vida é dura e às vezes segue caminhos incompreensíveis. Os amores passam. A dor não diminui. A saudade arde. E o rock ainda nem nasceu.

Trigésimo terceiro álbum de Bob Dylan. 11 faixas, com produção de Jack Frost. Lançamento Columbia Records. 8.5/10