Mês: agosto 2009
Superoito express (12)
Devo admitir que ando ouvindo menos discos do que eu gostaria. Não sei o que acontece: se o problema é dos álbuns ou meu, mas o desinteresse existe, me consome e é quase total. Mantenho uma distância segura do meu iPod e, nos momentos em que não sou obrigado, ouço música numa única ocasião: quando estou dirigindo. Até a casa da minha namorada, levo uns 20 minutos. Para ver minha mãe, uns 35. Ao trabalho, 15. Gravei um CD-R com uns oito disquinhos e ele roda incessantemente, há algumas semanas, no CD player do meu carro.
Minto: ouço música também quando estou no apê e o silêncio pesa novecentas toneladas. Mas aí são os meus standards, os-da-ilha-deserta, selecionados rigorosamente (ou, explicando melhor, os 15 CDs que cabem na única estante da sala). Neste exato momento, ouço XO, do Elliott Smith, e depois dele virá Oh inverted world, do Shins. Ontem foi Sea change, do Beck – e tai um disquinho duro, que sempre, sempre me emociona da primeira à última faixa.
Bem. Mas, como o jogo aqui é comentar discos relativamente novos, vamos aos que rodam no meu carrinho arranhado, encardido e fedorento.
Watch me fall | Jay Reatard | 8 | Um sujeito que é conhecido há mais de uma década como uma espécie de Julian Casablancas podre, um garoto-problema do underground, não tem o direito de lançar um álbum assim (e pela Matador Records!): doce, transpirando uma loucura tenra, encantado por new wave e bubblegum. Como aconteceu com o mais recente do Against Me! (e, vejam que coincidência, com XO, do Elliott Smith), Watch me fall tenta negociar chamegos com um público mais amplo sem abandonar a integridade. E consegue. Os fãs mais antigos podem até se incomodar com uma certa polidez recém-adquirida, mas Reatard é daqueles que soam espontâneos (e anárquicos, ainda que por linhas tortas – e que acabam lembrando o Frank Black de Teenager of the year) mesmo quando interpretam uma espécie de canção de amor com aparência de hit de seriado de tevê. No caso, se chama I’m watching you, e é uma das melhores do disco. Reatard tem 29 anos e, cá entre nós, a carreira dele começa de verdade aqui.
Farm | Dinosaur Jr | 7.5 | É bem verdade que o Dinosaur Jr praticamente renasceu há dois anos graças às bênçãos da Pitchfork (e a um bom disco, Beyond, que dava um brilho na sonoridade garageira do início dos anos 90 com letras menos ingênuas), mas é com este Farm que essa nova fase começa a ficar interessante. Além de mais confiante que o anterior (repare a duração das canções, muitas delas pra lá dos cinco minutos), o disco mostra uma banda disposta a se surpreender, por isso jovem – mesmo quando repete aquela receita de bolo que conhecemos tão bem. Talvez sob influência do selo Jagjaguwar, que adora uma distorção sem rédeas (vide Sunset Rubdown), eles se soltam e saem com algumas das jams mais sólidas que já criaram. Isso sem contar que é o álbum mais melodioso deles – e há canções de franqueza verdadeiramente tocante, como Plans e Over it, perigosíssimas para quem tem por volta de 30, 35 anos.
Lungs | Florence and the Machine | 6.5 | No início soou criminosamente estridente, e juro que tive que tentar várias vezes antes de desistir e jogar meu carro contra o poste. Sobrevivi, estou de pé (firme e forte) e, por isso, tenho cacife para afirmar seguramente que este disco fica cada vez menos irritante – e que Florence Welch não vive apenas de tributos a Dolores O’Riordan (e, quando a terceira pessoa fez a comparação, jurei que colocaria neste blog – é uma sacanagem, ok, é uma sacanagem óbvia, tá, mas não deixa de fazer algum sentido). O bacana, no fim das contas, é notar como Florence consegue segurar um disco que tinha tudo para soar como uma colcha de retalhos de clichês de rock-fêmea, já que foi confeccionado por três superprodutores e lançado pela Island Records. De alguma forma, ela se sobressai e vence o furacão. Tem pulso, a moça.
Horehound | The Dead Weather | 6 | Jack White parece estar numa berlinda: depois de um disco do Raconteurs que soava como uma versão superproduzido do White Stripes, agora ele apresenta um projeto que parece uma fita demo do White Stripes interpretada por uma banda de bar depois das três da matina. Moral da história: por mais que tente, White não é nem nunca vai ser David Bowie. O Dead Weather tem integrantes do The Kills (Alison Mosshart), do Queens of the Stone Age (Dean Fertita) e do Raconteurs (Jack Lawrence), mas adivinha quem dá as cartas? O mais curioso é que as duas primeiras faixas, que não foram compostas por White, soam como hits perdidos do White Stripes (ou sobras inacabadas dos primeiros discos do Led Zeppelin, o que dá na mesma). O caneco de ouro vai para Hang you from the heavens, a única que decola.
Discovery LP | Discovery | 6 | É uma piada e deve ser encarada como tal: Rostam Batmanglij (Vampire Weekend) e Wes Miles (Ra Ra Riot) brincam de gravar hits de FM, com bitocas para Mariah Carey (So insane), os vocais frágeis (no bom sentido) do Postal Service (Orange shirt) e uma versão robótica e desmiolada, mas muito engraçada, para I want you back, do Jackson 5, que acaba ecoando o Daft Punk de… Discovery. E tem auto-tune. Os indies só querem se divertir.
Paddling ghost | Dan Deacon
Uma graça este novo clipe do Dan Deacon: bichinhos fofos numa bad trip. Dirigido por Natalie Van Der Dungen. E é para ouvir no volume máximo, ok?
Superoito mais frio que a morte
Tiago, observe: as pessoas morrem. É natural. Nascem, crescem e morrem. Como as folhas das árvores, elas acabam por se soltar dos galhos e cair. Como as frutas, apodrecem. Note os mosquitos no exato momento em que eles tombam zonzos no chão da cozinha. É a morte de um inseto. O tempo galopa e estamos todos no mesmo vagão. Existe um ciclo. Olhando racionalmente para tudo isso, o que resta? Apenas um ciclo. Nada mais.
E é o que é. Não é?
1. O herói da peça
Tenho um amigo que tenta escrever uma peça de teatro, mas nunca consegue chegar ao terceiro ato. Quinze minutos de espetáculo e o herói está morto. O homem escreve uma carta para a namorada, organiza os talheres na mesa, alimenta o cachorro, faz uma refeição cara e, no clímax da trama, engole um copo de veneno com gosto de melão. Meu amigo fala em morte como quem pede um sanduíche com muita mostarda.
O herói suicida parece até que não suporta viver dentro daquela peça, daquele texto, daqueles diálogos, daquele espetáculo enfadonho e vago, com situações que não dão em lugar nenhum. Meu amigo narra o plot macabro e dá uma risada. Gosto deles – do meu amigo e desse herói meio bege, meio tolo, que resolve saltar da trama antes que a trama termine com ele.
– Esqueça essa história. Vamos escrever um roteiro de cinema. Que tal?
Há algumas semanas, descobri que ele é um dos meus grandes amigos. O medo da morte segue me perturbando, e você conhece um grande amigo quando consegue conversar francamente com ele sobre o tema dos temas: a morte. É o que sinto. Medo de morrer. Medo de saber da morte das pessoas que amo. Medo do futuro. E de todo o resto. Se eu continuar desse jeito, vou terminar trancado num compartimento estéril, esperando e esperando e esperando o fim do terceiro ato. Também tenho medo disso.
Antes, o medo era agudo. Ia roendo meus sonhos e me despertava às quatro da manhã. Eu – testa suada – e o vento frio pela janela. Há uns cinco dias, convivo com ele de uma forma mais serena. Está lá, estamos lá, mas fazemos de conta que não nos conhecemos, que nos estranhamos e, quando nos cruzamos na rua, não nos olhamos nos olhos. Fazemos silêncio e fica tudo bem.
Eu e meu amigo, onde estávamos? Numa lanchonete. Quando mesmo? Uma terça ou uma quarta, era noite, era uma daquelas noites que se arrastam indefinidamente, e lembro do vento gelado e que alguns adolescentes jogavam bola no gramado próximo ao centro comercial e os sanduíches não prestavam. Conversávamos sobre os temas de sempre (cinema e talvez trabalho) quando finalmente me rendi ao cansaço de não falar sobre o único tema que me interessava.
– Posso dizer uma coisa? Não sei o que fazer da minha vida. Parece que tudo está morrendo.
Eram palavras duras. Ainda não entendo por que as pronunciei. Como meu padrasto, que está para sempre doente, sou um sujeito polido e reservado. Como meu pai, que nunca aparece por aqui, tento construir a imagem de quem leva tudo na esportiva, com o humor tranquilo de um monge. Reconheço até que, apesar de um engasgo, elas saíram sem me machucar.
Foi aí, certeza que sim, que ele desandou a contar sobre tudo. Sobre o herói suicida da peça de teatro, que era ele próprio. E sobre a morte de um tio, que pulou da janela sem deixar duas frases num bilhete. Ficamos em silêncio. Os sanduíches estavam mais frios que a própria morte.
– Eu mesmo não sei por que estou vivo, cara – ele sussurrou – Quando penso muito nisso tudo, não sei por que ainda estou vivo.
– Prefiro não pensar nisso tudo.
– Mas você pensa nisso tudo?
– Até muito.
– Eu penso sempre. Sempre.
Eu faria uma piada e viraria o LP. Mas não era o caso. A minha tristeza, meus medos, tudo ganhou um outro tom – um tom pastel? Uma coloração rósea? – quando notei que aquele sujeito falava sério. Ele sussurrava de uma forma trágica, grave. Fiquei com vergonha dos meus dramas, que pareceram pequenos e simples. Não são, mas pareceram. Meus dramas são enormes e complexos, mas eles viraram farelo assim que vi aquela recém-descoberta imagem do morto-vivo, meu amigo.
Cancelamos a conversa, que nos constrangia. Devoramos os sanduíches, pagamos a conta e lembro que os adolescente do campo de futebol estavam sentados numa mureta, tomando suco, e um deles fazia manobras curtas de skate enquanto os outros comentavam as partidas de futebol que passaram na tevê.
Quando atravessamos a rua para o estacionamento, meu amigo contou que pensa em largar o emprego, mudar de cidade e terminar de escrever a peça num lugar sem avenidas largas e noites silenciosas. Encarei como uma despedida antecipada. É o que acontece por aqui: as pessoas se despedem. E isso conta como um tipo de morte.
2. Familiaridade
Na hora do almoço, todos os domingos, a morte encosta os cotovelos na nossa mesa, mastigando a coxa do frango. De boca aberta. Já é de casa.
3. O japonês
Num restaurante de comida japonesa, a família inteira. Minha mãe saiu com esta:
– Tiago, as pessoas morrem. Algumas de uma forma mais rápida. Outras de uma forma mais lenta. Mas todas morrem.
Para minha surpresa, continuamos comendo e contando piadas. E rindo das nossas piadas, que são sempre as mais engraçadas do mundo.
Black and Blue
“Mas por que então se sente tão insatisfeito, tão incomodado com o que escreveu? Diz para si mesmo: o que aconteceu não é na verdade o que aconteceu. Pela primeira vez em sua larga experiência de redigir relatórios, Blue descobre que as palavras não funcionam necessariamente, é possível que elas obscureçam as coisas que estão tentando dizer. Blue olha em torno do quarto e fixa a atenção em vários objetos, um após o outro. Vê o abajur e diz para si mesmo: abajur. Vê a cama e diz para si mesmo: cama. Vê o caderno e diz para si mesmo: caderno. Não vai dar certo chamar o abajur de cama, pensa ele, ou a cama de abajur. Não, essas palavras vestem com perfeição as coisas que denominam e, no instante em que Blue as pronuncia, experimenta uma satisfação profunda, como se tivesse acabado de provar a existência do mundo. Em seguida, olha para o outro lado da rua e vê a janela de Black. Está escura, agora, e Black está dormindo. Este é o problema, diz Blue para si mesmo, tentando encontrar um pouco de coragem. Isto e nada mais. Ele está lá, mas é impossível vê-lo. E mesmo quando o vejo, é como se as luzes estivessem apagadas.”
Paul Auster, em Fantasmas (em A trilogia de Nova York). Ao som de Our Hell, de Emily Haines & The Soft Skeleton.
Crash, o filme, por J.G. Ballard
“O filme Crash, de David Cronenberg, foi lançado no Festival de Cannes em 1996. Foi o filme mais polêmico do festival, e a controvérsia continuou durante anos, em especial na Inglaterra. Políticos do Partido Conservador desesperados, prevendo a derrota nas eleições gerais iminentes, atacaram o filme tentando ganhar créditos como guardiões da moral e da decência pública. Uma ministra, Virgínia Bottomley, pediu que o filme (que ela não tinha visto) fosse proibido.
O Festival de Cannes é um extraordinário evento de mídia, capaz de intimidar profundamente um reles romancista. É possível que os livros ainda sejam lidos em grandes números, mas os filmes são objeto de sonho. Eu e Claire (esposa de Ballard) ficamos assombrados com as multidões aos gritos, as festas suntuosas, as limusines exageradas. Participei de todas as entrevistas publicitárias do filme e fiquei impressionado ao ver como os astros do filme estavam comprometidos com a elegante adaptação do meu romance feita por David Cronenberg.
Eu estava sentado ao lado da atriz principal, Holly Hunter, quando se aproximou um importante crítico de cinema de um jornal americano. Sua primeira pergunta foi: “Holly, o que você está fazendo nessa merda?” Holly saltou da cadeira e partiu para uma apaixonada defesa do filme, acabando com esse crítico por seu provincianismo e sua mentalidade estreita. Foi a melhor atuação do festival, e aplaudi vigorosamente.
Em poucas semanas o filme estreou na França, com muito sucesso, e depois passou a ser exibido em toda a Europa e no resto do mundo. Na América houve problemas quando Ted Turner, que controlava a distribuidora, achou que Crash poderia ofender a decência pública. É interessante notar que na época ele era casado com Jane Fonda, que reanimou sua carreira representando o papel de prostitutas (como em Klute) ou fazendo malabarismos nua em uma nave espacial forrada de peles (em Barbarella).
Na Inglaterra o lançamento foi retardado por um ano quando as autoridades de Westminster o proibiram de ser exibido no West End de Londres, e várias municipalidades do país seguiram o exemplo. Mas quando o filme por fim estreou não houve nenhum desastre de carro tentando imitá-lo, e a polêmica acabou morrendo. David Cronenberg, um homem muito inteligente e profundo, ficou completamente perplexo com a reação dos ingleses. “Mas por quê?”, ele vivia me perguntando. “O que está acontecendo por aqui?”
Depois de cinquenta anos morando no país, eu não tinha resposta alguma para lhe dar, nem de longe.”
***
A coincidência: antes de ler esse trecho da autobiografia de Ballard, Milagres da vida (que é fantástica, recomendo), pensei muito em Crash enquanto assistia ao Confissões de uma garota de programa, do Steven Soderbergh. Faz muito tempo que não vejo o do Cronenberg (um dos meus favoritos dos anos 90), mas tudo o que o Soderbergh tenta encenar (relações afetivas frias/mecânicas/despaixonadas) não chega nem perto das minhas lembranças daquele outro filme, de como Cronenberg foi fundo no mal-estar de uma época. Crash me perturba até hoje – o filme até mais que o livro. E talvez todo o problema do cinema de Soderbergh (ou pelo menos o que me incomoda nele) esteja aí: no medo de dar um passo para fora da zona de conforto e arriscar seriamente.
Humbug | Arctic Monkeys
Choque de gerações. Aprendi o significado da expressão quando comecei a trabalhar ao lado de um jornalista pra lá dos 60 anos (ele não revela a idade, mas fiz as contas) que foi convidado para a cerimônia de batismo da Tropicália e muito possivelmente entrevistou Renato Russo quando o vocalista da Legião Urbana ainda comia papinha de maçã e usava fraldas descartáveis. Um repórter admirável, aliás.
Há uns três meses, dividimos a mesma estação de trabalho (a forma elegante como chamamos a bancada fina e acinzentada que ampara os computadores e toda a nossa tralha). Honestamente: não é a convivência mais tranquila que o Ocidente conheceu, mas nos esforçamos para manter um clima de compreensão mútua e solidariedade, na medida do possível. Ele tem manias que me incomodam – exige, por exemplo, que meus fones de ouvido sejam mantidos a pelo menos 50 centímetros do teclado que ele usa. Eu não posso reclamar: tenho tiques que não sei exatamente o quão irritantes soam.
O que nos une, de certa forma, é o amor obsessivo pela música. Ainda assim, mesmo quando é esse o tema em pauta, o diálogo trava. É impossível. Ele se esforça para entender as novidades que aparecem e desaparecem a cada 15 dias. Eu sou curioso, quero conhecer o passado e tenho uma tendência a colocar as experiências dos outros em perspectiva histórica. Sou tolerante, compreensivo, um bom filho e um amigo fiel. Sou quase um labrador. Mas, volta e meia, perco o ânimo quando ele deixa escapar uma daquelas perguntas que, para um repórter de música que nasceu ainda na primeira metade do século 20, são incontornáveis.
– Não consigo entender. Este mundo, as coisas, música, tudo… Tudo anda tão… Veloz.
Eu sempre argumento com alguma reflexão zen do tipo:
– Tente encarar as coisas de uma forma mais desarmada. Elas são como são. É melhor entendê-las antes de tomar partido. Depois de entender o que acontece, aí sim.
– É, mas eu sei é que não gosto, não gosto mesmo disso, das coisas como elas estão.
E ponto. Não vejo como avançar na conversa.
Hoje o assunto voltou à baila. Eu estava escrevendo uma longa matéria sobre discos que foram lançados em 1969 e viraram clássicos. Ele aproveitou a deixa para voltar à tese de que, na música pop, nada, nada será comparável ao passado – que é belo, reluz e continua vivo, apesar de tudo.
– Fico até pensando: será que acabou?
Me esforço para mostrar que estamos numa época diferente, tão nova e estranha que às vezes, por uma questão de segurança, obriga que a tratemos de uma forma despreocupada. 1969 acabou. O sonho acabou, etc. E que há novos parâmetros em jogo. A velocidade como as novidades hoje se desdobram é um desses fatores. Tentei teorizar sobre o papel das gravadoras, que desabam aos poucos. E, finalmente, procurei sugerir que, num cenário de fragmentação total, a própria ideia de longevidade parou de fazer tanto sentido. O que importa, verdadeiramente, se uma banda de rock vai durar 30 anos e gravar 15 discos?
– Eu até entendo, Tiago, mas sou de uma época em que as boas bandas de rock eram as que duravam. Beatles e Rolling Stones ainda são Beatles e Rolling Stones. E fico com elas.
Acredito que foi aí, exatamente nesse ponto da conversa, que puxei da cartola o novo disco do Arctic Monkeys. Era um bom exemplo a ser usado, já que o repórter havia visto um show da banda (como eu disse, ele se interessa pelas novidades mais comentadas, e admiro essa disposição).
– O terceiro disco do Arctic Monkeys ainda não chegou às lojas. Na verdade, esse fato é irrelevante. Ele está na internet e por isso as pessoas já ouviram, comentaram, avaliaram. Gostaram ou odiaram, tanto faz. Acontece que esse evento, o lançamento do terceiro disco do Arctic Monkeys, já aconteceu. Já passou. Estamos prontos para o quarto disco do Arctic Monkeys, ainda que isso não nos preocupe tanto assim. Você entende a lógica da coisa?
– Entendo. Mas não tem graça.
Voltei para casa pensando nisso, nessa última frase do diálogo. Qual é a graça? Explicar um procedimento que me parece tão simples (baixar música, ouvir, opinar e seguir adiante baixando, ouvindo e opinando) virou uma tarefa complicadíssima. Sou dos que acreditam que a cultura pop vive um momento de transição, ainda dividida entre hábitos antigos e novíssimos. Todas as bandas de rock, por exemplo, entendem que a velocidade hoje se impõe – que não há mais tempo para que passemos seis meses diante de um disco novo, analisando cada acorde e formando opinião. Mas, simultaneamente, grande parte dessas bandas continua gravando álbuns à moda antiga – peças de arte concebidas para serem “lidas” como uma história com começo, meio e fim.
É aí que o Arctic Monkeys me parece um exemplo bastante interessante – mais até do que eu imaginava. Uma banda muito nova, de garotos que mal entraram na idade adulta. E um quarteto que é um símbolo forte desta época por alternar velhas e novas estratégias de criação e marketing. Trata-se de uma novíssima velha banda de rock (e há muitas outras; na verdade, essa ainda é a regra). Eles sabem lidar com a velocidade do tempo em que vivem (até de uma forma instintiva, já que cresceram metidos nesse turbilhão) e criam álbuns com uma lógica que vem dos anos 60 ou 70 – e que, por isso, fisgará o “antiquado” fã de rock.
Muitas das bandas da geração do Arctic Monkeys gravam álbuns que soam como compilações de singles. E não podemos acusá-las de nada, já que o mercado hoje pede que o negócio seja organizado dessa forma. O disco mais recente do Franz Ferdinand é um caso típico: um conceito rarefeito pontuado por duas ou três canções fortes. Talvez esse seja o futuro do pop (ainda não dá para saber), e talvez isso tudo nos deixe frustrados (nós, no meio do caminho entre os velhos e os novos hábitos, órfãos de tudo). Mas o Arctic Monkeys não se abala: e daí este Humbug, um álbum tão redondinho, tão íntegro e tão, de certa forma, ultrapassado.
E digo isso sem juízo de valor: ainda não cheguei aos 60, mas, nesse ponto, me sinto velho. Amo os álbuns à antiga. Eles me dão prazer. Ele fazem com que eu me lembre dos meus discos favoritos, dos vinis que formaram a minha personalidade, das “obras de arte” que eu tentaria criar se eu soubesse tocar guitarra decentemente. Sou um oldie.
Com toda segurança, afirmo que o Arctic Monkeys teria se saído muito bem no início dos anos 90. Ou no início dos 80. Ou em meados dos 70. Final de 60? A concorrência seria dura, mas eles dariam um jeito. Os ingleses insistem em colocá-los no trono do século 21, mas ainda não consigo encontrar o século 21 dentro do Arctic Monkeys. Quatro garotos que gravam álbuns tão corretos, tão econômicos e agradáveis… O que eles dizem sobre o mundo em que vivemos? Não ouço nada. As bandas-símbolo do século 21 teriam que soar, ao menos, esquizofrênicas, paranoicas, desnorteadas, cegas no tiroteio, incertas, quebradiças. Não são tempos confortáveis, vocês sabem.
Então esqueça: não compro o hype. Nunca comprei. Ainda assim, não me envergonho de encarar esta bandinha adorável da forma como ela sempre se apresentou para mim: como uma bandinha adorável. Os singles são eficientes, o vocalista é um letrista às vezes formidável, eles têm boas referências (e soam mais como Smiths que como Oasis) e seguem uma cartilha confiável (Beatles, alô?) que manda as bandas pop evoluírem de disco a disco. Humbug é uma evolução e, por enquanto, o álbum deles de que mais gosto.
Para gravar o disco, os rapazes britânicos tentam captar o som do deserto norte-americano com o aconselhamento espiritual de Josh Homme, do Queens of the Stone Age (e agora, algumas horas depois de ter escrito este texto, concluo que esse trânsito suave e despreocupado por diferentes culturas, cenários e referências conta como um traço contemporâneo da banda). Aposto que eles gravaram tudo num estúdio nada charmoso, mas me encanta a ideia de um Deserto Norte-Americano engolindo as sessões de gravação. As canções batem assim: rodeadas de fantasmas, chapadas de sedativo, com ecos e ruídos que só não soam exatamente sombrios porque esta não é uma banda sombria (eles soam como sempre soaram: estão se divertindo a valer, a vida é boa e o rock não vai morrer).
Em síntese: exatamente o que eu esperaria de um disco do Arctic Monkeys produzido pelo Josh Homme. Os versos, doidos de dar dó, cheiram a mescalina. As duas primeiras faixas, aliás, me deixam com um sorriso de orelha a orelha. Crying lightning é um belíssimo single, que vai crescendo até explodir em guitarras repetitivas e enfezadas, que deve agradar principalmente a quem adora Queens of the Stone Age (e rock britânico psicodélico do fim dos anos 60, lembram do segundo volume do box Nuggets?). Seria um hit estrondoso em 1998. Outras faixas são um pouco menos luminosas, mas o álbum só tem 10 delas, passa rápido e, logo ali, repare na balada que confirma Alex Turner como o novo Morrissey, doa a quem doer (Cornerstone, linda toda vida).
É um bom disco que será tratado, pelo menos por algumas semanas, como o melhor dos mundos. Talvez essa seja a grande diferença, se compararmos o nosso tempo com 1969 ou 1979 ou 1989 ou 1999. Antes, engolíamos uma massa industrial de incríveis novidades até o fundo da garganta, por longos períodos (passei um ano inteiro decifrando Be here now!). Hoje, podemos digerir rapidamente o hype, cair de cansaço e experimentar outras extraordinárias novidades, e daí em diante, até descobrir algo que nos acerte na barriga e nos deixe zonzos. Algo forte. Algo que, para nós, soará verdadeiramente fascinante (nem que, vá lá, por algumas semanas).
Somos uns sortudos, não? Estou começando a acreditar.
Terceiro disco do Arctic Monkeys. 10 faixas, com produção de Josh Homme e James Ford. Lançamento Domino Records, Warner Bros e EMI. 7/10
Arraste-me para o inferno
Drag me to hell, 2009. De Sam Raimi. Com Alison Lohman, Justin Long, Lorna Raver e Reggie Lee. 99min. 7/10
Imagino que o trailer de Arraste-me para o inferno foi criado para soar engraçado. Não foi? Depois de esquartejar o filme numa centena de pedacinhos sangrentos e nojentinhos, a peça publicitária encerra com o alerta de que o público verá o “retorno do verdadeiro horror” (ou algo assim, nessa linha apocalíptica e boboca).
Não me peça para explicar o sentido de “verdadeiro horror”. Mas, descontado o exagero, entendo o raciocínio de quem produziu o teaser: numa época em que o gênero parece ter se transformado em playground para uma gentalha oportunista do naipe de Michael Bay (mais um remake anódino de slasher-movie e aposto que as calotas derreterão mais aceleradamente), talvez a equipe de publicitários da Universal Pictures tenha apenas imaginado uma forma de nos alertar que veríamos um filme de horror genuíno. Digamos.
Ainda assim, eles estão um tanto quanto errados: Arraste-me para o inferno me parece um terror café-com-leite, concebido para um público que era fã do gênero aos 12, 13 anos de idade – mas que hoje, aos 30, só consegue encará-lo como uma brincadeira inofensiva. Um metahorror. Um terrir na tradição de Fome animal, de Peter Jackson, e da terceira sequência que o próprio Sam Raimi dirigiu para Evil dead, de 1981.
Escancaradamente, e com doçura e bom humor, o diretor nos convida para um trem-fantasma de segunda mão, que revisa a própria trajetória no gênero (e fica a impressão de que, nas idas e vindas ao dark side, Raimi passou três décadas dirigindo o mesmo filme de terror): em Evil dead, cinco amigos eram atormentados por demônios, à solta num chalé infernal. Aqui, uma funcionária de seguradora é amaldiçoada por uma cigana, que provoca todo tipo de alucinação macabra contra a pobre alma.
Seria mais ou menos o mesmo filme, ou uma sequência bastante fiel àquele filme, não fosse por um detalhe: entre Evil dead e Arraste-me para o inferno, Raimi cresceu, amadureceu (também como cineasta, ainda que isso não conte tanto quanto parece), dirigiu três episódios de Homem-Aranha e firmou-se como um dos diretores de entretenimento mais eficientes e poderosos de Hollywood. O novo filme mostra, no mínimo, a distância que separa o autor de 2009 daquele que apareceu em 1981.
Para os fãs do original (estou entre eles) e do cinema de horror dos anos 1980, propõe uma experiência que, sim, é irresistível: olhar no retrovisor da cultura pop e rir da paisagem refletida. Não sei se faz tanto sentido para um público que hoje tem 15, 16 anos. Na sessão em que vi o filme, a maioria simplesmente não entrou no jogo. Entendo a reação: o longa de Raimi mira uma geração específica, que cresceu assistindo a fitas VHS de O exorcista, A profecia e Poltergeist – para sorte dele, a maior parte dos críticos em atividade faz parte dessa turma.
Nesse ponto, o projeto é explícito: abre com uma vinheta retrô da Universal; em vez dos serial killers desmiolados, o diretor aposta no horror do sobrenatural (um nicho meio démodé). O uso excessivo de efeitos sonoros, que martela todas as cenas de susto, os litros de gosma verde-limão, a heroína naive (num determinado momento, ela é descrita apenas como uma “mulher de bom coração”, e é o suficiente)… Tudo conspira para uma homenagem distanciada (já que satírica) a uma onda do cinema de horror que ficou perdida lá no início dos 80.
É um flashback divertido, mas que deixou em mim um certo incômodo. O esforço de Raimi parece um tanto estéril: ele não dirige um “verdadeiro horror”, mas um horror pela metade, que conhece os códigos mais superficiais do gênero, mas teme um mergulho profundo no lodo, na angústia, na agonia. Li numa entrevista que Raimi tem medo de fitas de terror. Este é um filme um tanto amedrontado – talvez receoso de dar um passo além e de perturbar verdadeiramente o espectador (o espírito do gênero não seria esse?).
O que fica é uma piada até engraçada, conduzida com segurança e boas intenções por um cineasta que brinca num cercadinho muito seguro e tranquilo. Os 15 minutos finais, antes do desfecho, lembram mais para o tom à Charles Dickens de Homem-Aranha que a arruaça adolescente de Evil dead. Para quem acompanha o diretor, é interessante notar como um autor correto e adulto lida com um projeto despretensioso – não dá muito certo, mas é uma tentativa reveladora.
E que, no mais, resulta num filme de verdade, vivo – e isso, sabemos muito bem, é quase uma anomalia dentro do nosso circuito-zumbi.
Charmaine Champagne | The Fiery Furnaces
Já que eles estão com tudo (pelo menos neste blog), aí vai o clipe novo do Fiery Furnaces, que ilustra muito bem a nova fase da dupla, mais direta e sociável. Não é meu favorito, e há músicas mais bacanas no ótimo I’m going away, mas soa mais interessante que quase tudo o que eu vi nesses últimos meses.
Superoito e a cidade vazia
Você conhece Brasília?
Se não conhece, recomendo o seguinte itinerário: agende a passagem de avião para um domingo à noite. Ao desembarcar, tome um táxi para o final da Asa Norte. Ao motorista, peça especificamente que ele siga pelo Eixão. Por volta das nove, dez da noite, haverá alguns carros na pista. Alguns, não muitos. É uma pista bastante larga, seis faixas. Garanto que, num domingo como outro qualquer, ela nunca parecerá suficientemente movimentada.
Para uma experiência completa do trajeto, preste atenção a estas instruções. Primeiro, repare a extensão da via. Note como ela parece seguir indefinidamente, com postes que brilham feito estrelas mortas. Depois, vire o pescoço para a direita e observe o desenho dos prédios. Uma paisagem estranhamente ordenada, que sugere assepsia e civilidade. Não? Na altura da rodoviária, faça a sugestão ao condutor: ‘tome o Eixinho, por favor’.
Para chegar ao Eixinho Norte, você verá rapidamente a Esplanada dos Ministérios, a Catedral e, bem lá ao fundo, o Congresso Nacional. Faça de conta que isso tudo é uma miragem. Eles nunca existiram. O Teatro Nacional é uma nave de brinquedo daquelas que você ganhava de presente de Natal quando tinha seis anos de idade e era início dos anos 1980 e a ceia parecia um filme previsível e agradável. Esqueça o teatro.
Esqueça as memórias (por um segundo). Estamos no Eixinho Norte. Os prédios cresceram e quase nos engoliram, estão todos maiores (ainda uniformes, só que maiores). Seis andares. Ordem e progresso. Olhe para o alto. As antenas são tão pequeninas e finas e discretas que talvez não sirvam nem para os passarinhos, vá saber. Veja o meio-fio, a passagem de pedestres. E, neste momento, perceba que não há pedestres na calçada. Eles não estão na rua. Eles não estão em lugar algum. Talvez estejam em casa (as luzes dos apartamentos, provas do crime, estão acesas).
Na parada de ônibus há duas ou três almas, mas elas não parecem pertencer àquele ambiente e por isso se sentem desconfortáveis – enfeitiçadas pelos relógios de pulso, quanto tempo falta para? Na altura da 312, peça para o taxista descer a tesourinha (ele sabe muito bem o que isso significa, não se preocupe), siga até a superquadra e indique o bloco B. Pague a corrida e ofereça gorjeta.
Ao lado do bloco B existe um gramado que, há alguns anos, era maior do que é hoje. Antes, a quadra ao lado não estava habitada. Hoje está. Os prédios têm seis andares, os jardins apareceram da noite pro dia (mas são muito bonitos, acredite) e os carros que entram e saem são quase todos do ano. Ainda assim, existe uma parte do terreno não foi alterado – e imagine aí um espaço vazio onde caberiam cinco ou seis campos de futebol – e ele lembra a minha adolescência. Foram tardes e mais tardes na janela, olhando para aquela área oca, serena, um deserto amarelado cravado na cidade planejada.
Sempre me pareceu um erro de cálculo. Aquela área vazia. Como pode? Uma capital tão perfeitamente serena, tão perfeitamente organizada. E aquilo. Aquele rasgo no meio do nada. O terreno baldio. O mato crescendo. As crianças se escondendo no mato. Os meninos e as meninas se escondendo alegremente no mato. Os trombadinhas assaltando as velhinhas no mato e tudo o mais. O terreno é tema de algumas lendas que o taxista não saberá explicar a você, infelizmente (e não há guias turísticos decentes nesta cidade, por incrível que pareça). Dizem que, numa madrugada fria de junho, uma mulher se perdeu no meio do mato e descobriu um fosso fundo e largo que brilhava e dava no fim do mundo (ou em algum lugar muito distante, não lembro direito). Quando eu era mais novo, eu olhava pela janela e via um fim do mundo bastante plácido. Hoje tenho 30 anos de idade.
Não moro mais lá. Minha avó mora. Vez ou outra, volto àquele prédio para dar carona à velhinha. Paro o carro no estacionamento e fico por uns minutos observando aquele matagal todo. Continua o mesmo, apesar de tudo. Nem a capela que construíram há uns seis meses (um prédio baixo no formato de um hexágono) conseguiu acabar com ele. Não sei se vai durar muito tempo, mas aquele vazio todo ainda está lá para me lembrar dos dias mortos da minha adolescência. Eu passava tanto tempo na janela. Pensando no quê?
Domingo passado foi assim. Deixei minha avó no apartamento, segura, na paz de deus, com os anjinhos e todos os santos, e fiquei alguns minutos diante do terreno baldio, paralisado. Não encontrei respostas para absolutamente nada. Os dias têm sido assim: perguntas. Antes disso, de quase desabar no terreno vazio, passei a manhã na casa da minha mãe. Calado. Não sou um sujeito calado. Mas eu estava calado. Ando calado. E um pouco apático, mas acima de tudo (e isto é o mais estranho) calado.
As pessoas perguntam se estou bem. Digo que estou. Não existe outra alternativa. Eu sou o homem da casa e não posso esmorecer. Percebi isso há uns dois, três dias: eu devo assumir o posto de homem da casa. O homem da casa. Eu. O homem da casa. Tiago, o homem da casa. Minha família é pequena e está ruindo. A doença do meu padrasto, a instabilidade da minha irmã, a velhice da minha avó, o todo peso quase insuportável que descarregamos nos ombros da minha mãe. Tudo ali, exposto de uma forma extremamente crua. Na hora do almoço, quando eu estava prestes a voltar para o apartamento pequeno e frio onde moro, minha mãe pediu para que eu ficasse por lá, naquela casa ampla com cachorros e horta. Que passasse a semana. Que me derramasse no quarto, talvez para sempre. E foi um apelo tão sincero, tão simples e sincero, que tive que engolir saliva para não chorar.
Eles precisam de mim. Ou seria mais correto imaginar que eles querem, querem muito que eu participe disso tudo, dessa tragédia muda, do entardecer dessa família, desse ato final dolorosamente longo e triste? “Você vai sair assim, antes dos créditos finais?”, e fico com a impressão de que me fazem essa pergunta sempre quando saio.
Mas saio. Continuo saindo. E por enquanto me pergunto o que acontece, o que vai acontecer comigo e com eles e com todos os que conheço. Não há respostas e não faço ideia se todas elas aparecerão num flash, pipocando e me cegando instantaneamente. Foi o que senti naquela tarde de domingo. O terreno vazio, as pistas silenciosas e uma dificuldade tremenda de entender por onde devo seguir e o que devo fazer a partir de agora. É a hora. Nada parece seguro. Deus não existe. E a cidade não tem alma. É de concreto, com seis andares e um lindo jardim falso.
O problema talvez seja meio tolo: eu não cresci (ainda). Não estou pronto. Preciso de um tempo. Tomar fôlego, não sei. Ainda busco as soluções que eu encontrava quando era adolescente. Ainda quero abandonar tudo e passar a tarde morta olhando por uma janela. Pensando o quê? Ainda acredito que, quando a minha aeronave perder o rumo, saltarei num colchão confortável e sairei da catástrofe ileso, protegido. Deve ser isto: secretamente, ainda tento me convencer de que, apesar de tudo, existe uma zona de conforto e que este período de turbulência terminará em serviço de bordo e num pouso tranquilo.
Por isso não consigo falar no assunto. As pessoas me perguntam: está tudo bem? E eu: está tudo bem. Quando desabafo, desabafo para poucos. Depois, me sinto mal. Como se eu tivesse inventado uma história sobre a minha vida. Uma história em que ainda não acredito. Talvez seja uma questão de tempo.
E é isto. Recomendo que você dê três ou cinco passos dentro do terreno baldio e olhe para cima. Para a janela do terceiro andar. Lá estou eu. Em seguida, caminhe até a entrada da quadra. É um trajeto curto e que não cansa, três minutinhos. Recomendo os taxistas da região, que cobram caro, mas são confiáveis.
Tome o Eixão e siga para o aeroporto, de olhos fechados. A cidade não existe mais. Você não deve olhar nos olhos dela. E, no mais, você já a conhece. Em 20 minutos, no máximo, estaremos no aeroporto. Coma uma empada no setor de desembarque e beba suco de laranja. Compre uma revista amena ou um livro de 150 páginas. Ouça uma música não muito pesada. Tome o voo de volta. E aqui estamos de novo: boa viagem, até mais.
Superoito express (11)
Vocês devem ter percebido: o blog agoniza. Alguns disquinhos que ando ouvindo (só para não perder o hábito).
Time to die | The Dodos | 7 | Me faz pensar no quanto estamos acostumados a não sermos surpreendidos por nossos ídolos. Time to die é quase o oposto de Visiter, o álbum que revelou o Dodos em 2008 – e por isso, apenas por isos, pode soar estranho (e olha que nem comecei a falar sobre o novo do Arctic Monkeys…). Se aquele era um disco expansivo, um bloco de rascunhos com (lindas) arestas de ideias, o novo sai em busca de precisão, coesão. É outra história. O produtor, Phil Ek, arredonda o som da banda (agora um trio, com vibrafone) da mesma forma como havia feito com o Band of Horses (produziu os dois discos deles), o Shins (Chutes too narrow) e o Fleet Foxes. Pode parecer menos desafiador – e mais compacto, ordinário -, mas garanto que, com algumas audições, faixas como The strums e (principalmente) Fables começarão a soar tão surpreendentes (e aventureiras, repare na sobreposição nervosa de violões, vibrafone e percussão) quanto as do álbum anterior. Em síntese: um irmãozinho imaturo, mas bastante simpático, do Grizzly Bear.
Ambivalence avenue | Bibio | 7.5 | Até agora, eu desconhecia completamente o produtor britânico Stephen Wilkinson, o Bibio – tudo o que eu lia sobre ele me desanimava (resumindo: muita gente boa o comparava aos imitadores da eletrônica in natura do Boards of Canada e Four Tet). Ambivalence avenue me deixou com vontade de fuçar os outros álbuns do sujeito. O disco, lançado pela Warp Records, oscila entre o folk cru e uma eletrônica desencarnada, mas espanta mesmo quando combina esses dois extremos com uma pegada emotiva, doce e doméstica (aposto que até Jack Johnson adoraria faixas como Lovers’ carvings). Chega a lembrar o transe sixties de Andorra, um disco do Caribou que eu adoro. Não é tudo aquilo, mas chega perto.
Catacombs | Cass McCombs | 7.5 | Outra boa descoberta: um trovador de carreira longa (já tem cinco discos) e que, como o Bibio, resolveu lançar um álbum mais direto e franco. No caso, Cass compõe uma declaração de amor muito tocante à esposa dele. Os versos são tão pessoais que provocam até algum constrangimento: é como se grudássemos o ouvido na porta para ouvir uma conversa íntima. Duas das canções são tão fortes (Dreams come true girl e You saved my life) que sustentam o disco inteiro (e o desfecho, com Jonesy boy e One way to go, é quase singelo, sem tanta sofisticação, mas também adorável). Perfeito para quem, como eu, sente saudades dos projetos solo do Archer Prewitt (ou dos últimos capítulos de John Lennon).
Telekinesis! | Telekinesis | 6 | É curioso que a Merge Records (casa do Arcade Fire, Spoon, Caribou) tenha apostado num projeto unidimensional desses, ora lembrando os primeiros discos do Weezer, ora Strokes. Produzido por Chris Walla (do Death Cab for Cutie), a estreia de Michael Lerner (o faz-tudo do Telekinesis) só faz sentido quando se entende as limitações de uma sonoridade muito à vontade com clichês de indie rock. Dito isso, é mais enérgico que a média.
Skyscraper | Julian Plenti | 5 | Paul Banks se esconde sob um pseudônimo, mas acaba soando exatamente como aquele vocalista do Interpol que conhecemos tão bem. O álbum tem a aparência de uma coletânea de lados B, pouco arriscado (nos momentos de maior ousadia, como a faixa-título, Banks nos revela que anda ouvindo Bon Iver e só) e até cansativo. O single, Fun that we have, mantém a atmosfera do terceiro álbum do Interpol: canções melancólicas para o fim de uma festa.