Mês: outubro 2011
mostraSP | Dias 8, 9 e 10
Nesta rodada de textinhos sobre os filmes que vi na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, parágrafos sonolentos e constipados que possivelmente não vão acrescentar muita coisa às experiências dos espectadores que acompanham o evento. Mas, para não deixar acumular serviço (como diria minha avó), cumpro a obrigação com mais divagações curtas, mais rascunhos, mais reflexões apressadas que, eu sei!, não levam a lugar algum. Deixe-me afrouxar a gravata, ok?
A cotação que uso para avaliar os filmes, como vocês bem sabem, vai da letra D (de, digamos, dodói), à letra A+ (de, digamos, atlético). Por enquanto, ainda não esbarrei em nenhum filme A+. Se vocês souberem onde esse danadinho está, portanto, sejam simpáticos e me avisem. Tá bem?
Histórias da insônia | Sleepless nights stories | Jonas Mekas | A | Até para quem é leigo na obra de Mekas (o meu caso), Histórias da insônia desce como um caderninho-de-anotações muito convidativo: lá pelas tantas, o próprio cineasta se dirige à câmera e, numa homenagem a uma diretora amiga que fez filmes minúsculos sobre o cotidiano, desanuvia as próprias intenções. O metiê de Mekas, aqui, é este: o da crônica etílica, o da conversa jogada fora, o do encontro com amigos (daria, portanto, uma ótima sessão dupla com qualquer filme do Hong Sang-soo), o de uma cinema íntimo, doméstico, que não quer (e não quer mesmo) se impor como monumento para qualquer coisa. Daí que a prosa do bom velhinho flui gentilmente, alegremente, como o videolog de um artista que não tem mais nada a provar, e que se sente confortável numa arte ultrapessoal que, para alguns espectadores, ainda pode soar como um grande insulto (ou como uma enorme bobagem). Um dos melhores filmes desta mostra (onde, talvez por coincidência, não faltam ótimos filmes caseiros).
Las acacias | Pablo Giorgelli | B+ | O argentino que venceu o Câmera de Ouro (prêmio para longas de estreantes) no Festival de Cannes deste ano é um road movie lacônico que pode ser tomado de uma forma simples (um conto humanista, à la Walter Salles, sobre três pessoas que precisam conviver por um certo período de tempo dentro de um espaço fechado, um caminhão) e como uma espécie de metáfora para as relações truncadas, silenciosas, entre países sul-americanos. De uma forma ou de outra, Giorgelli traça esses percursos com uma concisão que assusta: apesar das manhas sentimentais (o que um bebezinho adorável não faz por um “filme de arte” minimalista?), ele nos poupa de qualquer excesso, confiando mais nos gestos dos atores que nos diálogos. Filmezinho preciso assim, tão sutil e tão doce, periga ser tratado como obra-prima. Acredito que não seja isso tudo. Mas que deixa a impressão de ser uma estreia incomum, deixa sim.
Low life | Nicolas Klotz e Elisabeth Perceval | B | Para que o cinéfilo de Brasília entenda o impacto de Klotz na Mostra de SP, basta pensar nas expectativas que um filme de Julio Bressane provoca quando exibido no Festival de Brasília: por aqui, o diretor francês é tratado como uma espécie de convidado de honra, recebido sempre com entusiasmo por um fã-clube já acostumado às manias de um cinema engajado/filosófico/sisudo que fluta entre o ensaio sociológico (sobre crises da Europa contemporânea) e referências a Robert Bresson e Jean-Luc Godard. Low life trata de uma juventude em colapso, implodindo em agonia, que marcha sabe-se lá para onde, sem um inimigo de fácil identificação. Um tema atualíssimo (vide os tumultos londrinos, por exemplo), que Klotz usa como um terreno cinzento habitado por personagens estilosos&desesperados. O sentimento de mal estar é constante e inevitável, e será sorvido com prazer pelos admiradores do diretor, mas me parece um golpe singelo quando aplicado à trama principal do longa: o romance amaldiçoado entre uma francesa e um migrante afegão (que, é claro, sofrerá as consequências de uma Europa falsamente livre). Leitura sugerida: o anterior, A questão humana, ainda mais incômodo.
As canções | Eduardo Coutinho | B | Um Coutinho-standard, que retorna ao formato de Jogo de cena (sem reflexões metalinguísticas), como um cantor veterano que distende os músculos, desabotoa a camisa e grava um disco pop após dois álbuns experimentais. Um tanto frustrante, tenho que admitir (imaginem aí o Radiohead anunciando um novo The bends), mas não há como negar os prazeres provocados por um um cinema que cria uma relação sentimental tão imediata com o espectador – e que não tem vergonha de chorar diante das câmeras. Pra todo mundo cantar junto, como se diz.
Cut | Amir Naderi | B | Este fight-club japonês, que poderia atender por O retrato de um cinéfilo quando saco de pancadas, não redime um personagem que lida com o cinema de uma forma masoquista (e sim, é claro que me identifiquei um pouquinho com ele). Bônus: no clímax, um top 100 de melhores filmes de todos os tempos.
Uma longa viagem | Lúcia Murat | C+ | Um doc doméstico, cheio de afeto e nada austero, com um personagem larger-than-life (o irmão da diretora, que deu a volta ao mundo duas vezes durante o exílio, na ditatura militar brasileira) e um recurso cênico que me irrita quando penso nele: Caio Blat contracenando com imagens projetadas numa parede.
Elena | Andrei Zvyagintsev | C | O diretor russo de O retorno faz um drama familiar lento, solene (feito marcha fúnebre), que investiga as banalidades do cotidiano como quem procura as evidências de um crime. Cada personagem tem os 20 minutos de contemplação que faz por merecer. Mas a encenação se torna tão embotada que, encerrada a tragédia, deixa um rastro de preciosismo: muita pompa para pouco filme.
Vulcão | Eldfjall | Rúnar Rúnarsson | C | Um dos filmes que mais emocionam nesta Mostra de SP me parece uma apelação sem fim. Mas talvez eu tenha perdido a sensibilidade para esse tipo de drama familiar higiênico: todos me parecem a mesma coisa.
Frango com ameixas | Poulet aux prunes | Marjane Satrapi e Vincent Paronnaud | C | O novo dos diretores de Persépolis me parece uma linda embalagem sem muita coisa dentro. Nota-se que a dupla está encantada pela técnica, pelo truque frívolo, pela caixinha-de-surpresas, e por um roteiro que vai despistando o espectador até as cenas finais. Os fãs de Amélie Poulain, no entanto, possivelmente vão curtir.
Nervos à flor da pele | Órói | Baldvin Zophoníasson | C | Apenas mais um filme teen europeu (perto dele, Low life fica parecendo algo magnífico), com aparência de piloto de seriado. Pule.
Os filmes da minha vida (6)
Estou na cidade grande, de férias, curtindo o ar condicionado da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (prometo mais posts sobre o assunto, aguardem). Mas algumas tradições devem ser mantidas: aos três leitores valentes que acompanham esta série (inútil) de posts, tirei um tempinho para escrever mais um capítulo da estranha saga dos 100 filmes da minha vida.
Este Grande Projeto, como vocês já sabem, é apenas uma brincadeira mesmo: a ideia é listar não necessariamente os meus filmes preferidos, mas aqueles que acabaram deixando lembranças importantes. Simplezinho assim.
Alguns deles, não vejo há 20 anos. Em muitos casos, as tramas desapareceram totalmente da minha memória. Eles deixaram, no entanto (e de uma forma sinistra), rastros poderosos de imagens. Mesmo que eu quisesse (e digamos que eu queira?), não conseguiria me livrar desses filmes. Eles estão aqui, apenas isso.
090 | Delicatessen | Jean-Pierre Jeunet e Marc Caro | 1991
Taí um filme que se perdeu quase por completo na minha memória (à exceção do tom de cor da fotografia, um sépia sujinho, enlameado; isso ficou) e de que possivelmente eu não gostaria se revisse hoje – os artifícios de Jeunet não me comovem. A sessão, porém, foi das grandes: a minha iniciação no circuito “de arte”, e por total acaso. Estávamos em Botafogo, acredito que para ir ao médico, quando minha mãe decidiu aproveitar o tempo livre à tarde para espairecer no cinema. Quando a sessão terminou, ela pediu desculpas por escolher um filme “tão estranho”, mas eu estava maravilhado. Era diferente de tudo o que eu havia visto: para um garoto de 11 anos, acostumado a superproduções americanas, aquela comédia surreal parecia um OVNI, uma revelação cósmica. Na bilheteria, ganhamos de presente um porquinho dourado, que guardo lá em casa até hoje.
089 | O espelho | Ayneh | Jafar Panahi | 1997
No começo da minha cinefilia, alguns dos meus filmes preferidos eram aqueles que me surpreendiam: a sala de projeção ainda era, para mim, um espaço semelhante àquele ocupado pelos mágicos de circo. É claro que, com o tempo, a maior parte dos truques do cinema começaram a me parecer previsíveis, e passei a ver os filmes de uma forma menos inocente. O segundo longa de Panahi, marca essa transição – e ainda me identifico com a cena em que a atriz-mirim se revolta contra a equipe de filmagem e desiste de encenar o papel de uma menina chorosa, frágil, um lugar-comum ambulante do cinema iraniano dos anos 1990. O filme pode ser interpretado como um filme sobre a condição da mulher no Irã, mas também (e prefiro esse viés) como uma obra de aventura sobre os imprevistos de uma filmagem. Foi nessa época que comecei a ver o cinema não apenas como um truque que nos deslumbra, mas como um espelho para as surpresas da vida.
mostraSP | Dias 5, 6 e 7
Cá estamos com mais uma rodada de textículos sobre filmes que vi na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. É. Pois é. Sei que este diário interessa a poucos leitores do blog, então tentarei ser (na medida do possível) breve.
No mais, é uma Mostra um tanto frustrante, com muitas sessões canceladas e problemas técnicos nas projeções (na primeira sessão de Habemus papam, quando o filme foi exibido sem legenda e com as cores alteradas, teve até barraco entre plateia e projecionista). Daí que bate desânimo só de pensar em escrever sobre o assunto.
A cotação utilizada neste blog permanece rigorosamente a mesma, e vai da letra D (de detestável, digamos) à letra A+ (de… amor eterno?). Na primeira semana de sessões, vi alguns filmes classe D e nenhum classe A+ (à exceção de Taxi driver, revisto na telona, mas este não conta), o que deve explicar alguma coisa sobre esta edição (ou sobre este blogueiro, vá saber). Acompanhem.
Habemus papam | Nanni Moretti | A | Para uma parte da plateia, a decepção vai ser inevitável: este feel-good movie frustra quem espera de Moretti uma charge cruel do catolicismo (com potência equivalente, por exemplo, à da sátira política de O crocodilo, sobre o governo Berlusconi), e talvez por isso as reações em Cannes, onde o longa competiu, tenham sido tão desanimadoras. Mas acredito que estamos diante da velha batalha entre as expectativas do público e as intenções do artista: em nenhum momento Moretti tenta criar uma comédia iconoclasta, rebelde. O tom aqui é bem outro, mais gentil e sereno. E o projeto, ainda que sem a carga pessoal que se encontra em filmes anteriores do diretor, reprisa o sorriso meio-amargo, da franqueza de longas como Caro diário e O quarto do filho: o cineasta vai ao Vaticano à procura de conflitos humanos, não de imagens-clichê ou de inimigos a combater. Enquanto Moretti adentra um mundo secreto (eis o poder do cinema), o excelente Michel Piccoli (o papa recém-eleito, perturbado com a responsabilidade de assumir o posto) se aventura lá fora. E é nesse duplo movimento de descoberta que a sátira abobalhada (e muito engraçada, aliás) se transforma num drama até tocante, plausível, mais sobre homens que sobre deuses. Um dos meus favoritos da Mostra até aqui.
Irmãs jamais | Sorelle mai | Marco Bellocchio | B+ | É um filme tão pessoal, e inclassificável (foi filmado ao longo de 10 anos na cidade natal do diretor, com um elenco que inclui parentes de Bellocchio), que será tratado como uma espécie de obra-prima maldita pelos fãs do cineasta. Eu prefiro tomar este OVNI como uma experiência estranha, pantanosa, crônica dilacerada (a fotografia, talvez por conta da técnica précaria usada nas filmagens, mergulha os atores em escuridão na maior parte do tempo), que me diz algo sobre tensões familiares e sobre um cinema que faz questão de tirar notas baixas nas disciplinas convencionais – uma das sequências, em que uma banca de professores avalia um aluno nada exemplar, nos explica mais sobre o diretor que qualquer biografia de Bellocchio.
Girimunho | Clarissa Campolina e Helvécio Marins Jr | B+ | O cinema do coletivo mineiro Teia oferece uma série de armadilhas para quem avalia a arte de um modo mecânico, pragmático, como quem testa a qualidade de um eletroeletrônico. Os diretores do grupo colocam em xeque a cartilha que uma parte da crítica usa para lidar com documentários. Filmes do gênero não devem “embelezar” a realidade? Pois os docs do Teia enquadram o mundo em planos lindíssimos. Filmes do gênero não podem “sufocar” os personagens? Na Teia, a intimidade que se cria entre a equipe e as pessoas filmadas é tamanha que não se sabe quando eles (os personagens) estão encenando a própria vida ou fazendo o que sempre fazem, naturalmente. Girimunho, se não me parece tão surpreendente quanto O céu sobre os ombros, também se mostra totalmente despreocupado com dogmas: não se sabe se é o filme que maquia as personagens (duas senhoras de 80 anos, no sertão de Minas) ou se são elas que criam o filme, da forma como bem entendem. Todos – equipe e personagens – jogam um mesmo jogo. E sim, e a encenação continua bonita demais da conta.
Tatsumi | Eric Khoo | B+ | O nível de sacarose desta cinebio de animação me incomodou um pouquinho (a trilha sonora é bonita, mas beleza em excesso também cansa), mas Eric Khoo é salvo pelo ídolo que retrata: ao alternar a fofura da narrativa com as tramas pessimistas de Tatsumi Yoshihiro, um dos criadores de mangás mais importantes do Japão, o diretor cria um contraste muito forte, e também muito interessante, entre um tom amável e o dark mais medonho. Como era de se esperar, a arte de Yoshihiro vence no final.
Respirar | Atmen | Karl Markovics | B | Um eurodrama quadradinho, filmado com aquela assepsia visual que se encontra todo ano na lista de indicados ao Oscar de produção em língua estrangeira, mas eu estaria mentindo se dissesse não comprei o drama de um personagem salingeriano cujo carisma acaba compensando o ramerrame da narrativa. Ou talvez eu tenha sentido saudades de O apanhador no campo de centeio, apenas isso.
The forgiveness of blood | Joshua Marston | C+ | O parágrafo acima, sobre Respirar, serve quase integralmente para este filme. A cena final deixa uma boa impressão, mas, passado o impacto da projeção (a nota inicial era B), não consigo encontrar nada muito elogiável num longa cujo tema me parece muito, muito mais interessante que a forma como ele é narrado. Para o público que vai ao cinema à procura de uma “boa história”, será eficiente.
Oslo, 31 de agosto | Oslo, August 31st | Joachim Trier | C | O processo de largar as drogas deve ser mesmo chato e frustrante, mais ou menos como este filme. E o que dizer do curta-powerpoint que abre a trama? (Faça a comparação entre a forma como Joachim Trier e o diretor de Drive usam a música Under your spell; quanta diferença!)
Adeus | Bé omid é didar | Mohammad Rasoulof | C | Feel-bad movie iraniano que trata um tema pesadão (o cerceamento das liberdades individuais pelo governo, Kafka style) com mão pesadona. Da série Tragédia Pouca é Bobagem ou: apelou, perdeu.
As ondas | Las olas | Alberto Morais | D | Road movie da terceira idade, devagar quase parando, quase agonizando. Todos (até os personagens) dormem.
[steve toltz]
Enquanto Terry foi brincar com os demais na piscina, eu me sujeitei a uma coisa terrível chamada dança das cadeiras, outro jogo cruel. Há uma cadeira a menos, e quando a música para, você tem de correr para conseguir um lugar. Festas infantis são riquíssimas em matéria de lições de vida. A música toca no último volume. Nunca se sabe quando vai parar. Você fica aflito durante toda a brincadeira; a tensão é insuportável. As crianças dançam em círculo ao redor das cadeiras, mas não é uma dança feliz. Todas têm os olhos grudados na mãe que comanda o rádio, a mão a postos no controle do volume. De tempos em tempos, uma criança se antecipa e se atira em uma cadeira. As outras gritam. Ela se levanta da cadeira outra vez. Está uma pilha de nervos. A música continua. Os rostos das crianças estão contorcidos de terror. Ninguém quer ser excluído. A mãe troça delas fingindo que vai mexer no volume. As crianças desejam que ela morra. O jogo é uma analogia da vida: não há cadeiras bastantes ou bons momentos o suficiente, não há comida suficiente, nem alegria, nem camas, nem empregos, nem risadas, nem amigos, nem sorrisos, nem dinheiro, nem ar puro para respirar… mas a música continua.
Trecho de Uma fração do todo, de Steve Toltz
mostraSP | Dia 4
Diário da Mostra, parte 2.
Lembrando as regras do jogo: as cotações para os filmes que vejo na Mostra Internacional de Cinema de SP vão da letra D (de, digamos, deprimente), a A+ (de, digamos, absolutamente incrível).
O garoto da bicicleta | Le gamin au vélo | Jean-Pierre e Luc Dardenne | A | Pode parecer pedante quando, à saída da sessão de cinema, o sujeito comenta que ainda está embasbacado com a composição de cores do filme. Pois bem: esse sujeito sou eu, e ele acredita (mesmo!) que, neste longa dos Dardenne, a preferência por cores primárias (vermelho, verde e azul) não deve ser interpretada como uma firula banal para embelezar e polir as imagens. Pelo contrário: a opção informa de um jeito muito preciso e até simples (e estamos diante de um filme que sabe exatamente o que quer para si) o ponto de vista dos cineastas em relação ao protagonista, um menino “vermelho” que responde com energia incrível às dificuldades do cotidiano. Rigorosos como sempre (e suaves como nunca, sem muitos dos maneirismos de câmera que eles próprios criaram), os Dardenne criam um “playground” visual de aparente leveza, com bordas pontiagudas (as cenas de violência são raras, mas fortes). Eu passaria um dia inteiro olhando as imagens deste filme (o fotógrafo é Alain Marcoen), sem diálogos nem nada; mas, obsessões estranhas à parte, também acredito que é o Dardenne mais amável – e o mais bem resolvido desde O filho (2002).
Fora de satã | Hors satan | Bruno Dumont | B | Estamos de volta ao mundo de Bruno Dumont, onde caipiras-zumbis se movimentam em paisagens silenciosas, de natureza selvagem e sinistra. A novidade em Fora de satã é que, apesar de parecer um Dumont típico (a encenação lembra, de imediato, A vida de Jesus, A humanidade e Flandres), ele experimenta o tempo todo, ainda que sutilmente, com elementos de filmes de horror. Se o longa anterior do cineasta era sobre um menina quase santa, este coloca em cena uma figura diabólica, imbatível, como que um irmão interiorano do serial killer Javier Bardem de Onde os fracos não têm vez. Só que não há suspense: interessante, no caso, é testemunhar um cineasta que tenta negociar o tom bressoniano com cenas grotescas, surreais, que transportam o filme a um ambiente inexplorado. Ainda que, mesmo aí, Dumont ainda carregue todo o peso de um estilo.
Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios | Beto Brant e Renato Ciasca | C+ | O cinema de Brant se tornou, como ele gosta de dizer, mais “permeável” desde Crime delicado (2005), e o filme novo do diretor é mais um capítulo dessa etapa: à trama principal, o cineasta adiciona uma série de vinhetas/interferências/digressões que vão esgarçando a narrativa, arranhando o resultado do filme. O processo de filmagem, como acontecia também em Cão sem dono, é uma aventura a ser incluída no corte final. Dito isso, acredito que Eu receberia… mostra as fragilidades desse “sistema”: sem uma trama principal forte (o “caule” do filme, digamos), as divagações à margem do roteiro giram em falso. E a trama, no caso, não me convence em quase nada: apesar de Camila Pitanga (que domina o filme, não à toa), todo o desenvolvimento da love story me parece truncado, prejudicado por um ato final aceleradíssimo. O projeto de Brant segue me interessando, mas desta vez o making of possivelmente será mais curioso que o filme em si.
Loverboy | Catalin Mitulescu | C | Os sofrimentos do jovem garanhão romeno. Vidinha à deriva, filme idem.
mostraSP | dias 1, 2 e 3
Era uma vez na Mostra de São Paulo…
Pois bem, folks: aqui começa o meu já tradicional (e tradicionalmente desajeitado) diário da Mostra Internacional de Cinema de SP, que começou sexta-feira e termina em 10 dias.
Este ano, o desafio é o mesmo de sempre: assistir a uma quantidade quase torturante de filmes sem cair no pecado de abandonar a programação para me dedicar a, digamos, jardinagem – ou a uma maratona de stand-up comedies. Os filmes ruins drenam a minha vontade de viver. Já os bons, vocês sabem…
Estamos no quarto dia de Mostra. Infelizmente, este é o primeiro post sobre o assunto. Não deu tempo para começar antes. Sou um sujeito ocupado, mesmo quando de férias.
A seguir, vocês encontram resumos apressados sobre os filmes que vi até aqui. Alguns parágrafos são maiores (e mais generosos, e mais sensatos) que outros. Para facilitar o acesso a meu gosto tão peculiar, aplico aos comentários uma cotação que vai da letra D (de, digamos, doente) a A+ (de, digamos, absurdamente bom).
Para reviews instantâneas, escritas logo após as sessões, recomendo uma visita ao meu Twitter. Mas perdoe a bagunça, ok?
The day he arrives | Bukchon banghyang | Hong Sang-soo | A | Talvez num aceno para o Rohmer de Minha noite com ela (ou ao Woody Allen de Manhattan), Sang-soo usa desta vez uma fotografia em branco e preto que transforma cada cena numa espécie de postcard sentimental, de uma beleza quase falsa (veja foto acima). Uma atmosfera muito apropriada, portanto, para narrar o encontro de um homem com as memórias (boas e ruins) que associa à cidade onde viveu no passado. É melancólico e gentil como uma velha canção de Sinatra, mas também tem algumas das conversas-de-bar mais engraçadas que o diretor já filmou. Não está entre os meus preferidos dele, mas é perfeito para os iniciantes na filmografia de um cineasta que faz sempre o mesmo grande filme.
Isto não é um filme | In film nist | Mojtaba Mirtahmasb e Jafar Panahi | A | A existência deste filme já parece algo milagroso: confinado dentro de casa, em prisão domiciliar, Panahi mostra quase tudo o que precisamos saber sobre a vida no Irã. É o longa mais agressivamente político do cineasta, e, ainda assim, pode ser lido como um romance minimalista de Kafka. Também é, no entanto, um tanto enganoso: a encenação que, num primeiro momento, dá a ideia de um registro espontâneo (“é o que tem pra hoje!”), aos poucos se mostra mais autoconsciente do que imaginávamos. Daí descobrimos que estamos metidos num dia de fúria, que começa numa mesa de café da manhã e termina em chamas. Não só um filme, mas um filmaço.
Era uma vez na Anatólia | Bir zamanlar Anadolu’da | Nuri Bilge Ceylan | B+ | É um pequeno conto policial ampliado às paisagens vastas de um western e à dimensão de um livro de 600 páginas. O projeto de Ceylan é muito preciso (e nada muito singular): dilatar a trama para ressaltar a banalidade do cotidiano. O que não me convence é a forma como o diretor usa os personagens para extravasar um certo sentimento de mal estar em relação à violência, como se eles não estivessem acostumados a todos os procedimentos técnicos de uma investigação. Me parece forçado, em alguns momentos. O preciosismo dos enquadramentos (everything in its right place) já não me irritou tanto: é como se os jogos cruéis que as pessoas jogam, para Ceylan, não alterasse o curso sublime da natureza.
Pater | Alain Cavalier | B | Imagino o espanto que deve ter tomado conta dos espectadores da sessão de gala de Cannes quando este filme bateu na tela. Cavalier novamente se expõe às câmeras com a coragem de quem se candidata a um reality show, mas cria tantas camadas de encenação que a brincadeira se torna, por vezes, enervante. Uma equação talvez resuma o longa: um filme político + o ensaio para um filme político + o jantarzinho da equipe do filme político + um documentário sobre o gato de Cavalier + o blog do diretor.
O futuro | The future | Miranda July | C | Se você procura uma definição audiovisual para o termo hipster, ela está neste filme indie sobre personagens que sofrem porque são: 1. hipersensíveis, 2. especiais, 3. inteligentes, porém ineptos ao convívio social, 4. criativos, mas de um jeito louquinho, 5. conscientes em relação às questões ambientais do planeta, mas incapazes de fazer algo decisivo sobre o assunto, 6. outsiders, mas adoráveis, 7. fofos, mas também amargos (porque a vida é tristinha), 8. conectados ao mundo tecnológico, mas não muito confortáveis com o grande esquema corporativo das coisas, 9. fãs de indie rock e de música de brechó (na trilha: Beach House e Jon Brion), 10. cheios de amor pra dar, mas sempre prestes a sofrer decepções amorosas porque a vida, você sabe, é tão decepcionante.
A ilusão cômica | L’Illusion comique | Mathieu Amalric | C | Uma ideia interessante, ainda que nada singular (pergunte ao Baz Luhrmann): adaptar uma peça consagrada a um ambiente contemporâneo, preservando o texto original. Os ruídos entre diálogos/imagens são inevitáveis. Mas, no caso, também irritantes: Amalric filma como quem dá risadinhas para os entendidos; e, no desfecho, mostra que, para se aproximar de um Brian de Palma e dizer algo particular sobre as ilusões do cinema, terá que comer muitos croissants.
Um pouco mais perto | A little closer | Matthew Petock | C | Uma versão live-action para South Park, só que sem humor. Larry Clark, saudades de você.
Angèle e Tony | Alix Delaporte | C | Personagens opacos, aprisionados no formato padrão de um drama francês para sessões das 14h do Festival Varilux. Com as bordas arredondadas, daria um remake hollywoodiano com, por exemplo, Julia Roberts e Philip Seymour Hoffman.
Ways of the sea | Halaw | Sheron Dayoc | C | Denúncia social didática, com fotografia “bonita” que chama excessiva atenção para si. Nas Filipinas, também não tá fácil pra ninguém.
Artigas | Cesar Charlone | D | Telefilme aborrecido sobre herói uruguaio. Sérias restrições orçamentárias? As restrições criativas, no entanto, são mais preocupantes.
Apenas uma noite | Last night | Massy Tadjedin | D | Um editorial de moda (bonita cozinha, Keira!) habitado por gente rica/bonita – que sofre sempre de um jeito higiênico e perfumado.
Os filmes da minha vida (5)
A saga mais inconstante da internet (sempre alguns atrasada, coitada) chega a mais um episódio, desta vez apressadíssimo. Os textos a seguir foram escritos entre um filme e outro da Mostra de SP, evento onde estou enfurnado desde sexta-feira.
Prometo posts sobre o que eu estou vendo por aqui, no festival. Prometo, mas não sei ainda quando vou cumprir. Talvez amanhã. Não sei. Aos que se contentam com reviews irresponsáveis, escritas imediatamente após as sessões, me seguir no Twitter pode ser um bom placebo (o endereço é este aqui).
E, já que a onda é ficar prometendo, vocês não perdem por esperar a mixtape de outubro, todinha no formato de uma soundtrack. Já é minha favorita de todos os tempos.
092 | A mulher é o futuro do homem | Yeojaneun namjaui miraeda | Hong Sang-soo | 2004
Há cineastas que mudaram a forma como eu lidava com a arte, com o cinema. E há os cineastas que gosto de reencontrar por uma questão de afinidade, e esses trato da forma informal e afetuosa como me dirijo aos amigos. Sang-soo tem lugar nesse grupo. Qualquer filmes do cineasta poderia ter entrado nesta lista (difícil escolher entre a melhor lembrança de uma amizade, e confesso que todas parecem pertencer a um mesmo longa-metragem; e é dessa forma que também lido com os filmes do Godard ou do Linklater), mas escolhi A mulher é o futuro do homem porque foi o primeiro: o encontro inicial, numa telinha de tevê, com legendas desencontradas e um tanto bêbadas (mais ou menos como os personagens da trama). Talvez não seja um dos melhores do cineasta (não ameaça as obras-primas Noite e dia, Oki’s movie e Conto de cinema), mas é quase igual a todos os outros. E, perto de um filme do Sang-soo, quase todo o resto do cinema passa a parecer um pouquinho falso.
091 | Presságio | Knowing | Alex Proyas | 2009
Um dos filmes que mais revi numa tela de cinema (quatro vezes; e aposto que, com um pouco de tempo livre, teria visto mais) colidiu contra a minha vida feito um efeito grotesco de CGI. Acabou se transformando numa piada que meus amigos contam para me provocar: eu entendo que Presságio não é um grande filme (lembro que nem chegou a entrar no meu top 10 de 2009), mas também compreendo o que me conecta a ele: não apenas o tema, que me atrai terrivelmente (sou um fraco para filmes sobre fim de mundo), mas a forma desembestada como a trama se movimenta, aceleradamente rumo às últimas consequências de um gênero que Hollywood se acostumou a tratar com certa covardia (e aí incluo o desfecho, valente de tão juvenil). Tem isso. E tem o fato de que uma lista de filmes da minha vida sem Nicolas Cage seria um pouco desonesta, é claro.
cine | Não tenha medo do escuro
Não consigo lembrar de outro remake de horror recente que tenha nascido de um projeto tão pessoal: Não tenha medo do escuro é uma tentativa de recriar um telefilme de 1973 que despertou em Guillermo del Toro, então com nove anos de idade, o desejo de se realizar filmes de fantasia. A proximidade entre o cineasta e o longa-metragem era (e é) tão intensa que, talvez por isso, del Toro tenha preferido delegar a função de diretor a um estreante, Troy Nixey, e tomar para si a responsabilidade pelo roteiro (escrito também por Matthew Robbins) e pela produção. Entendo o receio do diretor: o excesso de nostalgia e sentimentalismo, no caso de reencontros com filmes que amamos, pode ser mesmo fatal.
No mais, se era esse o plano, ele funciona: não é uma refilmagem excessiva, extravagante. Pelo contrário. Parece ter sido dirigida por um calouro que passou o semestre estudando o estilo de del Toro – acima de tudo, a cumplicidade como vai à imaginação infantil, sem encarar os personagens com ar de superioridade. A câmera de Nixey (como acontecia em O labirinto do fauno, por exemplo), está até um pouco aquém da protagonista, uma menina que responde às ameaças medonhas com reações valentes, curiosas, que nos surpreendem (e às vezes nos fazem pensar: eu não teria a coragem). Uma menina talvez frágil, inocente demais para ser considerada uma super-heroína; mas vítima, nunca.
O filme posiciona essa personagem num mundo que é também típico de del Toro, um cineasta que prefere um horror mais, digamos, mitológico (povoado por fábulas, lendas) às fórmulas de slasher movies (as fitas de serial killers monstruosos) ou dos thrillers assombrados por espíritos malvados (os dois maiores clichês do gênero, e os que estão mais em voga atualmente). Não tenha medo do escuro não é uma coisa nem outra e, por isso, parece até datado, errado. Quando os vilões finalmente se revelam às câmeras, o espectador é obrigado a tomar uma decisão: ou abandona o filme por completo (sem pipoca nem fé), ou entra (receoso, porque não há outro jeito) no parquinho temático de del Toro.
O que parecia um joguinho singelo de horror, a partir daí, se transforma numa experiência um pouco mais sofisticada, já que alterna dois pontos de vista (o do diretor, mais pragmático, e o de del Toro, mais lúdico) e duas formas de lidar com o gênero (uma “caduca”, B, outra mais contemporânea, toda demarcada por efeitos grosseiros de som e CGI). E são essas tensões que deixam o espectador sempre às escuras, mesmo quando ele deixa de acreditar no que vê na tela e passa a assistir ao espetáculo como uma criança já crescida, sem tantas ilusões e já familiarizada a muitos dos lugares-comuns do gênero. De uma forma ou de outra, este aqui tem minha defesa: uma pequena fábula de terror para crianças corajosas de nove anos de idade.
[chico buarque]
Hoje se vendem menos discos. Faz diferença?
Não, para mim não faz. Tanto é que fiquei sabendo mais ou menos dessas novidades durante as conversas de lançamento do disco. Então me foi apresentado um projeto de lançar o disco pela internet e eu não conhecia nada disso. E aí eu fui conhecer a realidade do mercado. Eu andava longe disso havia cinco ou seis anos e não sabia que tinha mudado tanto assim. A previsão do lançamento de um disco é, em termos numéricos, muito inferior agora. Então, tentei compensar a gravadora, de certa forma, pelo investimento que ela fez, colaborando no projeto de lançamento deles. Internet e aquela coisa do site e tal. Mas isso não é assunto meu. Eu, na verdade, cheguei a uma altura da vida que não preciso mais do disco para sobreviver. Eu já tenho basicamente aquilo que eu preciso, não tenho grandes ambições. Já tenho certa estabilidade financeira e não preciso ficar muito preocupado com isso. Meus discos vendem direitinho, tenho direitos autorais aqui e lá fora. Os livros vendem mais do que os discos, inclusive [risos].
Trecho de entrevista de Chico Buarque à revista Rolling Stone Brasil.
Os filmes da minha vida (4)
Neste capítulo da série épica, dois pesadelos: um deles assombrou a minha infância (quando eu praticamente só via fitas de terror), o outro amaldiçoou a minha pré-adolescência (quando eu praticamente só lia livros do Stephen King). São filmes que não revejo há uns 20 anos, e que foram picotados e remontados pela minha imaginação em dezenas de”special editions”; portanto, por favor, perdoem as imprecisões.
Também peço humildemente que vocês deem um desconto a este blogueiro, que havia prometido postar os capítulos desta saga às segundas-feiras e, ó-vida!, não está cumprindo a palavra. Pontualidade é, sim, o meu forte – mas temo que, nas próximas semanas, esta lista seguirá inconstante, cambaleando na programação do blog. Em contrapartida, prometo (e lá vamos nós com outra promessa!) textinhos sobre os filmes que eu vir na Mostra de SP. Se bem que… Vocês curtem esse tipo de coisa, amigos?
094 | A coisa | The stuff | Larry Cohen | 1985
Um dos filmes inesquecíveis da minha infância, esta sandice B sobre um marshmallow assassino talvez tenha colaborado enormemente para formar meu gosto por fitas de fantasia deliciosamente absurdas, como que escritas pelos meninos que se sentam no fundo da classe, nos momentos entediantes das aulas de biologia e de matemática (coming soon: Fome animal, de Peter Jackson). Em A coisa, as patetices da trama certamente desvelam um comentário arguto sobre a nossa sociedade de consumo, mas não percebi nada disso quando eu tinha nove anos de idade: o que ficou foi a imagem da sobremesa cremosa (quem resistiria a essa doçura?) que engole os personagens antes que eles a engulam. Uma tolice excessivamente calórica. E um daqueles filmes que me fizeram acreditar que o cinema pode tudo.
093 | O iluminado | The shining | Stanley Kubrick | 1980
Confissão constrangedora: quando assisti a O iluminado, eu mal sabia quem era Stanley Kubrick. Minha referência era Stephen King, o escritor preferido dos meus 11 anos de idade. Foi King quem me apresentou a filmes como Christine – O carro assassino, Conta comigo e Salem’s Lot e It, entre tantos outros. O que eu procurei em O iluminado foi uma adaptação fiel ao livro, apenas isso. O que encontrei superou de tal forma as minhas expectativas que, aos poucos, fui me afastando de King e me aproximando de Kubrick – uma substituição que colaborou para o início da minha vida de cinéfilo. Guardo comigo muitas cenas do filme, por tê-las visto novamente via YouTube ou em programas de tevê. O que ficou com mais força, no entanto, foi a sensação de isolamento e alienação que vai corroendo o personagem principal. O desespero parecia verdadeiro, possível (pouco tempo depois de ter visto o filme, sonhei que estava preso nos corredores de um hotel) – e isso, naquela época, eu não conseguia encontrar em outros filmes de horror.
Enough thunder | James Blake
No “day after” do fim do R.E.M., li uma entrevista com a banda que explicou praticamente tudo o que eu precisava saber sobre a fase final do trio. Eles explicaram (à Rolling Stone americana) que o grupo pretendia encerrar a carreira após o lançamento de Around the sun, de 2004. Mas a reação negativa da maioria dos críticos serviu de estímulo para que a banda se desafiasse a voltar ao estúdio e a concluir a narrativa num tom menos decadente.
Eu não diria que Accelerate (2008) e Collapse into now (2011) são grandes discos, mas eles estão aí para nos mostrar como, para certos artistas, as expectativas do “júri qualificado” (e aí incluo não só jornalistas, mas blogueiros, fãs mais dedicados, tuiteiros com centenas de milhares de seguidores) podem se tornar determinantes para a criação. Os últimos discos do R.E.M., agora ficou ainda mais claro, tentam reafirmar um status, uma posição de prestígio; como quem, após um fracasso de bilheteria, cobra para si um Oscar pelo conjunto da obra.
Me pergunto: o que teria acontecido se o R.E.M. (e isso também vale para outras bandas preocupadíssimas em se manter “elogiáveis” e populares, como o U2 e o Coldplay) tivesse decidido seguir um itinerário autônomo, particular, sem se importar exageradamente com a opinião de quem entende (ou acha que entende) de arte? Desconfio que teríamos discos talvez errados e estranhos, sem os confortos de um Collapse into now – e talvez discos mais duráveis, que guardaríamos na memória por mais tempo.
Talvez eles teriam saído mais ou menos como Enough thunder, um EP de seis faixas que (perdoem a heresia) soa mais instigante que qualquer álbum gravado pelo R.E.M. desde New adventures in hi-fi, de 1996.
James Blake, o inglesinho insolente de 23 anos, vai compondo uma trajetória (formada por obras pequenas e grandes) que pode ser lida como um argumento muito decidido, defendido com convicção, a favor de uma arte que se deixe guiar quase exclusivamente pelos desejos e pela sensibilidade de quem a cria – e não pelas vontades de um “júri qualificado”.
A maior parte das resenhas que li sobre o EP de Blake compra uma briga com o músico que, a meu ver, parece inútil. Ao cobrar que o compositor volte a compor faixas mais psicodélicas e cinzentas, com mais “cheirinho de dubstep” (como as que encontramos nos EPs The bells sketch e CMYK), eles se portam como a mãe zelosa, bem intencionada, que tenta convencer o filho de que o curso de engenharia pode ser uma opção mais segura que artes plásticas.
O ponto de vista de Blake me parece menos conservador, e me lembra de um período em que exigiam do Radiohead canções com mais guitarras e menos barulhinhos esquisitos. Em vez de pedir mais músicas com guitarras, mais músicas similares às que foram feitas no passado, não seria mais prático (ao fã, ao crítico) voltar aos discos antigos e ouvi-los novamente? Sempre vale lembrar, portanto, que continua fácil fazer o download de The bells sketch e de CMYK.
No primeiro álbum “completo” da carreira, lançado em janeiro, Blake optou por, em vez de repetir o que havia feito, abrir um capítulo novo. Em vez de se aprofundar num breu dub (mas sem abandoná-lo totalmente), ele preferiu ressaltar a própria voz (triturada por efeitos de estúdio) e melodias escritas ao piano. Enough thunder não apenas confirma essa tomada de posição como evita quase tudo o que se cobra de Blake. É o EP de um singer-songwriter, e não (ou pelo menos não tanto) de um geniozinho da eletrônica.
Com um pouco de atenção, se nota que Blake continua a tratar com detalhismo impressionante toda uma soma de efeitos sonoros que envolve as melodias – as faixas de abertura, Once we all agree e We might feel unsound, nos transportam imediatamente para uma madrugada chuvosa. Aos poucos, no entanto, o disco vai se despindo dessa mise-en-scene, até se mostrar pele-e-osso, numa interpretação vazia (de propósito) para A case of you, de Joni Mitchell.
O único momento em que Blake nos entrega aquilo que queremos dele é também o que soa mais deslocado dentro do EP: a colaboração com Bon Iver em Fall Creek Boys’ Choir. Um single potente, sem dúvida (e mais por “culpa” das interferências sutis de Blake que dos maneirismos de Iver), mas que acaba abalando a atmosfera azulada, à la In the wee small hours, que as músicas anteriores criaram.
As últimas faixas, felizmente, recuperam o tom inicial, de um lento entorpecimento (de um romantismo fora de moda). Not long now se conecta ao disco anterior como uma espécie de cordão umbilical: é uma construção de vidro, que deixa a impressão de uma estrutura simultaneamente frágil (não tem nada lá dentro, acusam os detratores de Blake) e sutil. É aí que Enough thunder dá o adeus definitivo aos clichês do dubstep: o caminho que se toma é outro (e, goste ou não, este som é só dele).
O que me parece tocante nessa história toda é que, mesmo quando nos frustra ao deixar a impressão de que grava esboços de ideias, Blake está seguindo um roteiro à prova de testes de audiência. Fico aqui torcendo para que, nos próximos discos, ele insista nesse plano louco, suicida, de se apresentar ao mundo da forma como bem entende.
EP de James Blake. Seis faixas, com produção de James Blake. Lançamento Atlas Records. 74
[philip roth]
“Levar seus livros de uma vida para outra não era novidade para Zuckerman. Em 1949, ele saíra da casa dos pais e se mudara para Chicago levando na mala as obras anotadas de Thomas Wolfe e o Roget’s Thesaurus. Quatro anos mais tarde, contando então vinte anos, deixara Chicago com as cinco caixas de papelão em que acondicionara os clássicos adquiridos a duras penas em sebos, e as levara para o sótão da casa de seus pais, onde ficaram durante os dois anos em que serviu o Exército. Em 1960, quando se separou de Betsy, foram necessárias trinta caixas para transportar os livros retirados de estantes que não lhe pertenciam mais; em 1965, ao se separar de Virginia, as caixas chegavam a quase sessenta; em 1969, mudou-se da Bank Street com oitenta e uma caixas de livros. Para abrigá-los, novas estantes de três metros e meio de altura haviam sido instaladas, de acordo com suas instruções, em três paredes do novo escritório; mas, embora já houvessem se passado dois meses e os livros geralmente fossem os primeiros a encontrar o devido lugar quando ele se mudava de um local para outro, dessa vez eles permaneciam nas caixas. Meio milhão de páginas abandonadas, intocadas. O único livro que parecia existir era o seu. E, sempre que ele tentava esquecê-lo, alguém se encarregava de refrescar sua memória.”
Trecho de Zuckerman libertado, de Philip Roth.
cine | Drive
Em vez de criar mostras interdisciplinares sobre cinema&moda ou animação&racismo, os centros culturais brasileiros bem que poderiam atentar para algumas correlações mais instigantes que aparecem no cinema contemporâneo. Exemplo: que tal uma seleção de filmes em que a música pop exerce um tipo de força magnética, transformadora, às vezes agressiva mesmo, sobre a encenação? Eu poderia listar uns dez, a começar por Magnólia e lembrando, é claro, de toda a filmografia de Sofia Coppola, mais Mal dos trópicos, Kill Bill, o brasileiro O céu sobre os ombros e que tais. Drive, um thriller sobre synthpop (ou vice-versa), não seria ignorado na programação.
Após os créditos finais, meu primeiro movimento foi cingir o Google em busca de informações sobre a trilha sonora. A maior parte dos temas é escrita por Cliff Martinez, cuja importância no filme às vezes me parece maior que a do roteirista Hossein Amini (que adapta um livro de James Sallis). A música nos informa quase tudo sobre o personagem principal, um entertainer calado e opaco (mais ou menos como o protagonista de Somewhere) que queima o asfalto de Los Angeles legalmente (no trabalho de dublê) e ilegalmente (dirigindo para bandidos, de madrugada). É um som de acrílico, artificial e triste, falso porém tocante.
E é com essa “chave de fenda” sonora que o diretor do filme, Nicolas Winding Refn, faz uma fissura num gênero que conhecemos tão bem (o “action movie automobilístico”, à la Bullit, Ronin) – e abre, num rasgo até grosseiro, uma fresta para deixar entrar uma certa sensibilidade que parece não combinar com esse tipo de narrativa. Nos deixa com a sensação de encontrar, entre as faixas de um álbum de punk rock, duas ou três faixas instrumentais de ambient ou house, provocando interferências estranhas no mix. O ritmo do filme, no mais, é também musical (os planos gerais da cidade, à noite, servem de refrão para o pop song).
Ryan Gosling, numa interpretação tão mecânica/melancólica quanto uma performance do Kraftwerk, entende o projeto de Refn, que faz evoluções sempre em torno dos clichês do gênero. É como se o filme-filme terminasse assim que aparecem os créditos iniciais (após uma sequência tecnicamente perfeita, impressionante de perseguição) e, em seguida, restasse aos personagens (e aos espectadores) apenas a ressaca daquele filme de ação. O anti-herói sai de cena, e a vida segue em estradinhas escuras, erráticas, às vezes doce feito uma canção de synthpop vagabunda, às vezes violenta como uma graphic novel para adultos.
E, quanto mais referências Refn acumula no caminho (e são muitas, de Kar-wai a Tarantino: aposto que ele será acusado de pilhar o estilo alheio, de seguir modismos, de ser um babaca sem um olhar singular para as coisas), a imagem que resume o filme é um flash roubado de A estrada perdida, de David Lynch: tal como aquele filme, Drive também se desloca numa pista de ilusões – mas é daqueles sonhos tolos que nos capturam à vera, antes que tentemos colocá-los em ordem.
Os filmes da minha vida (3)
Começa agora mais um capítulo do romance-épico-bíblico de nome Os 100 Filmes da Minha Vida. Como expliquei no início da saga (e, aos aventureiros de primeira viagem, recomendo a leitura do primeiro post da série, que contém as instruções para o joguinho), esta é uma lista tão pessoal que deveria ter sido escrita à mão e distribuída apenas aos amigos e parentes, para ser recitada no jantar de Natal após cinco taças de cidra. Não sei, de verdade, o que ela está fazendo aqui na world wide web, sério.
Mas, já que começamos esta egotrip mágica, sigamos até o fim desta louca estrada da vida (e nem adianta perguntar, meu velho: o ponto final ainda tá lá longe; mas garanto duas ou três paisagens inesperadas no meio do caminho). Ainda nem completamos os 10 primeiros longas-metragens da série e muita coisa aconteceu por aqui. Portanto, fique ligadinho que há muitas histórias & lembranças de onde vieram todas aquelas outras. E isso é uma promessa, ok?
096 | Café Lumière | Kôhî jikô | Hou Hsiao-hsien | 2003
Este ranking começou com o primeiro filme que vi numa sala de cinema (Os Trapalhões no Auto da Compadecida), mas não é um top tão saudosista quanto parece. Café Lumière, por exemplo, eu vi pela primeira vez há alguns meses, em janeiro de 2011, numa sessão sem muito charme (estava até vazia, era uma quinta à noite). Ao contrário de 80% dos filmes desta lista, lembro de praticamente tudo o que acontece neste aqui, em tantos detalhes que eu poderia escrever um texto longo sobre o tema. Mas isso não vem ao caso: Café Lumière está aqui porque resume o que mais me atrai no cinema hoje, aqui-agora: filmes que criam ambientes singulares, misteriosos (mas às vezes tão mundanos, como acontece aqui), onde nós, os espectadores, podemos viver por um certo período de tempo. Outros filmes de Hsiao-hsien também desenham territórios muito específicos (que existem independentemente das vontades, das expectativas do público), mas este aqui é, para mim, irresistível: e a cena final tem sim algo de sublime, de sobrenatural, que mesmo um cinéfilo-velho-de-guerra como eu não consegue descrever.
095 | A história sem fim | The neverending story | Wolfgang Petersen | 1984
E aqui voltamos à minha neverending infância: tudo o que lembro sobre o filme são as cenas com o cachorro voador (olhe a foto aí em cima, que não me deixa mentir), mas tenho quase certeza de que foi ele que formou o meu gosto pelo cinema de fantasia, pela fabulação sem limites. Talvez a minha ligação com esse filme, que eu revi tantas vezes (e com alguns do Tim Burton, Joe Dante, Wes Craven), explique minha má vontade com as “fantasias realistas” de um Christopher Nolan, por exemplo. Porque A história sem fim não quer explicar nada: é um mil-folhas de mentiras, delírios, recheado de criaturas estranhas que acabaram se confundindo às lembranças da minha infância, aos sonhos que tive naquela época. Era um período em que o cinema ainda me parecia um passe de mágica, e em que os filmes me iludiam a sério – como se produzidos por uma trupe de ilusionistas, e não por técnicos de estúdios e especialistas em efeitos especiais. A época da inocência, digamos.