Dia: abril 20, 2009

Bitte orca | Dirty Projectors

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dirtyprojectors1Eu deveria me envergonhar da forma como ouço música. Não são raras as ocasiões em que me vejo num rodízio de carnes, devorando canções como fias fatias de alcatra e engolindo todas as guarnições de riffs na mesma garfada. Quando meu estômago relaxa do banquete, está exausto de tanto esforço. Enjoa quando pensa no jantar, solta ruídos grotescos. É quando abandono a mesa, tomo ar, estico as pernas e, se sobrar fôlego, escrevo um texto enfastiado para este blog.

Felizmente, nem sempre acontece assim. Há os discos que permitem uma digestão mais demorada e que, apesar de trair minha natureza (sou um sujeito desagradável de tão ansioso), rendem experiência semelhante a uma longa noite no restaurante mais caro da cidade. Pratos minúsculos servidos em passos lentos, um de cada vez e numa determinada ordem. Ingredientes exóticos degustados com a paciência e o cuidado de quem analisa partículas coloridas no microscópio. Os olhos da cara. Nouvelle cuisine.

Na minha barriga, o álbum novo do Dirty Projectors roda mais como a criação de um chef pedante (e genial) que como a melhor feijoada de fast-food. Não sei por que motivo. Talvez não tenha a ver com o disco, mas com a forma receosa como acabei me aproximando dele — mas admito que, nesse caso, conhecer o procedimento é metade do caminho para entender meu entusiasmo com este estranho e já familiar Bitte orca.

(E, na minha mania de copiar e colar, acabei roubando a impressão de David Byrne sobre a banda de Nova York: “É completamente estranho e, ao mesmo tempo, estranhamente familiar”, ele disse. Ok, concordo, e que ninguém leve este caso ao tribunal de pequenas causas)

Quanto tempo precisamos para lapidar um disco bruto? No caso de Merriweather Post Pavillion, do Animal Collective, o processo levou duas audições — eu já estava adaptado à dieta rigorosa do trio. O do Caetano ficou rodando na minha cabeça feito vinil riscado até encontrar a sintonia correta— três dias. Com o Dirty Projectors, nos enfrentamos por uma semana inteira. É que, no meu caso, este disco funciona como um cartão de visitas, um “prato de entrada”, para uma banda que eu conhecia apenas de raspão (ouvi duas ou três vezes Rise above, o álbum anterior, releitura de canções do Black Flag, e só).

Lembrei imediatamente: meu estômago revirou quando comi ostras frescas pela primeira vez. Ainda revira com pequis e alguns cortes de carne de porco.

Uma rápida pesquisa sobre a trajetória de Dave Longstreth, cabeça do grupo, explica a razão da minha resistência inicial. Desde o início da década, o sujeito se especializou em testar combinações improváveis de temperos para o indie rock, sempre a uma distância segura do mainstream. Inquieto, preparou álbuns conceituais ( The getty adress cobre um dia na vida do músico Don Henley), EPs experimentais, homenagens esdrúxulas (reimaginar um álbum do Black Flag? Por quê? Para quem?) e assustou o underground com uma inesgotável fome criativa que só encontra paralelo em Frank Zappa e Captain Beefheart.

Bitte orca é o primeiro álbum do Dirty Projectors pela pequena grande Domino Records, casa do Animal Collective e do Franz Ferdinand. Pode ser tratado como um bufê ainda extravagante, mas com opções para diabéticos, celíacos e crianças obesas que curtem bife com batata frita.

Isto é: se eu conhecesse o catálogo da banda, provavelmente trataria este álbum como um trabalho acessível, quase pop. Ainda assim, não é doce. Os acordes se desprendem da gaiola na primeira canção e nunca mais encontram o caminho de volta: dão rasantes de psicodelia zappiana (Useful chamber, que lembra um pouco Of Montreal, e Remade horizon), folk (The bride), pop barroco (Fluorescent half-dome, emocionante e teatral como uma boa safra de Rufus Wainwright) e R&B (Stillness is the move). Formam um círculo aberto, um voo lindamente cego.

Por que preencher o miolo do álbum com vozes femininas? Por que os versos abstratos colados a referências simplezinhas de cultura pop? Por que soa tão parecido e tão diferente de um álbum de world music (e, assim, parece companhia perfeita para Vampire Weekend)? Contradições.

Se David Byrne adora, há uma razão para isso. O disco, composto como elevador panorâmico para os delírios e distúrbios de Longstreth, soa como o sonho de um fã do Talking Heads.

O compositor e guru agarra a oportunidade de conquistar um público mais amplo. Abrir uma rede. Consolidar a marca. Vender souvenirs na beira da estrada. Os antigos fãs, aposto, reclamarão dos pratos econômicos e das cadeiras de plástico. Eu não me pediria o dinheiro de volta. Expansivo em apenas nove faixas, Bitte orca promete recompensas para os perseverantes. É esse tipo de álbum. Cada canção se desdobra antes que consigamos classificá-la. Terminamos a noite com a sensação de termos refinado nosso paladar.

Se é de aventura que vive o indie rock, então taí um líder nato. O chef do ano. De cozinha contemporânea. Ou algo fino e ousado do gênero.

Oitavo álbum do Dirty Projectors. Nove faixas, com produção de Dave Longstreth. Lançamento Domino Records. 8.5/10

2 ou 3 parágrafos | Divã e Tony Manero

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diva

A sessão-dupla mais insólita do ano começou com uma sala lotada de senhoras aparentemente saídas de uma reunião da Herbalife (Divã, Globo Filmes via teatro para moças, 4/10) e terminou em clima de naufrágio, com velhinhos abismados e desamparados abandonando o barco antes do final do passeio (Tony Manero, Chile barra-pesada via Quinzena dos Realizadores, 4.5/10). Entre eles, mais semelhanças do que eu gostaria de imaginar.

Se existe um muro invisível entre produções “comerciais” e “de arte”, Divã e Tony Manero nos ensinam que essa divisão não é construída apenas pela imprensa ou por departamentos de marketing, mas também pelos filmes que cumprem rigorosamente (e preguiçosamente) requisitos que satisfazem supostas exigências de “fatias de mercado”.  Daí que Divã é a comédia agridoce adaptado ao gosto do público de telenovelas, com diálogos inflados por trocadilhos engraçadinhos, uma atriz de carisma inabalável e trilha sonora de Guto Graça Mello (se 90% das criações da Globo Filmes morrerão no inferno, a culpa será principalmente dele – Ana Carolina berrando nos créditos finais equivale a matar/roubar). Já Tony Manero é o diagnóstico da nossa miséria contemporânea, desfocada, suja e invariavelmente feia.

O esquematismo reina lá e cá – e asfixia protagonistas que, nos dois casos, são eixos das narrativas. O homem-sombra de Tony Manero, condenado a agonizar em rede nacional enquanto reproduz passos ensaiados de Hollywood, não parece menos pré-fabricado que a quarentona desencantada com o casamento, que leva a vida como num livro imaginário de autoajuda para mulheres decididas. Saí das duas sessões com a sensação de ter acompanhado as etapas iniciais de um workshop de roteiro – Como Desenhar o Primeiro Esboço de um Personagem que Provavelmente Soará Instigante na Metade do Curso, aula 1.