Mês: março 2012
mixtape! | Março, últimos dias
Amigos, esta é uma mixtape valente. Ela quase-quase não veio ao mundo, tenho que admitir – porque, talvez vocês tenham percebido, março foi um mês difícil para este blogueiro.
A partir de abril, se o blog sobreviver a todo esse tsunami, os posts serão escritos diretamente de São Paulo, pra onde me mudo semana que vem. Portanto, que rufem os tambores!, esta é a minha última coletânea brasiliense – não por acaso, ela soa um pouco como a cidade de que estou me despedindo.
É, em resumo, a mixtape mais emotiva de todos os tempos (preparem-se).
Estou em pleno processo de mudança, e não sobra tempo nem para olhar pro relógio: por isso, a mixtape deste mês só poderá ser ouvida (por enquanto) aqui no blog, via streaming. Mas calma! Prometo, talvez durante o fim de semana, postar os arquivos em mp3 pra vocês ouvirem as musiquinhas em vossos iPods.
Nesta seleção, vocês encontram as belas melodias de Beach House (que ganhou a tão cobiçada foto no alto do post), Daniel Rossen, Andrew Bird, Magnetic Fields, Young Magic, The Shins, The Men, Perfume Genius e Poliça.
Faça o download da mixtape de março (enfim!).
Ou, por enquanto, ouça aqui:
Vídeos do VodPod não estão mais disponíveis.
cine | O porto
Confesso a vocês, amigos, que não foi pouco o meu desânimo quando li as primeiras notícias sobre este filme de Aki Kaurismaki. Escritas durante a cobertura do Festival de Cannes de 2011, essas reportagens meio genéricas informavam que o finlandês havia dirigido um longa sobre imigração ilegal na Europa, um dos temas preferidos dos cineastas que se escondem atrás de grandes temas.
Talvez as minhas expectativas (muito baixas) tenham contribuído para que eu me surpreendesse com um filme que, além de não se ater à “análise sociológica” de um assunto que está na moda, cria uma gambiarra cinematográfica que me parece instigante: o cineasta está, a todo momento, infiltrando um contexto realista (a truculência que a França impõe aos migrantes e “outsiders” em geral) numa “cidade paralela” que só existe mesmo na Kaurismakiland.
O diretor é finlandês, os personagens vivem na França, mas podemos fizer que Le Havre não se passa exatamente em nenhum desses país, mas flana numa terra cinematográfica que se desdobra como uma espécie de realidade alternativa — um território regulado pelo estilo de um autor. O laconismo dos personagens, o emprego muito específico do tempo (como que entorpecido, numa velocidade um pouco aquém à da vida) e a encenação de cartum (um cartum azulado e zombeteiro, diga-se) — entre outros traços tão próprios à câmera de Kaurismaki — aqui aparecem como uma forma enviesada de ver um tema que volta e meia aparece nos noticiários.
A (boa) diferença é que, enquanto tantos diretores comentam a questão com um realismo chapado, lamentando o destino terrível dos excluídos, o finlandês cria uma fábula otimista — sobre a relação de amizade entre um engraxate e um menino migrante — em que tudo aparentemente indica um final feliz. Mas, sorrateiramente, esse ambiente fantasioso de Kaurismaki aponta para tudo o que existe de cruel e caótico no outro lado do espelho. Isto é: no mundo do espectador.
(Le Havre, Finlândia/França, 2011). De Aki Kaurismaki. Com André Wilms, Blondin Miguel e Jean-Pierre Darroussin. 93min. B+
♪ | Port of Morrow | The Shins
Quando você ouvir pela primeira vez este álbum do Shins, possivelmente vai concluir que Port of Morrow é todo ele uma superfície polida e tranquila. Vai ficar, imagino, a impressão de que você já desvendou — antes, há muito tempo, numa outra época — todos os mistérios deste disco, mesmo que ainda não tenha se aproximado da faixa 6.
A sensação de conforto deve se tornar ainda explícita ao perceber que James Mercer, o mentor do quinteto, está regularmente nos avisando que ele é um “homem simples” (em Bait and Switch) e que estas canções não são, bem, muito complicadas (vide Simple Song, o primeiro single).
Havia um tempo, por volta de 2002-2003, em que Mercer comentava que o Shins era apenas uma desculpa que encontrou para criar variações inesperadas dentro dos limites de canções pop de três minutos de duração. O plano ainda parece fazer sentido, já que quase todas as faixas de Port of Morrow são canções convencionais, ainda que com uma ou duas (ou três) arestas aparentes — um efeito fofo de sintetizador, um corinho com eco, a bateria repetitiva de um hit do Phoenix.
No caso de ter resistido à monotonia generalizada, pode ser que você encontre um indício de que as coisas podem não ser tão unidimensionais como parecem. “É tudo muito simples, e terrivelmente complexo”, alerta Mercer, lá quase no fim do álbum (em 40 Mark Strasse). O que provoca a pergunta inevitável: onde está a complexidade?
Talvez ela tenha se escondido nos versos de Mercer. É sabido que os versos de Mercer sempre representaram por volta de 80% daquilo que você considerava encantador nesta banda. Quando Natalie Portman, no draminha indie Hora de Voltar, comentou que o Shins mudaria nossas vidas, há boas chances de que estivesse falando sobre o teor deliciosamente literário de músicas como The Past and Pending e New Slang.
Ler as canções, neste caso, será uma pista importante para que você encontre a segunda dimensão do disco: Port of Morrow, então, vai se abrir graciosamente num álbum menos sereno e cômodo, com rasteirices que versam sobre envelhecimento, morte, dores de cotovelo e que, volta e meia, tentam materializar um sentimento que não se descreve com facilidade — um mal estar que acomete alguns adultos bem sucedidos, bons pais e maridos (Mercer, 41 anos, é casado e tem dois filhos), mas ainda assombrados por um tipo adolescente de inquietação.
A faixa título resume essa crise discreta. Depois de narrar uma cena que demonstra “a mecânica amarga da vida” (um animal devorando outro), ele descreve, com um falsete soul, o asco que a gente sente ao ver fotos de guerras. Como informar às crianças sobre todo esse horror? Os responsáveis por esses conflitos lamentáveis são “palhaços diabólicos”, o compositor conclui. Mas, em seguida, rompe o discurso inocente com uma constatação mais dura: “Logo notamos, caro ouvinte, que eu e você também estivemos lá”. Lá onde? Nas guerras e tragédias? Estaríamos, eu e você e Mercer, todos inseridos no Grande Esquema Medonho das Coisas?
Terrivelmente complexo, indeed.
Diante desse contraste entre letra & música, há o perigo de que você lamente a falta de valentia de Mercer, que se deu por satisfeito após gravar somente a metade de um conceito: um álbum que se lê com prazer e se ouve com certo tédio. Entender que este é o primeiro produto do selo de Mercer, o Aural Apothecary (via Columbia Records), esclarece o porquê de escolhas tão óbvias: antes de criar um disco novo do Shins, o músico/microempresário parece ter se sentido na obrigação de escrever mais um disco (típico, agradável, acessível) da banda. It’s Only Life, por exemplo, poderia ser uma balada edificante de Noel Gallagher. E September, o lado B de Red Rabbits.
Ao cruzar essas duas informações (a artística e a comercial), você vai perceber (como eu percebi) que Mercer sente uma falta tremenda do tempo em que o Shins era uma banda pequena e sem tantos compromissos, inventada dentro do cômodo pequeno de um apartamento. “A partir do momento em que você começa a jogar o jogo de tentar ser grande, você sempre perde”, ele comentou, numa entrevista. Mas, desde Wincing the Night Away, não é exatamente isso (ser maior; ao menos musicalmente mais ambicioso) que tenta fazer?
Port of Morrow, você haverá de concordar comigo, sofre de um complexo semelhante ao que contaminou pelo menos 50% daquele disco de 2007: o desejo por crescimento (e profissionalização madura) neutraliza a qualidade mais notável da banda. A saber, a simulação de um pop simultaneamente modesto (na atitude, na produção doméstica) e arrojado (na composição engenhosa dos versos, nos esquemas melódicos).
Ao fim do disco, você pode se pegar perguntando se ainda seria possível tratar o Shins como uma banda incomum. A pergunta, que se faz de simples, termina se mostrando não terrivelmente complexa — mas um tantinho enganadora, sim.
Quarto disco do Shins. 10 faixas, com produção de Greg Kurstin. Lançamento Aural Apothecary/Columbia Records. C+
[jennifer egan]
Ted sentia-se um anotador de apostas. Os filhos praticavam todos os esportes imagináveis, e alguns que não o eram (para Ted): futebol, hóquei, beisebol, lacrosse, basquete, futebol americano, esgrima, luta livre, tênis, skate (não era esporte!), golfe, pingue-pongue, Video Voodoo (com certeza não era esporte, e Ted se recusava a dar sua chancela), escalada, patinação, bungee jump (quem praticava isso era Miles, seu mais velho, em quem Ted sentia uma alegre tendência à autodestruição), gamão (não era esporte!), vôlei, uma versão mais leve do beisebol chamada wiffle ball, rúgbi, críquete (em que país eles moravam?), squash, polo aquático, balé (Alfred, claro) e, mais recentemente, tae kwon do. Às vezes, Ted tinha a impressão de que os filhos só praticavam esportes para garantir a presença do pai junto à maior variedade possível de superfícies de jogo. Obediente, ele comparecia, e gritava a plenos pulmões entre as pilhas de folhas e o cheiro acre de madeira queimada no outono, entre os pés de cravo iridescentes na primavera, e em meio aos verões chuvosos infestados de mosquitos do norte do estado de Nova York.
[Trecho de A visita cruel do tempo, de Jennifer Egan]
♪ | Put Your Back N 2 It | Perfume Genius
Então resolvi escrever um diário para narrar minhas experiências, meus sentimentos e minhas aventuras, minhas impressões sobre o mundo, a vida e tudo o mais. Escrevi três páginas em 10 minutos, depois fui dormir. No dia seguinte, quando dei por mim diante daquele alagamento de palavras, me senti um pouco enjoado. E estúpido.
Pensei: este diário só não vai me envergonhar se eu reescrevê-lo de forma que o texto fale a uma pessoa razoavelmente interessante, e não a uma página de papel (páginas de papel, sabemos, não sentem constrangimento nem pena nem raiva nem qualquer outra coisa). Só que aí passei a suspeitar que o projeto em si perderia sentido, já que diários são, naturalmente, objetos intransferíveis que não mostramos a ninguém.
De qualquer forma, segui escrevendo o meu caderninho de acordo com esse plano B — como se para uma outra pessoa — e, agora, até que estou satisfeito com o rumo que ele está tomando. Iniciei a minha obra no dia 1º de março e pretendo encerrá-la no dia 30. Essa é a meta.
Ainda penso, no entanto, em como esse diário ficaria se eu o escrevesse com uma prosa totalmente livre, derramando irresponsavelmente os meus pensamentos mais sinceros. Acho que seria um baita de um convite ao sadismo, e impublicável.
Vá saber.
Esses conflitos diarísticos e existenciais ocorreram — por coincidência — enquanto eu tentava me familiarizar com o segundo disco de Mike Hadreas, aka Perfume Genius. Como este é um blog sobre música & filmes, seria melhor se eu começasse a falar nele (no disco) em vez de ficar passeando em torno do meu umbigo.
As histórias (a minha e a dele), é claro, acabam se conectando. Porque, enquanto eu escrevo um diário, Mike grava discos que contém alguns dos elementos que encontramos nessas narrativas íntimas: ele é daqueles artistas que, a exemplo de um Casiotone For The Painfully Alone, de um Xiu Xiu ou até de um Eels, cria uma relação de cumplicidade muito estreita — quase irresponsável, às vezes constrangedora — com o ouvinte, mais ou menos como na primeira versão do meu diário in progress. As informações sobre o disco no site da Matador Records deixam bem claro (porque é esse o plano) que Mike vive quase tudo o que canta — e experimenta esses versos possivelmente aos prantos, sofrendo um pouco a cada dia.
Learning, o álbum anterior, era ainda mais (supostamente) direto. Nele, Mike – um rapaz de Seattle então com 20 e tantos anos – desabafava sobre crises familiares, o vício em drogas, a tentativa de suicídio e as experiências sexuais com os namorados. Put Your Back N 2 It é, diz a Matador Records, um disco mais “universal” e “cinematográfico”, menos “esparso” e “introspectivo”. Ainda que a faixa título, segundo o próprio compositor, tenha sido feita para mostrar ao namorado que sexo gay pode ser algo confortável e carinhoso. “Escrevi para Alan antes de nossa primeira vez”, ele conta, no site.
Encurtar a distância que geralmente se estabelece entre um cantor e seu público é um dos desejos mais explícitos de Mike — talvez por isso, no texto de divulgação, ele explique por que escreveu cada uma das faixas (nenhuma historinha supera a de Floating Spit: “E se A História sem Fim se passasse numa sauna, como ele se pareceria? Como as criaturas seriam?”). Ler o texto e ouvir as canções deixa a sensação de se conhecer muito — talvez demais — sobre a intimidade do compositor.
Nas músicas, Mike também se esforça para mostrar-se como veio ao mundo. Os arranjos são quase transparentes, e ele quase sempre é acompanhado por um piano e por camadas finas (em espessura) de efeitos new age, com uma ou outra referência mais arejada (como em Normal Song, uma quase balada country). As comparações com James Blake se tornam óbvias, ainda que me pareçam equivocadas porque, ao contrário do britânico, Mike tenta criar a impressão de um reality-show sonoro, captado com espontaneidade e certa displicência, como se a necessidade se confessar, de se desnudar para mostrar-nos que é de verdade, fosse o mais importante.
Aplicando esse método, sempre de forma muito calculada (e com esboços por vezes muito bonitos de melodias), Mike encena, em primeira pessoa, as desventuras de um homem cheio de sequelas, tentando encontrar a sonoridade mais adequada para transmitir as sensações de isolamento e depressão. Soa legítimo, ainda que ele ainda não consiga transformar toda essa catarse numa arte particular. Por enquanto, só ouço o desespero — transcrito num diário sem pudor ou arremate.
Segundo disco do Perfume Genius. 12 faixas, com produção de Mike Hadreas. Lançamento Matador Records. C+
[pablo de santis]
Aprendi que uma livraria deve fugir tanto da ordem quanto da desordem. Se a livraria for caótica demais e o freguês não puder se orientar sozinho, ele vai embora. Se a ordem for excessiva, o freguês sentirá que conhece a livraria por inteiro, e que nada mais haverá de surpreendê-lo. E vai embora também. Leve-se em conta que os sebos existem só para leitores que detestam fazer perguntas: querem conseguir tudo por si mesmos. Além disso, nunca sabem o que estão procurando, só sabem quando encontram.
[Trecho de Os antiquários, de Pablo de Santis]
cine | Projeto X
Sempre que topo em algum lançamento da onda “found footage”, lembro logo do meu preferido entre os filmes de Lars von Trier, As Cinco Obstruções. No documentário, o diretor desafiava um ídolo (o cineasta Jorgen Leth) a refazer um curta-metragem obedecendo a uma série de restrições, todas elas determinadas (é claro) pelo próprio Trier. Há quem interprete essa obsessão por definir limites bem específicos para a encenação — que se nota em outros filmes do diretor, como Os Idiotas e Dogville — como um esquema de marketing. É, não é? Mas também podemos tomar essa estratégia como uma reação a uma época em que o digital passou a permitir enorme liberdade a quem faz filmes.
O filão “found footage” (como se mostra hoje) parece todo ele construído em torno dessa provocação de Trier — já que esses filmes baratos (em digital, com aparência tosca de exercício universitário) se submetem, de antemão, a um punhado de “obstruções” formais. A começar pelo ponto de vista do narrador, já que as imagens são captadas ora pelos próprios personagens principais, ora por sistemas de vigilância, ou por coadjuvantes que calham de flagrar as cenas via telefone celular ou câmera portáteis. O combo final nada mais é que a edição — para efeitos “informativos” — de um material bruto que evidencia algum crime ou fenômeno sobrenatural.
A maior parte dos filmes desse subgênero segue rigorosamente esse modelo realista, testando os efeitos que toda essa crueza provoca no espectador (em Cloverfield e Poder sem Limites, por exemplo, a graça é narrar tramas de sci-fi como se fossem flagrantes de reality shows). Projeto X é, ao menos em tese, um filme da lavra “found footage”: após um aviso de que a Warner lamenta por mostrar aquelas gravações (ou algo parecido), o que vemos são as imagens captadas por um grupo de amigos numa “festa de arromba”. São incalculáveis as opções de edição, já que praticamente todos os convidados têm iPhones à mão — e tomaram, desconfio, algumas boas doses de energético.
O “found footage” é um jogo de tabuleiro. É uma lástima (e aqui estou sendo dramático) que Projeto X não queira jogá-lo. Não por falta de ambição — o produtor Todd Phillips (de Se Beber, Não Case) tenta atualizar as chulices de Clube dos Cafajestes para a geração do iPad e de Kanye West. O modelo visual é usado (aí sim) como um aplicativo para tornar o filme mais “urgente” a uma parcela teen do público — e abandonado quando o diretor não precisa dele (principalmente nas cenas em que a narrativa se transforma em clipes de hip-hop). O desfecho, fuzilando cruelmente as minhas pobres expectativas, anula toda a suposta anarquia da trama com um alívio romântico que caberia numa season finale de Gossip Girl.
Superficialmente, é uma comédia anormal (e, por isso, interessante). Mas Lars von Trier pediria para fazer de novo — porque, claramente, alguém não entendeu como a brincadeira funciona.
(Project X, EUA, 2012). De Nima Nourizadeh. Com Thomas Mann, Oliver Cooper e Jonathan Daniel Brown. 88min. C
cine | Poder sem limites
Numa boa entrevista ao The A.V. Club, Nicolas Winding Refn contou que gosta de filmar a partir de premissas muito acessíveis e simples – exemplo: um personagem correndo contra o relógio, fora da zona de conforto, metido numa situação em que nada funciona conforme o esperado. Quando se define uma estrutura dramática porosa (e genérica) o suficiente, ele explica, o importante passa a ser a forma como o cineasta a preenche. Talvez por isso a trama de Drive – sobre um motorista sem nome, misterioso durante e após a projeção – pareça um tanto oca quando tentamos contá-la a alguém.
Ainda mais tolo é o enredo de Poder sem Limites, um filme que deixa a suspeita de ter sido concebido com método semelhante ao de Refn. Na sinospe, o que encontramos é uma daquelas fitas de fantasia sazonais sobre os wonder years de super-heróis, com os conflitos que a linha de produção da Marvel leva de 15 a 20 minutos para compor. É um ponto de partida absolutamente comum – mas que, por ser trivial, libera o diretor estreante Josh Trank para fazer um filme de heróis que, descontada a trama, tenta ser diferente de todos os outros.
Como acontece em Drive, Trank usa a singeleza do argumento para criar um pacto ultraveloz com uma parcela do público, acostumada às artimanhas do gênero. Esses espectadores talvez aceitem rapidamente jogar o filme, apesar de tudo o que ele tem de anormal (e não é pouca coisa). Porque, ainda que seja mais um filme de super-herói, ele parece ter sido criado após o apocalipse do subgênero, no day after de uma overdose cansativa de blockbusters supercustosos e repetitivos. É como se Trank se empenhasse, a cada cena, para encontrar soluções audiovisuais capazes de reanimar os truques que o público dos multiplexes conhece intimamente.
O efeito de desconstrução/reconstrução mais interessante, aí, se dá com a manipulação das câmeras, que “narram” o filme – sempre de acordo com as convenções de outro subgênero manjado, as fitas de “found footage” (à la A Bruxa de Blair). Trank parece partir do ponto em que Cloverfield e [REC] pararam, contaminando imagens de “reality TV” com temas e efeitos surreais. A diferença (que muito me anima) é que, ao usar o CGI como se não houvesse amanhã, este filme vai muito mais longe, tratando o cinema como um brinquedo nas mãos de uma criança agitada. As cenas aéreas, delirantes, nos mostram como, na média, as fitas de fantasia são medrosas.
Algumas soluções visuais podem emocionar quem tem fé no sci-fi, acima de tudo quando os personagens usam superpoderes para fazer as câmeras flutuarem: é como se o próprio filme levitasse graciosamente, em planos fantasmagóricos, sem limites (eis um belo acerto, aliás, do título em português).
Todo o trecho mais, digamos, lúdico da trama, em que os amigos experimentam os poderes, me interessa mais que os setores inicial e final do filme: aos poucos, o longa se desloca de Cloverfield e X-Men ao território camp de um Carrie, A Estranha, com resultados também curiosos (as cenas da relação entre pai bronco e filho nerd e solitário são de uma crueza que não se vê nem em adaptações de Chris Nolan), mas que parecem-me empurrar o filme aos solavancos a um desfecho trágico.
Por mim, tudo bem. É assim que terminam as fitas de super-heróis. E Poder sem Limites pertence a essa casta, ainda que pouco se identifique verdadeiramente com ela. O que temos é um filmezinho cheio de ansiedade e fúria (bem adolescente, portanto), à imagem do anti-herói autodestrutivo que Trank cria para si. Parecido com muitos outros, mas singular.
(Chronicle, Inglaterra/EUA, 2012) De Josh Trank. Com Dane DeHaan, Alex Russell e Michael B. Jordan. 84min. B+
♪ | Visions | Grimes
Talvez não seja necessário (nem recomendável) ouvir este disco por inteiro para entender por que a canadense Claire Boucher é a revelação do ano. As resenhas sobre Visions nos informam que ela é um dos símbolos proeminentes de uma cena em ascensão — apelidada simplesmente de “weird” —, que atualiza a “sensibilidade punk” ao se apropriar de um punhado de referências marginais do pop, chafundrando em dejetos de k-pop, synthpop, shoegazing, ambient, minimal, lo-fi, new age, funk de boate vagabunda e, se não estou enganado, um tiquinho de carimbó.
Simultaneamente a essas (supostas) peraltices sonoras, Claire também desenvolve, segundo o site da gravadora Rough Trade, “as artes do 2D (?), performance, dança, artes plásticas, vídeo e som”, num set que incorpora influências “tão amplas como Enya, TLC e Aphex Twin”. Com uma carta de apresentações dessas, imagino que seria simples conseguir, no mínimo, uma bolsa de estudos na BRIT School for Performing Arts & Technology.
É um portifólio notável — que inclui, além de Visions, mais três discos gravados rapidamente, desde 2010. Ao contrário dos álbuns anteriores, que foram tratados como rascunhos para laboratório de Creative Writing, o novo projeto mostra ambições de profissionalização. Na 4AD Records, lar do Gang Gang Dance e do Ariel Pink, Claire se comporta como uma repórter iniciante que decidiu trocar as liberdades da pequena imprensa interiorana pelo prestígio de um “jornalão”. Grandes responsabilidades, you see?
Visions aparece, de fato, como um álbum mais “apresentável”, que tenta organizar num combo audível as dezenas (centenas?) de intenções de Claire. Pode ser interpretado como um rito de passagem. Pena que, para quem evita o burburinho das resenhas, a experiência pode ser decepcionante: desconectado de um contexto que o engrandece (e do hype, velho hype), deve deixar a impressão de que foi programado a partir de uma seleção de palavras populares em blogs e sites de indie rock — e não de visões particulares sobre o pop, o indie, o “bedroom pop” ou o que quer que seja.
Esse circuito ruidoso de informação — que atua principalmente, diga-se, fora e ao redor do disco — nos atrapalha quando tentamos identificar as singularidades de Claire. Depois de muitas audições, não consegui encontrar muitas: a sonoridade que ela pratica não é tão frenética nem criativa quanto se vende por aí, e me parece apenas uma variação precária (e pobre de propósito, aparentemente) do pop cut ‘n’ paste que M.I.A. e Diplo fazem com mais gana e alegria. Claire cria uma redoma estetizante que me parece frágil demais, e que se rompe tão logo ela tenta encontrar densidade numa arte em 2D (isto é: a partir da faixa sete, quando o disco vai descendo a ladeira da contemporaneidade).
As ideias de Claire fervilham tão intensamente que talvez deveríamos amá-la (e admirar o disco) apenas por isso: pela teoria, e não pela prática. Mas Visions periga ser esmagado pela ânsia de disparar estímulos de curta duração, frívolos e sem substância — por isso mesmo, poucos lançamentos recentes representam com tanta fidelidade uma época em que se precisa justificar com estardalhaço discos que serão rapidamente substituídos por outros, tão “importantes” e “urgentes” quanto.
Quarto disco da Grimes. 13 faixas, com produção de Grimes. Lançamento 4AD Records/Arbutus. C
cine | Shame
Podemos acusar Steve McQueen de muitos pecados (o mais óbvio: vaidade, já que o homem adora mostrar que sabe filmar com elegância), mas não de se ausentar diante do personagem central de Shame, um homem viciado em sexo. O ponto de vista do cineasta é tão aparente que o filme parece transcorrer em duas linhas simultâneas: numa delas, conhecemos um personagem transtornado, em confronto com os próprios desejos; e, em outra, encontramos a faixa de comentários de McQueen sobre esse tipo transtornado, indicada por uma trilha sonora sempre pesarosa e por uma câmera fria, deadly serious, capaz de transformar cada encontro sexual em sessão de tortura.
O cineasta investe esforço para se colocar sempre ao lado do protagonista, usando uma série de recursos estilísticos (às vezes, com a sutileza de um Gaspar Noé) para tornar palpável, cinematográfica, uma tragédia íntima. A atuação de Michael Fassbender define com tanta precisão a agonia lacônica desse homem-zumbi (uma espécie de Psicopata Americano sem ironias, para a sensibilidade dos fãs de Drive) que resta a McQueen interpretá-lo, via instalações chiques de imagem&som. Provocam incômodo (em mim, é claro) as cenas em que o diretor dilata gratuitamente a ação ou vai pescar referências “cool” de De Olhos Bem Fechados (de Kubrick) e de Irreversível (de Noé). Um cineasta ainda in progress.
O arremate do roteiro também me parece acidentado. As primeiras cenas, que mostram o cotidiano doentio do personagem, são fortes porque prendem Fassbender numa estrutura circular, sem saída tanto pra ele quanto pro espectador. O filme vai titubeando e se despregando do eixo, no entanto, quando se vê obrigado a criar possibilidades de redenção ao anti-herói, seja na relação com a irmã invasora (ainda assim, até o diretor deixa tudo de lado pra ver Carey Mulligan cantando New York, New York), seja num clímax que providencia a fórceps uma inevitável descida ao inferno (lembranças tristes de Réquiem por um Sonho maltrataram minhas retinas). O diretor tenta se impor a todo custo, mas o personagem (ufa) o nocauteia — é mais complexo e singular que o filme em si.
(Inglaterra, 2011). De Steve McQueen. Com Michael Fassbender, Carey Mulligan e James Badge Dale. 101min. B
top 100 | Os filmes da minha vida (18)
Amigos, esta é uma semana especialmente movimentada, com incríveis novidades na vida deste blogueiro. Espero, por isso, que vocês relevem o chuvisco de posts, que não estão caindo neste website com a regularidade prometida.
Lamento. Mas, para desempenar a barra de rolagem, cá está um novo episódio de uma saga com filmes que, por motivos quase insondáveis, foram importantes para a minha vida.
No capítulo de hoje, dois longas não muito antigos.
066 | Amantes Constantes | Les Amants Réguliers | Philippe Garrel | 2005
Um amigo meu viu o filme acompanhado da ex-namorada, que queria reatar a relação. Ela não aguentou e rapidamente saiu da sala de projeção, mas ele preferiu continuar com o filme e o namoro acabou definitivamente ali. Possivelmente essa também teria sido minha opção diante de imagens que produzem efeito hipnótico em quem se deixa embriagar por elas. Não sei se esse amigo gostou do filme (talvez não), mas é o de menos: ainda que trate de episódios históricos importantes por um viés que vira pelo avesso um punhado de discursos oficiais – é um réquiem endereçado à geração de 68 -, o que me assombrou antes de tudo foi o choque provocado por essas cenas em P&B puído, rugoso, acho até que bruto, expressivas o suficiente para enxotar do cinema certos espectadores e, em outros, inspirar fascínio eterno.
065 | Magnólia | Paul Thomas Anderson | 1999
Nem foi amor fulminante: na primeira sessão, lembro que as firulas do filme mais me incomodaram que entusiasmaram. O que ficou dele – e, mais tarde, acabou me levando de volta a ele – foram as canções de Aimee Mann. Cada vez que eu as ouvia, uma imagem do longa voltava à minha memória, de forma que as imagens de Paul Thomas Anderson rodaram centenas, milhares de vezes na minha cabeça, atuando como o refrão de uma música pop muito eficiente. Depois me rendi e revi o filme, que hoje me parece belo por causa da intensidade até inconsequente (vide Presságio, para mais informações sobre o tema) como se lança às próprias obsessões. Como numa boa faixa de Mann, as fragilidades de melodia/arranjos são compensadas pela emotividade de uma voz vigorosa, a que não falta verdade.