Álbum
♪ | Port of Morrow | The Shins
Quando você ouvir pela primeira vez este álbum do Shins, possivelmente vai concluir que Port of Morrow é todo ele uma superfície polida e tranquila. Vai ficar, imagino, a impressão de que você já desvendou — antes, há muito tempo, numa outra época — todos os mistérios deste disco, mesmo que ainda não tenha se aproximado da faixa 6.
A sensação de conforto deve se tornar ainda explícita ao perceber que James Mercer, o mentor do quinteto, está regularmente nos avisando que ele é um “homem simples” (em Bait and Switch) e que estas canções não são, bem, muito complicadas (vide Simple Song, o primeiro single).
Havia um tempo, por volta de 2002-2003, em que Mercer comentava que o Shins era apenas uma desculpa que encontrou para criar variações inesperadas dentro dos limites de canções pop de três minutos de duração. O plano ainda parece fazer sentido, já que quase todas as faixas de Port of Morrow são canções convencionais, ainda que com uma ou duas (ou três) arestas aparentes — um efeito fofo de sintetizador, um corinho com eco, a bateria repetitiva de um hit do Phoenix.
No caso de ter resistido à monotonia generalizada, pode ser que você encontre um indício de que as coisas podem não ser tão unidimensionais como parecem. “É tudo muito simples, e terrivelmente complexo”, alerta Mercer, lá quase no fim do álbum (em 40 Mark Strasse). O que provoca a pergunta inevitável: onde está a complexidade?
Talvez ela tenha se escondido nos versos de Mercer. É sabido que os versos de Mercer sempre representaram por volta de 80% daquilo que você considerava encantador nesta banda. Quando Natalie Portman, no draminha indie Hora de Voltar, comentou que o Shins mudaria nossas vidas, há boas chances de que estivesse falando sobre o teor deliciosamente literário de músicas como The Past and Pending e New Slang.
Ler as canções, neste caso, será uma pista importante para que você encontre a segunda dimensão do disco: Port of Morrow, então, vai se abrir graciosamente num álbum menos sereno e cômodo, com rasteirices que versam sobre envelhecimento, morte, dores de cotovelo e que, volta e meia, tentam materializar um sentimento que não se descreve com facilidade — um mal estar que acomete alguns adultos bem sucedidos, bons pais e maridos (Mercer, 41 anos, é casado e tem dois filhos), mas ainda assombrados por um tipo adolescente de inquietação.
A faixa título resume essa crise discreta. Depois de narrar uma cena que demonstra “a mecânica amarga da vida” (um animal devorando outro), ele descreve, com um falsete soul, o asco que a gente sente ao ver fotos de guerras. Como informar às crianças sobre todo esse horror? Os responsáveis por esses conflitos lamentáveis são “palhaços diabólicos”, o compositor conclui. Mas, em seguida, rompe o discurso inocente com uma constatação mais dura: “Logo notamos, caro ouvinte, que eu e você também estivemos lá”. Lá onde? Nas guerras e tragédias? Estaríamos, eu e você e Mercer, todos inseridos no Grande Esquema Medonho das Coisas?
Terrivelmente complexo, indeed.
Diante desse contraste entre letra & música, há o perigo de que você lamente a falta de valentia de Mercer, que se deu por satisfeito após gravar somente a metade de um conceito: um álbum que se lê com prazer e se ouve com certo tédio. Entender que este é o primeiro produto do selo de Mercer, o Aural Apothecary (via Columbia Records), esclarece o porquê de escolhas tão óbvias: antes de criar um disco novo do Shins, o músico/microempresário parece ter se sentido na obrigação de escrever mais um disco (típico, agradável, acessível) da banda. It’s Only Life, por exemplo, poderia ser uma balada edificante de Noel Gallagher. E September, o lado B de Red Rabbits.
Ao cruzar essas duas informações (a artística e a comercial), você vai perceber (como eu percebi) que Mercer sente uma falta tremenda do tempo em que o Shins era uma banda pequena e sem tantos compromissos, inventada dentro do cômodo pequeno de um apartamento. “A partir do momento em que você começa a jogar o jogo de tentar ser grande, você sempre perde”, ele comentou, numa entrevista. Mas, desde Wincing the Night Away, não é exatamente isso (ser maior; ao menos musicalmente mais ambicioso) que tenta fazer?
Port of Morrow, você haverá de concordar comigo, sofre de um complexo semelhante ao que contaminou pelo menos 50% daquele disco de 2007: o desejo por crescimento (e profissionalização madura) neutraliza a qualidade mais notável da banda. A saber, a simulação de um pop simultaneamente modesto (na atitude, na produção doméstica) e arrojado (na composição engenhosa dos versos, nos esquemas melódicos).
Ao fim do disco, você pode se pegar perguntando se ainda seria possível tratar o Shins como uma banda incomum. A pergunta, que se faz de simples, termina se mostrando não terrivelmente complexa — mas um tantinho enganadora, sim.
Quarto disco do Shins. 10 faixas, com produção de Greg Kurstin. Lançamento Aural Apothecary/Columbia Records. C+
♪ | Put Your Back N 2 It | Perfume Genius
Então resolvi escrever um diário para narrar minhas experiências, meus sentimentos e minhas aventuras, minhas impressões sobre o mundo, a vida e tudo o mais. Escrevi três páginas em 10 minutos, depois fui dormir. No dia seguinte, quando dei por mim diante daquele alagamento de palavras, me senti um pouco enjoado. E estúpido.
Pensei: este diário só não vai me envergonhar se eu reescrevê-lo de forma que o texto fale a uma pessoa razoavelmente interessante, e não a uma página de papel (páginas de papel, sabemos, não sentem constrangimento nem pena nem raiva nem qualquer outra coisa). Só que aí passei a suspeitar que o projeto em si perderia sentido, já que diários são, naturalmente, objetos intransferíveis que não mostramos a ninguém.
De qualquer forma, segui escrevendo o meu caderninho de acordo com esse plano B — como se para uma outra pessoa — e, agora, até que estou satisfeito com o rumo que ele está tomando. Iniciei a minha obra no dia 1º de março e pretendo encerrá-la no dia 30. Essa é a meta.
Ainda penso, no entanto, em como esse diário ficaria se eu o escrevesse com uma prosa totalmente livre, derramando irresponsavelmente os meus pensamentos mais sinceros. Acho que seria um baita de um convite ao sadismo, e impublicável.
Vá saber.
Esses conflitos diarísticos e existenciais ocorreram — por coincidência — enquanto eu tentava me familiarizar com o segundo disco de Mike Hadreas, aka Perfume Genius. Como este é um blog sobre música & filmes, seria melhor se eu começasse a falar nele (no disco) em vez de ficar passeando em torno do meu umbigo.
As histórias (a minha e a dele), é claro, acabam se conectando. Porque, enquanto eu escrevo um diário, Mike grava discos que contém alguns dos elementos que encontramos nessas narrativas íntimas: ele é daqueles artistas que, a exemplo de um Casiotone For The Painfully Alone, de um Xiu Xiu ou até de um Eels, cria uma relação de cumplicidade muito estreita — quase irresponsável, às vezes constrangedora — com o ouvinte, mais ou menos como na primeira versão do meu diário in progress. As informações sobre o disco no site da Matador Records deixam bem claro (porque é esse o plano) que Mike vive quase tudo o que canta — e experimenta esses versos possivelmente aos prantos, sofrendo um pouco a cada dia.
Learning, o álbum anterior, era ainda mais (supostamente) direto. Nele, Mike – um rapaz de Seattle então com 20 e tantos anos – desabafava sobre crises familiares, o vício em drogas, a tentativa de suicídio e as experiências sexuais com os namorados. Put Your Back N 2 It é, diz a Matador Records, um disco mais “universal” e “cinematográfico”, menos “esparso” e “introspectivo”. Ainda que a faixa título, segundo o próprio compositor, tenha sido feita para mostrar ao namorado que sexo gay pode ser algo confortável e carinhoso. “Escrevi para Alan antes de nossa primeira vez”, ele conta, no site.
Encurtar a distância que geralmente se estabelece entre um cantor e seu público é um dos desejos mais explícitos de Mike — talvez por isso, no texto de divulgação, ele explique por que escreveu cada uma das faixas (nenhuma historinha supera a de Floating Spit: “E se A História sem Fim se passasse numa sauna, como ele se pareceria? Como as criaturas seriam?”). Ler o texto e ouvir as canções deixa a sensação de se conhecer muito — talvez demais — sobre a intimidade do compositor.
Nas músicas, Mike também se esforça para mostrar-se como veio ao mundo. Os arranjos são quase transparentes, e ele quase sempre é acompanhado por um piano e por camadas finas (em espessura) de efeitos new age, com uma ou outra referência mais arejada (como em Normal Song, uma quase balada country). As comparações com James Blake se tornam óbvias, ainda que me pareçam equivocadas porque, ao contrário do britânico, Mike tenta criar a impressão de um reality-show sonoro, captado com espontaneidade e certa displicência, como se a necessidade se confessar, de se desnudar para mostrar-nos que é de verdade, fosse o mais importante.
Aplicando esse método, sempre de forma muito calculada (e com esboços por vezes muito bonitos de melodias), Mike encena, em primeira pessoa, as desventuras de um homem cheio de sequelas, tentando encontrar a sonoridade mais adequada para transmitir as sensações de isolamento e depressão. Soa legítimo, ainda que ele ainda não consiga transformar toda essa catarse numa arte particular. Por enquanto, só ouço o desespero — transcrito num diário sem pudor ou arremate.
Segundo disco do Perfume Genius. 12 faixas, com produção de Mike Hadreas. Lançamento Matador Records. C+
♪ | Visions | Grimes
Talvez não seja necessário (nem recomendável) ouvir este disco por inteiro para entender por que a canadense Claire Boucher é a revelação do ano. As resenhas sobre Visions nos informam que ela é um dos símbolos proeminentes de uma cena em ascensão — apelidada simplesmente de “weird” —, que atualiza a “sensibilidade punk” ao se apropriar de um punhado de referências marginais do pop, chafundrando em dejetos de k-pop, synthpop, shoegazing, ambient, minimal, lo-fi, new age, funk de boate vagabunda e, se não estou enganado, um tiquinho de carimbó.
Simultaneamente a essas (supostas) peraltices sonoras, Claire também desenvolve, segundo o site da gravadora Rough Trade, “as artes do 2D (?), performance, dança, artes plásticas, vídeo e som”, num set que incorpora influências “tão amplas como Enya, TLC e Aphex Twin”. Com uma carta de apresentações dessas, imagino que seria simples conseguir, no mínimo, uma bolsa de estudos na BRIT School for Performing Arts & Technology.
É um portifólio notável — que inclui, além de Visions, mais três discos gravados rapidamente, desde 2010. Ao contrário dos álbuns anteriores, que foram tratados como rascunhos para laboratório de Creative Writing, o novo projeto mostra ambições de profissionalização. Na 4AD Records, lar do Gang Gang Dance e do Ariel Pink, Claire se comporta como uma repórter iniciante que decidiu trocar as liberdades da pequena imprensa interiorana pelo prestígio de um “jornalão”. Grandes responsabilidades, you see?
Visions aparece, de fato, como um álbum mais “apresentável”, que tenta organizar num combo audível as dezenas (centenas?) de intenções de Claire. Pode ser interpretado como um rito de passagem. Pena que, para quem evita o burburinho das resenhas, a experiência pode ser decepcionante: desconectado de um contexto que o engrandece (e do hype, velho hype), deve deixar a impressão de que foi programado a partir de uma seleção de palavras populares em blogs e sites de indie rock — e não de visões particulares sobre o pop, o indie, o “bedroom pop” ou o que quer que seja.
Esse circuito ruidoso de informação — que atua principalmente, diga-se, fora e ao redor do disco — nos atrapalha quando tentamos identificar as singularidades de Claire. Depois de muitas audições, não consegui encontrar muitas: a sonoridade que ela pratica não é tão frenética nem criativa quanto se vende por aí, e me parece apenas uma variação precária (e pobre de propósito, aparentemente) do pop cut ‘n’ paste que M.I.A. e Diplo fazem com mais gana e alegria. Claire cria uma redoma estetizante que me parece frágil demais, e que se rompe tão logo ela tenta encontrar densidade numa arte em 2D (isto é: a partir da faixa sete, quando o disco vai descendo a ladeira da contemporaneidade).
As ideias de Claire fervilham tão intensamente que talvez deveríamos amá-la (e admirar o disco) apenas por isso: pela teoria, e não pela prática. Mas Visions periga ser esmagado pela ânsia de disparar estímulos de curta duração, frívolos e sem substância — por isso mesmo, poucos lançamentos recentes representam com tanta fidelidade uma época em que se precisa justificar com estardalhaço discos que serão rapidamente substituídos por outros, tão “importantes” e “urgentes” quanto.
Quarto disco da Grimes. 13 faixas, com produção de Grimes. Lançamento 4AD Records/Arbutus. C
mini | 1 post, 16 discos
Deixe-me livrar destes disquinhos antes que eles desapareçam completamente do meu HD, tudo bem? (Regra do jogo: textos injustamente curtos, porque a vida é assim mesmo).
Go Fly a Kite | Ben Kweller | Noise Co | C+ | Precocemente nostálgico (e talvez por isso um tantinho adorável e triste), como se Kweller tivesse completado 60 anos e não 30. Pode ser “lido” como um disco bem pé-no-chão sobre o fim da adolescência, ainda que o compositor não tenha amadurecido e siga irrelevante.
Hymns | Cardinal | Fire Records | C+ | Após quase 20 anos de hibernação, o duo americano retorna com um disco tão out of time quanto o début de 1994. É verdade que o Clientele fez isso tudo com mais finesse, mas não é desprezível o jeito como eles vão “estragando” canções pop com detalhes psicodélicos (um vocal distorcido, um efeito de teclado etc). Teias de aranha everywhere, mas tem seu encanto.
I Am Gemini | Cursive | Saddle Creek | C | O conceito é juvenil demais para ser levado a sério (vai mais ou menos assim: o bem e o mal num confronto dentro de uma casa), mas dá à banda certo ânimo para seguir compondo. Ainda assim, não me convidem pra jogar esse RPG-indie de novo.
Django Django | Django Django | Because Music | B | Um dos ídolos do quarteto é o Beta Band, e que bom: um disco que dá a sensação de se transformar a cada faixa, em constante movimento de autodestruição/recriação, e, apesar de gordo (até nisso eles imitam o BB), que entretém mesmo quando as mutações soam como esboços que mereciam ser deletados antes de virar MP3.
Have Some Faith in Magic | Errors | Rock Action Records | B | Aquilo que alguns chamariam de pós-rock, só que com mais vivacidade que letargia. Disco a disco, a banda vai encontrando um som pra chamar de seu, e isso é bonito de notar.
The Year of No Returning | Ezra Furman | Independente | C+ | Furman ainda não sabe exatamente o que quer, e se sai melhor como um discípulo de Bruce Springsteen (American Soil é ótima) que de Jeff Tweedy. A acompanhar.
Interstellar | Frankie Rose | Slumberland | B | Musa indie nova-iorquina floating in space, num CD que oscila do synthpop ao shoegazing, e por isso muitíssimo gostável e up-to-date (vide as reações muito positivas na imprensa americana). É mesmo um doce, mas eu prefiro as faixas mais dançantes às mais morosas – e é um tanto breve, não?
MU.ZZ.LE | Gonjasufi | Warp | B | Outro álbum curto, muito curto, que deixa uma série de promessas em stand-by. A faceta hip-hop do compositor não parece ainda bem resolvida, e o que ouço são rascunhos, só que não consigo ignorar um disco que atira tantas boas ideias ao vento.
A Sleep & a Forgetting | Islands | ANTI- | C+ | Ainda me parece pouco convincente (e não muito natural) essa transformação do Islands numa banda menos delirante e mais mundana, e o disco acaba tomando o caminho fácil de optar por um som genérico, superficial, cheio de chavões de country rock. Enfim: mais para Bright Eyes e Girls que para um Lambchop.
Born to Die | Lana Del Rey | Interscope | D+ | Nem princesinha deprê, nem monstrengo pré-fabricado: apenas uma (mais uma) estrela pop desnorteada dentro de um EP grandalhão, feito às pressas, toscamente produzido, e que esvazia terrivelmente após a quinta faixa. Tem Video Games, daí o +.
Kisses on the Bottom | Paul McCartney | Hear Music | C+ | É um disco sincero de crooner, perfeito para animar bailes de terceira idade e (se você tiver ânimo) com algumas pistas que explicam certas referências embrionárias dos Beatles. Mas Paul não precisava disso.
Habits and Contradictions | Schoolboy Q | Top Dawg | B+ | Um tema recorrente (sexo, sexo e sexo), mais de uma dezena de boas ideias sonoras (a faixa com sampler de Portishead, apesar de óbvia, empurra o disco surpreendentemente para o dark side), ainda que repetitivo e dispersivo demais. Um bom editor fez falta. Ouvi muitas vezes e aviso: ele vai melhorando.
Animal Joy | Shearwater | Sub Pop | C+ | Um disco de rock sisudo e monocromático (ainda se faz isso?) como os primeiros do Pearl Jam e do Alice in Chains, que não soaria estranho se tivesse sido lançado no início dos anos 90. Até a capa me deixa com saudades das camisas de flanela, mas péra lá: o álbum acabou cinco vezes e ainda não descobri o que há de particular no Shearwater.
Young and Old | Tennis | Fat Possum | D+ | Com uma palheta de referências parecida, o Hospitality fez um álbum muito agradável este ano. O Tennis parece fadado a ser uma espécie de She & Him de segunda divisão – lamentável e desnecessário, portanto.
This Something Rain | Tindersticks | Lucky Dog | B | Mais um disco muito digno e elegante do Tindersticks (como todos os outros, aliás), ainda que eu acredite que ele vá perdendo a força assim que a primeira faixa (de nove minutos, e excelente) termina.
Sounds From Nowheresville | The Ting Tings | Columbia | D+ | Uma banda pop muito limitada tentando, hum, break on through to the other side: raramente dá certo. Se a ideia era nos deixar com saudades de That’s Not My Name, conseguiram. Parabéns, Columbia, cês tinham razão.
♪ | Break it Yourself | Andrew Bird
Amplidão, esse susbstantivo tão feioso e maltratado, há de cair bem em qualquer resenha sobre Break it Yourself. O novo de Andrew Bird soa como a trilha para um road movie pastoral, malickiano, de três horas de duração. Com direito ao corte final, o músico criou um álbum de folk-pop em VistaVision, cujas faixas (e são 14!) se movimentam sem sufoco numa paisagem vasta, cheia de terrenos abandonados e roads to nowhere. Não deixa de ser um “statement” valente — estou aqui sentado em minha poltrona, com uma latinha de guaraná, esperando os comentários do primeiro esperto que vai acusar o disco de ser irregular, inflado, desequilibrado, tedioso etc.
Fazer o quê? Talvez ele seja tudo isso (irregular, inflado etc), só que mais complicado é perceber que Bird buscou conscientemente um formato mais arejado e contemplativo para apresentar faixas que poderiam ter sido compactadas num disco de 35 minutos (este tem 60). Tem uma diferença importante aí.
Pode ser que as músicas não sejam tão memoráveis quanto as que apareceram em álbuns como The Mysterious Production of Eggs ou do ótimo The Swimming Hour (que marcou a grande transição da carreira de Bird, antes mais afinado ao jazz e aos modelos de big bands norte-americanas), mas aqui é tudo questão de dimensão, de compor as cenas e esticar o escopo: uma faixa mais convencional e familiar como Near Death Death Experience ou Fatal Shore, por exemplo, ganha uma força tremenda quando despenca dentro de uma narrativa tão plácida, com momentos de quase letargia — é como se o compositor atirasse uma pedrinha num lago completamente silencioso, só pra ver o que acontece.
E apesar de todos aqueles momentos graciosos que conhecemos muito bem (como no refrão de Near Death, em que Bird comenta que vai dançar “como um sobrevivente de câncer”), o disco caminha imperturbável numa toada lenta, quase austera, cheia de momentos de beleza serena (o trecho instrumental de Hole in the Ocean Floor, que vai seguindo vagarosamente sem vontade de acabar, é declaração de independência), sem a ansiedade juvenil que é tão valorizada no “indie rock”. Será subestimado, claro. Recomendo que se ouça logo depois de Mr. M, do Lambchop, numa tarde preguiçosa de folga. E sem pressa, porque o filme é grande.
Nono disco de Andrew Bird. 14 faixas, com produção do próprio músico. Lançamento Mom+Pop. B+
♪ | Hospitality | Hospitality
O primeiro disco do trio nova-iorquino Hospitality é uma crônica sobre os ups and downs da vida aos 20 anos de idade. Um álbum que pode ser tratado como um afresco desimportante porque, bem, não é de hoje que se subestima o valor de uma boa crônica.
Quem narra esta história é Amber Papini — multiinstrumentista, cantora, compositora e ex-aluna da Universidade de Yale. Ainda que já tenha passado dos 30 anos, ela canta com a falsa inocência juvenil de quem entende verdadeiramente os discos do Camera Obscura, e organiza as harmonias & melodias com a clareza (e a concisão!) que se cobra de uma redação de vestibular.
Ouvindo o disco, posso imaginar Amber (ou, digamos, a personagem que ela interpreta) vagando eufórica (e um pouco triste, porque sempre se é um pouco triste nessa idade) pelos corredores do alojamento universitário de mentirinha onde vive Rory, heroína da série Gilmore Girls e também ex-estudante de Yale. Este é o álbum que uma das amigas espertas-e-um-tantinho-pedantes de Rory teria gravado, se preferissem Vampire Weekend a Sonic Youth.
Como nos projetos-de-conclusão-de-curso do Vampire Weekend, a estreia do Hospitality seleciona timbres e versos com o rigor de quem passa horas no hortifruti avaliando a qualidade dos produtos. É um álbum curto (dura 32 minutos), mas cada detalhe conta e poucos se repetem. As tão comentadas referências de “afropop”, por exemplo, grudam nas canções de maneira tão despretensiosa — são adesivos coloridos, fofos e pequeninos — que é impossível acusar Amber de, vish, ousadia. Não. Não é por aí.
Não é muito seguro supor, aliás, que Amber conheça muitos discos psicodélicos dos anos 1960. Ainda que as melodias sensuais e um tanto angulosas de, notem, Betty Wang possam apontar para um Love ou de um Zombies, talvez ela tenha ouvido, na verdade, os três álbuns do Shins — um atrás do outro, e intinterruptamente.
Polir as gravações de forma a produzir uma sonoridade aconchegante (o nome da banda não nos engana em absolutamente nada) parece-me o objetivo principal. Outra meta é literária, e nisso Amber também nos ganha sutilmente: “Vamos fazer de conta que é verão. Vamos fazer de conta que somos casados”, ela provoca, em Sleepover. Liberal Arts, sobre o quão frustrante é se formar em cursos pouco práticos (imagine escolher letras em vez de direito), é puro charme nerd, irresistível para quem já virou noites traduzindo ensaios de Fredric Jameson.
O que parece uma tolice, né? Amber pode não ter nada especialmente complexo a comentar sobre o cotidiano de meninas instruídas de 20 anos, mas o faz com graciosidade. E um tino notável para escolher as cenas que merecem ser enquadradas nas páginas dessas canções-Moleskines. “Cinema é uma questão do que está dentro no plano e o que não está”, já dizia Martin Scorsese. Pois bem: nada polui os planos deste pequeno indie movie.
Primeiro disco do Hospitality. 10 faixas, com produção de Nathan Michel e Shane Stoneback. Lançamento Merge Records. B
♪ | Reign of Terror | Sleigh Bells
Podemos concluir, sem sarcasmo, que o segundo disco do Sleigh Bells contém no máximo duas ideias: por um lado (1), o duo se assume de vez como uma “guitar band”, espanando a zoeira de samplers do disco anterior para criar uma sonoridade menos marrenta e mais irônica, com algo de Daft Punk (fase-Human After All) e de Def Leppard e Poison (salve-se quem puder); por outro (2), tenta compor canções de estrutura convencional, e eu não ficaria surpreso se duas delas (as baladas à la American Idol End of the Line e You Lost Me) aparecessem no próximo álbum da Gwen Stefani. É essa a vibe, amigos.
Derek Miller e Alexis Krauss colidem essas duas ideias em acidentões espetaculares, sob jatos de gelo seco e chuva de gel. Quase todas as músicas contêm riffs bombásticos de hard rock, zunidos de bateria eletrônica a 50.000/hora, efeitos sonoros que simulam explosões/decolagem/cheerleaders-em-fúria/rojões-de-festa-junina e uma vocalista desolada, cantando coisas tristes sobre amores perdidos, fracassos, ressacas e afins. Me lembra muito, e muito perigosamente, outro disco de banda indie tentando negociar com certos parâmetros do pop: It’s Blitz!, do Yeah Yeah Yeahs.
Não me parece, no entanto, um disquinho assim tão cínico, nem tão loucamente apelativo, nem digno de muitas audições: se falta sal na farofada do Sleigh Bells, seria má vontade não notar que a banda sabe onde quer chegar — e eles chegam, com precisão, a um disco mais melodioso e dócil, até mais sério (bottom line: cabou a festa, molecada), mas ainda in our faces, que talvez tenha sido criado para contradizer os comentários maldosos de quem identificava no álbum anterior uma, e apenas uma, ideia. A revanche, pois: DUAS ideias até razoavelmente interessantes, que juntas às vezes fazem um barulhão gracioso (Comeback Kid, D.O.A., Born to Lose), às vezes não.
Segundo disco do Sleigh Bells. 11 faixas, com produção de Derek Miller. Lançamento Mom+Pop. C+
♪ | Le Voyage Dans La Lune | Air
Depois de três álbuns que tentavam reencenar a atmosfera de Moon Safari (o melhor deles, Talkie Walkie, até que tinha algum charme), só faltava ao Air retornar didaticamente também ao NOME daquele disco de estreia. Não falta mais: em Le Voyage Dans La Lune, eles ampliam a trilha sonora que compuseram para a versão restaurada do filme de Georges Méliès, de 1902, usando um formato que, para quem acompanha a dupla, já pode ser tomado como um tique: faixas instrumentais etéreas e “requintadas” de, afe, space-lounge intercaladas a dóceis chansons. Uma viagem não exatamente fantástica.
As boas lembranças daquela outra trilha sonora escrita por Nicolas Godin e Jean-Benoit Dunckel tornam a aventura ainda mais frustrante. Em The Virgin Suicides, o Air criava um tema central forte e ia desenhando variações delicadas — e inesperadas, mas sempre sutilmente — em torno dele. As faixas remetiam ao ar róseo-cinzento do filme, ao mesmo tempo em que sugeriam novas imagens. Existia ali um jogo bem estimulante entre música e cinema, entre compositores e cineasta, que não consigo notar neste disco novo.
A soundtrack que prepararam para Méliès talvez faça sentido quando sobreposta às sequências do curta-metragem (que dura 16 minutos), mas, como obra independente, parece-me vaga, incompleta, com músicas que justificam a birra (injusta, é claro) de quem vê no Air uma banda blasé e superficial. O pior é que, aqui, eles não mostram nem mesmo a curiosidade (que existia nos primeiros discos) de pesquisar gêneros pop: Seven Stars, uma das poucas faixas memoráveis, trata o próprio Air como a única referência, saturando a combinação piano/efeitos especiais/vocal entorpecido. Não irrita, não machuca, mas o velho desejo exploratório foi pros ares.
As participações de Victoria Legrand (do Beach House) e do Au Revoir Simone são dispostas neste disco-simulador-de-voo como objetos decorativos de cena. Embelezam as imagens, e cumprem a função de compor um espetáculo “sofisticado” para sessões de gala de festivais. Pobre Méliès.
Sétimo disco do Air. 11 faixas, com produção da própria banda. Lançamento Astralwerks Records. D+
♪ | Clear Heart Full Eyes | Craig Finn
O primeiro disco solo de Craig Finn confirma que, mais do que um compositor “sincero” e “emotivo”, o vocalista do Hold Steady é um ficcionista pop muito habilidoso: não apenas um inventor de personagens e de tramas — discos como Boys and Girls in America podem ser “lidos” como coletâneas de contos —, mas um fã de rock que está sempre buscando as referências mais adequadas para emoldurar as narrativas que cria. Se um disco como Separation Sunday, por exemplo, mostrava todo um esforço para atualizar os climas dos primeiros álbuns de Springsteen e The Clash (e aí era como se Finn escolhesse essa ou aquela lente para filmar um enredo juvenil), este Clear Heart Full Eyes tem objetivos muito diferentes: em resumo, é um álbum até bem típico de singer-songwriter de alt.country, projetado cuidadosamente como tal, com uma sonoridade mais polida (para dar impressão de maturidade, talvez) e uma cadência serena, como se o compositor tivesse resolvido informar ao público que tem 40 anos de idade — e que, na Escala Drive-By Truckers de Afinidade, prefere o sentimentalismo de Patterson Hood às loucuras de Mike Cooley. Os personagens das músicas são versões mais envelhecidas dos tipos que moram nos discos do Hold Steady: beberrões fracassados, desprezíveis (de tão comuns), metidos em dramas irrelevantes (amorosos, em grande parte), que dormem em quartos de aluguel (Rented Room, a melhor da safra) e não podem contar com ninguém (No Future). Finn ainda domina os temas e sabe selecionar referências, sabe o que quer, mas este álbum de “coração limpo” pode deixar a impressão de que o compositor/autor desta vez enquadrou a própria prosa num clichê — o do disco “adulto”.
Primeiro disco solo de Craig Finn. 11 faixas, com produção de Mike McCarthy. Lançamento Full Time Hobby. C+
♪ | Feel the Sound | Imperial Teen
Nos anos 90, o Imperial Teen se tornou relativamente conhecido graças a dois motivos que nunca foram lá muito importantes: num primeiro momento, as revistas de música pareciam todas curiosas para conhecer o “projeto do tecladista do Faith No More”; e, além disso, se falava sobre uma certa (hum) “sensibilidade gay” da banda — já que o tecladista do Faith No More, Roddy Bottum, escrevia com naturalidade sobre sexo, mais ou menos como quem relembra as atividades do primeiro dia de aula, ou de uma sessão de cinema particularmente marcante.
Acontece que, com o passar do tempo, o Imperial Teen deixou de ser tratado como uma banda “sui generis” para ser encarado simplesmente como um quarteto de rock. O que pode ser um golpe dolorido, um trauma profundo, se você é daqueles que entram em parafuso quando passam algum tempo sem sair na capa da Spin (revista que, aliás, incluiu o primeiro disco do grupo na lista de 50 melhores discos de TODOS OS TEMPOS).
Mas (ufa), o Imperial Teen não se deixou esmorecer pela ideia de desaparecer lenta e completamente na mídia, e seguiu gravando discos cada vez menos “quirky” e mais (apararentemente) diretos & retos. Hoje, a maior ambição da banda talvez seja criar álbuns de power pop e new wave como os mais recentes do New Pornographers: polidos porém vívidos, profissionais e inofensivos SIM, ainda que não automáticos; disquinhos que nos iludem com artifícios banais para, após repetidas audições, mostrar que contêm canções perenes, sérias, por vezes tristes, falsamente juvenis, feitas para durar mais de um verão.
Feel the Sound (noves fora o título pretensioooso) é o mais próximo que o Imperial Teen chegou desse modelo de álbum. Depois de tê-lo ouvido mais ou menos 29 vezes, posso dizer, sem medo de errar, que ele vai ficando melhor. As faixas centrais são as que nos conquistam de primeira (Last to Know, Out from Inside e o lindo encerramento Overtaken), mas é aos poucos, sutilmente, que os temas do disco vão subindo à areia — e a trama que ele narra, after all, é sobre uma banda não tão inocente, com 16 anos de carreira, talvez em crise, talvez preocupada, tentando sobreviver ao pop. “Várias canções que cantamos ainda não são cantadas (Interferência do blogueiro: por ninguém?). Outro sonho que não foi escrito: o disco está pronto”, e eles resumem tudo, em It’s You.
O risco desse formato de álbum é que ele facilita a confusão entre ser profissional, “sofisticado”, e repetir fórmulas banais. O Imperial Teen às vezes comete esses erros (que também noto nos mais recentes do New Pornographers), mas consegue o que outros velhos “teen” (Teenage Fanclub, Sonic Youth) andam nos devendo: fazem um disco ainda cheio de aflições, engenhoso (novamente: uma obra de adultos), o oposto do que se espera de uma banda que se acomodou. Este som ainda é uma boa (e digna) ideia de diversão.
Quinto disco do Imperial Teen. 11 faixas, com produção da própria banda. Lançamento Merge Records. B
♪ | Always | Xiu Xiu
Depois de perambular por selos relativamente conhecidos (Kill Rock Stars) e muito modestos (Free Porcupine, 5 Rue Christine), Jamie Stewart parece ter encontrado na Polyvinyl Records, de Illinois, um recanto muito confortável para seu Xiu Xiu. É boa a coincidência: o nono disco da banda, Always, chega na mesma temporada em que a gravadora divulga o novo lançamento de um dos grupos principais do casting: não são poucas (nem banais) as semelhanças entre as ambições de Stewart e as de Kevin Barnes, do Of Montreal.
Always pode até ser tratado como um disco-irmão de Paralytic stalks, o mais recente do Of Montreal, já que Stewart também opera uma série de colisões brutais entre versos irados, muito pessoais (sobre tabus como aborto, incesto e abuso sexual), e uma embalagem sonora de mil cores fluorescentes, combinando tons de glam rock e prog pop. Uma faixa típica do Xiu Xiu (e é preciso um grande esforço de simplificação para enquadrar o som da banda) poderia ser descrita como um encontro entre a interpretação agoniada de Antony Hegarty, a energia de um hit do Placebo e trilhas de videogame.
A diferença entre as duas bandas é que, enquanto o Of Montreal hoje experimenta com vocais (cada vez mais rascantes) e com a duração das músicas (longas e cheias de variações internas), o Xiu Xiu tenta concentrar as forças da banda (agora um quinteto) dentro de canções curtas e, até certo ponto, de fácil acesso — Joey’s Song, apesar de todo o melodrama, é uma das faixas mais agradáveis que eles já gravaram. O choque sem-luvas entre sensibilidades, procedimento comum na obra de Stwart, muitas vezes acontece não dentro das músicas, mas na fricção entre uma faixa agressiva como I Love Abortion (um estrondo que, mesmo contra a nossa vontade, nos obriga a prestar atenção ao disco) e uma balada dócil, bowiana (fase Hunky Dory) como The Oldness.
É uma banda ainda imprevisível e fora de controle, felizmente (ainda que a segunda metade do disco seja menos arriscada que a primeira). Mas algo mudou: talvez porque, lançando discos por um selo onde a estranheza conta como um valor positivo, o Xiu Xiu agora se preocupe tanto em escandalizar quanto em se fazer ouvir e entender pelo público de um, por exemplo, o Of Montreal. De certa forma, Always é a ideia louca que eles fazem de um álbum pop.
Nono disco do Xiu Xiu. 12 faixas, com produção de Greg Saunier. Lançamento Polyvinyl Records. B
♪ | America Give Up | Howler
Enfezadinho com as semelhanças entre o primeiro disco do Howler e o repertório padrão das baladas rock ‘n’ rooool de Brasília em 2002 (quando Strokes e White Stripes estavam muito ocupados influenciando pessoas e, dizem, salvando o rock), este blogueiro tratou de arquivar America Give Up na gaveta dos itens descartáveis de 2012. Me perguntei: é só isso? E case closed. Mas, por uma dessas estranhas ocorrências da vida (em resumo: o CD-R ficou preso no aparelho de som do carro), acabei voltando ao disquinho tantas vezes — e sem franzir sobrancelhas! — que me obriguei a escrever um post para pedir desculpas à comunidade. Pois bem: aqui está ele.
Vou ser breve porque, no mais, este álbum é uma brevidade. Lembra sim a estreia do Strokes (e com exagero: uma das músicas faz cosplay de Modern Age), mas talvez positivamente. Mais animador que isso, aponta para toda uma tradição de first albums que já existia muito antes de Julian Casablancas nascer: registros extremamente compactos, como se gravados numa única sessão, mas cujas pequenas variações de ritmo, velocidade e melodia transformam cada faixa num hit em potencial. O primeiro do Ramones, claro, é uma referência inevitável: o Howler também atua dentro de limites estreitos, por opção.
Só que, como eles avisam, this one’s different. Talvez não muito diferente, ok, mas talvez devamos seguir o Howler para saber o que vai acontecer com esse interesse por combinar o “som de 2001” (decalcado de pós-punk, garage rock e congêneres) com um espírito ingênuo de entusiasmo pelas guitarras, sinceramente vintage, capaz de nos transportar ao comecinho do rock — não é para fazer cena que eles vampirizam Elvis Presley em I Told You Once. Daí que uma faixa como Back of Your Neck (minha preferida) pode soar simultaneamente como uma cópia preguiçosa de Libertines ou como um remix de alguma canção perdida do início dos anos 1960. Em qualquer uma das hipóteses, esses americanos parecem se divertir com o pouco que (por enquanto) eles têm.
Primeiro disco do Howler. 11 faixas, com produção da própria banda. Lançamento Rough Trade Records. B
mixtape | Janeiro, from a room
A mixtape de janeiro é um pouco diferente da de dezembro, mas não muito.
A ideia era gravar uma coletânea mais alegre e dançante, só que todos os planos tiveram que ser alterados depois que ouvi os discos da Sharon Van Etten (que está na foto acima) e do Leonard Cohen (daí o nomezinho do post, em homenagem ao homem). A mixtape, portanto, passou a ser conduzida pela sonoridade, digamos, crepuscular desses dois álbuns.
É uma das minhas mixtapes preferidas – e acho que gosto muito dela porque não foi tão simples encontrar as músicas que combinassem direitinho com a atmosfera que eu queria sugerir. Tive que me livrar de algumas boas faixas, que estão entre as minhas preferidas do mês. Na minha modestíssima opinião, o esforço de não fugir ao tema compensou: o disquinho faz sentido e conta uma história.
Aqui dentro, vocês vão ouvir músicas novas também de John K Samson, Whistle Peak, Bears, Lana Del Rey (ok, essa não é tão nova), Craig Finn, Damien Jurado e Lambchop. A lista das faixas está na caixa de comentários.
Como de costume, você pode fazer o download da mixtape ou ouvi-la aqui no blog. Recomendo a segunda opção: desconfio que o arquivo em mp3 vá desaparecer rapidamente.
Comentários serão bem recebidos. E, antes que eu esqueça, esta mixtape é dedicada ao Daniel (nada de hip-hop desta vez!) e ao Adalberto, que talvez curtam os climas tão realistas (e adoráveis, de vez em quando) deste disquinho.
Faça o download da mixtape de janeiro
Ou ouça aqui:
Vídeos do VodPod não estão mais disponíveis.
♪ | Provincial | John K. Samson
No episódio de ontem, quando falei sobre o disco novo do Lambchop, tentei (sem sucesso, acho) descrever um som que remete a um livro elegante de crônicas sobre o cotidiano e as responsabilidades de um homem adulto. Este primeiro álbum solo do canadense John K. Samson — líder da banda de folk punk The Weakerthans — também soa como um apanhado de impressões sobre o dia a dia. Mas com uma diferença importante: enquanto o Lambchop vem afinando uma sonoridade que tenta se colocar à altura dos temas das músicas, as anotações de Samson ainda soam informais, sem estilo ou tanto rigor; Provincial não é um livro, mas uma coleção de post-its sobre certos assuntos, paisagens e situações.
O compositor organiza as canções no disco como quem espalha polaroides na cama: o álbum é simplesmente um apanhado de canções já gravadas (e lançadas em dois EPs) com algumas músicas novas. Nos identificamos com Samson porque ele é o boa-praça, o chapa, o sujeito comum que talvez tenha ouvido muito Elliott Smith, Big Star, Neil Young (fase Harvest Moon) e R.E.M.. One of us, one of us.
Nada disso impede Provincial de nos ganhar com alguns cliques adoráveis da vida como ela é (especialmente na província de Manitoba, onde o músico vive): em When I Write my Master’s Thesis, ele conta a história de um estudante que, aflito, tenta se manter saudável enquanto escreve a tese de mestrado. Em outro momento, entra na campanha para levar o jogador Reggie Leach ao Hall da Fama do Hockey (ah, as grandes causas!). E tem Cruise Night, que encena com euforia power pop o passeio (desimportante) do narrador, no carro do irmão, num domingo igual aos outros. Banal, certo? Também muito agradável.
Primeiro disco solo de John K. Samson. 12 faixas com produção do próprio músico. Lançamento ANTI- Records. B
♪ | Mr. M | Lambchop
Ninguém vai levar como ofensa (talvez nem a própria banda) se você afirmar que o Lambchop grava sempre o mesmo disco. Será, é claro, uma generalização. Mas não muito absurda, principalmente quando se fala numa fase que começou em 2002 (com Is a Woman) e segue imperturbável há uma década, cingindo um céu aberto e tranquilo.
Nenhum dos discos do Lambchop pós-Is a Woman contém os desafios de Nixon (2002), que acabou representando um período de transição para o grupo de Nashville. O álbum capta um momento de experimentação, quando eles tentavam, já fora da fazendinha do “country alternativo” e combinar certas referências de soul music, country, jazz, gospel e lounge. A aventura modificou a banda quase por completo. Compreensível: se eu ainda não me recuperei da porrada de Up with People – que é uma obra-prima -, imagino que essas e outras invenções tenham sequelado a banda.
No disco seguinte, o Lambchop definiu um modelo sonoro que, hoje em dia, provoca preguiça até na própria gravadora. A Merge Records descreve esse modus operandi da seguinte forma: “como nos discos anteriores, muitas das canções de Mr. M são emolduradas por cordas exuberantes, e existe uma camada contida de distorção e dissonância; o centro da música ainda está no movimento cíclico da guitarra de Kurt Wagner e o coaxar suave e caloroso de sua voz.” Não deixa de ser um resumo fiel do disco, mas que parece apontar para palavras como estagnação e comodismo. É isso? O mesmo disco, mais uma vez?
Acho que sim e que não. Sim porque, vamos ser honestos, só consigo ouvir em Mr. M (e no anterior, Ohio) o lentíssimo polimento de um estilo que talvez esteja precisando mesmo de uma chacoalhada. Mas não, porque este parece ser o disco que Kurt Wagner sempre quis gravar: um álbum que soa como um dia comum, um elogio en passant ao cotidiano; moroso porque, entre outras coisas, a vida às vezes é assim mesmo. E não é de hoje que o Lambchop tenta sonorizar situações comezinhas (nem por isso pouco tristes, melancólicas, tocantes), geralmente observando a rotina do casamento, das relações de amizade e da família. Esse olhar ainda tem seu encanto.
Quem chega pela primeira vez à banda pode se convencer de que é um projeto tedioso: as canções são quase sempre longas e parecidas umas com as outras, com sutilezas que exigem muitas audições e insights literários que talvez não despertem paixões em muita gente. O humor da faixa 2B2, uma canção absolutamente realista sobre a vida a dois, é discreto demais para chamar a atenção. E as instrumentais Gar e Betty’s Overture são lindas e perfeitas como peças de porcelana: cheias de detalhes que devem ser admirados à distância. No mais, o disco faz anotações sobre a vida adulta por um viés que não tem absolutamente nada de juvenil. Não é fácil, não é fofo, não coloca ninguém pra dançar, não fica borbulhando ideias.
É um som quase ambiente, que faz ainda mais sentido numa dessas manhãs serenas de domingo, quando o que nos resta é uma sucessão de pequenos eventos banais. O mesmo domingo. Kurt Wagner ainda é capaz de olhar para essa paisagem silenciosa (que pode ser bonita ou terrível, ou as duas coisas) e encontrar aí um mistério, e uma razão para compor.
Décimo primeiro disco do Lambchop. 11 faixas, com produção da própria banda. Lançamento Merge Records. B