Mês: abril 2010
Superoito express (22)
Infinite arms | Band of Horses | 6
O disco de estreia do Band of Horses, o muito promissor Everything all the time (2006), apontava dois caminhos para este grupo de Seattle: um mais aventureiro, feito de pedrinhas brilhantes (em grandes momentos como The funeral e The Great Salt Lake, que merecem entrar em qualquer coletânea de achados da Sub Pop), outro mais mundano (o country rock de Weed party, baladas delicadas e inofensivas como I go to the barn because I like the). Me parece um enorme desperdício, mas, de lá para cá, a banda mostrou mais interesse por essa segunda trilha (agradável, pop) e menos por aquela outra (misteriosa, imprevisível).
Infinite arms confirma essa preferência e, por isso, pode fazer do Band of Horses um mascote indie muito querido e popular (e indie é força de expressão, já que a bolachinha tem o selo da Columbia). É um álbum de melodias infinitamente graciosas, com toques sutis de psicodelia californiana (Compliments é um encontro de Brian Wilson com Greatful Dead, com a assinatura inconfundível do produtor Phil Ek) e versos sobre amor e nostalgia. Uma doçura (um tanto aguada, mas uma doçura). E que não cheira a produto falsificado – como o Wilco de Sky blue sky, taí uma banda que se emociona com o soft rock. Vamos assobiar juntos! Mas que dá pena ver uma banda tão talentosa se acomodando nesse sofá confortável e quentinho, isso dá. O próximo disco nos mostrará se eles estão no time do Grizzly Bear ou do Kings of Leon.
Pigeons | Here we go Magic | 7.5
E por falar em aventura… É quase certo que, em 2010, o Here we go Magic não vai vender nem 1% dos discos do Band of Horses. E, se quisesse, este quinteto de Nova York escreveria um álbum inteiro com love songs de partir o coração (eles conseguem: ouça Casual, lindíssima). Mas eles preferem caminhar na areia movediça. Este Pigeons faz questão de nos espantar (e de bater asas para bem longe) a cada faixa: começa como uma brincadeira com a psicodelia britânica do fim dos anos 60 (Hibernation e Collector), é ejetado aos anos 90 (Casual lembra Radiohead), prova do indie americano (Surprise tem um quê de Pinback) e recicla as loucuras de Brian Wilson em clima ambient (Vegetable or native). Tem isso e mais. O disco termina e ainda não sabemos direito que banda é esta. Uma boa sensação.
High Places vs. mankind | High Places | 7
O segundo disco do High Places desmente muito do que (achávamos que) sabíamos sobre este duo de Nova York: Rob Barber e Mary Pearson não querem ser conhecidos como os hipsters esquisitões que vivem trancados numa estufa gelada, em contato apenas com a natureza e com um laptop. High Places vs. mankind soa mais urbano e humano: On giving up, por exemplo, se aproxima do trip hop lânguido que Goldfrapp fazia no início da carreira (já She’s a wild horse e Canada usam e abusam de orientalismos fake). Não é uma transformação radical, mas a floresta mágica do High Places guarda mais segredos do que imaginávamos.
Talking to you, talking to me | The Watson Twins | 6.5
As irmãs Watson passam por uma transição delicada neste novo disco. Já na capa, o álbum adota um verniz “adulto contemporâneo” que parece mais apropriado a uma Sheryl Crow do que a uma Jenny Lewis (e muito longe do tom revisionista de Rabbit fur coat, o belo álbum que elas gravaram com Lewis). Mas elas vestem esse novo modelito sem muito desconforto: a soul music modernosa de Harpeth River soa como uma tentativa de vendê-las ao público da Amy Winehouse (e baladas jazzy como Forever me vão agradar aos fãs de Norah Jones), mas elas conseguem envenenar essas fórmulas radiofônicas com versos dark e interpretações elegantes. O melhor fica por último: Modern man pede bênção ao Radiohead de In rainbows e nos prega uma surpresa aos 45 do segundo tempo. O recado: elas se venderam, mas continuam muito vivas.
Heaven is whenever | The Hold Steady
Não compro CDs há mais ou menos um ano, mas calhou de acontecer: quinta-feira à noite, bati o olho na prateleira e a bolachinha colorida olhou de volta. Flerte falal: fui esfaqueado em 60 pilas, mas voltei para casa feliz da vida, eu e minha cópia zerada, tinindo, reluzente de Boys and girls in America, do Hold Steady.
Era um daqueles discos que eu precisava ter. Precisava. Nada tenho contra a diluição de melodias em arquivos vagabundos de MP3, mas há casos em que sinto a necessidade de adquirir uma prova material, um rastro visível, um souvenir dos meus discos do coração. Há dois dias, descobri que Boys and girls in America está entre eles. Meu peito foi lá e disse: “compre o maldito CD importado!”
Até agora, ele só me trouxe alegrias. No carro, desembrulhei o bichinho e aumentei o volume do som. Os vidros trincaram com os primeiros acordes de Stuck between stations, um clássico. E o corinho de Chips ahoy! acabou se mostrando menos estridente do que eu lembrava. Solucei discretamente no início de First night, que passa pelo disco feito uma brisa de desencanto, de meninice mal resolvida. É tudo muito tocante, como um grande episódio de Anos incríveis.
A nova audição trouxe duas revelações: eu, acostumado os bits bichados de arquivos leves, nunca havia reparado em como Craig Finn soa gentil neste disco (como quem diz: “por favor, senhoras e senhores, peço alguns minutinhos para que vocês ouçam minha modesta obra-prima”). E, mesmo durante meu longo e intenso namoro com o álbum, eu não havia notado o quão elegante (até rebuscado) é o tecido dessas melodias. A banda vai à guerra com o batalhão todo: piano, cordas, sopros, distorções punk e vocais femininos, canções de amor e hinos de bebedeiras, narrativas cruzadas (sobre tipos adolescentes, perdidos e desidratados) e nerdices literárias (“Às vezes penso que Sal Paradise estava certo”, admite Craig). É um disquinho imenso.
Eu teria que ouvir Stay positive novamente (e vejam isto: também comprei o CD!), mas tenho quase certeza de que Boys and girls in America é o ápice indiscutível do grupo. Stay positive é mais dark e desesperado (mais John Cassavetes, menos Gus van Sant), mas não chega perto. Separation Sunday é lindamente imaturo, e só. Talvez eles saibam disso tudo. E talvez, por saber disso, eles avisem, a cada novo lançamento, que estão prestes para nos surpreender. A verdade, no entanto, é que eles nunca nos surpreendem.
Obras-primas às vezes são um fardo, um carma, e o Hold Steady terá que se contentar com o fato de que ficarão à sombra de 2006. É triste, mas taí. O que nos leva a Heaven in whenever, o quinto disco dos nova-iorquinos.
Nova-iorquinos, ahn? Você já parou para pensar nisso? Pode soar impressionante, mas o Hold Steady é do Brooklyn, a cidade do The National. A distância entre as duas bandas é de algumas centenas de quilômetros. Os discos do National apontam para uma Nova York feérica, de asfalto e neon. Os do Hold Steady miram lembranças de cidades interioranas, em sépia. Finn cresceu em Minnesota, e essa informação explica tudo sobre a mise-en-scene do grupo: os personagens geralmente não têm o que fazer nem para onde ir. Se entediam, e por isso inventam de tocar em bandas de rock.
A sonoridade do quinteto, por uma questão de coerência, deve muito à aura pop associada ao Meio-Oeste norte-americano: ecos de country rock, guitarras secas e diretas, poesia com algum traço folk (eles narram histórias, desenvolvem dramas, cantam A América). A banda se alimenta de nostalgia caipira e, portanto, fracassam sempre que tentam “urbanizar” esse som. Há alguns meses, eles anunciaram um disco mais “cinematográfico”, sortido, com “um quê de Jon Brion” (e foram eles que disseram, não tenho nada a ver com isso). E agora descobrimos que, surpresa!, tudo o que temos é mais um disco do Hold Steady.
O que está longe de ser uma descoberta ruim. A paisagem da banda continua sob o sol, um doce caseiro. A faixa de abertura, The sweet part of the city, é um American graffiti de baixíssimo orçamento: tédio, amores platônicos e outros demônios. O andamento da canção parece menos apressado do que de costume, mas é alarme falso. Da segunda música em diante, o Hold Steady usa o molde que conhecemos. Em alguns casos, as melodias são tão fortes que poderiam ter entrado em Boys and girls in America. Mas fica a sensação de que faltam foco e propósito ao disco.
Sobre o que é esse filme mesmo? Sinceramente, ainda não sei. Na segunda faixa, Soft in the center, Finn adota a faceta de adulto (um personagem que ele já havia interpretado em Stay positive) e manda um conselho de gentleman aos aspirantes a Don Juan. “Você não vai ter todas as garotas. Você vai ter aquela que você amar mais”, avisa. Depois, insiste: “Eu sei o que acontece com você. Isso aconteceu comigo também.” É nessas horas dá vontade de largar o disco, tomar um avião e bater um papo com o sujeito.
A terceira música é o que esperamos do Hold Steady: um par de losers fazendo bobagens. “Sim, eu vou voltar e te encontrar. Mas não vai ser como nas comédias românticas. No fim da história, ninguém vai aprender lição alguma”, canta, e dá a piscadela geek que esperamos de um fã de cultura pop.
Até aí, nenhum susto. E algum constrangimento (Rock problems, por exemplo, é uma DR tolinha). As coisas ficam sérias na balada We can get together, que explora o tom sombrio de Stay positive com um tom mais afetuoso, triste. Uma letra sobre saudade. “O paraíso era sempre que nos encontrávamos, ligávamos o som e ouvíamos os seus discos”, ele lembra. E aí não há o que fazer: sabemos que a estratégia é muito apelativa (toda banda de rock tem uma canção do gênero), mas nos emocionamos mesmo assim.
No restante do longa-metragem, Finn dá algumas tacadas seguras: cria versos que podem ser usados como hinos, já que interpretam com muita honestidade um turbilhão de símbolos e clichês do rock (e agora nem vale mais falar em Bruce Springsteen: o Hold Steady recicla o próprio repertório). “Os meninos estão todos distraídos, ninguém vence em shows violentos”, ele diz, em Barely breathing (em clima de cabaré sujo e power pop decadente). “Somos bons garotos, mas não conseguimos ser bons todas as noites”, brinca, em Our whole lives (que começa igualzinho a Stuck between stations). A slight discomfort termina metralhado pela bateria. “Não temos medo, temos alguma fé. Vamos ficar bem. Vamos sobreviver à noite”, promete Craig. Desce pano.
Epílogo: o Hold Steady continua a olhar para o passado (um passado inventado, aposto) com um misto de nojo e carinho, desprezo e paixão. Esquizo-nostalgia. Sei o que é isso. Ouço Boys and girls in America e sinto saudades. Não sei de que. Enquanto isso, temos Heaven in whenever. Um disco que não se deixa sufocar pelo passado da banda. Um disco adulto. E, de certa forma, adorável. Como um episódio esquecível de Anos incríveis.
Quinto disco do Hold Steady. 10 faixas, com produção de Dean Baltulonis e Tad Kubler. Lançamento Vagrant/Rough Trade. 7/10
Drunk girls | LCD Soundsystem
A arte do bullying, por James Murphy. Meninos e meninas, não tentem fazer isso em casa (a direção é do Spike Jonze, de volta ao habitat).
2 ou 3 parágrafos | As melhores coisas do mundo
Já passaram quatro dias desde a sessão de As melhores coisas do mundo (3.5/5) e ainda estou tentando entender por que me identifiquei tão intensamente com um filme que trata de uma geração que não é a minha (os personagens têm 14, 15 anos, e aparentemente foram alfabetizados via MSN). Talvez essa sensação tenha sido provocada por minhas memórias de uma adolescência meio descolorida, um período em que vivi trancado em superquadras e salas de colégio. Tudo o que eu lembro é de uma época muito desconfortável, de pressões quase diárias. Eu não queria abandonar a infância e, talvez por isso, tudo tenha ficado muito mais complicado.
O filme é, antes de tudo, uma investigação sobre essa fase da vida. Não é uma narrativa quadradinha, antiquada. Muitas das cenas deixam claro que Laís Bodanzky foi à luta, conversou com meninos e meninas, pesquisou sobre o tema e permitiu que o elenco contribuísse para diálogos e situações do roteiro. Mais para Richard Linklater, menos para Malhação (ou até para John Hughes). O que ela encontrou foi uma juventude muito próxima da minha (e talvez da sua): nem romântica, nem miserável, nem louca, nem reprimida. Mas sempre desconfortável: da primeira à última cena, o personagem principal enfrenta o cotidiano como uma espécie de corrida de obstáculos. Um leão por dia.
Daí a forma muito atenta como o filme mostra o ambiente escolar: ele é percebido pelos personagens como uma arena de pequenas crueldades (e algum afeto, algum aprendizado). E a família, como um espaço também instável, inseguro. Bodanzky percebe tudo isso sem negar os elementos mais apelativos de uma trama que poderia estar num episódio vagabundo de seriado (uma eleição no colégio, uma novelinha sobre amigos-que-sempre-se-amaram-mas-nunca-perceberam). Se o desfecho chega a parecer artificial (e irritante), há uma boa explicação para isso: é que o resto do filme soa verdadeiro até demais.
High violet | The National
Tenho quase certeza de que conheço o narrador das canções do The National: é um homem de trinta e poucos anos, intensamente melancólico, que, depois de uma noite terrível, acordou com a sensação de que as paredes do quarto ganharam uma consistência macia, feito colchão de água. As cortinas perderam a cor (o que aconteceu com elas?). O teto decolou para Marte. Ele tenta se concentrar, mas só consegue pensar em três ou quatro frases sem sentido, que giram em torno da cama numa ciranda enervante.
Ok, vocês mataram a charada: eu sou o narrador das canções do The National. Bingo. Muito prazer. Puxe uma cadeira, por favor. A vida… não… vai… fácil… meu…. irmão.
Bem, talvez eu não seja verdadeiramente o narrador das canções do The National. Talvez todos nós tenhamos nossas manhãs de narrador-das-canções-do-The-National, quando o cotidiano embaralha as nossas roupas, some com os nossos livros, derruba lama no piso da sala e, de surpresa, nos deixa mudos, congelados, estirados na cama, sem corpo, quase dissolvidos no ar (nem que por alguns dez minutos, e eles duram para sempre).
Esse protagonista recorrente, que aparece em faixas agoniadíssimas como Mr. November e Mistaken for strangers, retorna especialmente tenso em High violet, o quinto disco do The National. Um sujeito inseguro e atormentado, que luta em silêncio para se livrar de uma rotina infernal. “Eu vivo numa cidade que a tristeza construiu. Ela está no meu mel, no meu leite”, ele admite, em Sorrow. A canção-autorretrato oferece um perfil psicológico até muito preciso desse homem em queda (que poderia ser confundido com o vocalista Matt Berninger, mas vamos fazer de conta que é tudo ficção, ok?).
Antes, na primeira música do disco, o narrador confessa que está preso a um amor terrível. A dor é uma companhia silenciosa. “Eu não consigo dormir sem uma pequena ajuda”, diz. Mas, ainda assim, não se entrega. “Não vou te seguir à toca do coelho. Eu disse que iria, mas sua pele e seus ossos disseram não”, ele conta. Enquanto isso, as guitarras rasgam a melodia, os versos se repetem (dão voltas ao redor da cama) e o drama permanece sem solução.
De forma mais ou menos explícita, essa história triste se repete no disco inteiro. Em alguns momentos, ganha tom de crônica tragicômica. É o caso de Bloodbuzz Ohio, que relata um encontro familiar. “Eu nunca pensei em amor quando lembro da minha casa. Eu ainda devo dinheiro ao dinheiro que devo ao dinheiro”, diz, antes de deitar a cabeça no carro, desamparado. “Eu sinto medo de todo mundo”, confessa, em Afraid of everyone.
Esse homem comum não está, no entanto, num beco sem saída. Em Little faith, ele aponta para uma discreta salvação. “Eu não quero ser o fantasma de ninguém”, avisa, em Anyone’s ghost. “Não serei um fugitivo”, promete, em Runaway. Mas terminamos o disco sem saber se esse desejo de libertação foi concretizado. É tudo muito vago, confuso (de propósito). Fluxo de consciência. Pesadelo.
A cada disco, a banda parece procurar uma sonoridade adequada para ilustrar esses sentimentos conflitantes e destrutivos, essa “reunião secreta no fundo do cérebro” (como explicam em Secret meeting). Em Alligator, os momentos delicados eram alternados aos mais raivosos. Esquizofrenia pura. Já em Boxer, as melodias definem uma atmosfera de monólogo íntimo, sussurrado, quase doce, Tindersticks meets Joy Division, mas tão desesperado quanto.
Agora cá estamos. Em High violet, os arranjos soam tão febris e instáveis quanto as confissões do narrador. As maior parte das músicas lembra o repertório de Boxer, mas caminha para desfechos violentos, ruidosos, de catarse. Elegância manchada de sangue. Aposto que, no palco, elas provocam taquicardia.
É de doer. Em Afraid of everyone, Sufjan Stevens acompanha Berninger no vocal (“Sua voz roubou minha alma”, eles cantam), enquanto a bateria de Bryan Davendorf vai empilhando efeitos até estourar em golpes agressivos. Terrible love, outro veneno, vai se afogando em distorção. O aparato luxuoso do disco (que usa vários instrumentos de sopros, cordas, além de piano) e os convidados especiais (além de Sufjan, tem Justin Vernon e Nico Muhly na folky Vanderlyle crybabe geeks, talvez a única grande surpresa do disco) só aparecem quando precisam aparecer – e, geralmente, são as cerejas explosivas desses hinos dark.
É um paradoxo dos bons: enquanto a banda se mostra mais segura do que faz e certa do som que procura (correndo o risco de esgotar um formato que ela refina desde o primeiro disco), o narrador das histórias parece cada vez mais fragilizado, desencantado, um homem condenado a viver dentro de canções tristes e de manhãs traiçoeiras. Mas temos o direito de cobrar algo diferente? Esse é o mundo do The National. E, às vezes, esse é o nosso mundo.
Quinto disco do The National. 11 faixas, com produção de Peter Katis e da própria banda. Lançamento 4AD. 8/10
Sobre escrever (e alguns outros dramas)
(Trecho do livro Verão – Cenas da vida na província, de J.M. Coetzee)
Lembro de ter perguntado a John, depois de Dusklands, se ele tinha algum projeto novo no momento. A resposta dele foi vaga. “Tem sempre uma coisa ou outra em que eu estou trabalhando”, ele disse. “Se eu ceder à sedução de não trabalhar, o que eu faria comigo mesmo? Que razão haveria para viver? Eu teria de me matar.”
Aquilo me surpreendeu – a necessidade dele de escrever, eu digo. Eu não sabia praticamente nada dos hábitos dele, como passava o tempo, mas ele nunca me pareceu um trabalhador obsessivo.
“Está falando sério?”, eu perguntei.
“Fico deprimido se não escrever”, ele respondeu.
“Então para que essa reforma sem fim?”, eu perguntei. “Você podia contratar alguém para fazer a reforma da sua casa e dedicar a escrever o tempo que economizaria.”
“Você não entende”, ele disse. “Mesmo que eu tivesse dinheiro para contratar um pedreiro, coisa que não tenho, mesmo assim eu sentiria necessidade de passar X horas cavando o jardim, carregando pedras ou misturando concreto.” E partiu para mais um daqueles discursos dele sobre a necessidade de derrubar o tabu sobre trabalho braçal.
Eu me perguntei se não havia uma certa crítica a mim pairando no ar: que o trabalho pago da minha empregada negra me deixava livre para ter casos com homens estranhos, por exemplo. Mas deixei passar. “Bom”, eu disse, “você sem dúvida não entende de economia. O primeiro princípio da economia é que se todos insistíssemos em fabricar nosso próprio fio e ordenhar nossas próprias vacas em vez de empregar outras pessoas para fazer isso por nós, ficaríamos para sempre empacados na Idade da Pedra. Por isso é que nós inventamos uma economia baseada na troca, que por sua vez possibilitou nossa longa história de progresso material. Você paga alguém para assentar o concreto e em troca você consegue tempo para escrever o livro que vai justificar a sua folga e dar sentido à sua vida. Pode até dar sentido à vida do operário que assenta o concreto para você. De forma que nós todos prosperamos.”
“Você acredita mesmo nisso?”, ele perguntou. “Que livros dão sentido às nossas vidas?”
“Acredito”, eu respondi. “Um livro deve ser um machado para abrir o mar congelado dentro de nós. O que mais ele seria?”
“Um gesto de recusa diante da época. Uma aposta na imortalidade.”
“Ninguém é imortal. Livros não são imortais. O globo todo em que pisamos vai ser sugado pelo sol e queimado até virar cinzas. E depois disso o próprio universo vai implodir e desaparecer num buraco negro. Nada vai sobreviver, nem eu, nem você, e com certeza nem a minoria interessada em livros sobre homens da fronteira imaginários da África do Sul do século 18.”
“Eu não quis dizer imortal no sentido de existir fora do tempo. Quis dizer sobreviver além da própria morte física.”
“Quer que as pessoas leiam seus livros depois que você morrer?”
“Me dá alguma consolação contar com essa perspectiva.”
“Mesmo você não estando mais aqui para saber?”
“Mesmo eu não estando mais aqui para saber.”
“Mas por que as pessoas do futuro deveriam se dar ao trabalho de ler o livro que você escreve se ele não disser nada a elas, se não ajudar as pessoas a encontrar um sentido para a vida delas?”
“Talvez elas ainda gostem de ler livros que são bem escritos.”
“Isso é bobagem. É a mesma coisa que dizer que se eu fizer uma radiovitrola muito boa ela ainda vai estar sendo usada pelas pessoas no século 25. Mas não vai. Porque uma radiovitrola, por mais benfeita que seja, vai estar obsoleta. Não vai significar nada para as pessoas do século 25.”
“Talvez no século 25 ainda exista uma minoria com curiosidade para saber como soava uma radiovitrola do final do século 20.”
“Colecionadores. Gente que tem hobby. É assim que você pretende passar a sua vida: sentado na sua mesa manufaturando um objeto que pode ou não ser preservado como curiosidade?”
Ele deu de ombros. “Tem alguma ideia melhor?”
We are water | HEALTH
Curte escatologia? Não? Então este clipezinho seboso do HEATLH não é para você. Repare a trama do mini-slasher-movie dirigido pelo comediante Eric Wareheim: na floresta, uma loira (aparentemente) indefesa corre de um serial killer gorducho, babão, peladão e ensanguentado. Um nojo. E o vídeo é só isso: o maior entre os tantos clichês do gênero. Que, observem, ganha um sentido bizarro (e nada trivial) quando sobreposto à atmosfera misteriosa da música. Será que Wareheim não toparia dirigir o próximo Sexta-feira 13?
This is happening | LCD Soundsystem
This is happening, o terceiro disco do LCD Soundsystem, confirma a minha impressão de que, se tivermos sorte, James Murphy vai acabar escrevendo sobre música em alguma revista bacana, tipo New Yorker. Já tem um leitor fiel: eu. Admita: o sujeito é um ótimo cronista do pop que, meio encabulado com o ofício, anda por aí disfarçado de astro indie.
“Criei a banda para explicar o que eu sinto sobre música. A banda é um argumento”, disse Murphy, numa entrevista à Rolling Stone. Já estava meio óbvio: os discos do LCD Soundsystem são os diários de um fã de rock que tirou a tarde para revirar a coleção de LPs.
Você já experimentou esse exercício dolorido que é desenterrar a pilha de LPs (ou, vá lá, de CDs) que jaz no armário da sala? Eu tentei e fui quase asfixiado por lembranças boas e ruins, sensações de alegria, pânico e profunda tristeza. Canções pop têm essa capacidade de compactar episódios do passado, que repousam na nossa coleção até o dia em que, destemidos, resolvemos apertar o play.
James Murphy nasceu em fevereiro de 1970. A maior parte das “memórias musicais” contidas nos álbuns do LCD Soundsystem vêm dos primeiros 10 anos de vida do compositor: o punk rock, o pós-punk do Joy Division, o glam rock de David Bowie, a protoeletrônica do Kraftwerk, a disco music. Isto é: elas não foram adquiridas no calor do momento (a menos que ele fosse um menino muito precoce), mas assimiladas com distanciamento. Em algum momento da vida, Murphy se pegou estudando o pop dos anos 1970.
É por isso que os discos do LCD Soundsystem têm um quê de ensaio, de pensata. Murphy vai organizando as próprias referências como quem compõe uma grande lista de favoritos, um guia musical, uma calçada da fama pavimentada com impressões pessoais. Mas, ao mesmo tempo (como bom fã de rock que é), ele foge do tom saudosista. Faz álbuns contemporâneos de dance-punk que deslocam os heróis do cantor para o tempo presente (talvez para mostrar que eles não envelheceram).
(E vale abrir mais parênteses: na trilha sonora do filme Greenberg, de Noah Baumbach, Murphy provou que sabe reproduzir direitinho uma sonoridade associada aos anos 70. Mas essa não é a onda do LCD)
Dito isso (e que longa introdução, hem?), This is happening me parece um disco muito coerente com o passado de Murphy. Se Sound of silver já soava como uma colagem musical e sentimental, o novo repete o formato e, ao mesmo tempo, amplia as ambições dos anteriores. É daquele tipo de sequência que se segura em pé e ainda engrandece o original.
Cada faixa costura pelo menos dois gêneros que não se dariam muito bem: e, ainda assim, não soam truncadas. You wanted a hit começa como um electropop adocicado, se transforma num dance-funk repetitivo e ganha um tom amargo quando Murphy começa a discursar sobre as cobranças da gravadora, dos fãs, dos críticos. No fim, um enxame de barulhinhos eletrônicos toma conta da mixagem. “Você quer um hit. Não fazemos hits”, diz.
Já All I want é uma sanduíche de Blur com Sonic Youth, tomado pela poeira de guitarras distorcidas. I can change é Kraftwerk remixado para um disco da Madonna. A faixa mais direta (e mais curta) é Drunk girls, uma espécie de hino hooligan inconsequente (e descartável). Modelar o caos é uma arte que Murphy domina bem.
Se This is happening é um objeto sonoro indefinido (mas também familiar, estranhamente coeso), as letras trazem de volta o James Murphy inseguro, irônico e autodepreciativo que conhecemos. “Você quer esperteza. Honestamente, eu não sou esperto”, admite, em You wanted a hit. Em All I want, um esboço de love song (e parente próximo de All my friends), ele faz a declaração de amor mais desastrada do planeta: “Tudo que eu quero é que você sinta pena de mim”, implora. “Eu posso mudar, se isso fizer com que você se apaixone por mim”, se arrasta, em I can change.
Se Sound of silver era um disco sobre a idade adulta, o peso do tempo (todos os amigos ficaram para trás, alguns morreram e até Nova York provoca tristeza), This is happening, sem um tema central, deixa a sensação de desconforto com o showbusiness e com a necessidade de cumprir expectativas, de fazer o trabalho.
Murphy já anunciou que este será o último disco do LCD Soundsystem. Soa mesmo como uma despedida. O argumento está completo, fechado. Entendemos o recado. Em três discos, ele escreveu um roteiro para a música que ama: emotiva e cerebral, dançante, inventiva, surpreendente. Está tudo aqui. This is happening não soa tão preciso ou forte quanto Sound of silver (e não me vejo ouvindo Pow Pow muitas vezes). Mas não faltam ao álbum a franqueza (quase constrangedora) e a paixão (à flor da pele) de um fã que, por acaso, virou ídolo.
Parece até um disco que sintetiza nossos desejos musicais. E que poderia ter sido escrito por você, por mim, por gente comum e banal que se emociona com a coleção empoeirada de discos. É claro que não poderia. Mas a graça está nessa ilusão.
Terceiro disco do LCD Soundsystem. Nove faixas, com produção de The DFA. Lançamento DFA Records. Ouça o disco na íntegra aqui. 8/10
2 ou 3 parágrafos | Alice no país das maravilhas
Mais do que uma decepção, este Alice no país das maravilhas (3/5) me pareceu foi um grande de um mistério. Saí da sessão disparando perguntas às paredes. Por que Tim Burton resolveu criar uma adaptação de Lewis Carroll que mais parece uma homenagem ao C.S. Lewis (com cenas de batalha pra lá de Nárnia)? Por que o nonsense hilariante do livro foi praticamente limado do roteiro de Linda Woolverton? Por que os efeitos 3D resultam achatados e pálidos? Por que, nos momentos mais mecânicos, a trama poderia ter saído de uma reunião da equipe de marketing da Disney?
Sim. É sério. E vai me dizer que você não conhece o Guia Disney para faturar alto, conquistar o maior número de pessoas e arruinar um clássico da literatura? 1. Transforme a protagonista numa aborrecente de 19 anos (caso contrário, este seria um filme infantil), 2. Adapte o livro ao modelo de fitas de aventura com um quê épico, pós-Senhor dos anéis, 3. Dê de presente ao Johnny Depp mais um tipo bizarro, 4. Escolha um cineasta que garanta ao longa um certo ar de relevância, 5. Exiba cópias em 3D, 6. Inclua uma música insuportável da Avril Lavigne na trilha sonora, 7. E boa viagem!
Ok, vamos falar sério (é que pode não parecer, mas eu gostei do filme). O que me agrada neste Alice não é a forma muito perversa como Burton transfigura o espírito de uma obra-prima (até as minhas expectativas foram desafiadas: eu queria um filme mais sombrio, cruel, um milkshake de Sweeney Todd com A fantástica fábrica de chocolate, entende?), mas as sutis peripécias do diretor, que constroi um “país das maravilhas” decadente e desolado, sob a névoa da guerra e do autoritarismo. Um inferno. Há uma cena em que a jovem Alice lembra dos dias de criança: o contraste com o resto do filme é absoluto. A personagem de Carroll vivia num mundo mais colorido, um delírio infantil. Mas a festa já acabou quando a heroína de Burton desce à toca do coelho. Novamente, no entanto, é na fantasia que a personagem vai se armar para enfrentar a “vida real”. E, se o diretor parece um pouco desinteressado com essa batalha, talvez seja até compreensível: ao longo da carreira, Burton “filmou” Lewis Carroll de tantas formas diferentes que este novo hit da Disney deixa a sensação de ser a mais banal entre todas elas.
Superoito express (21)
Subiza | Delorean | 7
O Delorean é um quarteto espanhol que soa como uma banda sueca de electropop. Eles saíram em turnê com o jj e o Miike Snow (que são suecos), foram remixados The XX e Franz Ferdinand (que são britânicos) e criam trilhas sonoras para fins de tarde em Ibiza (uma ilhota espanhola que os turistas europeus a-do-ram). Sabe aquilo que chamam de pop global? Pois bem. Se você ouvir este disco numa tarde chuvosa, ele vai te transportar para uma praia exótica, com areia branquinha e macia. E, claro, frequentada por gringos pegajosos que curtem house e farofada.
Resumindo: Subiza não é exatamente o paraíso. Se você encana com a superficialidade escancarada (e meio cínica) do indie-dance sueco, não recomendo esta pílula doce. Mas admita: não são muitos os que conseguem criar esse tipo de atmosfera delicada/arejada/ensolarada sem descambar para a lounge music de desfile de moda que encontramos naquelas coletâneas da boate Café del Mar (que fica em Ibiza, veja lá). E há lindos cartões-postais, como Real love e It’s all ours, que soa como as férias secretas do Animal Collective. Eis o paradoxo deste disquinho de vento: quanto mais você ouve, menos rasteiro parece.
jj nº 3 | jj | 7
O segundo LP do jj começa tão bem que deixa qualquer um com vontade de sugerir que a dupla regrave todas as outras oito faixas. E My life, o grande início, não deveria ser mais do que uma introdução. Mas, para roubar a cena logo nos créditos de abertura, a continuação de Ecstasy soa como uma homenagem ainda mais estranha à marra do hip-hop americano (eles se apropriam de versos do Lil Wayne gravados pelo rapper em uma música do The Game) e o mais próximo que a banda chegou do espírito noir típico do trip hop. A letra, sobre prisões e crimes, é veneno azedo no refrigerante do duo, que vai se aproximando aos poucos da soul music. Uma delícia. O restante do álbum é quase tão irresistível quanto, ainda que pareça um esboço para o próximo disco (And now e Let go são flechadas no peito). De qualquer forma, é muito bom conhecer uma banda que só precisa de 27 minutos para nos conquistar.
The wonder show of the world | Bonnie “Prince” Billy & The Cairo Gang | 6
Apesar de acompanhar com muito interesse o rastro de Bonnie ‘Prince’ Billy, reconheço que os melhores momentos do caubói são os solitários. O estilo dele, creio eu, até se beneficia dessa imagem de isolamento: o que ouço em discos como The letting go e Ease down the road é um homem (no máximo, ao lado de uma mulher misteriosa) numa pequena sala. A exceção é o ótimo Superwolf, com Matt Sweeney. No projeto com o Cairo Gang (do guitarrista Emmett Kelly), Billy volta a cantar o tema preferido (a vida em família, com tudo o que há de sublime e assustador) sem a força de um disco muito parecido com este: Lie down in the light, de 2008. A guitarra jazzística de Kelly deve ter atraído o compositor a experimentar uma sonoridade um pouco diferente e espairecer um pouco. Mas, à exceção da primeira música (Troublesome houses), o álbum dá giros lentíssimos em torno de uma ideia já desgastada.
Head first | Goldfrapp | 5.5
Fico com a impressão de que, desde o momento em que se assumiu como uma banda pop (Black cherry, de 2003), o Goldfrapp passou a se preocupar demais com a necessidade de acompanhar “tendências” de pistas de dança e de surpreender o público com mudanças abruptas de figurino. Depois de Seventh tree, o “álbum folk” (no auge do neo-folk americano), este Head first pega a onda do electropop oitentista que voltou às rádios inglesas como o La Roux e o Little Boots. Novamente, me parece apenas uma tentativa desesperada de não perder o bonde. Rocket é um single divertido, mas o disco soa apenas como o lado B de um greatest hits da Kylie Minogue. Rasteiro. E agora, com o retorno do Portishead e do Massive Attack, quem sabe Alison não resolve retornar ao ponto onde o disco de estreia parou?
Mixtape! | O melhor de março
Como diria B.B. King, a mixtape de março é for the ladies. Uma jukebox muito fina, ocasionalmente delicada (e fofa, em alguns trechos). Sei que esta afirmação pode parecer muito arrogante, mas não sou de guardar segredos: é a melhor coletânea amadora de todos os tempos.
Vocês não acreditam em mim, não é? Então aguardem.
O meu disco favorito de março é, aliás, de uma dama muito fina e valentona: o triplo (triplo? Triplo!) Have one on me, de Joanna Newsom. Mas, como a moça já apareceu na coletânea do mês passado, ela cede lugar ao sujeito estranho da foto acima: Dan Snaith, Mr. Caribou, é o autor do segundo grande disco de março: o flutuante Swim, que (lá vai outro segredo!) já entrou na minha lista dos 10 de 2010. Não sou o único fã: os bróderes doFranz Ferdinand rodou quatro faixas do disco antes do show que fizeram aqui em Brasília. E neles vocês confiam, não é? Pois é.
Mas vamos logo à melhor mixtape amadora de todos os tempos, ok? Reconheço que essas águas de março são até calorosas. Eu estava ouvindo as coletâneas dos meses anteriores e notei que são todas um tanto deprês, coisinhas tristes (mas muito bonitas, é claro). Resolvi juntar algumas músicas que não estragassem o nosso dia – e que, nos momentos mais elétricos, servissem para adeptos de bicicletas ergométricas e outros aparelhos de ginástica.
Foi com esse espírito saúde-é-o-que-interessa que comecei a definir as faixas. Mas aí percebi que, nas minhas mixtapes, tristeza é acorde maior. Essa minha tão típica indecisão resultou num CD em três movimentos: ele começa bem sacolejante, se embrenha numas guitarradas ruidosas e termina feito sussurro. Importante: soa escancaradamente agradável do início ao fim. Tem o lamento (muito tocante) de Rufus Wainwright, os adoráveis bebuns do LCD Soundsystem e do Drive-By Truckers, além de MGMT, Gorillaz, Lightspeed Champion, jj (com uma homenagem arrepiante ao Lil Wayne e ao The Game), She & Him…
Para manter uma certa discrição, a lista de músicas está ali na caixa de comentários (espero que os arquivos durem um pouco mais do que os anteriores). Sugiro que vocês ouçam o CD na ordem que eu defini. Garanto que desse jeito (e apenas desse jeito) ele fazer sentido.
Faça o download da mixtape de março aqui (ou, se preferir, aqui).