Mês: novembro 2010

Os discos da minha vida (17)

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A saga sangrenta dos 100 discos que cravejaram balas na minha vida chega a um episódio especialmente nervoso: neste momento, tenho muito, muito, muito pouco tempo para escrever sobre qualquer coisa. O blog, vocês sabem, é o que acontece enquanto faço outros planos.

Ironicamente, poucas, poucas, poucas coisas previsíveis acontecem na minha vida. Eu poderia escrever cinco ou seis posts longos, chorosos e surpreendentemente otimistas sobre o mundo, o novo cinema brasileiro, o amor, meu dedão do pé e tudo o mais. Poderia, mas neste momento não posso.

O que posso (ainda que muito apressadamente) é empurrar esta carroça aqui e apresentar mais dois disquinhos que fizeram da minha existência um lugar menos… Ah, sério, sem tempo hoje para clichês.

068 | Dusty in Memphis | Dusty Springfield | 1969 | download

Já escreveram tantos textos sobre este disco que tudo o que me resta é virar a lente para o meu umbigo. Foi a trilha de Pulp Fiction que me levou a este álbum — e admito que, num primeiro momento, não entendi nada. Me parecia polido demais, sem fissuras e arestas. Anos mais tarde, aos vinte e pouco, descobri um álbum pop perfeito, que agora soava exato, sem sobras ou deslizes. Mas foi só aos 30 que compreendi os efeitos da voz de Dusty, que nos transporta para um mundo ao mesmo tempo tão longe e tão perto das tradições da soul music americana. Algo que muita gente tentou reprisar (Cat Power em The greatest, por exemplo), mas não há como: esta jornada é só dela. Top 3: Just a little lovin’, Son of a preacher man, Just one smile.

067 | Sea change | Beck | 2002 | download

Será, para sempre, o álbum incompreendido de Beck Hansen. Talvez (e acredito cada vez mais nessa hipótese) por ser o disco que nunca quisemos que ele gravasse. É mesmo constrangedor notar que nosso ídolo, o loser que venceu a indústria, também é uma criatura instável, frágil, que sofre com o amor e desabafa para as paredes — mais ou menos como nós. Na época do lançamento, os críticos mais corajosos compararam a Blood on the tracks. Mas, francamente, não chega perto: o Dylan mais rancoroso não soa tão desamparado quanto este homem exaurido, descrente nas pessoas e nos romances, incapaz de romper uma bolha de melancolia, que regurgita Gainsbourg e Nick Drake em solidão. Um disco errado, que talvez nem devesse ter chegado às lojas. Mas chegou: e, assim como está, soa como um registros mais sinceros, mais pungentes do mundo. Top 3: Guess I’m doing fine, Round the bend, Lonesome tears.

Superoito no Planeta Terra 2010

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Phoenix, meu favorito da noite

A comparação é totalmente injusta, mas digamos que seja inevitável: se show do Paul McCartney foi um fenômeno da natureza, torrente de emoções, uma choradeira infernal, os do festival Planeta Terra foram apenas… shows. Pois é. Uma história bem mais mundana. Mas, ainda assim, a ser contada aos nossos netos roqueiros.

Eu poderia escrever um texto longo sobre o assunto, mas este blog sempre perde a luta contra a minha rotina. No momento, o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro toma quase todo o meu tempo, diariamente, das nove da manhã às duas da madrugada. Escrevo este post, por exemplo, num raro intervalo entre uma obrigação profissional e outra, de pé e suando litros.

Pensei em fazer um pequeno diário sobre a mostra de cinema, mas duvido que algum leitor do blog se importe com o evento. Este ano, resolvi pular esta parte para poupá-los do enfado e me livrar de dores de cabeça.

Numa velocidade enlouquecedora (perdoem os deslizes), aí vão pequenos comentários sobre os shows do Terra. Lembrando que só consegui acompanhar as atrações do Main Stage (o som do palco, aliás, estava perfeito).

Phoenix | 8.5 | Um show reto, econômico, quase monocromático (a começar pela iluminação, que esconde os franceses em sombras), mas com o tipo de poder concentrado que encontramos em bandas como Strokes e Arctic Monkeys. A setlist amplia o formato do disco Wolfgang Amadeus Phoenix: um trator de hits compactos interrompido por uma muralha alta chamada Love like a sunset (numa versão bem diferente daquela que está no disco, mais rock e quase nada de eletrônica). Para quem os acusa de blasé, Thomas Mars se retratou direitinho: “nadou” sobre a plateia e provou ser um vocalista mais destemido e atlético do que Mika e Kevin Barnes. Para mim, o show mais divertido da noite (mas admito: minha percepção pode ter sido influenciada pelo fato de que eu fui praticamente atropelado pelo vocalista; saudade daquela grade). Momento mágico: Lasso.

Pavement | 8 | Um flashback estranhíssimo, já que agrada totalmente ao fã (a banda toca as músicas mais conhecidas de cada disco; mais acessível do que isso, impossível) mas, ao mesmo tempo, incomoda um pouco aqueles que, como eu, amavam uma banda menos polida, menos ansiosa por agradar aos fãs. Apesar da sensação de que há algo errado com esse revival, eles estão muito mais afinados (e sóbrios!) do que eu esperava. Velhos amigos, o tempo passou. Momento mágico: Stop breathing.

Of Montreal | 8 | Teatrinho psicodélico mui perverso e hilariante: o tipo de sonho pirado que te deixa encucado no dia seguinte. Ótimo confirmar in loco que Kevin Barnes é mesmo um dos melhores performers em ação — mas o som embolado em músicas como Heimdalsgate like a promethean curse me irritou um pouco. E nada de Famine affair? Momento mágico: Bonny ain’t no kind of rider.

Mombojó | 7.5 | Cada vez melhores (e este show conseguiu superar o do Porão do Rock). Ocuparam quase 1/3 do palco, tocaram às quatro da tarde e, ainda assim, uma performance mais potente do que a de muitas bandas que vieram depois. Só uma ressalva: o clímax do show é muitíssimo superior a todo o resto. Momento mágico: Deixe-se acreditar.

Novos Paulistas | 6.5 | Uma boa estrategia para encontrar uma brecha no palco principal do Terra. E Tiê — que canta, toca piano e violão — é a musa da noite. Momento mágico: Efêmera.

Mika | 6 | Um espetáculo da Broadway condensado em 60 minutos e interpretado quase que totalmente por apenas um ator. Se o quesito principal fosse profissionalismo e técnica, o melhor show da noite. Mas me deixou a sensação de um clipe do American idol: um cantor competentíssimo se virando com um repertório medonho. Momento mágico: Billy Brown.

Smashing Pumpkins | 5 | Um tédio. Eu, que era um grande fã dos Pumpkins nos anos 90 (acompanhem a lista de discos da minha vida e vocês verão), ainda não consigo entender por que Billy Corgan acredita que as músicas novas, de uma pobreza gritante, têm o direito de dividir o palco com maravilhas como Today, Zero e Bullet with butterfly wings. Não me irritei tanto assim com a arrogância do sujeito (cobrar simpatia de Corgan equivale a exigir ‘animação’ do Pavement), mas o problema é muito simples: conceito nota 10 (olhar para o futuro, valorizar inéditas, ignorar o oba-oba dos fãs), efeito nota 0 (as inéditas só revelam o quanto o vocalista tenta repetir o passado). Média 5 para a montanha-russa do festival. Momento mágico: Bullet with butterfly wings.

Agora vou ali ver uns filmes. Abs.

Paul McCartney, 21 de novembro, São Paulo

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Tentei telefonar para meu pai. Ninguém atendeu. Tentei novamente e nada. Talvez o homem estivesse na casa da minha avó, foi o que pensei. Liguei para minha avó. E nada. “Saiu, não disse pra onde”. Pedi a bênção. “Não vejo a senhora há quanto tempo? Quanto tempo mesmo? Dois anos? Três?”

Eu, o neto melancólico. Ela, a avó invisível. O tom de voz era aquele que eu conhecia desde pequeno. Sereno. Se o tom de voz estava ok, então minha avó seguia ok. Irradiando otimismo e bondade para todo o sempre, amém.

Antes de desligar o telefone, perguntei sobre meus primos. Tudo bem? Tudo bem. Então tudo bem. Então ok. Ligue mais. Vou ligar, vou sim.

Voltei ao início da aventura. Telefonar para meu pai: uma aventura. Mais três tentativas. Três e, sem resposta, finalmente desisti de procurar meu velho. Só por hoje. Volto a telefonar amanhã (era esse o plano). Depois do almoço, no período da tarde (é esse o plano).

É como as coisas funcionam: posso falar com meu pai quando bem entendo. Para isso, preciso clicar um botão no meu telefone que dispara um número memorizado na minha agenda. Meu pai pode ligar para mim quando bem entende. Para isso, precisa discar o DDD, o número do meu telefone e pagar uns trocados a mais. Um processo simples, banal, mas raramente conversamos.

E raramente conversamos porque não temos o que conversar. Estamos cada vez mais separados um do outro. Fisicamente, psicologicamente; de todas as formas. Uma relação que se tornou impossível. Talvez por culpa dele (mas não o culpo; eu o amo). Talvez por minha culpa (ainda que eu não identifique culpados no nosso drama). Talvez porque as nossas histórias de vida tenham apontado para direções inevitáveis, que nem sempre nos matam de orgulho.

O que sobra do meu pai é um reflexo, vestígios, filetes de memórias, uns cacos miúdos. Nada muito sólido. Lembro das feições do rosto (e lembro quando olho o espelho; sou uma cópia fiel). Lembro do jeito como ele anda (como um gorila de desenho animado, e também ando um pouco assim). Lembro do sorriso, das desculpas preguiçosas que ele usa para não resolver os problemas, do raciocínio manso; acredito que, mesmo sem ter vivido com ele, herdei tudo isso.

Mas encontro meu pai, principalmente, quando volto às canções que ele me ensinou a ouvir.

E todas elas, todas essas músicas e lugares e memórias (minha infância, minha família, meu passado, o que lembro e deixo de lembrar), estão armazenadas em discos dos Beatles.

A música, você sabe, sequestra nossos sentimentos e os arquiva para sempre. Um acorde pode disparar lembranças longínquas, impressões confusas, cenas traumáticas, acidentes e desilusões, o medo e os amores, o cheiro da adolescência. O tempo passa, mas o passado permanece congelado dentro das músicas que (talvez contra nossa vontade) mapearam a nossa vida.

Por isso, a associação é imediata: ouço Beatles e vejo meu pai. As canções remontam cenas muito específicas, criam uma narrativa. Meu pai na sala gravando Rubber soul em fita cassete para que eu ouvisse no meu quarto. Meu pai ensinando as diferenças entre Revolver e Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band. Meu pai recomendando para que eu ouvisse Abbey Road “mais tarde, não é um disco simples”. E que o Álbum Branco era para adultos (o que só fez disparar minha curiosidade em relação a ele, o meu favorito da banda).

Meu pai defendia o Paul McCartney e, talvez como uma reação instintiva, me tornei um grande entusiasta das loucuras de Lennon. Para meu pai, o segredo do universo está codificado na melodia de Yesterday. Sempre fui do time de Dear Prudence.

O importante é que, por muito tempo, os Beatles eram o único ponto de contato entre as minhas experiências e as do meu pai. Nossa passarela. Sem os Beatles, eu não admiraria o sujeito da forma como o admiro. Ele seria apenas um pai ausente. Talvez ele se diluiria por completo da minha vida.

Era por tudo isso, por todos esses significados contidos nessas músicas, que hoje eu queria tanto, tão desesperadamente, falar com meu pai. Conversar com ele. Abriria a conversa com um bombástico “ei, pai, vi o Paul” – só para ouvir a reação do homem. Susto? Indiferença? Uma risada? Nada?

Além de espetáculo extraordinário (um dos mais tocantes que vi na vida), um show de Paul McCartney desperta todo tipo de impressão e lembrança num público que une jovens e adultos, crianças e avós. As canções pop, essas cápsulas de sensações, se adaptam ao temperamento de quem as ouve. No caso dos Beatles, que escreveram algumas das mais queridas do século 20, esse efeito de catarse ganha o poder de um fenômeno natural incontrolável. São as músicas que nós escolhemos (ou que nos escolheram) para encapsular as nossas memórias, trechos das nossas vidas.

Durante o show, me peguei tentando adivinhar o que All my loving representava para a menina de 13 anos que acompanhava os movimentos do ídolo com uma câmera digital. Qual era o sentido que ela impregnou àquela canção? Depois, notei um quarentão tirando os óculos para secar lágrimas que caíam durante Something. Qual teria sido o poder daquela canção naquela pessoa? Não sei. Possibilidades infinitas.

No meu caso, me surpreendi com canções que me emocionaram. No início do concerto, admito que não consegui criar o elo entre o homem de 68 anos que entrou no palco e aquele rapaz corretinho de Liverpool que, nos anos 60, interpretou as músicas que me aproximaram do meu pai. Algo parecia errado. Algo parecia solto no tempo, desprendido do espaço, como se aquele homem não tivesse o direito de reavivar uma canção como All my loving, que deveria existir apenas nos nossos discos, nos nossos cérebros, nas nossas fitinhas antigas e gastas.

Aconteceu que, pouco depois, o show começou a fazer sentido com tanta velocidade que me engasguei, perdi o ar. Foi durante Drive my car, uma canção não tão pungente quanto Yesterday ou Something ou Hey Jude, mas que, para mim, soou fatal. Soou como um estrondo. Quando as 64 mil pessoas começaram a cantar em coro, aconteceu o milagre: eu estava novamente na casa do meu pai, conversando com ele, ouvindo Rubber soul numa tarde de sábado. Senti até a temperatura da sala. Senti a paisagem fora da sala.

O segundo golpe veio com Blackbird. Paul vai ao centro do palco, a banda se recolhe e sozinho, ele é acompanhado apenas pelo dedilhado de violão. O público reconhece a música e grita, quer chutar a porta da canção. Mas é a voz de Paul que flutua sobre o coro. A confusão está feita: quem canta a música? O Paul de hoje ou de ontem? O que aconteceu com o tempo? Por que aquela canção que ouvimos tantas vezes voltou a nos tocar? Antes que eu tentasse responder qualquer uma dessas perguntas, chorei mais uma vez.

Chorei sem saber por que eu chorava. Depois tentei entender. Mas tai algo que, horas depois do show, ainda me parece um tanto misterioso.

Depois de A day in the life, imaginei como seria se meu pai estivesse comigo naquele show. Possivelmente ele esconderia o choro. Tai: nunca vi esse cena, meu pai chorando. Nem aos 30 anos, nem aos 40, nem aos 50. Desconfio: não conheço meu pai. Dele tenho apenas uma imagem superficial. O rosto duplicado no meu rosto, projetado numa canção de Lennon e McCartney.

O show de Paul é simples o suficiente para permitir que entremos nele. Não nos afasta; nos abraça. Não é maior do que as nossas memórias – está à mesma altura delas, ele as envolve. O único momento de pirotecnia (em Live and let die) soa mais como um exorcismo (nossa catarse explodindo em fotos de artifício) do que mera demonstração de poder e dinheiro. Estamos em outro mundo. Não somos ingênuos, entendemos a máquina milionária que opera um show cujo repertório se repete, até de forma previsível, noite após noite. Mas aceitamos o jogo, precisamos do jogo, o jogo nos alimenta: Paul nos conduz a esse túnel largo onde confrontamos nossa própria história e o passado da música pop.

Yesterday, portanto, é a chave do show (e talvez da carreira de Paul).

E, depois da música, lá no segundo bis, o espetáculo passa a parecer até didático. Paul revê a própria trajetória, dos anos 60 aos 2000, para comprovar a eternidade das canções que escreveu. Elas sobreviveram. Mais do que isso: elas se renovam. Elas estão no ar. Elas venceram. Elas estão acima da nossa capacidade de compreender o efeito que elas provocam em nossos corpos, na cabeça, no peito, nos nossos ossos.

Duas horas depois do show eu ainda não sabia por que havia chorado em Blackbird. Descobri hoje pela manhã, quando o avião aterrissou em Brasília e encontrei uma cidade coberta por neblina. Lembrei de um dia em que eu viajei com meu pai para uma cidade muito fria (não lembro o nome, infelizmente) e Blackbird era a música que eu ouvia insistentemente no Walkman. Um período complicado: o velho não parecia confortável dentro de um segundo casamento, havia perdido o controle de uma rotina que não o entusiasmava. Era terrível de ver. Num dia, muito cedo, pediu o Walkman e começou a ouvir a fita. Ele estava recolhido na varanda, mas espiei a cena. Meu pai assobiando a música, com o olhar perdido, triste, pássaro sem penas.

Ali (eu tinha uns 14 anos) percebi que aquele homem nunca não me defenderia de nada. Era uma pobre alma. Um fraco. E um exemplo que acabei seguindo, mesmo à distância. Quando Paul interpretou Blackbird, talvez eu tenha sentido um tanto daquele desespero que meu pai sentiu. Hoje, aos 31 anos, já desencantado e cansado, eu o entendo.

Acredito que foi por isso, por causa de Blackbird e Drive my car, que tentei telefonar para ele logo que cheguei em casa. Para falar do show, talvez só por isso. Não: para pedir ajuda. Um conselho, uma informação útil, uma dica. E agora, pai, pra onde eu vou?

Sei, sei bem, que ele responderia com uma frase vaga, inútil, ficaríamos em silêncio. Um, dois, dez minutos. E nosso único elo voltaria a se esconder em canções que, quando amplificada pelas caixas potentes de um megaconcerto de rock, ainda me fazem chorar.

Os discos da minha vida (16)

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A saga dos 100 discos que aterrorizaram a minha vida chega a um capítulo especialmente tortuoso, com álbuns mui tensos sobre aquele tema que, vocês sabem, nem curto muito: o amor, meus senhores, o amor.

Antes de abrirmos o pacote de torturas sentimentais, devo lembrar-lhes das regras do jogo: este é um ranking absolutamente pessoal. E que, por isso, parecerá um tanto incoerente e injusto aos olhos de quem se preocupa com coerência e justiça. Fica a dica: não se preocupem tanto, pelo menos não neste caso. É só uma lista, e prometo que ela vai fazer sentido no fim (pelo menos pra mim).

Mentira: não prometo nada. Este blog não promete nada. Neste blog, existe um cacto onde deveria haver um coração.

070 | Portishead | Portishead | 1997 | download

A vida em preto e branco. A vida na névoa. A vida num quarto trancado. E tudo o mais. Vocês preferem o primeiro e estão certíssimos, mas o segundo disco do Portishead é aquele que congela de forma mais assustadora a sensação de uma vida a perigo. Nada de paixões alegres, primaveris: o que se ouve nessas canções é o lamento de romances perdidos, das chances abandonadas, da posse e do medo de ficar só. Beth Gibbons interpreta a personagem principal deste drama bergmaniano com absoluta convicção (a crooner dos nossos pesadelos). Geoff Barrow e Adrian Utley criam a mise-en-scene de uma fita de horror gravada com fitas velhas de VHS. Fotografia granulada, sustos cruéis, álbuns arranhados. E, no fim da projeção, um enigma: como pode um disco tão coeso conter canções que soariam inesquecíveis em qualquer outra narrativa? Top 3: Over, Only you, All mine

069 | 69 love songs | The Magnetic Fields | 1999 | download

O disco triplo do Magnetic Fields é um inventário sobre o amor que, apesar da ambição monumental, soa irônico e caseiro – como um bom álbum de indie rock do fim dos anos 90. A diferença é que nenhuma banda de indie rock americana do fim dos anos 90 contou com um auteur tão destemido quanto Stephin Merrit – o homem que materializava ideias absurdas, ridículas, impossíveis. Eis um projeto extremamente detalhista, obsessivo, que dá a cada faixa um sentido, um conceito muito específico – conceitos esses que remete graciosamente a um ou outro gênero musical, a diferentes estados de espírito, a períodos da música americana, a amores saudáveis e doentios, aos sonhos e à estupidez dos românticos. O tipo de projeto louco que só se lança uma vez na vida, e como quem atira no breu: para nossa sorte, Merrit nos metralha com pequenas canções que amam demaisTop 3:  I don’t want to get over you, I shatter, Absolutely cuckoo.

The suburbs, o clipe | Arcade Fire

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Este clipezinho arrepiante dirigido por Spike Jonze vai direto aos nervos do disco do Arcade Fire: existe algo nessas imagens que sintoniza a sensação de fim da adolescência. Até o subtexto político combina com as paranoias de Win Butler e cia – mas, mesmo sem isso, o clipe já seria um acompanhamento precioso para o vídeo de 1979, dos Smashing Pumpkins. Teenage angst.

Superoito express (33)

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Man on the moon II: The legend of Mr. Ranger | Kid Cudi | 7

Um álbum de hip-hop dividido em cinco atos (um deles atende por You live and you learn), com uma faixa chamada Scott Mescudi vs. the world e um título que parece ter sido concebido pelo George Lucas. Tem como não gostar? Infelizmente tem, se o seu iTunes emperrar na faixa 8, Erase me, um rockzinho ordinário que nem Kanye West salva. Antes que você comece a refletir sobre o quão terrível é o fato de que os mais promissores pupilos do rap geralmente não sabem diferenciar Kings of Leon de Queens of the Stone Age, sugiro um rolê no segundo ato do disco, A stronger trip, usa psicodelia e dub para fins medicinais (a dobradinha Marijuana e Mojo so dope é, perdoe a falta de inspiração, viciante).

E, quando o sujeito resolve brincar com um sampler soturno de St. Vincent (“Paint the black hole blacker”, em Maniac), a pergunta volta a fazer sentido: tem como não gostar? Tem, principalmente para quem ainda se encontra perdido nos vãos de My beautiful dark twisted fantasy, de Mr. West. Dois álbuns talvez igualmente ambiciosos, mas note as diferenças: enquanto West bagunça o interior das canções (que são longas e sinuosas), Cudi tenta nos impressionar com o acúmulo de faixas que disparam ideias coloridas, mas por vezes superficiais. É daqueles discos que nos agradam mais pelo temperamento frenético do repertório do que pelas canções em si. Não é tudo o que pensa que é – mas tem como não gostar?   

Le noise | Neil Young | 7

Em tese, é o disco em que Young decanta a própria identidade até que restem apenas os elementos essenciais: a guitarra (alta, ruidosa, massacrada por toneladas de efeitos) e a voz. Mas nada na trajetória do homem é simples como parece, e basta lembrar que o disco anterior a este é o desgovernado (mas muito franco) Fork in the road, praticamente um álbum conceitual acerca de um carro ecológico. O que o produtor Daniel Lanois faz em Le noise é um ‘extreme makeover’ parecido com o método que aplicou em Time out of mind, de Dylan: criar uma atmosfera crepuscular, cinematográfica, mas com lacunas para que o compositor vença os maneirismos de estúdio. Mas esse conceito rigoroso por vezes parece uma estratégia para empacotar canções não exatamente inesquecíveis. Elas condensam tudo o que esperamos de um disco de Young – os lamentos de guerra e os hinos pacifistas e os retratos de homens solitários e a fúria juvenil – sem muitas surpresas ou desafios. De qualquer forma, é sempre uma alegria ver o sujeito verdadeiramente se esforçando e criando maravilhas como Peaceful Valley Boulevard. E, sejamos justos, é o mais coeso dele desde Silver and gold, de 2000. 

Marnie Stern | Marnie Stern | 7

O terceiro disco da nova-iorquina pode ser interpretado de uma forma pessimista (soa como uma reprise dos anteriores, um beco sem saída, um exercício seguro etc) e de uma forma muito otimista (soa como uma celebração do estilo que Marnie talhou nos dois outros discos). Minha tendência, no caso, é o pensamento positivo: este é o primeiro disco dela que não me parece um projeto frio de faculdade de Arte, com todas aquelas camadas calculadas de distorção supostamente agressiva. Acredito que, desta vez, Marnie conseguiu vencer se livrar desse véu chamativo e se encontrou nas canções. A última faixa, The things you notice (que incluí na mixtape de outubro) poderia muito bem servir de ponto de partida para o próximo disco: tem o molde atormentado, paranoico, pontiagudo, do restante da discografia que ela lançou – mas é como se a autora das canções finalmente se expusesse de corpo inteiro. É bonito, é delicado (de uma forma inusitada) e, melhor ainda, soa intenso.

 Swanlights | Antony and the Johnsons | 6

Um dos discos mais valentes do ano, já que Antony renega quase todos as referências pop para encontrar uma sonoridade tão serena e introspectiva quanto é (aparentemente) o momento em que ele vive. E encontra: mas pena que é um som tão etéreo que às vezes se dissolve nos headphones. Ouvi o disco pelo menos cinco vezes e só consigo me lembrar das faixas que destoam desse climão solene: I’m in love, que soa como uma daquelas divinas criaturas de Van Dyke Parks, e Thank you for your love, que abre um caminho soul no coração desta floresta gelada. Não é um álbum que consigo ouvir com frequência (e não recomendo a ninguém que acabou de romper um namoro; a dose de melancolia pode ser brutal). Mas, no momento certo, pode ser o antídoto aos excessos que imperam no indie rock.

My beautiful dark twisted fantasy | Kanye West

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Minha história com os instrumentos musicais (em cinco capítulos):

1, violão: tentei quando eu tinha 12 anos, me aborreci com a repetição dos acordes e, depois de memorizar todas as manhas de Michelle e Wave, puxei o meu banquinho. Antes disso, meu professor, um velhinho raquítico que viveu três ou quatro vidas, morreu.

2, piano: chegou muito antes, seis/sete anos, lembro da professora octogenária, a da ladainha medonha — ‘endireite os dedos, Tiago, os dedos, Tiago, os dedos’ — e eu nunca descobri se ela queria que eu mantivesse os malditos num ângulo reto ou levemente oblíquo. Aprendi uma versão débil para a nona sinfonia de Beethoven, fiquei superfeliz, concluí: escalei o Everest, quero descer.

3, pandeiro: foi numa roda de pagode que meus primos improvisaram na casa da minha avó ou da minha tia ou da vizinha, não recordo. Naquela época, ou você curtia pagode ou você era um pulha como eu. Tiago era menino, não sacava absolutamente nada de ritmo. Ritmo? Que ritmo? Os primos me aconselharam alguns truques, me envaideci com a performance, eu e o pandeiro, nascidos um para o outro, esqueci tudo no dia seguinte.

4, teclado: dava uma vergonha danada testemunhar as batalhas espartanas, sangrentas, gente sangrando e tal, que minha irmã travava contra o aparelho. Uma guerra sem vencedores e um mundo mais triste para todos. Eu gostava de ir aumentando a velocidade das batidas, daí a valsinha ficava punk rock. Era um brinquedo bobo, nunca levei a sério.

5, guitarra: muito, muito barulho; eu fazia muito barulho, mas, sinceramente, era um fiasco. Ai tentei tirar Palo Alto, aquele lado B do Radiohead que me fazia chorar, e o volume lá nas últimas, e o vizinho pendurou um Comandos em Ação num fio de barbante, que desceu até a janela do meu quarto. Grudado no soldadinho, um aviso breve: “morra, babaca”.

E é isso. The end, vamos para casa.

Ou, antes que eu esqueça: essa história toda, esses capítulos sobre minha relação conflituosa com os cinco instrumentos musicais (cinco namoros fracassados e de curta duração, mas que deixaram marcas e alguma saudade), diz algo sobre o meu gosto por discos desvairados e fantásticos e arriscados e intensamente criativos como este My beautiful dark twisted fantasy, do Kanye West. E, se vocês me permitirem, se vocês não tiverem algo mais interessante para fazer, vou tentar explicar a conexão que existe entre uma coisa e outra.

Não sou, como vocês devem ter percebido, o cara da técnica. Tentei aprender instrumentos e fracassei com todos eles. Hoje, arranho o violão, arranco uns efeitos cavernosos de guitarra e tiro Cai, cai, balão no teclado. Não sei muita coisa além disso. Mas, na minha adolescência, quando eu era um garoto enfezado e , esses instrumentos eram a minha maior diversão. Eram (serei dramático, spielberguiano, para que vocês entendam direitinho) meus amigos.

Agora tente adivinhar: como eles serviam a um zero à esquerda que não entendia nada, absolutamente nada de partituras, harmonias e acordes um pouquinho mais complexos?

Eles serviam a uma espécie de jogo, de laboratório inconsequente de barulhinhos irritantes e melodias imperfeitas. Eu costumava repetir acordes de violão, gravá-los em fitas cassete e, depois, combinar esses trechos com ruídos de teclados e, numa terceira fita, adicionar vocais quase sempre desafinados. Um horror. Mas lembro do prazer que eu sentia quando ouvia o resultado. Era mais ou menos como assistir a um número de mágica.

Guardo muitas dessas fitas e admito que não tenho coragem de ouvir nenhuma delas. São toscas, melancólicas e me mostram que fui um rapazinho infeliz. Isso me entristece. Elas me ensinam, entretanto, de onde vem a alegria que sinto quando ouço discos que usam instrumentos não para atingir ideiais de perfeição técnica, mas para criar combinações sonoras que provocam sorrisos de espanto e excitação – que fazem do pop uma espécie de playground.

Aposto que Kanye West também se entedia com a estrutura mais convencional daquilo que se chama de pop perfeito. Os solos límpidos de guitarra. O refrão certo na hora certa. A ideia polida. O riff sem arestas. Os versos simétricos, as rimas exatas. A sensação de que o compositor é também um músico dedicado e que, raios, ele levou alguns bons anos para aprender a dedilhar este violão!

Nada contra os virtuoses, mas sempre preferi o mal estar dos artistas que não se conformam com os limites da arte, de qualquer arte. Os idolos deslocados, os esquisitos, os incompreendidos, os solitários, os renegados, they don’t belong here.

Kanye West é, não se engane, não se iluda, um desses. Quem espia o blog do rapper ou o acompanha via Twitter sabe que o globetrotter é um acidente prestes a acontecer: são incontáveis os posts rasos e os tuítes risíveis, as demonstrações constrangedoras de amor às futilidades do showbusiness, o gosto por tudo o que é instantâneo e fashion e, principalmente, a necessidade de provar – a cada saraivada de caracteres – que merece reconhecimento, atenção, prêmios, elogios, um lugar cada vez maior e mais confortável no mundo. “Nenhum homem deveria ter tanto poder”, ele aconselha  (a si mesmo), no primeiro single deste disco, Power. Sejam bem-vindos.

O ego faminto de West é prato feito para revistas de celebridades, e o ídolo cumpre esse papel de forma exemplar: odiamos o homem que se descontrola diante da plateia, mesmo quando a crise nos parece falsa. Detestamos o ricaço que perde as estribeiras e sucumbe, erra, perde. Preferimos o autocontrole, a segurança, às demonstrações de fragilidade. Estamos ali para testemunhar o momento em que fracasso chutará a porta, e estaremos lá para celebrar o funeral de mais um astro pop superestimado por nós mesmos.

So what’s a black Beatle anyway?

Imagino que West escreveu as novas canções entre sessões de terapia, entre uma e outra compra milionária, entre um e outro desfile de moda. Nos momentos de incerteza (que, creio eu, existem até para um milionário esbanjador; vide qualquer filme de Sofia Coppola). Depois que você faz alguns discos de sucesso, o que acontece? Depois que você grava tudo o que precisava ter gravado, para onde ir? Quais são as canções que se escreve quando a plateia começa a cair em tédio?

“Todo mundo sabe que sou um monstro”, West se martiriza, ao som de efeitos robóticos. E depois quase entrega os pontos: “Eu cruzei a linha. Eu deixo que Deus decida. Estou de volta para casa.” A música seguinte prolonga o martírio: “A vida às vezes, meu amigo, é ridícula”. E não é?

O novo de West dá sequência a dois álbuns que soavam um pouco mais confiantes: mesmo a fossa de 808s and heartbreak parece controlada, estancada num conceito muito bem definido, um ato de bravura do macho sensível. Graduation era um brinquedo tão reluzente quanto superficial, mas que será lembrado como o retrato de um astro no comando do próprio destino, flutuando nos top ten. My beautiful dark twisted fantasy, em comparação, soa desastroso: da primeira à última faixa, West expõe o medo de perder, de ficar para trás, de se tornar irrelevante, de se tornar (tragédia!) qualquer um. De ser esquecido, perder a identidade, perder followers, etc.

Os versos, até um tanto entediados e conformados com as puxadas de tapete da existência, são o que este disco tem de mais dark. “Vai ser uma morte muito bonita, um salto da janela”, avisa em Power, o réquiem para o super-rapper.

É essa angústia, surpreendentemente, que acaba por energizar o disco, já que West compõe e grava como se estivesse à beira do precipício. Como se houvesse apenas mais uma chance (não é o caso, mas o sujeito é uma pilha de nervos). Em sua discografia, não existe um outro disco que aposte tantas fichas, que mire tão alto (sob pena de tombar no ridículo) e que tome caminhos tão arriscados. Talvez inspirado por Sufjan Stevens e pelo Arcade Fire, West percebeu que a temporada é propícia para esse tipo de monumento extravagante. Quase todas as 13 faixas do disco cabem nessa definição.

São canções como Runaway, All of the lights, Power e Blame game que condensam o espírito do álbum: elas começam e se recusam a terminar, se sabotam, abrem singelas e fecham estranhíssimas. Em alguns casos, como Devil in a new dress, um sampler se repete à exaustão, até esgotar todas as possibilidades de encantamento e morrer na praia. Existe algo de rock progressivo na estrutura dessas faixas, mas não é a melhor forma de defini-las. Existe algo de glam rock e ópera-rock, mas nenhum desses rótulos veste perfeitamente o estilo de West.

É um voo talvez alto demais, talvez cego. As faixas são grandiosas por birra, não por necessidade. Muitas delas caberiam em três minutos de duração. Só que, impertinente, West as alonga para explicitar o que elas têm de desconfortável. São paranoicas (o sucesso pode acabar num segundo). São ambiciosas (o céu é o limite). “Estou perdido no mundo”, ele reconhece, na penúltima faixa do disco, ao som de um sampler fantasmagórico de Woods, de Bon Iver.  A última canção, quase uma vinheta, atende por Who will survive in America. Sobreviver é a questão.

Goodnight, cruel world, I see you in the morning.

Voltando à minha relação com os cinco instrumentos musicais, reparo que álbuns assim – álbuns que não se aguentam dentro do pop, que querem quebrar as paredes do quarto – se comunicam com o meu desejo adolescente de encontrar sons para sentimentos que eu não conseguia decodificar de outra forma. Nessa tentativa, fracassei de todas as formas. Fracassei e fracassei feio. Eu e meus garranchos, minhas fitas toscas e ruidosas. Kanye West, porém, é desses que triunfam quando menos se espera. Um homem estúpido, egocêntrico, frívolo, uma celebridade em crise – tudo isso talvez seja verdade. Mas, neste momento, invejo o monstro terrivelmente.

Quinto disco de Kanye West. 13 faixas, com produção de Kanye West e outros. Lançamento Roc-A-Fella, Def Jam Records. 9/10

Os discos da minha vida (15)

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Outro dia eu estava pensando em como foi oportuna a ideia de criar um ranking interminável para ser publicado semanalmente. Acontece assim: quando bato o olho neste sítio e penso “que terrível perda de tempo!”, o que me impede de meter uma pistola na têmpora do teclado é esta listinha aqui. Esta lista. “Um post de cada vez, um post de cada vez”, eis o mantra do blogueiro suicida.

Então vamos: neste capítulo da série Os 100 discos que fizeram da minha vida um lugar mais agradável (pelo menos por algum tempo), dois caras estranhos que eu não convidaria para um brunch.  

O bacana nesta história de rankings loooongos é que me sinto muito livre para trapacear e mudar algumas peças do jogo enquanto ele transcorre – e sem que vocês percebam. Tudo com a boa intenção de fazer com que a lista definitiva não traia o conceito original da empreitada. Isto é: um ranking sentimental, meu e de mais ninguém; um ranking egoísta e narcisista, a cara deste blog (e, quanto mais penso nisto, mais vontade tenho de abandoná-lo; que blogzinho estúpido e autocentrado, meu deus).  

Eu conheço estes discos como a palma da minha mão cabeluda, mas vocês, muito sortudos, muito inteligentes, muito curiosos, mas talvez um pouco desinformados, têm a chance  de conhecê-los sem muito esforço, num clique (e perdoem a bagunça dos arquivos, mas infelizmente não se pode ter tudo mastigadinho nesta vida). Vamos à rotina, pois bem.   

072 | Teenager of the year | Frank Black | 1994 | download

Não é o disco que contém I heard Ramona sing (uma das canções perfeitas que brotaram neste nosso mundo cruel), mas é aquele que soa como o sonho frenético de um adolescente com muitas ideias, muitas melodias, muitos riffs explodindo na cabeça. Ainda tenho certeza de que alguém obrigou Frank Black a gravar estas 22 canções aceleradamente, apressadamente, questão de vida ou morte – havia uma bomba perto do estúdio e ela estouraria em cinco, quatro, três. São algumas das canções mais luminosas que ele escreveu (dentro e fora do Pixies), mas o que choca é como muitas deles são compactadas num formato minúsculo, em pílulas coloridas. Lição do dia: as canções são suas e você as manipula do jeito como bem entender (elas são inesquecíveis de uma forma ou de outra e você sabe disso; para que tanta cautela?). Há quem chame isso de loucura. Eu chamo de liberdade. Top 3: (I want to live on an) Abstract plain, Fazer eyes, Space is gonna do me good.  

071 | Scott 4 | Scott Walker | 1969 | download

O mundo de Scott Walker se tornou mais pantanoso a cada álbum – até o ponto em que o homem só conseguiria gravar discos que soassem como instalações de arte (e belas instalações, diga-se). Em Scott 4, o pop ainda encontrava frestas no nevoeiro. Com uma faixa de abertura chamada The seventh seal e uma canção “dedicada ao regime neo-stalinista”), é o disco em que Walker expande graciosamente os limites do próprio estilo – ainda com arranjos que fazem a alma tremer, mas com sinais de soul e country que desfazem antigas impressões que tínhamos a respeito dele. Os ingleses não entenderam nada: ignoraram o disco. No entanto, foi esse caminho árido que, com muita valentia, Scott tomou – um cavaleiro cada vez mais solitário, escuridão adentro. Top 3Boy child, The seventh seal, On your own again.

Trecho | As coisas mais triviais

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‘Eu não existo‘, disse para si mesmo. ‘Não há nenhum Jason Taverner. Nunca houve e nunca haverá. Para o inferno com minha carreira; quero apenas viver. Se há alguém ou alguma coisa querendo eliminar minha carreira, tudo bem, à vontade. Mas será que não tenho licença nem para existir? Será que eu nem nasci?’

Voltando ao seu quarto de hotel, deu uma boa olhada no espelho todo cheio de sujeira de mosca. Sua aparência não se havia alterado; apenas precisava fazer a barba. Não estava mais velho. Nenhuma ruga nova, nenhum cabelo branco aparecendo. Os ombros e braços fortes de sempre. Nenhuma gordura na cintura, o que lhe permitiria usar a roupa justa que estava na moda para os homens.

‘E isso é importante para a imagem de uma pessoa’, pensou. ‘O tipo de ternos que se pode usar, especialmente aqueles apertados na cintura. Devo ter uns cinquenta desses. Ou pelo menos tinha. Onde estarão agora?’, perguntou-se. ‘O pássaro se foi; em que ravina cantará agora? Ou algo assim’. Uma coisa do passado, do seu tempo de escola. Esquecida até este momento. ‘Que estranho’, pensou, ‘as coisas que aparecem na cabeça da gente numa situação desconhecida e sinistra. Às vezes são as coisas mais triviais que se possa imaginar.'”

Trecho de Identidade perdida, de Philip K. Dick.

Runaway | Kanye West

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E lá vem Kanye West com mais um sintoma claríssimo de transtorno pop obsessivo: ouvi só uma vez o novo My beautiful dark twisted fantasy (que faz por merecer o título pomposo/patético) e já desconfio que o disquinho vá bagunçar seriamente a minha lista de melhores do ano. Tenho, no entanto, que aplicar mais algumas doses do veneno até chegar a alguma conclusão sobre o assunto (prometo escrever um post bem bonito, dark e possivelmente muito twisted sobre a criatura). Como aperitivo, sugiro que vocês procurem no YouTube o curta-metragem de 35 minutos que o próprio West dirigiu para Runaway, uma das anomalias mais fofas do álbum. Mas, para facilitar a sua vida (ainda que eu não esteja aqui para isso), aí vai o resumo da ópera: uma versão resumida, mas muito digna, da aventura. É só o começo, acredite.

Superoito contra as fotografias

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Sinto sua falta, sinto sua falta, sinto sua falta, sinto sua falta, repeti mentalmente dez ou doze vezes, depois destravei o porta-retrato, dobrei a fotografia e a escondi na menor gaveta do meu armário, aquela que quase nunca abro, sob as meias e os pijamas que quase nunca uso.

Antes, enfrentei a foto mais uma vez – a última, prometi a mim mesmo. Era uma imagem quase singela: eu a abraçava de lado e ela, um pouco sem jeito, curvava o corpo em direção à câmera; eu sorria timidamente, ela parecia feliz; minha camisa era preta e a dela era colorida, apertada no busto; meu cabelo muito curto e o dela também; fazia sol e o céu brilhava em azul-bebê.

O que aconteceu depois? Minhas fotografias não explicam. Elas flagram apenas os nossos instantâneos de alegria, contam uma história incompleta, me maltratam. Notei, talvez tarde demais, que registrei uma versão idealizada do nosso namoro – e ela, essa distorção agradável da realidade, enfeitou minha estante, preencheu a minha sala. Um tipo bonito de ficção.

Amigos dizem que não devo me arrepender de nada. Que não devo sentir culpa. Que não devo pensar no que poderia ter acontecido. Que não devo recordar os planos que foram abandonados. Que preciso esquecer isso e esquecer aquilo. Mas o tempo passa (são dois meses desde a separação) e não consigo: eu ainda me arrependo de tudo, sinto culpa, não esqueço.

Me arrependo, por exemplo, por não ter sido corajoso o suficiente para encerrar o namoro um pouco antes, quando eu estava em vantagem (e é um jogo). Mas às vezes sinto culpa por não ter tomado todas as providências para consertar a nossa crise, renovar o contrato, curar a doença. Há momentos em que olho para o espelho e duvido da minha sanidade. Por que tanta saudade por algo que me fazia tão mal?

Desde o fim do namoro, que durou mais ou menos seis anos, cancelamos todo e qualquer contato. Para ela, não existo (talvez algum vestígio, algum sinal, mas nada muito concreto). Para mim, ela tomou o rumo para outra galáxia (ainda que, masoquista, eu teime em procurar uma ou outra informação em estrelas distantes). E a nossa história deveria terminar aí. Os créditos sobem e as pessoas vão para casa. Mas descobri que sou o homem preso na sala de projeção, assistindo ininterruptamente ao vazio de uma tela branca.

Será que ela sente o que eu sinto? O que acontece do lado de lá?

A ignorância, dizem, é uma bênção. Estou começando a entender o porquê. É a primeira vez que passo por uma separação tão brutal – foi o meu namoro mais longo – e, por isso, tento manter a concentração e a calma. Ajuda, é claro, não saber o que acontece na realidade paralela onde ela vive. Já escrevi sobre isso. Mas tento, se bem que nem sempre consigo, fabricar a aparência de que estou melhorando, que estou seguindo em frente. O cotidiano vai às mil maravilhas, o tempo é santo remédio e sou um sujeito forte, mais resistente do que eu imaginava. Perguntam se estou bem e respondo: melhor a cada dia!

Tento não transformar o caso num drama, já que há tantas coisas mais importantes acontecendo no mundo.

Mas é uma mentira.

Talvez seja algo que passamos de geração a geração: quem se separa tem o direito a se fazer de órfão, de vítima (mesmo quando não há algozes), ganha passe livre para chorar pitangas e pedir asilo a desconhecidos. Mas quando o desespero dessa fase inicial perde o impacto, quando o tempo passa e a performance começa a parecer corriqueira aos olhos da plateia, o processo entra numa etapa ainda mais dolorosa, já que solitária.

Hoje sou eu e as fotografias. Eu contra as fotografias. Elas me entendem, me denunciam mesmo quando tento fugir de todas as memórias que elas ressuscitam. Eu as escondo (as fotos e as memórias) para que eu não as encontre. É um esforço inútil. Procuro a menor gaveta do meu armário, aquela que quase nunca abro, para obrigar que, mais cedo ou mais tarde, eu esqueça todas essas lembranças que permanecem, contra a minha vontade, ainda vívidas.

Elas acabam sumindo? Se sim, cedo ou tarde? Falta muito ou pouco? Estamos quase lá? Como a história acaba? Existe redenção? Falta muito ou pouco? Estamos quase lá?

Devemos ser realistas, pelo menos por um parágrafo: percebo que, como aconteceu com a temporada mais terrível do meu namoro, minha reabilitação será uma história longa, secreta e desinteressante – um espetáculo enfadonho de tão repetitivo, que inspira textos muito semelhantes aos que já foram escritos; que fracassa antes de entrar em cartaz.

Os discos da minha vida (14)

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Os discos da minha vida é uma saga quilométrica, pulverizada em dezenas de capítulos que… vocês sabem. No total, são 100 álbuns que… vocês sabem.

Espero sinceramente terminar este ranking antes do apocalipse, mas… vocês sabem. Aqui, vocês encontram obras fonográficas que, dado o caráter insanamente pessoal desta lista, interessam mais a mim do que possivelmente interessarão a… vocês sabem.

Ok. A rotina tem encantos, mas sou um sujeito que se entedia facilmente com situações repetitivas. Portanto, perdoem-me se hoje pareço um pouco entediado.

No espírito de um dos discos da semana, lembro a vocês que isso tudo, no fim das contas, não significa nada. Um grande nada.

Se bem que eu não deveria parecer tão sonolento numa semana que começa com dois disquinhos tão (aparentemente) econômicos, tão temperamentais, tão passionais, que nos tomam pelo pescoço e, em gritos e/ou sussurros, nos ameaçam com o clichê: “é pegar ou largar”. Você tem o direito a ignorá-los. Você tem o direito a amá-los até que o coração crie calos. Mas, nesses dois casos, você não tem o direito ao meio-termo.

O que você deve fazer, desprezando todas as possíveis consequências, é clicar na palavrinha ‘download’, que está te encarando impacientemente. Façam a coisa certa, irmãos. Que a vida passa num segundo e… vocês sabem.   

074 | Elephant | The White Stripes | 2003 | download

Havia uma época em que o White Stripes nos pregava peças: uma banda quase infantil, que brincava com mitos e chavões da música pop como quem bagunça o acervo colorido de uma brinquedoteca. Mas, ao mesmo tempo, uma dupla cujas canções esqueléticas pareciam estudar (e de uma forma absolutamente séria) alguns dos componentes essenciais do rock: o riff e o refrão, a voz e o ritmo, a melodia inesquecível, a performance passional e autoirônica, os hits, os hinos e a fúria (e as piadas infames, como não?). Está tudo aqui, passo a passo, como num guia ilustrado para uma geração que talvez tenha ouvido Led Zeppelin e Nirvana sem entender exatamente por que aquelas músicas soavam tão poderosas. Com um sorriso cínico no canto da boca, Jack White explica. Top 3: Seven nation army, The hardest button to button, I just don’t know what to do with myself.     

073 | Either/or | Elliott Smith | 1997 | download

Se eu fosse um homem absolutamente sincero, os discos de Elliott Smith ocupariam as primeiras posições deste ranking. Todos eles, incluindo aí os póstumos (From a basement on a hill, que é a obra-prima mais triste do mundo) e os irregulares (Figure 8, por exemplo). São álbuns que me têm no cabresto – ouço qualquer um deles e me pego aos prantos, feito um moleque que acabou de perder todos os dentes numa briga de colégio. De forma enigmática, eles falam sobre a minha pessoa, me dão conselhos e broncas, reparam nos meus defeitos e levantam um espelho cujo reflexo não é sempre agradável. Sou suspeito para analisá-los, mas, por uma questão de coerência, escolhi dois para esta lista (o próximo aparecerá muito lá na frente, aguardem). Either/or, que para muitos é o melhor de Smith, soa como as páginas roubadas de um caderno de esboços que escrevi aos 16 anos: as mais tocantes confissões adolescentes, escritas à mão e gravadas na marra. Se você não se identifica com nenhum desses versos, meu amigo, não temos nada em comum. Caso contrário, seja bem-vindo ao clube dos corações agoniados (onde sempre cabe mais um, e cujos sócios nem sempre sobrevivem). Top 3Ballad of big nothing, Alameda, Pictures of me.

Trecho | O esquecimento

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“O surpreendente era que sua vida pouco havia mudado após o nascimento de sua filha, Catriona. Os amigos lhe haviam dito que ficaria abismado, que se transformaria, que seus valores seriam outros. Porém nada mudou. Catriona era algo bom, mas continuou a confusão de sempre. E, agora que entrara nos últimos estágios ativos de sua existência, começou a compreender que, não ocorrendo acidentes, a vida não mudava. Ele fora iludido. Sempre presumira que chegaria um tempo na vida adulta, uma espécie de planalto, em que haveria aprendido todos os truques de ir levando as coisas, de simplesmente ser. Com todas as cartas e e-mails respondidos, todos os papéis em ordem, livros organizados alfabeticamente nas estantes, roupas e sapatos em bom estado nos armários onde podia encontrá-los; com o passado, incluindo as cartas e fotografias de outrora, arrumado em caixas e pastas; com a vida privada assentada e serena, assim como as acomodações e as finanças. Em todos aqueles anos, essa arrumação, o calmo platô, nunca apareceu, e apesar disso ele havia continuado a presumir, sem pensar sobre o assunto, que estava pertinho, ali do outro lado da esquina, que em breve ele faria um esforço e o alcançaria. Naquele momento a vida se tornaria clara e a mente livre, sua existência como adulto teria então início de fato. Contudo, pouco após o nascimento de Catriona, pensou ter entendido a verdade pela primeira vez: no dia de sua morte, estaria usando meias de pares diferentes, haveria e-mails não respondidos, e na pocilga que chamava de casa ainda existiriam camisas sem os botões do punho, uma lâmpada apagada no hall, contas a pagar, sótãos a limpar, moscas mortas, amigos esperando por uma resposta e amantes que ele não havia confessado ter. O esquecimento, palavra final em matéria de organização, seria seu único consolo.”

Trecho de Solar, de Ian McEwan (ao som de As the world rises and fall, do Clientele).

Drops | Mostra de São Paulo (parte final)

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'A rede social', de David Fincher

A Mostra de São Paulo terminou ontem. Assisti a um punhado de filmes (ainda não fiz a conta) e, quando repasso todos os posts desta cinemaratona, percebo que o saldo deste ano foi muito positivo. Tão animador que consegui organizar um top 10 (+3) só com longas que, por aqui, mereceram cotação maior ou igual a 4 estrelas. E vocês sabem que, apesar de todo o meu bom-mocismo, não sou dos que saem distribuindo estrelas a torto e a direito. 

Pois bem: antes do besteirol sobre os filmes do dia, eis o meu top 10 (+3) da Mostra de SP. Alguns ainda vão passar na repescagem (hoje, amanhã e domingo). Por isso, fiquem atentos:

1. Tio Boonmee, que pode recordar suas vidas passadas, Apichatpong Weerasethakul
2. Mistérios de Lisboa, Raúl Ruiz
3. Cópia fiel, Abbas Kiarostami
4. O estranho caso de Angélica, Manoel de Oliveira
5. Somewhere, Sofia Coppola
6. Homens e deuses, Xavier Beauvois
7. Film socialisme, Jean-Luc Godard
8. O mágico, Sylvain Chomet
9. Minha felicidade, Sergei Loznitsa
10. As quatro voltas, Michelangelo Frammartino
+3. Caterpillar, Koji Wakamatsu, Machete, Robert Rodriguez e Ethan Maniquis e Armadillo, Janus Metz

E novamente (que não custa ficar repetindo; este é um blog redundante e amnésico): muito obrigado a todos que me receberam tão bem em São Paulo. Abraço e até o ano que vem.  

Gainsbourg – Vida heroica | Gainsbourg (vie héroïque) | Joann Sfar | 3/5 | Serge Gainsbourg confinado numa cinebio corretinha é o tipo de ideia fadada ao inferno das boas intenções. Mas, apesar de toda a polidez, este retrato em 3×4 ganha algum colorido nos momentos em que Sfar se livra da obrigação de reconstituir a trajetória do compositor e passa a brincar com o mito Gainsbourg, quebrando a correção da narrativa com delírios à cartum. Não chega perto das liberdades de um I’m not there, mas também não é qualquer Cazuza – O tempo não para.

Um homem que grita | Un homme que crie | Mahamat Saleh Haroun | 3/5 | Um drama africano narrado com o estilo econômico dos Dardenne e que, como Homens e deuses, se deixa intrigar pelas escolhas tomadas pelos personagens em situações-limite: o que motivaria um pai a escalar o próprio filho para a guerra? Atuações muito fortes, mas não consegui ver nada de muito particular no olhar do diretor, que não escapa de um modelo de ‘realismo engajado’ que é tão querido em festivais.

A rede social | The social network | David Fincher | 3.5/5 | Admito que, quando fiquei sabendo que David Fincher dirigiria um filme sobre a criação do Facebook, logo lembrei da avalanche de aplicativos visuais que o cineasta usou em Clube da luta. Daí a minha surpresa (que não é boa nem má, apenas uma surpresa): A rede social é o longa mais sóbrio e funcional de Fincher – na maior parte do tempo, o diretor não faz muito além de arejar as lacunas mínimas de um roteiro escalafobético. Mas essa aparência clean (a ação transcorre em quartos de faculdade e salas de reunião) só destaca o traquejo extraordinário de Fincher para técnicas de narrativa: é um filme fluente do início ao fim, mesmo quando dispara um vocabulário tecnológico que nos soterra. Não dá para levar muito a sério, no entanto, quem encontra aqui um retrato complexo da geração-Facebook: o texto se sustenta em estereótipos e chavões (o vilão ganancioso, a vítima injustiçada, o conflito entre amigos, a velha lição de que sucesso e dinheiro não trazem felicidade) para amaciar a pílula high-tech e vendê-la a um público que talvez ainda não tenha uma conta no Twitter. A esperteza de Fincher é, apesar de todas essas concessões, preservar o mistério em torno do personagem principal, que, talvez muito a frente do seu tempo, flutua enfadado sobre todas as intrigas da trama: no papel desse gênio solitário, o nosso menino-da-bolha (e, se você quiser, o símbolo de um modelo econômico em que ideias contam mais que acordos publicitários), Jesse Eisenberg compõe a performance mais impressionante que vi este ano.

Drops | Mostra de São Paulo (12)

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'Homens e deuses', de Xavier Beauvois

O projeto Frankenstein | Tender son: a Frankenstein project | Kornél Mundruczó | 1.5/5 | Uma adaptação sui generis (mas desastrada) do romance de Mary Shelley, que praticamente anula o tom fantástico do livro para ressaltar a relação entre o filho-monstro (no caso, um adolescente de 19 anos) e os pais. O conceito não trai o espírito do original, mas os personagens unidimensionais – todos apáticos, infelizes – denunciam o traço mais incômodo deste “projeto”, que competiu este ano em Cannes: é uma ideia sem alma.

O silêncio | Das letzte schweigen | Baran Bo Odar | 1.5/5 | Apenas mais um filme de serial killer (só que alemão, e com uma conclusão tolinha e previsível que seria vetada por qualquer produtor hollywoodiano experiente).

Almas silenciosas | Ovsyanki | Aleksei Fedorchenko | 3/5 | Como acontece em Minha felicidade, este Almas silenciosas é um ensaio sobre a identidade russa metido num disfarce de road movie. Mas, se o filme de Loznitsa é um ataque direto aos traços mais brutais desse “espírito nacional”, Fedorchenko se interessa pelos rituais que moldam uma nação. São filmes-tese, mas validados por um fator humano muito forte: no caso de Almas silenciosas, os dois personagens principais estão quase sempre à frente de uma fábula que, apesar de afogar o motor em alguns trechos (no desfecho simplório, na narração em off excessiva), acabou me surpreendendo como um dos longas mais escancaradamente afetuosos que vi nesta Mostra. O conceito até sufoca, mas o coração do filme não para de bater.

!!! Homens e deuses | Des hommes et des Dieux | Xavier Beauvois | 4/5 | Talvez à procura de um retrato digno, justo, dos os oito monges franceses que inspiram o filme, Beauvois compôs seres imaculados: tipos tão corretos, tão absolutamente dedicados à fé e à caridade, que definitivamente estão mais perto dos deuses do que dos homens. Mas essa é uma opção que me parece coerente (e este, repare, é um filme também sobre opções), já que estamos falando de um drama disposto a entender e respeitar as crenças, os ritos, o ritmo dos personagens. A atmosfera de tragédia iminente contamina a trama, mas Beauvois minimiza o suspense e descreve uma marcha serena para a morte. Mais do que o desenlace terrível dos eventos, o que intriga o cineasta é o processo radical de confirmação da fé, da aceitação de um fardo e de uma missão. Perdoem o trocadilho, mas parece até milagroso que ele tenha conseguido congelar esse enigma todo numa única cena – que é sublime, é sim.