Mês: junho 2011
Mixtape! | Junho tá frio, tá quente
Passei dois, três dias tentando escrever alguns parágrafos sobre São Paulo, a cidade onde estou passando uns dias de férias. Mas não consegui, falhei. Daí que tomei uma decisão mais ou menos trapaceira: uma mixtape, pensei, me ajudaria a enquadrar um cenário que ainda não entendo bem. Vocês sabem: quando faltam palavras, apelo para as canções dos outros.
Então taí: a coletânea de junho contém as minhas impressões sobre este mundão-de-deus, essa megalópole das sirenes, esse monstrão-de-concreto-e-luz, essa capital grandalhona e muito charmosa que, pra mim, já se transformou numa espécie de lar paralelo. Ou, para sermos menos abstratos, num segundo quarto – ele fica um pouco longe, é verdade, mas já me parece familiar.
A verdade é que este blogueiro forasteiro, nascido no Rio e criado em Brasília, não troca nenhum lugar por São Paulo. É isso. Tanto que, nas férias, ele sempre vem pra cá (e não existe praia que provoque nele o entusiasmo de caminhar na Avenida Paulista, assim à toa).
Mas voltemos à mixtape de junho. Porque viemos aqui pra isso.
O CDzinho da vez trata de São Paulo, sim, mas não só desse tema. É um pouco autobiográfico, como sempre (daí a quantidade de faixas sobre amor, sobre estar amando, sobre amar para sempre etc.), mas a ideia era gravar uma coletânea calorosa de inverno. Existe mesmo um contraste curioso, se vocês repararem bem, quando alguns dos seus amigos estão de férias no verão europeu enquanto você congela neste freezer aqui.
Daí que o disco começa vibrante, queimando gasolina, e termina num ambiente mais confortável, coberto por edredon, dentro de um sonho. O miolo é turbulência. Tem uns momentos estranhos, não vou negar. Mas percebo que, resumindo a ópera, esta é a mixtape mais pop que gravei.
São três atos. O primeiro, todo zoado, no esquema vou-pra-galera. O segundo, mais nervosinho, é uma treta braba. O terceiro, uma chuveirada morna pra enxotar o estresse. Pense aí num sorvete napolitano. Três sabores, começando com o de chocolate e terminando com o de morango. É quase isso (e, se vocês imaginavam que as descrições das minhas mixtapes não poderiam ficar mais ridículas, eis que…).
O CD tem Beyoncé e Ty Segall, Lady Gaga e Washed Out, Arctic Monkeys e Cults, Friendly Fires e Memory Tapes. Tem também WU LYF e uma vinhetinha do Frank Ocean que pode passar despercebida. Ele abre com Handsome Furs, que serviu de guia para a seleção inteira (e a foto da dupla ilustra este post: o CD Sound Kapital é o meu favorito do mês). A lista de músicas está na caixa de comentários.
Ah, claro (e como eu poderia esquecer disso?), é a minha melhor mixtape de todos os tempos.
Não demore muito pra fazer o download (que o arquivo periga desaparecer rapidinho). Ouça em volume alto. E depois dê um cheiro, um chamego, uma nota – de 0 a 10 – na caixa de comentários ali embaixo. Sem a sua colaboração, meus bróderes, vai ficar parecendo que tudo aqui neste blog confuso está sempre muito bem, muito bom. E a vida é mais complicada que isso.
Vá nessa, maninho, e faça o download da mixtape de junho. Até já.
Superoito express (41)
Nesta edição: 1, 2, 3, 4, 5 machos solitários (e foi por acaso – não é incrível?)
Within and without | Washed Out | 7.5
Já não alertamos que é perigoso inflar as nossas expectativas? A Sub Pop, que lança o long-player de estreia do Washed Out, admite que está entusiasmada com o disco num nível quase insuportável. A onda de elogios para este projeto de Ernest Greene, o novo prodígio de Atlanta, deve atingir escala oceânica nas próximas semanas – quanto sites que sempre apostaram no rapaz tentarão nos convencer de que Within and without é a última ilhota verdejante do Atlântico. A Spin já mandou ver: “Chillwave para quem não aguenta mais chillwave”. Uau.
Ouvir o disco, nesse contexto de euforia, parece até dispensável. Comigo aconteceu o contrário: ouvi o disco quase por acaso, sem atentar muito para todo esse foreplay, e me interessei por ele sem grande empolgação. Digamos que eu tenha admirado a atmosfera aquática, fluida, que Greene cria para envolver as composições – mas não consegui notar uma identidade forte neste disco, que me faça defendê-lo como algo verdadeiramente especial. Eu confundiria algumas dessas faixas com as do Toro Y Moi, com as do Memory Tapes (leia textinho a seguir). Talvez por isso o rótulo chillwave tenha colado tão bem a esses projetos: é que, em muitos momentos, eles acabam soando como exercícios de gênero.
O sujeito pode ser um diretor competentíssimo de fitas policiais. Mas daí ser um Michael Mann… Greene é sim competente, se aproveita do formato conciso que a Sub Pop tanto preza e se alia a um produtor experiente sem se deixar asfixiar por ele (o homem é Ben Allen, de Merriweather Post Pavillion, do Animal Collective, e Halcyon digest, do Deerhunter). Os momentos mais extrovertidos são os que mais me fisgam – o romantismo sem-medo-de-ser-passional de Amor Fati, acima de todas -, mas nota-se que a praia do Washed Out é uma introspecção por vezes etérea, vaporosa, mas sempre cheia de sutilezas: um estilo que Greene defende com convicção e rigor; qualidades que serão recompensadas pela torcida.
Player piano | Memory Tapes | 7.5
Desconfio que o LP de Dayve Hawk não será recebido com tanta euforia e condescendência quanto o do Washed Out (até porque o Memory Tapes lança pela Carpark Records, selo minúsculo em comparação à Sub Pop), mas acredito que estejam num mesmo patamar e que até se complementem – e não me canso de ouvir um logo após o outro. Enquanto o Washed Out vai depurando os traços mais visíveis da chillwave, o Memory Tapes trata de pressionar os limites do gênero – de tal forma que Player piano acaba sabotando nossas expectativas. As faixas mais surpreendentes são também as mais dóceis, que chegam a lembrar o pop eletrônico de um Postal Service, por exemplo (ouça Wait in the dark e Sun hits). As colagens do disco anterior dão espaço para composições mais diretas, quase corriqueiras, mas não dá para dizer que este disco tente o caminho mais fácil: Hawk arrisca para tentar encontrar um sotaque, uma voz reconhecível, uma marca. Não acredito que tenha chegado lá, mas a aventura tem lá seu encanto (e o finalzinho de Worries é amor para o inverno inteiro, não dá pra negar).
Dedication | Zomby | 7
Deixando o distrito da chillwave rumo às quebradas do dubstep (ou algum lugar próximo dali), o novo do produtor inglês nos recebe com um temperamento quase oposto à ternura triste do Washed Out e do Memory Tapes: o tecido aqui é áspero, o clima soa apreensivo – estamos presos num dia chuvoso. A faixa-guia é Things fall apart, que praticamente resume a ambiência pós-apocalíptica do disco: não são poucas as coisas que desmoronam. Por mais que eu tenha dificuldades sérias com o dubstep mais arredio e single-minded (a exceção é James Blake, mas acredito que ele não se enquadre completamente no gênero), Dedication não me parece uma jornada aborrecida noite adentro. Ainda que não fuja da premissa do disco, que poderia ser usado como trilha para um filme de serial killer do David Fincher, Zomby vai abrindo vielas soturnas a cada faixa – e as melhores, como Digital rain e Mozaik, ficam rondando o nosso cérebro horas depois da audição, feito resíduo de pesadelo. Atormentam.
Goodbye bread | Ty Segall | 6.5
Para quem conhece Ty Segall só agora (e é meu caso), Goodbye bread pode reavivar as lembranças da fase mais doméstica de um Elliott Smith, de um Guided By Voices. Está certo que essa aparência de despojamento se transformou num clichê do indie rock, mas existe algo neste disco que nos deixa com a certeza de que ele foi gravado quase por acidente, em meio às atividades cotidianas do compositor (a canção que resume tudo, aliás, se chama Comfortable home). E também soa caseiro até pela forma meio despreocupada, às vezes óbvia, como ele vai perfilando as influências de Segall – e Fine, o desfecho, acaba saindo homenagem pra lá de digna à fase solo de John Lennon (ainda que a letra otimista pareça ter sido escrita por McCartney). No meio do caminho, psicodelia lavada a seco: My head explodes e I can’t feel it são canções enormes armazenadas sem muito cuidado, em pequenos recipientes. Tá certo: é só o começo de uma amizade.
Demolished thoughts | Thurston Moore | 6
Pensando bem, e que tolice a minha!, nos anos 90 eu acompanhava os episódios da música pop como quem assistia a um filmezinho maniqueísta – grunge versus punk-pop, Nirvana contra Michael Jackson, Radiohead infinitamente mais legítimo que Muse. Nesse script, o Sonic Youth me parecia uma banda na contracorrente da década, e minha impressão era de que eles reagiam a absolutamente tudo o que era criado na época. Daí meu espanto ao ouvir um disco de Thurston Moore que não apenas tem a produção de um dos artistas-símbolo dos anos 90 (Beck Hansen, o mascote do pós-tudo) como não faz nadinha para destoar daquilo que a gente espera de um álbum-padrão de singer/songwriter. Polido, “delicado”, franco, direto (e inclua aí qualquer outro adjetivo que você aplicaria a um disco solo do Richard Ashcroft), Demolished thoughts é uma das maiores surpresas do ano. E tem baladas tocantes que machucam de verdade, como Illuminate. Atenção ao contraste brutal entre a interpretação distanciada de Moore e melodias tão afetuosas. Pena que, depois da terceira faixa, o álbum sinta a falta de canções mais duradouras – metade do disco parece Sonic Youth unplugged, faixas conhecidas num modelito diferente. E aí, meu filho, não há Beck Hansen que dê conserto.
Go tell fire to the mountain | WU LYF
No meu caso, antes acontecia assim: quando eu resolvia escrever, as palavras iam aparecendo em grupos de vinte, trinta, quarenta, e chegavam com tanta ansiedade que eu achava mais sensato não acalmá-las nem ordená-las: elas iam caindo no teclado de qualquer jeito, de barriga, de costas, de cabeça pra baixo. Era o caos.
A maioria, é verdade, mergulhava para a morte e era sepultada em parágrafos grotescos, sujando o monitor com gosma e boas intenções. Quando eu era um pouco mais novo, escrever era ejetar todas as frases que superlotavam a minha cabeça e tensionavam meus dedos. Eu as abandonava mais ou menos como um caminhão que estaciona no terreno baldio para descarregar o lixo.
Hoje as palavras aparecem em grupos menores, acredito que de dez a quinze por vez. E não chegam com a mesma intensidade, nem com a mesma fúria. Há os dias em que não noto gana alguma no desembarque, e me pergunto: se elas não me afligem da forma que elas me afligiam quando eu tinha 16 ou 17 anos, por que ainda me preocupo tanto com elas?
Há algum tempo, eu estava certo de que seria um escritor. Agora não sei mais.
Talvez seja sinal de maturidade (e isso existe?). Escrever menos, sem ir com tanta sede ao pote, pode ser indício de rigor e elegância. Em tese, adultos são mais rigorosos que adolescentes. Também são mais elegantes. Sabem o que querem ser, até porque já cresceram. No mais, o senso comum alerta que escrever é cortar palavras, ser conciso, exato, poupar tempo. Finitude é o termo.
Sim, sim. Só que dá um baita de um incômodo quando ligo o computador e fico admirando a tela em branco, o cursor vertical piscando. Às vezes até quero escrever. Mas vivo me perguntando: escrever para quê? Para quem? Por quê? E não encontro soluções para nada disso. Porque às vezes parece que ninguém está lendo, que ninguém merece ler tanta bobagem. E às vezes sinto que estou apenas sequestrando e matando palavras, por esporte.
Escrevo porque posso, e não porque devo.
Ainda acredito, contudo, que existe sim uma arte perversa (mas admirável) na carnificina de sílabas, nesse uso exagerado e infantil de frases, no exagero de significantes, no ato desmiolado de escrever por escrever, de escarrar as palavrinhas, de esparramá-las em parágrafos longos e feios, toscos de tão imaturos. Francamente, detesto os blogs que eu escrevia aos 16, 17 anos. Mas percebo algo romântico neles. Eram textos suicidas, que cheiravam mal e iam apodrecendo em público.
Não eram nada apresentáveis. Nada saudáveis.
Há alguns dias tento entender o que tanto me atrai ao disco de estreia da banda inglesa WU LYF (sigla para World Unite! Lucifer Youth Foundation), e acredito que tenha algo a ver com os textos que eu escrevia aos 16, 17 anos. Tai um álbum que tenta agarrar as palavras com um pulso adolescente. Elas praticamente derretem nos nossos headphones, esquartejadas após a outra. É uma matança cruel.
Adianto aos mais sensíveis: é quase impossível entender a interpretação do vocalista Ellery Roberts. Nem faça esforço. Ele não canta; ele grunhe. E não estamos falando da aspereza vocal de um ogro do thrash metal. Fico com a impressão de que Ellery está forjando um idioma próprio. É como se vestisse a persona de um homem pré-histórico que, depois de muita relutância, decidiu finalmente sair da caverna. Ele olha para o mundo de uma forma bestial. O que vê, em compensação, não é exatamente civilizado.
Mas a performance de Ellery, apesar de repulsiva, não tem a intenção de nos afastar dos versos da banda. Pelo contrário. No site oficial, o WU LYF publica as letras das canções para orientar os ouvintes. E é aí que as coisas começam a ficar, no meu ponto de vista, mais fascinantes. São canções que soam como o fluxo de consciência de um menino atormentado por um enxame de palavras. Chegou a hora de soltá-las no ar.
E Go tell fire to the mountain é, antes de qualquer coisa, um disco de palavras. Palavras de ordem, de guerra, de desabafo, palavras que vêm e voltam em ciclos, palavras cuspidas do esôfago, palavras de desencanto e fervor. Se Ellery fosse um vocalista menos excêntrico, mais fluente, e se as melodias acompanhassem o vigor e a vibração frenética das letras, estaríamos diante de uma banda comunicativa quanto um Arcade Fire. O WU LYF tem muito a falar.
É bem verdade que a garganta arranhada do vocalista colabora para que criemos toda uma mitologia em torno da banda, que bolou uma campanha misteriosa de marketing, na rebarba do Odd Future Wolf Gang Kill Them All. Também estamos falando de um coletivo que envolve músicos, artistas gráficos, cineastas etc; ainda que, no caso, o cerne do WU LYF seja um quarteto de rock até relativamente convencional.
Você ouve o disco e imagina um bando de bárbaros (e musicalmente, eles são pouco sutis – gostam de estrondo e da repetição de camadas de órgãos e guitarras; preferem a unidade à diversidade). Na realidade, o que temos são sujeitos de classe média alta, nascidos em Manchester. De qualquer forma, é muito convincente a fantasia criada pelo World Unite para capturar a nossa atenção.
E boa parte dessa ilusão é criada pelas letras, que conclamam o ouvinte a sair às ruas e mudar um mundo que, se levarmos a sério a ladainha da banda, está quase acabando. Um expediente até démodé, mas irresistível. O World Unite pede ao público para que “seja bravo”, para que “abandone as armas” e que viva intensamente, antes que a morte chegue e acabe com a festa.
São hinos, e não duvide disso. A banda cria uma sonoridade maciça, mas se aproxima do ouvinte como quem conta um segredo via MSN. “Ei, quantos de vocês têm medo da morte?”, eles perguntam, na faixa de abertura (que repete o bordão “te amo pra sempre”, sem perder a macheza). Na lista de agradecimentos do disco, que foi gravado numa igreja (naturalmente), citam Frida Kahlo e Tupac Shakur.
Não sei se o World Unite vai se transformar numa banda tão adorável, tão gente-como-a-gente quanto um Wolf Parade, um Hold Steady ou um Titus Andronicus, mas eles fazem o possível para se associar esse time de “adultescentes” que escrevem épicos para serem compactados em 160kbps. Spitting blood e We bros são faixas que fazem justiça a essa gangue de últimos românticos.
O diferencial, creio eu, está na fome de palavras que marca o disco do WU LYF. Em alguns momentos, mesmo diante das letras, me perguntei: sobre o que eles estão cantando? Para quê? E cheguei à conclusão de que, às vezes, não estão cantando sobre coisa alguma. São apenas palavras ocas, palavras suicidas, palavras em vão. Go tell fire to the mountain diz muito, exageradamente, talvez pelo prazer de dizer. O que ouvimos são palavras em pleno processo de digestão, retorcidas em suco gástrico, lambuzadas e incompreensíveis.
Acaba que não faz muito sentido. Mas a fricção entre a expressividade das palavras e a interpretação febril garante um sentido de urgência que nos emociona (mesmo quando não sabemos por que razão). Na última faixa, eles nos têm nas mãos. Mesmo quando notamos que os versos da banda não são muito diferentes do conteúdo de um blog juvenil – e daqueles ingênuos, desesperados, que nos fazem corar.
Primeiro disco do WU LYF. 10 faixas, com produção da própria banda e de Dave Jay. Lançamento L Y F. 8/10
Os discos da minha vida (top 10)
No top 10 da saga dos 100 discos da minha vida, as regras do jogo mudam um pouco: um álbum indefectível por semana, com textos um tantinho mais robustos (mas ainda constrangedores de tão pessoais, porque o espírito do ranking é esse aí). E nada de prólogos, porque tudo foi dito- e o que não foi dito, meus amigos, agora merece o silêncio.
010 | After the gold rush | Neil Young | 1970 | download
Fico me perguntando: o que sentiam os meninos de 15 anos que ouviram After the gold rush em 1970, assim que o disco foi lançado? Faço uma acrobacia de imaginação para descer àquela época, mas é inútil.
Hoje, o disco é uma unanimidade. Quando organizam listas dos melhores dos anos 70, ele geralmente está lá, junto com um Clash, um Joy Division, um Nick Drake, um Lennon, um Stones. Ninguém discute: é clássico.
Tente, ó leitor, investigar na web. Você vai encontrar quatro ou cinco resenhas absolutamente positivas (e calculo apenas as fontes confiáveis) que ressaltam o que o disco tem de irrepreensível. A exceção é um texto publicado em 1970 na Rolling Stone — que avalia o álbum como uma aventura desnecessária na carreira de um bom compositor.
Eis o mistério: o que esperavam de Neil Young em 1970? Acredito que não era pouco. Naquela temporada, o canadense havia lançado um disco de country/folk com Crosby, Stills & Nash (Déjà vu, um sucesso enorme) e o single Ohio, que reafirmava o peso do álbum anterior, o muito elogiado Everybody knows this is nowhere. Tudo bem, tudo bom. Mas em seguida, o que fazer?
Talvez nada muito inesperado, respondia Young. Indo e vindo entre os extremos do músico, After the gold rush deve ter provocado certo desânimo, que o crítico da Rolling Stone rapidamente espelhou: estaria Neil Young matando tempo e afinando as cordas antes de surpreender o público novamente?
O tempo mostrou que essa questão era irrelevante: a carreira de Young oscilaria entre momentos mais e menos ruidosos. O movimento, na trajetória deste herói, se mostrou pendular. Entre guitarras altas e violões interioranos. Entre hard rock e country. Entre dois personagens: o guerreiro épico (envolto em feedback) e o rancheiro melancólico. Indo e vindo, subindo e descendo, para um lado e depois para outro.
Acontece que, na era de After the gold rush, esses dois temperamentos ainda não estavam totalmente definidos. Nem para os fãs, nem para a imprensa, tampouco para o próprio Neil Young. Harvest, que veio em seguida, era um disco mais coeso de country (com algo de loucura, lisergia). After the gold rush soa como um Young atípico, ainda “verde” (na arte do álbum, pelo menos), que tentava engaiolar referências às vezes dissonantes dentro de um LP.
Mas voltando à pergunta que abre este textinho tão modesto: o que teria sentido o menino de 15 anos que ouviu este disco em 1970? Eu, que tinha essa idade quando descobri o álbum (em 1995, se não me engano), admito que me senti um pouco intimidado. Acima de tudo, soava como um disco cheio de si, mesmo quando arriscava passos duvidosos (When you dance you can really love ainda me parece muito estranha).
Eu não conhecia absolutamente nada de Neil Young. Comecei por After the gold rush e depois segui com Harvest e Everybody knows this is nowhere. Não sei se tomei o caminho certo, no entanto foi o que aconteceu. Talvez Harvest seja igualmente impressionante, mas ainda penso em After the gold rush sempre que falam em Neil Young. Me parece um retrato perfeito. A síntese.
Inicialmente, o disco foi escrito como trilha sonora para um roteiro que não chegou a ser filmado. Mas quem precisa de filme quando se tem canções que delimitam um ambiente tão completo e tão poético (uma América de faroestes antigos e pistas de dança desoladas), que soam pessoais mesmo quando parecem contar histórias que pertencem a uma época muito anterior a Young, à invenção do rock? Filme pra quê?
Em 1970, talvez não esperassem de Neil Young um disco de canções de amor. Talvez seja isso. Deve ser isso. Da mesma forma como não esperavam de Bob Dylan, em 1969, a leveza de Nashville skyline. Em 1970, After the gold rush deve ter soado inadequado. Hoje, serve de bibelô agradável em estantes de discos. Obra-prima é obra-prima.
Acredito, no entanto, que o disco pode parecer ainda mais valente, ainda mais vívido, quando tentamos transportá-lo para a perspectiva da década em que foi lançado. Sei que é um esforço quase impossível, mas vale a fantasia. Porque After the gold rush era um disco outsider, frustrante de tão sentimental e antiquado. E, ao mesmo tempo, uma obra que criava um cenário alternativo, quase surreal, de homens solitários vagando em estadas inacabadas. “Tem uma banda tocando na minha cabeça”, Young avisa, na faixa-título. E não haveria motivos para reprimir o som bonito que ela, essa banda de um único homem, produz. Top 3: After the gold rush, I believe in you, Birds.
Após o pulo, veja os outros discos que apareceram neste ranking.
Trecho | Lugar-comum
“Nenhum julgamento e nem sequer um adjetivo podem ser repetidos impunemente. O critério pactuado, a tese compilada, o valor promulgado ou o adjetivo que já colou ao substantivo (o “esforço árduo”, as “manobras ardilosas”) transformam-se com frequência em sucedâneos da atenção que as coisas exigem ou do respeito que merecem, nunca redutíveis aos fragmentos que se deixam apreender por nossas opiniões ou julgamentos. Opiniões como as que hoje garantem, por exemplo, que o amor é bom, a televisão é ruim, o pensamento único pior ainda ou que o fundamentalismo é o fim da picada etc. etc. Que lindo, que claro, que simples, que beatificante, que nojo!
No princípio foi o Verbo, que resultou em escândalo e paradoxo até ser prontamente mobiliado e habilitado como Lugar-Comum: um lugar-comum que vive – e eventualmente mata – só de ser dito e repetido, que pode ser usado sem precisar nem mesmo ser pensado. Quantas vezes, digo eu, é possível proclamar uma ideia sem colocá-la, por sua vez, em perigo? Kafka nos aconselhava a parar sempre uma palavra antes da verdade, em vez de enlameá-la com mil. Como é difícil, contudo, essa continência verbal, esse recato!
Ao Verbo seguiu-se a ladainha de seus filhos menores, das divindades de ocasião: a Natureza, a História, a Razão, a Cultura, a Tradição, a Ruptura… Deuses menores que no século 20 recém-encerrado se democratizaram e multiplicaram, encarnados agora em discursos, metodologias, cenários, approaches, ideologias, semiologias, subversões, desconstruções e todas as outras palavras que ainda hoje pululam entre bibliografias acadêmicas, os manuais de “autoajuda” e o jargão dos catálogos de exposições. Mas logo em seguida, com pouco tempo de uso, a maioria desses lugares-comuns se transforma em resíduos fósseis: velhos caminhos que não conduzem a parte alguma.”
Trecho de Deus, entre outros inconvenientes, de Xavier Rubert de Ventós
Queen of hearts | Fucked Up
Os chapas do Fucked Up acabaram de lançar uma ópera-hardcore do tamanho de um rinoceronte (David comes to life, que ainda não ouvi com a devida atenção) e, é claro, não estão aqui para brincadeirinhas de criança. Bacana saber, no entanto, que o clipe de Queen of hearts não se leva tão terrivelmente a sério: pode ser descrito como um encontro de The wall com Escola de rock, tão surreal quanto elegante (e um pouquinho polido, vá lá). Scott Cudmore dirige, e com um sorriso irônico no canto da boca.
Os discos da minha vida (45)
A incrível, terrível, estranha (porém previsível) odisseia dos 100 discos da minha vida chega a um episódio especialmente mágico. É que estamos coladinhos no top 10, meus amigos, prontos para a última etapa de uma viagem que começou em… em… quando mesmo? Não lembro. Mas faz um tempão. Um tempão.
Estou pensando em alongar o suspense e, a partir do próximo capítulo, ir postando um disco por semana. O que vocês acham? Seria uma desculpa, é claro, para escrever um pouco mais sobre cada álbum, numa torrente quente (e desnecessária) de sentimentos e lembranças. Mas, se vocês preferirem, posso abreviar o novelão e ir aos finalmentes. Então? Vocês é que sabem.
Não custa lembrar que esta aqui é uma lista pessoal (por isso, sem ambições técnicas, talvez filosóficas) de discos que marcaram a minha vida. Esse critério explica por que há muitos álbuns dos anos 90, época em que eu era adolescente (e cada disco era uma questão de vida ou morte). Aqui, Elliott Smith vem antes dos Rolling Stones. Mas acho que só aqui mesmo.
No mais, não existe nenhuma incoerência nisso: no meu ranking de discos mais importantes, influentes, venerados, desejados, adorados etc, não tem Elliott Smith (coitado do homem, mas a vida é assim).
Esta semana, em vez de tecer defesas rocambolescas e apaixonadas para álbuns que são unanimidades, vou seguir jurar fidelidade à lógica desta série de posts e escrever textinhos também muito íntimos, sobre como eu encontrei esses dois álbuns extraordinários e como eles me atropelaram sem que eu percebesse. Simplezinho, ok? Ok.
012 | Automatic for the people | R.E.M. | 1992 | download
O meu primeiro do R.E.M. foi Out of time (1991), uma fitinha-cassete adorável que ganhei de aniversário e ouvi alegremente até o dia em que meu microsystem resolveu trucidá-la com uma mordida. Foi triste. Mas, um ano depois, aquele álbum colorido e melodioso já parecia pertencer à minha infância. Existia uma distância enorme que nos separava, e Automatic for the people chegou como que para mostrar que o R.E.M. estava ciente disso. Aquele era um disco mais cinzento e rarefeito, mais ou menos como eu me sentia em 1992, ano em que me mudei do Rio de Janeiro para Brasília. Depois descobri que era uma espécie de tratado sobre morte e luto, mas na época me parecia um aviso sereno de que uma fase na minha vida havia acabado. So long, meninice. Também era o disco que me uniu ao meu padrasto num período em que mal nos entendíamos. Criou-se um elo, finalmente. Em 1992, Automatic soava como uma ladainha talvez adulta demais, límpida em excesso, um sinal cristalino emitido de um radar distante, velho, suspenso no tempo. Um disco que sempre esteve lá, out of time. Hoje vejo apenas como um álbum lindamente polido, obra-prima desde o berço, perfeito demais para ser verdade. Top 3: Nightswimming, Drive, Everybody hurts.
011 | A tábua de esmeralda | Jorge Ben | 1974 | download
O disco de Ben, o meu brasileiro preferido, me leva ao tempo em que eu aprendia violão (sem muito sucesso). O professor fazia de tudo para defender a delicadeza sublime e a eternidade das batidas da bossa nova, mas aquilo me aborrecia de tal forma que eu acelerava as lições para chegar aonde eu queria: nos Beatles. As melodias que me atraíam eram as de Jorge Ben, os sambas do início de carreira, mas o professor dizia que eu não estava pronto para elas. E me indicou A tábua de esmeralda, uma “suruba de violões, muito louca” (nas palavras do sujeito, sempre muito saidinho). Quando ouvi o disco, saquei imediatamente o que ele quis dizer: não lembro quantas vezes reprisei a introdução de Os alquimistas estão chegando, tentando entender como aquilo era feito. E realmente soava como uma sandice: o Ben que deslizava naquelas músicas não era o malandro galante&sacana dos anos 60, mas um guru louco e genial, tentando engavetar os segredos do universo dentro do refrão – será que Philip K. Dick ouviu aquilo ali para escrever Valis, de 1981? Mas foi quando ouvi o ingrês de Brother que bateu o alívio: então temos o direito a criar músicas que soam como jogos infantis, canções sem sisudez alguma? Depois daquela revelação, as aulas de violão ficaram mais divertidas. Top 3: Brother, Os alquimistas estão chegando, Magnólia.
Após o pulo, veja os discos que já apareceram neste ranking.
Superoito express (40)
4 | Beyoncé | 7
Faltou timing, é verdade. Mas, se existe um disco da Beyoncé que faria por merecer o nome Dangerously in love, é este aqui. E não muito por conta do clima de guerrinha dos sexos que embala o primeiro single, Run the world (Girls). Aliás, um hit tão colante, no esquema super-bonder (o chiclete mais gostoso que a M.I.A. não confeccionou em 2011), quanto enganoso. Não é, de forma alguma, um cartão de visitas confiável pro álbum. O perigo, nas canções, é de ordem sentimental: a protagonista deste drama não é a musa girl-power, mas um mulherão que peca por amar demais.
O gênero é melodrama. Melodrama pop. Melodrama sirkiano. Na faixa de abertura, Beyoncé geme de desejo, deitada nos lençóis cor-de-rosa do produtor The-Dream (e há um fortíssimo perfume kitsch em versos como “não entendo muito de álgebra, mas sei que um mais um é igual a dois”, da baladona 1+1). Logo depois vem a ressaca moral: em I care, lamenta não ser totalmente correspondida (“sei que você não se importa muito, mas eu ainda ligo”, avisa), enquanto o refrão vai desmoronando em guitarras pop-rock. A seguinte, I miss you (de Frank Ocean), tranca as portas do quarto: soa como um sussurro, uma declaração quase constrangedora de amor (e é uma pena que a faixa pareça incompleta, sem um terceiro ato).
Nas primeiras faixas, o disco vai se lambuzando nesse gel romântico com tanta convicção que soa coeso como nenhum outro que Beyoncé gravou. Depois, no entanto, chegam os argumentos para quem defende a ideia de que o álbum morreu. São tantas as expectativas comerciais em torno da cantora que ela não consegue manter o foco: recorre à inevitável cartilha brega de Babyface (Best thing I never had, broxante), vai ao songbook de Diane Warren (I was here, tão ruim que arrepia) e desce à pista de dança quando parece menos apropriado (ainda que Party, produzida por Kanye West, tenha algum músculo). O disco termina com dois bons singles: além de Run the world, tem Countdown. Que vão fazer sucesso, sim, como não? Mas que acabam denunciando o fracasso de Beyoncé: não foi desta vez que ela conseguiu gravar um ÁLBUM (e o triste é que, aqui, esse parece ter sido um objetivo levado a sério).
D | White Denim | 7
Deveria parecer uma progressão natural: uma banda de garage rock assmidamente saudosista – que concebeu um repertório inteiro replicando o som de ídolos bastardos do fim dos anos 1960 – resolve virar as páginas do calendário e gravar o que entende como o típico disco psicodélico setentista, com todas as dores, delícias e manias do período (espere, portanto, encontrar clichês de prog rock, jazz, blues, além de letras sobre drogas e fazendas). Em tese, é uma guinada até muito previsível. Mas ainda me parece surpreendente notar que aquele trio meio desleixado e galhofeiro (que já foi comparado a The Hives e White Stripes) se reinventou como um quarteto detalhista, até um pouquinho cerebral (o disco é praticamente uma homenagem completa, faixa a faixa, aos ídolos do grupo). Tudo o que eu não esperava deles era uma balada sóbria como Street joy. Que está aí prontinha para entorpecer o fã de Tame Impala, se é que eles ainda estão na sala (estão?).
Cults | Cults | 6.5
Não é uma história nova, sabe? Cults é a novidade nova-iorquina absolutamente adorável que amacia os nossos headphones neste outono gelado. Deveria, é claro, existir um prêmio para esse tipo de disco, que transforma a vida em algo muito mais simples e doce – numa canção açucarada de dois minutos. Mas, dissipado o encanto dos primeiros dates, este début fofo começa a soar um tantinho como aquela comédia romântica agradável-porém-ordinária. Entende o que quero dizer? Aquela que, apesar dos diálogos espertinhos e do turbilhão de afeto, perde um pouco da graça assim que notamos o quanto depende de um esquema narrativo que é mecânico, velho, e não tem alma. Go outside e You know what I mean estão à altura do primeiro disco do Pains of Being Pure at Heart, mas eu aposto que este duo boy-meets-girl vai dormir um soninho totoso no meu hard drive, de conchinha com as Pipettes e o I’m From Barcelona. Apenas mais um rostinho bonito?
Born this way | Lady Gaga | 6.5
Antes que me crucifiquem, preciso admitir que o novo da Lady Gaga é um avanço tremendo, quase inacreditável, em relação a seus discos anteriores. Porque antes, amigos, eu ficava com a impressão de existir duas Gagas: a popstar dos clipes e das revistas, que curtia uma avacalhação nonsense, e a cantora de hits tão convencionais (e medrosos, veja a contradição) quanto qualquer armação do Black Eyed Peas. Em Born this way, a imagem finalmente entra em sincronia com o som. O resultado dessa sobreposição, como não poderia deixar de ser, é um disquinho esquizofrênico, frenético, indeciso, tomado por falsas polêmicas e um desejo enorme de aparecer. Talvez nem tão pessoal quanto parece (na verdade, é apenas um álbum que combina com o visual mutante e os golpes de marketing de Gaga), mas um produto mais vívido que os anteriores. O que não justifica, porém, as crises histéricas mais irritantes: da faixa-título, que reprisa Express yourself sem piscar o olho para o público, a misturebas inaudíveis como Americano, o disco melhora muito na segunda metade, quando engole todos os excessos oitentistas que nem Brandon Flowers tem a pachorra de defender. Termina muito bem, com o saxofone viciante de Egde of glory. Mas é um caminho longo, cheio de lombadas e ranhuras, que pode nos levar a disquinhos um pouco menos tortuosos. Ainda assim, não há como negar: Born this way é o DNA de Gaga, a personagem.
Nostalgia, ultra | Frank Ocean | 6
Por falar em picaretagem pop, Frank Ocean leva o conceito de copy+paste a um outro patamar. Soulman da geração Soulseek, o rapaz sensível da gangue Odd Future lançou por conta própria este EP (de 14 faixas, vá entender) que tem a aparência de uma mixtape gravada às pressas para a namorada. Isso é o futuro? Pode ser que sim. Mas, se eu fosse a musa do sujeito, recomendaria urgentemente uns 20 discos interessantes para que ele não precisasse roubar as melodias de Strawberry swing, do Coldplay, e de Hotel California, do Eagles. Apelações à parte (e são muitas), fica difícil resistir aos amassos de Novacane, mais um indício de que o novo R&B vai seduzir o mundo com um charme marrento todo especial (Drake e The Weeknd estão na luta, mano). No fim do baile morno, entendi por que o homem preferiu rotular este disco com o formato EP: o melhor, o maior e o mais intenso, tenho certeza, está por vir (e vamos combinar de uma vez por todas, bróder: Coldplay não é um tipo muito saudável de nostalgia, ok?).
Superoito, mesa pra dois
Estava eu salinha de espera da oficina mecânica, virando as páginas de uma revista de celebridades, quando li a notícia: depois de muitas tentativas infelizes de subir ao altar, a apresentadora de tevê finalmente decidiu acertar ponteiros com Santo Antônio. A modelo se casaria sim, em breve, graças ao bom pai, mas com uma condição – ela e o marido, um empresário que preferiu não conversar com a repórter, morariam em casas separadas.
A jornalista, e todas são curiosíssimas, quis saber: “Casas separadas? Como é isso?” Sempre alerta, a atriz respondeu com frases prontíssimas. Pregou uma lição sobre como, no mundo moderno, a convivência pode minar a individualidade, principalmente entre pessoas atarefadas, bem sucedidas e que aprenderam a gerenciar a solidão.
Gostei da palavra. Gerenciar. Pensei ali, enquanto o mecânico virava meu carro pelo avesso: soa poético quando as pessoas usam termos empresariais para tratar do cotidiano. Um lirismo frio, metálico, mas que me parece contrabandeado de um bom filme do David Cronenberg. De qualquer forma, acho que já comecei a fugir do assunto que é central a este post.
Voltemos então à revista, à celebridade, à apresentadora de tevê, à modelo, à atriz (talvez cantora). Num certo momento, desviei minha atenção do texto (que começava a ficar cansativo, uma repetição de comentários otimistas sobre isso e aquilo) e mirei as fotos. Parecia haver algo forçado, artificial nelas – e aqui não falo em maquiagem, penteado ou efeitos digitais.
A mulher sorria para a câmera, radiante com a novidade. Um casamento. Uau. Não acontece todo dia. Mas, ao mesmo tempo, notei algo desconfortável naquelas imagens. A estrela independente posava em quartos de hotéis, restaurantes, bares, ruas parisienses, cafés. Mas estava sempre sozinha. Sempre sozinha. E, se você reparasse no olhar azulzinho da moça, notaria que algo a incomoda.
Seria isso? Algo a incomodaria de verdade? Havia, de fato, uma distorção naqueles flashes. Mas seria o caso de uma lente equivocada? De um filtro escolhido com desleixo? Ou apenas a percepção de um leitor que queria encontrar algo incômodo no olhar daquela celebridade?
A última opção me parece a mais verdadeira. Para minha sorte, o mecânico mostrou extrema agilidade e terminou o serviço em pouco mais de 15 minutos. Eu ainda teria a manhã inteira de segunda-feira para pensar em outras frivolidades (arrepiantes) antes de pegar o avião para São Paulo.
É uma viagem que faço com freqüência. Há cinco meses, vivo um namoro em casas separadas. Talvez por isso eu me identifique um pouco com a noiva famosa da revista. Eu moro num apartamento em Brasília. Ela mora num apartamento em São Paulo.
Entendo que, no meu caso, são casas extremamente separadas. Uma relação menos simples do que aquela que a modelo/atriz/cantora tenha projetado. Ela provavelmente imaginou o formato mais recorrente dos casamentos modernos: ela se acomoda num loft estilo Sex and the City (cheio de sapatos e laptops róseos) enquanto ele, do outro lado da rua, convida os amigos empresários para tomar um uísque enquanto jogam sinuca e baralho num apê todo acinzentado, estiloso e com a aparência de um Hard Rock Café.
Ok. É um sonho possível. Mas talvez ela não tenha a cogitado que, numa relação amorosa, a distância pode exercer dois movimentos simultâneos e opostos: arejar o dia-a-dia, mas corroer a intimidade. Prolonga o amor (cada encontro soa como um recomeço, eis o clichê), mas provoca uma sensação de afastamento e desamparo que pode ser fatal.
Amor à distância: eu poderia escrever um livro sobre o tema. E seria um livro cheio de contradições e questões obscuras, sem certezas, mais ou menos como uma biografia de banda de rock dos anos 70. Não há existe uma única verdade, uma única linha narrativa, uma regra que resolva todas as equações (até porque os integrantes da banda estavam chapados demais para lembrar de alguma coisa).
Mas este não é um post sobre amor à distância. É, sim, um post sobre convivência. Sobre dividir a casa, apesar do mundo moderno, da globalização, da convergência tecnológica e das revistas de celebridades.
Minha experiência nesse ramo é, aviso logo, quase nula. Levei um namoro longo em casas separadas (mas a convivência era mais intensa que a de muitos casais grudentos), depois morei sozinho por um período curto e, em seguida, engatei um namoro interestadual. Ainda não testei a ideia de compartilhar, na real, um lar. Na verdade, admito que eu ficava um pouco nervoso com o conceito, com o modus operandi da coisa.
Descobri há pouco que, quando eu pensava sobre essa perspectiva de mudança, o que me perturbava era o medo de perder algo. Algo. Algo que eu não sabia o que era. Não exatamente a minha liberdade, ou a minha individualidade. Não estou falando em termos abstratos. Eu temia o custo dessa espécie de negociação. Porque meu professor de economia ensinou que havia um custo para tudo. E certamente eu teria que abrir mão de muitas coisas, de manias e hábitos, para ter a coragem de pedir uma mesa para dois.
Foi uma aflição parecida àquela que me invadiu quando deixei a casa dos meus pais. Na época, eu suspeitava que seria uma transição terrível. Que seria um trauma. Lembro que eu não queria me desfazer de nada. Não queria perder a minha cama, o meu computador, a minha conexão banda larga, a estante dos meus livros, meu armário, o jardim da casa, meus pais, minha irmã, os cachorros, os sofás, o aquário feioso. Eu sentia que estava fazendo uma escolha equivocada. E que eu iria pagar um preço alto, talvez alto demais, por aquela odisseia.
Acabou que, mais ou menos como numa fábula urbana (e moralista, boboca), o herói da história entendeu que, além de necessária, a mudança revelou algo profundo: que o medo de mudar, de abandonar o conforto e seguir em frente, talvez tenha feito com que perdesse tempo, que adiasse por teimosia a estação seguinte. Quando morei sozinho, percebi que meu quarto era pequeno demais. E que, apesar de confortável, o ninho familiar estava transformando um adulto num crianção.
E, no mais, era tempo de crescer.
Hoje percebo que meus planos são outros. Namorar à distância atiçou em mim um desejo totalmente contrário ao da celebridade da revista: o que mais quero é a experiência de viver numa mesma casa. É isso aí. Estou na contramão da contemporaneidade, eu sei, mas é mais forte do que eu. Por enquanto, essa é uma meta difícil (ainda não sabemos como estreitar a distância que nos afasta, e seguimos em cidades separadas, trabalhando um aqui e o outro lá). Mas uma meta que existe. E, filosoficamente falando, me parece muito viável.
E ela começa aqui, agora, mais ou menos enquanto escrevo este texto.
Há quem decida investir 15 dias de férias em pacotes turísticos ou retiros espirituais. Eu preferi usar o recesso para conviver com a minha namorada, dividir uma casa, esboçar uma rotina, dar o primeiro passo. Depois de cinco meses, sinto que estamos finalmente sedimentando nosso namoro. E me parece um bom começo. Nesta primeira semana, notei que eu estava novamente enganado em relação às minhas angústias: não sinto como se estivesse perdendo algo. Não é como se eu tivesse trocado minha liberdade por outro bem. Não. É diferente disso.
Ontem à noite conversei com minha namorada sobre a situação. Ela me perguntou se me sinto em casa. “Tá tudo bem, Tiago?” (ela é sempre muito atenciosa, e isso me mata de alegria). E eu disse que sim, é o que sinto. Estou em casa, estou bem, estou feliz. Depois ela contou que, num período recente, levou muito a sério a ideia de que o certo mesmo seria apostar numa relação em casas separadas. “O ideal, imagine isso, seria morar no apartamento ao lado. Ele ficaria sempre lá, perto, mas eu poderia dormir sozinha quando estivesse de mau humor”, ela explicou. Um bom argumento, na minha opinião.
Talvez ainda seja cedo para tirar alguma conclusão sobre a experiência. Uma semana é muito pouco. E, depois de tanto tempo namorando à distância, o conforto de um lar compartilhado se tornou, para mim, insuperável. Não sou parâmetro para nenhum casal. Meus sentimentos estão desregulados. Quando ela chega do trabalho e preparamos hambúrgueres, sinto que vivo alguns dos momentos mais felizes da minha vida.
Talvez eu seja um sujeito apto à vida de casal, ao confinamento amoroso. Faço concesões com facilidade, ainda que eu saiba agora (e mais do que nunca) que não se deve fazer concessões em excesso. Entendo que, nos momentos de crise, dividir um apartamento pode ser sufocante. Vi dezenas de filmes sobre o assunto. Conheço casais que, em espaços abertos, não se aguentam. Imagino como deve ser torturante para eles o ato de recolher a toalha que foi largada por descuido em cima da cama. Ou de baixar a tampa do vaso sanitário.
Mas o ceticismo dos que alertam sobre os perigos da convivência também deveria valer quando se trata das relações em casas separadas. Ou não? Porque a distância, mesmo que mínima, não bloqueia o fim do amor, não ameniza as discussões, o destempero. Sei de casais que vivem em cidades separadas há muitos anos, mas se encontram pouco para não se agredirem. Sei de casais que se amam quando estão juntos, mas que precisam viver aos amassos com outras pessoas. Acontece.
Nessa selva, o único exemplo que tenho é a minha história. As minhas histórias. E, até agora, elas me mostram que o medo de conviver às vezes pode ser pior, mais massacrante que a convivência em si. Deve parecer uma lição barata, muito típica dos livros de autoajuda e das revistas de fofocas, mas ela me traz algum alento.
Porque, para alguém que se acostumou à solidão (mas não se conforma com ela), existe algo muito poético, muito emocionante naquele momento em que ela deita no sofá sem pentear o cabelo, com o pijama antigo, girando a colher dentro de uma xícara de chocolate quente. Isso é intimidade. Para mim, isso é o paraíso.
Calgary | Bon Iver
No refúgio subterrâneo onde vive este monstrinho visual de Bon Iver, coisas estranhas acontecem: às vezes, a sensação é de estarmos presos numa capa de disco da Enya. Mas há cenas que evocam Lewis Carroll, e aí as coisas melhoram um pouco. De qualquer forma, pode ser usado como instrumento de acusação para aqueles que veem no disco mais recente de Justin Vernon um desejo louco de entrar na programação de madrugada das rádios AM. A direção é de Andre Durand e de Dan Huiting.
Bon Iver | Bon Iver
Mais do que melodia, estilo e poesia, música pop também é uma arte da fabulação. Uma canção quase nunca é apenas o que se ouve, não é simplesmente o acúmulo de acordes, harmonia e voz. Ela faz parte de uma narrativa complexa (e às vezes muito longa) sobre a criação de heróis, mitos.
Acontece assim desde o começo (e isso que digo é até bem óbvio). Desde Elvis Presley, de Lennon & McCartney, de Mick Jagger e Johnny Rotten, de David Bowie e Neil Young, de Ian Curtis e Madonna. Quando bate o ouvido numa música de Kurt Cobain, por exemplo, a tendência do fã é associar aquele “capítulo” a uma história maior, que parece seguir indefinidamente. Como se cada canção abrisse uma nova trilha de acesso à persona do ídolo.
Era assim quando eu ouvia os primeiros discos do Radiohead. Eu imaginava Thom Yorke como um sujeito arredio e de saúde frágil, extremamente inteligente porém incapaz de se adequar ao mundo. Um band leader que se adoentava a cada sopro de vento um pouco mais frio. Já Prince me parecia um vampiro moderno, sexy porém condenado a viver na solidão de uma mansão dourada. Não sei ainda, sinceramente, o que pensar de Frank Black: mas ele sempre aparentou ser um sujeito meio doentio, dado a surtos.
O fã mais imaginativo cria histórias que os aproximem do artista. Já o artista, num caminho paralelo, também vai construindo um personagem que se torna mais profundo e contraditório (mais crível, digamos) a cada música, a cada disco. Há os músicos mais instintivos, que vão definindo essa identidade como que naturalmente. E há os que maquinam cada transformação, cada performance, que confudem conscientemente a própria vida com a imagem divulgada na mídia, multiplicada nos palcos, ampliada e retorcida.
É engraçado, por isso, como a história do pop pode ser lida como um grande romance à moda de Tolstoi, com centenas de personagens metidos em tramas enormes, folhetinescas. O mocinho e o bandido, a donzela e a mulher independente, os sentimentais e os brutos. Personagens ricos, até imprevisíveis, que parecem cumprir arcos narrativos muito bem definidos. A história de Michael Jackson, para ficarmos no exemplo mais épico, renderia um filme extraordinário.
Se pensarmos o pop como um livro de mil páginas e os artistas como personagens permeáveis (criados por eles próprios, mas também por cada “leitor”), a história de Justin Vernon pode parecer um exemplo arredondado, perfeitinho, de como a música se beneficia de um contexto “ficcional”, de uma narrativa lúdica que paira em torno dos sons que aparecem nos discos. Porque a história de Vernon, queira ou não, é uma bela de uma fábula.
O disco que iniciou a saga, For Emma, forever ago (2008) pode ser encarado de uma forma relativamente simples: Vernon, que então assumiu o codinome Bon Iver, parecia cobrar um lugar entre os songwriters melancólicos, cabisbaixos, na tradição de Tim Buckley e Nick Drake. Mas, simultaneamente, trabalhava com camadas cíclicas e enevoadas de efeitos sonoros que pareciam remeter a bandas um tanto mais experimentais, como Animal Collective e Deerhunter.
Era possível gostar de Vernon apenas por esse estilo, que soava ao mesmo tempo convencional (visitava o fim dos anos 60, início dos 70; e não parecia nada novo) e up-to-date (já que testava um folk atmosférico, misterioso, que ainda se tornou muito querido no indie rock). Mas, quando se conhecia a história de For Emma, forever ago, era possível amar Vernon. E tratá-lo como um personagem, um ser da música pop.
O disco, dizem, foi gravado num período de isolamento do cantor, que abandonou uma banda não muito bem sucedida e se isolou num chalé abandonado, onde registrou canções absolutamente pessoais (e sofridas) sobre amor e dor. Soa como um CD talhado a machadadas. E talvez seja isso mesmo. Hoje se sabe que a maior parte das músicas estava escrita antes da viagem à casinha da montanha. E que a sensação de isolamento e angústia que as canções evocam talvez sejam apenas uma (excelente, diga-se) obra de ficção.
No entanto, quem se importa? Conhecer todos os detalhes sobre a gravação de um disco como esse (envolto numa história tão fascinante) seria como passar um tempo na companhia de Thom Yorke e, em seguida, ouvir Kid A. Aposto que o personagem do vocalista perderia um pouco do encanto que desperta em nós.
O desafio do disco novo de Bon Iver é, portanto, apresentar uma nova aventura para um herói que, desde o lançamento de For Emma, se transformou numa espécie de coadjuvante pau-pra-toda-obra. A voz de Vernon parecia tão especial (e as harmonias, tão memoráveis e curtas, por isso “sampleáveis”), que o cantor foi convidado para participar de uma série de projetos. Topou quase todos – entre eles, o mais recente de Kanye West.
Fico me perguntando: o que se espera de um disco novo de Bon Iver? Descobri que, particularmente, eu não esperava nada. Na verdade, não queria nem mesmo um disco. Porque, na minha cabeça, a história daquele personagem já estava contada. For Emma me parece um álbum completo, com início, meio e fim. É claro que, no capítulo final, bate uma curiosidade sobre o que teria acontecido ao homem das cavernas: mas talvez não seria tão atraente ouvir um disco inteiro sobre um tipo outsider que consegue fama, reconhecimento, fãs e sai para jantar com rappers e roqueiros. Parece um tanto banal (ainda que, no caso de Vernon, a realidade possivelmente seja bem essa).
Esqueçamos a realidade, portanto. O disco novo de Bon Iver segue o personagem de For Emma numa lenta trajetória de reconhecimento do mundo: como se aquele tipo ferido, introspectivo, resolvesse seguir lentamente para fora. É, antes de qualquer coisa, mais um belo exercício de ficção: Vernon dá conta de empurrar os limites de um universo (criado a partir de impressões pessoais, é claro, já que estamos no ar rural/doméstico de Wisconsin, cidade natal do músico) sem trair o perfil psicológico do personagem. “Não estou mais vivendo na escuridão”, ele conclui, na última faixa do disco.
É uma espécie de happy end. O interessante é como Vernon não transforma um disco de libertação e celebração (afinal, profissionalmente o músico nunca esteve mais feliz) numa corrida-da-vitória, num oba-oba sem propósito. Pelo contrário: apesar de estar acompanhado de músicos muito talentosos (entre eles, o guitarrista Greg Leisz, que trabalhou com Lucinda Williams, e os saxofones de Colin Stetson, do Árcade Fire), o compositor segura as rédeas de uma mise-en-scene até muito concisa, apesar de todas as mudanças sutis de climas e tons que aparecem entre uma música e outra.
Se For Emma era um drama sobre alienação e lembranças, Bon Iver soa como uma aventura mais serena, em que as memórias (ainda muito fragmentadas; é quase impossível decifrar as letras) se deixam contaminar pelas paisagens de cidades, por espaços abertos, fluem num leito muito largo. O movimento para frente se torna enfim possível, mas o terreno parece tão amplo que o personagem dá passos curtos. Vai seguindo pouco a pouco.
Cada canção olha para uma paragem diferente, das guitarras repetitivas e densas de Perth aos ar quase kitsch dos sintetizadores de Beth/Rest. Um momento especialmente deslumbrante é Hinnom, TX, quando Vernon parece cantar num bosque de maravilhas: a voz ecoando alta, grave, em meio a estalos ora estranhos, ora muito agradáveis e gentis. Ouvir o disco mais de três, quatro vezes pode mostrar que ele se aventura mais do que imaginávamos nas primeiras audições.
O que me agrada, acima de tudo, é como Vernon banca a missão de criar um disco que dá continuidade ao anterior, que vai modelando uma persona, uma identidade, uma narrativa própria. É a juventude de um personagem. É possível dizer que, como o herói deste disco, Bon Iver escolhe mapear com cautela, mas sem preguiça ou covardia, o chão onde pisa. Criou um capítulo talvez mais controlado e sóbrio do que esperávamos, mas tão gracioso quanto selvagem – e seguro de si. Quando termina, nos deixa com vontade de ouvir mais.
Segundo disco de Bon Iver. 10 faixas, com produção de Justin Vernon. Lançamento Jagjaguwar Records. 8/10
Superoito e as canções dos outros
Sempre fico um pouco aflito na véspera do Dia dos Namorados porque (e talvez vocês ainda não saibam disso) me considero o mais infame, o menos elegante, o pior escritor de cartas de amor.
Não posso com elas. Tento vencê-las sim (porque delas não há como fugir), mas elas acabam me massacrando logo nos primeiros rounds, dobrando a minha resistência feito origami. Batalhas sangrentas, que comovem e fazem rir.
Isso porque, quando resolvo espirrar meus sentimentos no papel, sou tomado por uma atração quase magnética pelos lugares-comuns, e raramente escapo dos clichês mais medonhos. De tão adoçados, os parágrafos escorrem geleia de framboesa. São frases piegas, arrepiantes (no mau sentido), do tipo que não se encontra nem no romance mais recente do Nicholas Sparks.
O mais intrigante é que não noto sinais de evolução no meu traquejo com as cartas. Elas me matam de vergonha do jeitinho como me matavam aos 11, 12 anos de idade. Aprendi a dirigir automóvel e a comprar produtos de limpeza no supermercado. Mas o segredo de escrever cartas de amor com dignidade, cartas de amor adultas, ainda me parece tão misterioso quanto o tempero do frango xadrez que servem no China In Box (é suculento, recomendo).
E o problema está longe de ser só esse, só uma questão de não cair no ridículo: eu falho miseravelmente no desafio de usar palavras para resumir a complexidade, o grau, os níveis, os recheios e os tons do amor que eu sinto. O processo é tão penoso que às vezes me pergunto: sou um psicopata?
Ainda acredito que não. Mas me senti um pouco desalmado quando tentei investigar a linguagem apropriada para resumir os meus cinco meses de namoro. Nem preciso dizer que, com as bênçãos de Bono, ainda não achei o que estava procurando.
Foram cinco meses incríveis (clichê número 1), maravilhosos (clichê número 2), inesquecíveis (clichê número 3), que fizeram de mim um homem diferente (clichê número 4), que mudaram a minha vida (clichê número 5), que renovaram as minhas esperanças (clichê número 6) e que provaram o poder de transformação do amor (clichê número 7).
Sete lugares-comuns. Todos verdadeiros, e todos batidíssimos.
Neste caso, para não cair numa humilhação brabíssima, preferi amenizar o impacto dolorido da carta com um presente também muito pessoal: uma coletânea com músicas que, de certa forma, vão contando a história desses cinco grandes meses. Qual não foi minha surpresa ao perceber que as canções escritas por outras pessoas (e pessoas que nem conheço!) resolveram de uma forma muito mais galante (e mais digna!) a tarefa de resumir minhas emoções?
É. Pois é.
Quando ouvimos o CD – eu e minha namorada, num daqueles momentos mágicos da vida a dois (clichê número 8) – fiquei pasmo. Quase chorei, de tão tocado por versos e arranjos e melodias. Não sei se minha namorada ficou tão satisfeita com o presente (por precaução, dei dois livros e um CD), mas aquelas 12 faixas me pareceram tão adequadas, tão exatas, tão sábias que desconfiei – por um breve momento, já que não sou doido – o seguinte: alguma força estranha bagunçou meu HD enquanto eu grudava uma canção na outra. Foi uma espécie de trote, de epifania.
A mixtape parecia fazer tanto sentido que me deu calafrios: trata de sonhos e recomeços, paixões serenas e amores duradouros, as alegres tardes de domingo (quando estamos juntos) e as tristes manhãs de segunda (quando nos despedimos, já que o namoro é à distância), a distância que nos separa e todo o afeto que nos gruda um ao outro. Isso, mas não só isso. O disco acaba falando de coisas que estão nos manuais, nos dicionários, nas enciclopédias, nos tutoriais (e o efeito de iluminar o inatingível bateu principalmente nas faixas instrumentais).
Num primeiro clique, cheguei à conclusão inevitável: a música fala um idioma enigmático que, de alguma forma, explica para mim mesmo tudo o que eu sinto e tudo o que eu sou. Algo muito lindo. Num segundo momento, no entanto, comecei a considerar aquele jogo um pouco deprimente: eu havia criado ilusões, comparações distantes, códigos mui abstratos para garantir significados particulares a canções que não foram criadas para mim.
As canções sempre seriam, lá nas profundezas, dos outros.
Havia algo inusitado ali naquela experiência de ouvir o CD a dois: era como se algumas músicas só provocassem em mim a ideia de resumir o namoro, de explicar tudo. Era óbvio que minha namorada não conseguiria acessar todos os sentidos que, imaginava eu, existia naquelas músicas. E por que não? Tentei explicar os supostos significados, tentei compor um guia para o disco. Mas não parecia suficiente. Tomei um distanciamento dolorido, por fim: algumas das músicas, convenhamos, talvez não significassem coisa alguma para nós dois.
E a carta de amor que escrevi para ela, mesmo singela, certamente dizia muito mais sobre o que vivemos. De uma forma mais autêntica, talvez (apesar dos chavões).
Comecei a notar, então, dois movimentos conflitantes na minha percepção da música: a alegria produzida pela identificação com aquilo que é cantado (ou com a sonoridade da melodia, dos arranjos, do ritmo) e uma ressaca desconfortável quando noto que exagerei na dose, que inventei conexões sentimentais exageradas entre os discos e a minha vida. Que talvez nenhuma delas exista, de fato. Que uso a música tão somente como um recipiente onde projeto as minhas sensações.
Foi um Dia dos Namorados especialíssimo (e fora do comum, não apenas por ter acontecido num 13 de junho). No dia seguinte, no entanto, comecei a pensar com mais seriedade na minha relação (doentia?) com as canções dos outros. Concluí que talvez eu não devesse levá-las como uma questão estritamente pessoal. E que, para o bem da minha sanidade, seria melhor se eu enfrentasse sem tanto pavor as minhas cartas de amor. Textos singelos, mas escritos com as minhas palavras. E com um punhado de clichês, porque não sou de aço.
Trecho | Sobre a crítica
“Não temos o hábito de debater na escola, educadamente, como parte do processo mesmo de aprendizagem. Diferentemente do que ocorre em outras culturas, não faz parte da nossa experiência educacional argumentar, defender um ponto de vista, fundamentar uma opinião, procurar exemplos que a ilustrem, desenvolver um raciocínio para convencer o outro. Não aprendemos a, em seguida, parar para ouvir, ponderar, pesar os argumentos alheios, avaliá-los, ver em que medida eles devem ser refutados ou podem ser aceitos. Não nos ensinaram a construir sínteses nem consensos. Qualquer discussão entre nós descamba logo para o pessoal, o agressivo, o hostil. Vence quem ganha no grito.
A crítica é parte integrante do universo artístico quando ela própria, de alguma forma, participa da criação – e por isso é necessária. Um texto criador não se esgota numa leitura de dicionário ou filológica, que decifre o sentido literal do que nele está escrito. A crítica digna desse nome, criadora, usa a linguagem de tal maneira que explora a obra, aberta e cheia de sentidos, naquilo que a criação tem de profético, de certo modo. Ajuda a compor essa criação, a lhe dar sombra e volume, sem medo de submergir na coexistência de sentidos que caracteriza a linguagem artística, uma linguagem simbólica e trabalhada.
Dessa forma, a criação só tem a ganhar com o exercício de uma crítica desse tipo. Uma crítica nascida de uma espécie de provocação feita pelo texto comentado, um estímulo sedutor que desperta no crítico o desejo de escrever, ele também. Uma crítica que, por participar da criação, tem muito mais a ver com o prazer de pensar e de escrever do que com o poder de condenar ou exaltar que caracterizam um juízo final.”
Ana Maria Machado, em Silenciosa algazarra.
Os discos da minha vida (44)
Enquanto aperto as roupas na mala para sair de férias logo mais (cinco ou oito pares de meia?, eis a questão), deixo vocês com mais um capítulo da saga dos 100 discos da minha vida.
Lembrando que, apesar da falta de entusiasmo do blogueiro (é uma viagem longa, estou um caco!), estamos muito perto de entrar naquilo que chamariam de reta final. Isto é: o top 10 vem aí.
Ok, eu deveria estar mais empolgado: o TOP 10 VEM AÍ, meu povo!
Certo. Assim está melhor. Mas vocês sabem que a ideia de um top 10 significa muito pouco (quase nada) quando estamos falando de um ranking absolutamente pessoal, cheio de tiques e manias estranhas, que diz respeito a este blogueiro e a mais ninguém. É uma lista dos discos da minha vida. O que, no mais, bloqueia qualquer tentativa de debate ou polêmica sobre os álbuns que deveriam ou não deveriam estar aqui. Este não é o ponto da discussão, meu bróder. Nem nunca foi.
Também lembro que é possível fazer o download desses discos tão especiais. É fácil, é só clicar, e você não paga nada por isso. Entendido? Então até logo mais. E me deixem descansar um pouco, tá?
014 | Sticky fingers | The Rolling Stones | 1971 | download
Mick Jagger comentou mais de uma vez que, se pudesse, teria regravado Exile on Main Street (1972). Não gosta da mixagem, que avalia como empolada e confusa. Obviamente, não devemos confiar nele: preciosismo tem limites. Mas, heresias à parte, não lembro de ter lido nenhuma observação maldosa do sujeito sobre o disco anterior, Sticky fingers – e seria bom se, nesse caso, o homem ficasse quieto. Porque Sticky fingers, para mim, cristaliza em 46 minutos tudo aquilo que amo nos Rolling Stones – e tudo aquilo que eles não conseguiram repetir completamente desde então. É de uma precisão absoluta. E nem por isso contido (pelo contrário: existe tanto sentimento nessas canções que o suor parece molhar a capa do disco). Os Stones sempre foram uma banda de blues que precisou se adequar aos formatos em voga no rock. Mas, neste disco aqui, eles fazem o percurso contrário: nos vendem um disco de rock que, do início ao fim, experimenta praticamente todos os fundamentos do blues. E isso (percebam a sagacidade) sem soar nostálgico ou reverente aos ídolos. Não, não era apenas rock ‘n’ roll. Top 3: Wild horses, Sway, Brown sugar.
013 | XO | Elliott Smith | 1998 | download
O disco mais subestimado, mais injustiçado, mais incompreendido (etc!) de Elliott Smith é aquele que eu sempre ouço com o coração na mão. Se Either/or (que já apareceu neste ranking) era malpassado e sangrento, XO me parece um desafio ainda mais tocante: contratado por uma gravadora grande (a Dreamworks, de Geffen e Spielberg), o nosso herói resolveu gravar um álbum pop. Mas o interessante é notar o que ele entende por pop: um disco-diário de Nick Drake com os arranjos vocais de Brian Wilson, as melodias redondinhas de Paul McCartney e a produção límpida de um Nigel Godrich. É nessa espécie de paraíso sonoro (com nuvens branquinhas ao redor) que Smith aconchega algumas das canções mais otimistas da carreira: sons de libertação (Independence day) e euforia (Bottle up and explode, Everybody cares everybody undestands). Sons também de utopia, de ilusão: entre uma faixa mais alegrinha e outra, aparece na fresta o rosto triste de um homem que não consegue sustentar o sorriso por muito tempo. “What a fucking joke”, ele desabafa, como quem conclui algo importante sobre a vida, a música, o pop e tudo mais. Top 3: Independence day, Tomorrow tomorrow, Everybody cares everybody understands.
Após o pulo, confira os discos que já apareceram neste ranking.
Sound Kapital | Handsome Furs
Eu não esperava encontrar tanta melancolia, saudade e (alguma) dor profunda no momento em que resolvi trancar a matrícula na academia de ginástica. Mas foi o que aconteceu, amigos. Foi o que aconteceu.
Este não é um blog dissimulado. Portanto, devo contar a história inteira, sem esconder os capítulos mais ridículos.
Aconteceu que, naquela manhã fria de sexta-feira, a gerência da academia decidiu reajustar o valor da mensalidade. Já era cara. Muito cara. Mas (foi o que descobri) não o suficiente. Usaram a desculpa inevitável (a renovação muito tardia dos equipamentos) para anunciar a facada. Só que o golpe foi inesperado. Tão inesperado que minha mochila escorregou do meu ombro e caiu no chão.
“Não posso pagar”, avisei, num sussurro.
A secretária me olhou com falsa piedade.
“ Você pode fazer o plano anual”, ela declamou, como quem lê um panfleto invisível. “Vai pagar menos, e ainda vai ter direito a trancar a matrícula nas férias.”
Não parecia tentador.
“Sabe o que é?”, e o sussurro virou quase um código silencioso, “É que eu não posso fazer planos. Nenhum plano. Não sei o que vai acontecer comigo. Não sei, minha vida pode mudar completamente em uma semana, um mês. Não sei. Não posso”, e fiquei mudo por alguns segundos, já com a testa franzida, palpitando em agonia.
A reação da secretária me surpreendeu. Em vez de compreender a situação, ela foi um pouco mais fundo. Novamente, o golpe me pegou de surpresa.
“Tiago, olha só: você diz isso sempre. Que não pode fazer planos. Mas já está aqui há três anos. Nada mudou”, e ela tratou de sublinhar com tinta amarela a palavra “três”.
A observação (muito atenta, talvez indiscreta) acabou desatando um engarrafamento de dominós em queda. Primeiro tranquei a academia, num ato instintivo de vingança. Depois passei a manhã inteira metido em divagações muito tristes, numa auto-terapia angustiante. A secretária da academia me abriu os olhos: há três anos, há três anos não consigo fazer planos.
Nem preciso dizer que foi uma malhação vagarosa e especialmente dolorida. O sentimento de fadiga nos braços e nas pernas não foi maior do que o peso de alguns halteres na minha consciência. Por que passei tanto tempo nesse estado deprimente de incerteza? E por que (pergunta mais difícil) eu ainda me encontro preso nesse limbo?
As questões, é claro, ficaram sem respostas.
Depois fiquei me perguntando (mais perguntas!) por que tranquei a matrícula de uma forma tão destemida, decidida, como se não houvesse amanhã. É claro que sofri muito com a decisão (não consigo me desapegar facilmente nem de uma xícara velha), mas notei que estou numa fase de desapego, de mudança, de rupturas quase desesperadas (ainda que patéticas). E que a transformação está acontecendo um pouco antes do início da Grande Aventura.
Percebo que, talvez inconscientemente, estou lacrando as caixas com os meus pertences. Fechando tudo antes que chegue o caminhão de mudança. Saindo, indo.
A despedida da academia coincide com o período em que tudo na minha vida passou a parecer datado: meus discos, meus livros, meu carro, o apartamento onde moro, meu blog. É como se tudo isso pertencesse ao passado.
Também coincide, é claro, com o começo de um namoro que está transformando a minha vida. Transformando e transformando profundamente. Porque é a primeira vez que sinto, de verdade, que ganhei o direito a fazer planos. E planos sérios, que vão durar.
O episódio da academia, somado a tantos outros pequenos sinais do cotidiano, foi apenas o gatilho para que eu notasse algo mais grave: que estou pronto para, finalmente, começar.
Estou pronto para quebrar o movimento circular de uma vida sem planos.
Parece um alívio, certo? Mas não é um sentimento simples. Porque, por mais que se tente simular valentia, é sempre penoso começar. Bate nervosismo, tensão, frio na nuca. Não se sabe por onde. Não há quem dê conselhos. Os amigos não ajudam tanto quanto gostariam. Os pais não entendem. Não escreveram muitos livros (plausíveis) sobre o assunto. Não tem manual. A solução não está no Google.
E parece ainda mais complicado começar aos 31 anos, quando todas as pessoas partem do princípio (muito sensato) de que você já começou. Ou de que já deveria ter começado. Você se sente um pouco velho para zerar o placar. Mas também novo, jovem, disposto, entusiasmado, ainda que os outros não percebam nada disso.
Esse desejo de seguir em frente chegou com tanta força que me desapaixonei um pouco pelos discos e pelos filmes, os deixei em segundo plano. Não são muitos os que me comovem. Os bons livros me parecem um pouco mais tocantes, já que contém o tipo de complexidade enlouquecedora que bate à minha porta.
E é por conta dessas mudanças todas, acho, que este blog anda tão abandonado. Mas não tenho coragem de me desfazer também dele, de trancar esta matrícula e seguir adiante. Talvez, pensando bem, retratar essa fase estranha e complicada acabe garantindo alguma utilidade a ele. Não sei ainda.
No mais, talvez vocês queiram saber sobre filmes e discos. Não é uma boa hora. Entendo que há discos muito bons por aí, continuo ouvindo dezenas deles, e sei analisá-los com distanciamento (o do Bon Iver, o do Cults, e alguns outros). Escrevo resenhas para o jornal; este é um trabalho que faço com prazer e curiosidade.
Mas, no tempo livre, são poucos os discos que me sequestram. Sound Kapital, do Handsome Furs, é desses. Talvez não seja grande. Duvido que seja importante. Mas ele vai espelhando este meu período de vida. Talvez por se movimentar para frente, mundo adentro, e num ritmo frenético, urgente, às vezes histérico, chutando portas e fazendo malas.
Este é o terceiro CD da dupla formada por Alexei Perry e o marido Dan Boeckner. O mais luminoso e enérgico (características que notamos logo de cara), e o menos estático (as faixas foram compostas e gravadas durante a turnê da banda, em vários lugares do planeta). Ir embora é um dos temas do disco. Ir embora e voltar diferente, outro. A primeira música se chama When I get back e o refrão vai assim: “Quando eu volto, nada parece a mesma coisa”. Há uma que atende por Repatriated. Eu entendo tudo isso.
Também é, por consequência, um disco sobre a terra desolada que aparece após a mudança, depois do apocalipse pessoal. Sobram lembranças meio enevoadas (Memories of the future) e música rasteira (Cheap music), ecos em sintonia borrada. “Não há hits porque não existe mais rádio”, canta Dan. É um mundo ainda a ser explorado.
No site da Sub Pop, não fazem questão de nos avisar que este é o primeiro disco do Handsome Furs após o fim do mundo (ou: após o fim do Wolf Parade, ex-banda de Dan, que entrou num hiato por tempo indeterminado em maio de 2011). É uma informação importante, que nos ajuda a entender por que Sound Kapital é um disco cheio de grandes compromissos: um álbum que parece começar de novo. Antes, o Furs era um “projeto paralelo”. Hoje, é o ganha-pão do canadense.
Essa mudança de perspectiva pode parecer uma bobagem, mas me parece capital (perdoem o trocadilho) para o disco — e acredito que é isso, exatamente isso, que me aproxima tanto dessas músicas. Hoje, Dan faz do Handsome Furs uma máquina estridente, tecnológica, que revisa o rock eletrônico dos anos 1980 (New Order, Depeche Mode) com uma fúria, uma virulência que lembra muito o tom de celebração e libertação do último disco do Wolf Parade, Expo 86.
Os críticos que desprezaram aquele álbum possivelmente vão ignorar Sound Kapital. Talvez eles não entendam (ou não admirem) a maior qualidade do Wolf Parade, que é recarregar as baterias do pós-punk, feito de guitarras e uivos. Existe uma energia primal em jogo. O importante, no caso deles, não é tanto o esforço por originalidade, mas gana e empolgação. Qualidades por demais abstratas, que dificultam o trabalho de quem ama a banda e quer defendê-la.
São características que não faltam ao Handsome Furs. Por isso, acredito que o fã do Wolf Parade não terá dificuldades para cair de paixão por este disco. Como a transição de Peter Hook entre o Joy Division e o New Order, Dan altera a coloração do estilo sem mover o que há de essencial no que sempre fez: são músicas que não negam o poder do rock de instalar revoluções nos nossos headphones. De instigar mudanças. De nos surpreender com empurrões e rasteiras. De nos eletrizar.
Sound Kapital tem apenas nove músicas. Conheço todas de trás para frente. Amanhã, vou para São Paulo ficar três semanas na casa da minha namorada. Pode ser que esta se transforme na trilha sonora deste recesso. Um período que possivelmente vai me transformar num homem ainda menos apegado à minha vidinha antiga. Quando eu voltar, desconfio, nada vai parecer igual.
Terceiro disco do Handsome Furs. 9 faixas, com produção da própria banda. Lançamento Sub Pop. 8/10