Mês: fevereiro 2011
Os discos da minha vida (29)
A saga dos discos que incineraram a minha vida chega a um episódio muito-muito caloroso: dois clássicos da minha discoteca particular. Bolachinhas sagradas que ouço com cuidado, até para não evocar as santas melodias em vão.
God bless ‘em.
Antes que você novamente se confunda todo, deixe-me explicar as regras deste ranking fervente: são 100 álbuns, organizados numa ordem mui subjetiva que diz respeito apenas a este que vos escreve.
Se você perguntar “Tiago, qual é o critério desta bagunça?”, eu vou gaguejar, olhar para o teto e correr soluçando pro banheiro. Foi mal, gente, são normas sentimentais e sentimento a gente não explica, a gente sente, a gente experimenta, a gente vibra, etc.
Entenda o seguinte: são os discos que, de certa forma, fizeram de mim um homem mais plano. Uma pessoa mais humana, mais vertebrada, mais gente. Manja? Então. E desculpe se pareço meio meloso hoje – é que acabei de sair de um desses fins de semana que amaciam nosso coração, um desses fins de semana que convertem assassinos mancos (não era meu caso, tou usando exemplo!) em missionários pacíficos, em ativistas ecológicos.
Não me culpem. Está tudo bem. Tudo azul. E não pensem em abandonar o blog por conta disso. Vai ficar bom. Vai ficar melhor. Vai ter bolo!
Antes que eu me afogue de vez no meu idílio (e taí uma das 1001 coisas que você precisa fazer antes de morrer: se apaixonar), continuamos com a longa caminhada rumo ao meu disco-xodó-number-one, que vai aparecer aqui sabe-se lá quando (talvez no dia de São Nunca, há!). E, se você não conhece estes dois discos aqui, o download é obrigatório, sem desculpa. Certinho? Então tá (e me despeço usando minhas mãos pra fazer o sinal da pomba da paz, té mais).
044 | Stankonia | Outkast | 2000 | download
Ouvi tantos discos de hip-hop que não há como fazer a soma, e (em algum momento eu teria que admitir isso, que seja agora) fui sim um daqueles adolescentes cagalhões que invejam os negões do rap por motivos que nem eles – os adolescentes cagalhões – conseguem explicar. Mas eu poderia resumir todos os meus discos preferidos do gênero neste aqui, Stankonia. Tudo o que admiro no hip-hop (e no Outkast) está contido nestas 24 faixas: fúria & franqueza, poesia & putaria, invenção & curtição, graça & troça. Os discos de Big Boi e Andre 3000 são incontroláveis e excessivos por natureza (e é disso que gostamos), mas este aqui faz do caos uma espécie de parque temático, um saboroso bufê de mil opções. Um disco que deseja loucamente nos atiçar com sons e ideias que talvez não tenhamos ouvido em outro lugar – e faz de tudo para cumprir um objetivo que, honestamente, me parece um dos mais dignos quando se fala em música pop. Top 3: Ms Jackson, So fresh so clean, B.O.B.
043 | Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band | The Beatles | 1967 | download
Quando eu era um moleque e precisava de orientação para não me preder na Beatlecity, meu pai sempre foi o meu pastor. E ele dizia o seguinte: “Sgt. Pepper’s soa como o melhor disco do mundo, todos estão certos. Mas não ouça muito. Que enjoa.” Daí que talvez eu tenha ficado com medo dos riscos de me apegar demais ao álbum. No catálogo do fab four, é o que menos ouvi – mas cada audição, talvez como uma recompensa pela parcimônia, provoca em mim o efeito brutal de um descobrimento. A mais recente, quando comprei a versão remasterizada do CD, me deixou às lágrimas, percebendo detalhes que eu não havia reparado antes. Nem sei se eu deveria incluir este disco no ranking porque não faço ideia se já o entendo. E não há exagero nisso: todos os outros discos dos Beatles me parecem tangíveis. Este aqui soa perfeito, por isso intocável, por isso misterioso. Não sei se enjoa (talvez sim: é um álbum preciso, mas composto por canções barrocas, exuberantes, que talvez cansem quando não se está no espírito para guloseimas de mil folhas), mas continuo seguindo a recomendação do meu pai. Ouço sim. De vez em quando. Top 3: A day in the life, She’s leaving home, Good morning good morning.
Grow up | Danielson
Neste clipe de beira de estrada, o jardineiro/andarilho Daniel Smith vai à floresta dos tormentos: “Quando eu crescer vou me reconhecer?”, ele pergunta, numa das minhas canções favoritas deste início de ano. É uma das grandes faixas do disco Best of Gloucester County, que não fica muito melhor que isso (prometo um comentário em breve, se minha rotina maluca deixar). A direção é de Ben Stamper, que parece ter entendido a psicodelia pé-no-chão do Danielson.
Superoito express (36)
Let England shake | PJ Harvey | 7.5
Quando o contista que sempre escreve livros em primeira pessoa, íntimos, resolve lançar um romance histórico em terceira pessoa, o leitor fiel primeiro estranha e depois entende que, no desvio inesperado, o ídolo se põe nu. Soa como uma especie de recomeço. Na saga de PJ Harvey, Let England shake é essa obra que desorienta: musicalmente, a cantora permanece numa zona de conforto (cercada por uma “guarda real” que inclui o parceiro John Parish e o produtor Flood), mas o tema e o contexto das canções — que poderia render um roteiro de filme de guerra pra inglês filmar — obriga a cantora a romper o próprio estilo num ponto fundamental (e vou explicar de um jeito singelo, mas lá vai): em vez de olhar para dentro, ela agora olha para fora.
Daí que, se o disco não chega a parecer um objeto totalmente estranho dentro do repertório de Harvey (a sonoridade, uma espécie de folk rock despedaçado, lembra um pouco A man a woman walked by, que ela gravou com Parish em 2009), me parece o mais arriscado de uma carreira com muitos riscos. É que, no momento em que ela se obriga a seguir um “script” e ir descendo ao passado sangrento da Inglaterra (e com toda uma pesquisa musical que é aparece de modo sutil, um pouco como uma atualização das war songs de Dylan), ela deixa de depender do tal “ponto de vista feminino” que conduziu discos inteiros, como Uh huh her (2004) e Is this desire? (1998). Não serei eu a desconsiderar um esforço desses.
Mas acredito que essa transformação — que tanto entusiasma os fãs do disco — acaba escondendo ou até compensando as fragilidades do álbum, como se fosse o suficiente para provar que Harvey é uma grande artista. Quanto mais ouço, menos forte, menos “importante” ele parece. Principalmente a segunda parte, quando as ideias de Harvey (tanto musicais quanto poéticas) vão se quebrando em pequenas narrativas que se dissolvem no ar. Já a primeira parte contém, de verdade, algumas canções valentes: The words that Maketh Murder levaria Nick Cave às lágrimas, e a balada England, que parece convidar o espírito de Joan Baez para bater um papinho com Joanna Newsom. Mudar de perspectiva é um desafio para Harvey, mas me pergunto se ideias monumentais não deveriam vir acompanhadas de canções um pouquinho mais corajosas. Admirável, mas não consigo cair de amores.
Here we rest | Jason Isbell and the 400 Unit | 7
É o disco em que entendemos, muito didaticamente, por que Jason Isbell saiu do Drive-by Truckers, para onde provavelmente nunca voltará. Enquanto a banda procura um country rock lascado, que combine com personagens degenerados, o som de Isbell se torna cada vez mais polido, como se o objetivo do compositor fosse as paradas de sucesso para o público “adulto contemporâneo”. Dito isso, lembro que Isbell é um compositor tão talentoso quanto a dupla principal dos Truckers e, se a produção do disco higieniza tudo o que encontra pela frente, as canções sobrevivem a esse perfume de “soft rock”. É um disco para os fãs de Sky blue sky, do Wilco, e de The king is dead, do Decemberists: melodias aparadas, sem fissuras, como pedaços de madeira talhados com esmero e amor pelo ofício — no mais, Alabama Pines, Codeine e Stopping by são canções que o Uncle Tupelo lançaria com muita alegria no início dos anos 90.
12 desperate straight lines | Telekinesis | 7
Aprendam aí, Jonas Brothers: Michael Lerner cumpre todos os mandamentos do power pop, mas nem por isso soa como se estivesse diluindo o repertório do Fountains of Wayne e do Wings. Os discos do Telekinesis são aparentemente muito simples, quase tolos (o riff estrondoso, os versos cheios de tristeza juvenil, o refrão que ilumina uma cidade inteira; tudo isso em menos de três minutos), mas também muito precisos nesse tentativa de explorar tudo os fundamentos do gênero: franqueza, doçura, alguma melancolia. Está tudo no título: 12 linhas retas e desesperadas. Em 50 ways, Lerner cita Paul Simon (mas soa como uma versão nervosa do The Shins). Em Car crash, fala sobre um caso de amor que começa bem até o momento em que você começa a se sentir tão sozinho. Em Dirty thing, narra o início o meio e o fim de um namoro de verão. Não tem muito happy end por aqui. E é tudo muito dolorido, ainda que pareça fácil.
Hotel Shampoo | Gruff Rhys | 6
Lembro que, quando ouvi Rings around the world (2001), imaginei o seguinte: quando o Super Furry Animals assumir de vez, sem culpas, o amor por Burt Bacharach, talvez grave o disco pop mais bonito do mundo. A banda sempre ficou em cima do muro em relação a isso, mas, 10 anos depois, Gruff Ryhs parece praticar essa ideia de “disco de easy listening” com este Hotel shampoo. A má notícia é que, além de não ser o disco pop mais bonito do mundo, o álbum joga água na feijoada de Rings around the world, amenizando quase tudo o que aquele disco dizia. Se aquele era um álbum que brilhava forte no escuro, Hotel shampoo é de pelúcia, uma tentativa meio estabanada de pescar e adoçar algumas referências do rock dos anos 60. Sem muita convicção. Como se Gruff avisasse: estou brincando de ser gentil, aguardem o meu próximo disco. E, apesar de faixas muito boas (como Candy all over), acaba soando, no máximo, engraçadinho.
Os discos da minha vida (28)
Sem tempo para os 100 discos, meus amigos. Escrevo este post enquanto devoro um prato de macarrão, telefono para minha mãe, organizo as contas do mês e preparo a lista de compras (supermercados congelam a minha alma). Parece simples. Não é.
Ainda assim, apesar de tudo, resistindo a chuvas e terremotos, cá está mais um episódio da saga dos álbuns que sequelaram a minha vida. Queimando pneus a 120 por hora.
Outro dia eu estava pensando em, depois deste ranking (que só deve terminar em 2020, mas não tenho pressa), criar uma lista também muito pessoal com os 100 filmes que eu levaria para uma videoteca secreta. Mas aí pensei: será que compensa? Será que eu mereço? Toda essa batalha. Toda essa epopeia. Todo esse suor. Todo esse drama. Todas essas piadinhas infames. Não, não, talvez não.
Me afogo em trabalho e aí percebo que minha vida não é tão espaçosa quanto imagino. Não é furgão; é fusca. No mais, talvez eu tenha que pisar o freio e ficar parado no acostamento um tempinho, admirando a paisagem.
Enquanto isso não acontece, vamos à rotina.
Os álbuns de hoje representam duas vertentes desta lista. A dos discos que entraram na minha vida com um chutão na porta – impossível ignorá-los. E a dos discos que me ensinaram quase tudo o que sei sobre música pop. Ambos fundamentais – e não sei se pra você também.
046 | Is this it | The Strokes | 2001 | download
Talvez tenha sido apenas um delírio coletivo, mas, quando Is this it foi lançado, soava como o melhor disco do mundo. Parecia tão primário e ao mesmo tempo tão irresistível – riffs e ruídos, verso e refrão -, e talvez por isso deixava a impressão de estarmos começando de novo. Esqueça todos os ídolos: o rock, no nosso rock (que, num surto de euforia, foi apelidado de novo rock), nascia ali. Com o passar do tempo, ficou até um tanto embaraçoso explicar por que este álbum tão sucinto, um resumo do pós-punk de Nova York (numa coleção de singles de dois, três minutos de duração) foi acolhido como um marco. Mas talvez devamos tomá-lo como o sintoma de um período muito específico – o início do século, o começo dos anos 00. Com o placar zerado, o Strokes entrou em cena como um bando de pioneiros. Posudos, estilosos, irônicos, ridículos. Nos tomaram pelo braço. E com eles nós dançamos como se fosse a primeira noite. Top 3: Hard to explain, Last nite, Take it or leave it.
045 | The Who sell out | The Who | 1967 | download
Há, é claro, as gravações gigantescas, destemidas, ousadíssimas, que afirmam as possibilidades do álbum enquanto obra, enquanto conceito, enquanto aventura humana (e aí eu penso em Zaireeka, o disco quádruplo do Flaming Lips, que só consegui ouvir integralmente uma única vez, com a little help of my friends). Mas The Who sell out, apesar de ser geralmente incluído nesse Clube dos Grandes Álbuns (com maiúscula), tem uma história um pouco diferente: existe uma ideia forte que sustenta o projeto (soa como se transmitido por uma rádio pirata), mas o humor venenoso do grupo vai corroendo esse arcabouço até nos deixar confusos sobre as intenções do projeto. Autoparodia ou não, piada interna ou não, é um exemplo de que ambição nada tem a ver com sidudez: pode ser hilariante e prazeroso fazer um Álbum, principalmente se você tem à disposição algumas das canções mais saborosas dos anos 60. Top 3: I can see for miles, I can’t reach you, Rael.
The king of limbs | Radiohead
Já passamos da metade de King of limbs, o oitavo disco do Radiohead, quando Thom Yorke sugere, num falsete: “Vamos afundar e ficar em silêncio como camundongos. Enquanto o gato está longe, podemos fazer tudo o que quisermos.”
O trechinho deve inspirar dezenas de interpretações. Eu vejo assim: ele ajuda a entender o temperamento de uma banda que preza a liberdade – mas entende que não se pode conquistá-la sem alguma coragem, sem algum atrevimento.
A trajetória do grupo – principalmente desde Kid A (2000) – conta a história de cinco ingleses que viram a necessidade de criar um território particular, um lugar no mundo, para habitar e fazer tudo o que quisessem.
Esse desejo se manifestou num gesto musical (a “banda de canções” se transformou numa “banda de ambiências, de experimentos”) e também comercial, quando o quinteto rompeu com a EMI e passou a lançar discos por conta própria, criando ou reinventando as regras do próprio jogo.
A música passou a acompanhar as mutações comerciais, até porque eles sabem que não se consome discos como na época de The bends (1995) ou Ok computer (1997). A questão passou a ser: como uma banda pop deve se portar diante de um público que, quando começou a baixar músicas aceleradamente, desmistificou todo o esquema de divulgação e vendas criado pelas grandes gravadoras? Como lidar com um público que perdeu a inocência?
Com In rainbows (2007) e a estratégia do “pague quanto quiser”, o Radiohead criou um pacto com os fãs (os convidou para uma experiência de audição coletiva, mundial, sem área VIP para jornalistas) e descobriu uma forma de ganhar dinheiro com o vazamento do disco, sem brigar com o fato de que a troca de arquivos se tornou inevitável.
Musicalmente, o que surgiu foi uma banda também mais independente, mais relaxada (no bom sentido), despreocupada, mais acessível do que nos tempos de Kid A, amolecida por uma certa inspiração de soul music, uma massa eletrônica por vezes acolchoada, sensual. Não demorou para que aparecesse o veredicto: um Radiohead mais “humano”.
Tanto do ponto de vista comercial quanto musical, The king of limbs dá alguns passos para trás em relação a In rainbows. Em vez de permitir que o público pagasse o quanto preferisse, o grupo estipulou um valor para o download (US$ 9, para a versão em MP3). Em vez de planejar um capítulo novo para o som da banda, gravaram um disco que nos remete aos cacos de outros que já lançaram.
O que pode incomodar, acima de tudo, é a impressão de acomodação. Na manhã de sexta-feira, a experiência de audição coletiva se repetiu exatamente como eles planejaram. Já a sonoridade do disco, dividido claramente em duas partes, tenta uma conexão entre os momentos mais arredios da banda (a fase Kid A/Amnesiac, agora com tempero dubstep) e a languidez de In rainbows.
O encontro entre esses dois “estados de espírito” produz um disco de beleza incomum, difícil – um álbum quebradiço, assimétrico, incompleto, frágil, cujas peças não se encaixam. Provoca, por isso, algum mal estar. Tenho quase certeza, porém, que essa sensação de desconforto estava nos planos da banda.
Isso porque, desde In rainbows, Yorke critica o formato tradicional do álbum. Numa determinada entrevista, avisou que abandonaria de vez os discos – via internet, distribuiria conjuntos de canções, lançadas tão logo fossem gravadas. A banda voltou atrás, mas The king of limbs é um espelho dessas incertezas: ele acaba soando mais como uma reunião de faixas criadas durante um determinado período do que uma obra coesa, envolvida num conceito bem definido. Nesse ponto, lembra Hail to the thief (2003), que também apontava várias direções sem saber (ou sem querer saber) onde aportar.
As ligações entre as faixas são quase etéreas, e aparecem nas imagens de natureza (em Bloom, Lotus flower e em Codex, em que um lago representa a pureza) e em arranjos circulares, percussivos, por vezes alienígenas (o loop de Morning Mr. Magpie, por exemplo), quase sempre amparados na bateria jazzística de Phil Selway e no baixo de Colin Greenwood, que mostram o quanto a banda está ouvindo Flying Lotus e congêneres. “Obrigações, complicações, rotina e agenda, te drogam ou te matam”, diz Little by little, quase num remake da paranoia de No surprises.
Na segunda parte, piano e violão vão amenizando uma atmosfera de tensão e desencanto. Em vez de espezinhar o público, Yorke passa a confortá-lo. “Ninguém se machuca, você não fez nada errado”, em Codex. “Não me assombre”, pede Give up the ghost. O álbum termina dentro de um sonho bizarro e irresistível, de onde o narrador não quer acordar.
Até por ser curto (38 minutos), o disco parece aconselhar que voltemos às faixas várias vezes, até que nos familiarizemos totalmente com elas. Existe nessas músicas, até nas mais selvagens (Feral, digamos), uma aparência de criação doméstica, um som íntimo, sem bordas arredondadas ou produção padronizada, um som que dá a ideia de algo autêntico, que faz do ouvinte um cúmplice. O fã do Radiohead às vezes pode se sentir participando dos discos.
Desde que se livrou das obrigações da indústria musical, o Radiohead passou a procurar no próprio estilo, na própria tecnologia digital de gravação, a pureza que encontra nos elementos da natureza e que, para a banda, é corrompida pela vida urbana – mecanizada, artificial.
O título do disco, não à toa, vem de uma árvore com mais de mil anos de idade. Raízes bem firmes na terra. Em The king of limbs, o Radiohead vai se infiltrando lentamente nas profundezas do terreno que criou para si. Sem todas as surpresas que sempre esperamos dele (por isso, um disco que pode parecer um tanto frustrante). Mas talvez o momento seja de mapear o habitat: enquanto o gato não vem, os camundongos sonham.
Oitavo disco do Radiohead. Oito faixas, com produção de Nigel Godrich. Lançamento independente. 7/10
Lotus flower | Radiohead
Não se sabe ainda qual foi o assunto mais comentado do dia: o disco novo do Radiohead, The king of limbs (que nasceu prematuramente, mas já está aí bagunçando o quarto de brinquedos), ou a dancinha michaelstipeana de Thom Yorke neste clipe de Lotus flower. Talvez simplezinho demais, mas um bom convite para um disco que evita movimentos bruscos. Enquanto não escrevo sobre ele, taí o aperitivo.
Os discos da minha vida (27)
O capítulo de hoje da indomável saga dos 100 discos vai ao habitat de uma espécie perigosa: os discos aparentemente mansos sobre sentimentos selvagens.
Cuidado com eles.
Antes de escrever alguns garranchos sobre esses dois álbuns tortuosos – e extraordinários – preciso lembrar-lhes das regras deste ranking. Isto aqui é uma seleção absolutamente pessoal de discos que foram pontilhando alguns dos momentos mais importantes da minha vida. É isso e só isso.
Portanto, nada de vir reclamar que o disco X está muito atrás do disco Y, ou que o disco Z foi subestimado e que o disco K, ignorado. A brincadeira não tem nada a ver com isso. E, sem querer ser grosseiro, tem muito pouco a ver com você – ainda que eu recomende com força o download de desses álbuns, que continuam me emocionando ano após ano.
Muitos dos discos desta lista fazem parte do cânone da música pop. Vocês o conhecem ou ouviram falar sobre eles. Há uma parte desse ranking, no entanto, que correu pelas bordas dos top 10s e, na opinião deste blogueiro, merece um pouco da sua atenção, ó leitor. É o que acontece neste episódio de número 27. Um deles é o clássico. O outro é aquele que, num mundo perfeito, seria um clássico.
Não estamos num mundo perfeito, eu sei, mas este blog tem uma missão a cumprir.
048 | Mighty Joe Moon | Grant Lee Buffalo | 1994 | download
Muito antes de integrar o elenco de Gilmore Girls e de gravar discos com alguma maquiagem pop, Grant-Lee Phillips era o homem dos falsetes infinitos, que parecia ter encontrado um atalho secreto para conectar a rusticidade do country rock com a sensualidade do glam. Fuzzy, da estreia, é a canção indie mais sexy dos anos 90 – mas é no segundo álbum que o som do Grant Lee Buffalo explode em milhares de cores numa tela gigante de Drive-in, sem a vergonha de nos seduzir com efeitos de estúdio e riffs que se lambuzam com as apelações do hard rock. Como os discos que Elliott Smith gravou para a Dreamworks, este também apresenta uma versão compacta, pontiaguda (talvez polida) de um estilo já totalmente pronto. Talvez não seja o melhor da banda, mas é aquele que esconderemos para sempre nos nossos armários, junto com os velhos gibis soturnos e as blusas de flanela: um disco perfeito para uma época que menosprezava discos perfeitos. Sugiro o seguinte: dane-se a época, fiquemos com o disco. Top 3: Mockingbirds, Rock of ages, Drag.
047 | Astral weeks | Van Morrison | 1968 | download
Talvez o disco mais difícil da minha adolescência: não foi na primeira, nem na segunda, nem na terceira tentativa que finalmente consegui comprar o tíquete para a terra nebulosa – mágica, não duvide – de Van Morrison. É um dos álbuns mais importantes dos anos 60, principalmente por catalisar uma série de signos da contracultura: o lirismo beat, o folk à Dylan, o jazz e o blues, o misticismo riponga e a imagem de liberdade anexada à figura de um homem que inventa a própria bússola e assim desbrava o mundo, sem lenço ou documento. Mas (e vocês querem sinceridade, certo?) eu só consegui me afeiçoar por ele quando percebi que ele pode ser compreendido como uma das seções de O som e a fúria, de Faulkner: um narrador que, com uma voz muito particular, tenta dar conta de um ambiente. Admita: você nunca vai entender verdadeiramente o que Morrison quer dizer. Mas olhar o mundo através dessas canções ainda pode ser uma experiência fascinante. Top 3: Cyprus Avenue, Madame George, Astral Weeks.
We’re new here | Gil Scott-Heron & Jamie xx
Meu primo mais crescido – o primo que imitávamos, o primo que venerávamos, o primo que queríamos ser quando um pouco mais velhos – fazia música. Sim. Não que ele soubesse algo sobre a técnica do violão ou da guitarra (era um vexame até no pandeiro, que todo mundo pensa que sabe tocar), mas entrou para a nossa história como o sujeito das melodias fantásticas, o chapa da ginga, o bacana e o máximo.
Ok, sem rodeios: meu primo era funkeiro.
Funk carioca, manja? Início dos anos 90, ‘o que eu quero é ser feliz’, o som ingênuo e tosco que invadia as festinhas e puxava as meninas para dançar passinhos coreografados. Lembra? Lembra? Eu lembro.
E lembro porque meu primo foi um dos tantos aspirantes a Claudinho, a Buchecha, a MC Qualquer Coisa – no bairro onde morávamos, no Rio de Janeiro, era um sonho que toda uma comunidade de petizes parecia compartilhar. Mas meu primo, como acontecia muito, tombou na pista. Abandonou o batidão para cuidar das três filhas, trocou de esposa duas vezes, trabalhou para encher panelas, até fez de conta que nunca pensou em ser médico, mas tudo isso é outra história e cá estamos fugindo novamente do assunto.
Voltemos ao funk, que este é um post sobre o funk.
Para meninos como eu, o funk não era nada. Era uma brincadeira, no máximo uma boa bobagem, uma distração, uma troça. Ao mesmo tempo, era um mundo. Era uma música, sim, mas não qualquer música. Era uma música que parecia ser nossa, dos garotos da periferia, dos subúrbios, dos bairros pequenos. Parecia brotar dentro dos nossos quartos. E às vezes brotava mesmo.
Testemunhei pelo menos três músicas nascendo – e nascendo de parto normal, na varanda do meu primo. Ele sorridente, malandro, sobrepondo batidas singelas e criando versinhos tolos, depois gravando as camadas e exibindo o mix a meninos perplexos, abismados, estupefatos com a novidade: ‘diga a verdade, primo, foi você quem fez? Você? De verdade?”
Era o barulho de uma revelação. Pedíamos para que ele rodasse a música de novo. A mais ordinária. A mais vazia. A mais barata. E rodava de novo. Mais uma vez, e a danada rodando, grudando nos nossos pensamentos, se instalando para sempre.
Lembro daquela sensação febril. De querer engolir uma música. De querer papar a canção com ketchup, maionese e fritas. De querer tomá-la e não devolvê-la. Roubo. Coisa feia e suja. Um susto. Ouvir os funks ridículos do meu primo – que nem funk eram, meu primo nem sabia quem era George Clinton ou James Brown – fez de mim um devoto da arte pueril e anêmica, que nasce quase por acidente, que não tem valor algum, que nos agride inocentemente. Tudo isso, percebi naquela época, pode ser algo belo.
E (pode parecer uma heresia, mas não consigo evitar) lembro dos funks do meu primo – em frangalhos, ocos, mas, na minha infância, mais inspiradores que a sétima de Beethoven – a quando ouço discos como a estreia de James Blake (meu favorito de 2011, por enquanto) e estes remixes de Jamie xx para Gil Scott-Heron.
Não porque são discos paupérrimos, juvenis – nada mais distante da realidade. Mas porque eles provocam em mim o tipo de entusiasmo ingênuo, de criança, que aquelas aberrações domésticas provocavam. São discos que apontam para nossas fuças e dizem: eu sou um pouco como você; e você, se tivesse um pouco mais de talento, poderia ter me criado.
São álbuns que podem despertar uma intensa impressão de proximidade (ainda que falsa). Existe um quê de motivação punk nesses projetos. Do it yourself. No caso de Jamie xx, ainda mais. Temos aqui um disco incomum de remixes, que só encontra pontos de contato nos mashups de Danger Mouse, especialmente The grey album. Com a arrogância feliz de um adolescente, Jamie desmonta e reinventa o linguajar de Scott-Heron.
Um daqueles discos complicados que soam fáceis, sim. Mais do que isso, um daqueles discos atrevidos, que impõem uma identidade à prática do decalque, do “recortar e colar”. Eu admiro.
Desde a estreia do The xx, Jamie exercita um pop lacunar e sutil. É com essa palheta de cores escuras que ele cria uma atmosfera onde os versos, a fala de Scott-Heron se movimentam e respiram. Isso sem a necessidade de preencher todos os espaços, todas as crateras que marcam as canções do sujeito que, há um ano, lançou o assombrado I’m new here.
Aquele é um disco, aliás, que ainda me perturba um pouco. Não consigo escrever sobre ele, talvez por me parecer autoexplicativo. O que temos é a voz de um velho poeta americano, que viveu muito, que talvez nem esteja mais tão lúcido quanto imaginamos (hematomas expostos) – isso, a voz, as ideias, as lembranças, e quase nada mais. Mas, diante desse retrato saturado, por que cobraríamos mais? (eis a questão). O que o inglezinho Jamie faz é se apropriar desse discurso, desse “personagem”, e inseri-lo num filme. Que poderia se chamar No silêncio da noite.
A exemplo dos álbuns de Blake e do The xx. há uma mise-en-scene noturna, fantasmagórica, ao redor dessas canções. Tal como Blake, Jamie se limita a apontar pequenas variações entre uma faixa e outra, ainda que, aqui, a eletrônica minúscula saia dos limites do dubstep para às vezes soar como a arquitetura de uma colagem do DJ Shadow: camadas de samplers sujos, mofados, colhidos de uma antiga coleção de vinis.
Os três momentos mais diretos do disco, que renderiam singles excelentes, mostram as oscilações de uma obra que, numa primeira audição, soa uniforme (às vezes irritante de tão uniforme; se você cair em tédio, eu entenderei). My cloud, o algodão-doce do parquinho, é trip hop manso, acolchoado. Já NY is killing me mergulha em paranoia, sob chuva de pedras digitais. O disco termina com, I’ll take care of U, uma faixa que leva ao pé da letra um ensinamento de Heron: “Jazz music is dance music”. E não é? Jamie dá uma risada de moleque e entra na pista.
Não dá para dizer que é um disco inventivo, que entusiasma pela originalidade. Que nos leva a recantos desconhecidos. Essas canções, no entanto, têm algo de espontâneo, de lúdico (é apenas música pop, não é nada muito importante, mas essa besteira pode acabar salvando as nossas vidas), que me leva às tardes em que meu primo reunia os meninos na varanda para apresentar a criação da semana. Silêncio total. Três minutos depois, ele deixava de ser gente – e se transformava no nosso herói.
Disco de remixes de Jamie xx, a partir do repertório de I’m new here, de Gil Scott-Heron. Produzido por Jamie xx. Lançamento XL Recordings. 8/10
Os discos da minha vida (26)
A saga dos 100 discos da minha vida chega a um episódio histórico. Sim, meu amigo, aqui começa o tão aguardado, o tão especial, o irresistível, o atraente, o galante… Top 50.
Sim, meninos e meninas! Estamos exatamente no meio do caminho. Sabe quando você espia o retrovisor e está muito longe para voltar? É a estrada que tomamos.
A partir de agora, este ranking passa a contar a história dos 50 álbuns que estariam na cabeceira do meu quarto se nela coubessem 50 álbuns. Lembrando (e nunca é tarde para que você aprenda as regras do jogo) que esta é uma lista absolutamente pessoal, que obedece critérios que só eu compreendo. Os discos da minha vida, capiche? Não serve para coisa alguma, mas ganha automaticamente o direito de fazer o download de álbuns nada vulgares.
No capítulo de hoje, dois discos atrevidos. Um bom negócio, garanto. Boa metade de viagem pra você.
050 | Ramones | Ramones | 1976 | download
Um álbum que acompanhou toda a minha adolescência sem que eu precisasse parar e ouvi-lo com atenção. Essas músicas simplesmente estavam por toda parte: nas festas dos colegas de colégio, no walkman da minha primeira namorada, na MTV e na abertura do showzinho de rock. Depois, aos 20 e poucos, decidi que era hora de tratá-lo com algum cuidado, e foi só o começo da maratona: virei noites ouvindo a discografia completa do Ramones, me apaixonando e desapaixonando por um som que sempre me pareceu primário (hey, ho! let’s go!) e essencial. Dizem que o punk nasceu aí. Há controvérsias, mas este também é um disco cujo punch não perde o sentido quando destacado do contexto daquela onda musical. Talvez seja mais prudente encará-lo sem tantas complicações: o som dos rapazes que se vestem de preto, matam aula, enfrentam o bons hábitos, dão de ombros para os penteados simétricos e contam as melhores piadas. Tudo o que queríamos ser e não fomos. Top 3: Blitzkrieg bop, Let’s dance, Judy is a punk.
049 | Histoire de Melody Nelson | Serge Gainsbourg | 1971 | download
Um homem de meia-idade atropela uma adolescente angelical e o que segue é a obra de arte mais provocativa, perversa e, vá lá, sexy desde Lolita. Ou seria mais justo tratá-la como uma versão pop art do romance de Nabokov, com o colorido das latas de sopa Campbell e as melodias familares, adocicadas da muzak? Isso ou aquilo, de uma forma ou de outra, é o álbum mais escandalosamente tocante de Gainsbourg – não à toa, influência óbvia para disquinhos também enloquecidos de desejo como Moon safari, do Air, e Sea change, do Beck. É curto (27 minutinhos) e sedutor: já na segunda audição, nos prendamos por livre e espontânea vontade nesse delírio infernal, o sonho de um homem que não conhece os próprios limites. E o Super-ego, desta vez, teve que esperar. Top 3: Ah! Melody, Melody, Cargo culte.
The people’s key | Bright Eyes
Conor Oberst é o homem dos planos impossíveis. Sabe que não vai superar os próprios ídolos (eles são insuperáveis), mas continua tentando.
Há como não torcer por ele? Compreendo o sujeito. Sempre me comportei um pouco assim. Meus colegas de trabalho admiravam o funcionário mais talentoso. Eu mirava o sujeito que papou o Prêmio Nobel. “O tipo de ambição que não não vai te levar a lugar algum, Tiago”, diziam. Eu ignorava os conselhos.
É claro, sofri muito por conta dessas aspirações inatingíveis. Ainda hoje, não sei lidar com rejeição. Faço que estou bem, mas sempre tento me convencer de que o problema está em quem me rejeitou. Um raciocínio falso. Mas, até aí, permaneço um garoto birrento.
Quero, por exemplo, ser o romancista que escreveu o parágrafo cuja estrutura ainda me parece um mistério. Perguntam: “Tiago, quando é que você vai escrever um livro?”. Faço que não me importo com nada disso. Mas penso, frustrado com as minhas limitações: nem sei com que palavra começar.
É o que percebo em Conor Oberst. Nota-se que o chapa é dedicado, cresceu ouvindo bons discos e tem mestres que flutuam muito acima das canções que ele consegue compor: Bob Dylan, Bruce Springsteen, Neil Young, os grandes. É novo — 30 aninhos, um ano a menos que o Tiagão aqui —, mas nada indica que o tempo fará dele um ídolo tão retumbante quanto aqueles que persegue.
Não é o que acontece, por exemplo, com um Thom Yorke, um Damon Albarn. Homens feitos. Quando querem elogiá-lo, dizem que Conor é o novo Dylan. Tudo o que queremos é que Thom Yorke continue sendo Thom Yorke.
Mas paciência: a personalidade musical de Conor sempre pareceu um tanto frágil, incompleta, como se ela precisasse se escorar em referências, tradições, cacoetes, modelos de “álbuns de rock” para não cair e quebrar.
E aí eu me identifico com ele. Ainda há muito a fazer, e sinto que nada será suficiente. Meu romance – me rendo! – terá parágrafos singelos.
No Bright Eyes (trio formado também por Natel Walcott e Mike Mogis), ele gravou o “disco épico” (Lifted, de 2002), o “disco folk” (I’m wide awake, it’s morning, de 2005), o “disco com blips eletrônicos” (Digital ash in a digital urn, de 2005), o “disco espiritual” (Cassadaga, de 2007). Solo, fez dois álbuns na tradição de singer-songwriters emotivos, coração rasgando, sons “de raiz”, diários de motocicleta.
Um homem que tenta surpreender — mas incapaz de forjar um estilo. Dedicação, meus amigos, não é tudo. Existe um elemento sobrenatural que separa um Conor Oberst de um Elliott Smith.
Tudo isso para dizer que The people’s key, o novo do Bright Eyes, é desde já meu disco favorito da banda. Mais do que Lifted. Mais do que I’m wide awake, it’s morning. Talvez por ser o disco em que Conor aparece com uma postura mais relaxada, como quem finalmente reconhece os próprios limites (ainda que continue tentando, a teimosia dele é uma arma pra nos conquistar).
É disco de fã de rock.
O que essas 10 canções entregam é um retrato quase ordinário, mas muito simpático, de um homem que ouviu as canções de protesto de Dylan, as “road songs” de Springsteen, que talvez tenha admirado o disco mais recente do Arcade Fire, e que, talvez incapaz de fazer algo diferente, adapta essas e outras referências ao próprio temperamento. Combina os conceitos dos álbuns anteriores numa betoneira sonora que funde folk, classic rock, um quê de country e efeitos de sintetizadores.
Há alguns meses, ele afirmou que este seria um último capítulo para o Bright Eyes. Faria sentido. The people’s key resume a trajetória: deixa a conclusão imediata de que Conor sempre esteve mais para um Ryan Adams (observador de certa história do rock) do que para um Beck Hansen (capaz de transformar a colagem em algo pessoal).
Eis o perfil do compositor. O que não tira os méritos do álbum, todo ele arredondado, potente, muito profissional, resultado de esforço, suor que praticamente ensopa os arranjos.
Aqui estão pelo menos três das melhores faixas que Conor escreveu: a trovejante Haile Selassie, a balada Ladder song (que só poderia ter sido escrita por um sujeito de 30 anos de idade, sem inocência) e o encerramento One for you, one for me, que termina com um sermão otimista sobre paz, amizade, piedade. Até certo ponto, um disco também simples. Mas uma simplicidade madura: por que precisamos de outro Bob Dylan quando temos o original?
Conor, ele admite, não tem muito a nos oferecer. Mas compensa essa ausência de uma arte extraordinária recorrendo a um discurso afetuoso, que soa transparente mesmo quando maquiado com as melodias mais superficiais, mais tolas.
Talvez por isso eu me veja um pouco nele. Não somos tudo isso, nunca seremos, não somos os melhores nas áreas em que atuamos, mas ninguém terá o direito de apontar o dedo e acusar: “rapazes, vocês nem tentaram!”
Sétimo álbum do Bright Eyes. 10 faixas, com produção de Mike Mogis. Lançamento Saddle Creek Records. 7/10
Superoito express (35)
Zonoscope | Cut Copy | 7.5
O terceiro do Cut Copy é daqueles discos dedicados, espaçosos, que cobram nossa atenção pelo menos por uma noite inteira (a última faixa tem 15 minutos e se chama Sun God). Nota-se que os australianos estão aflitos para iniciar um relacionamento sério com público & crítica, mais ou menos como a garota que convida o namorado para jantar e prepara uma paella com cinco opções de sobremesa. E lá está o sujeito empapuçado, esparramado no sofá, pensando: “mas não precisava tanto…”
Uma das músicas atende por Blink and you’ll miss a revolution, e esta é uma prova de que os chapas — apesar da aflição — têm bom humor. No mais, estamos lidando com caso tardio de “tensão do segundo disco”, em que um novato bajuladíssimo se vê obrigado a honrar um álbum que nos conquistou lentamente, que roeu corações pelas beiradas (o ótimo In ghost colours, de 2008). Missão inglória. Mas taí.
Primeira consequência, inevitável: Zonoscope é mais gordo que o anterior, com um cenário mais vasto (a capa tem um quê apocalíptico) e novas combinações de referências dos anos 80 e 60 — de uma vez por todas, eles se esquivam de rótulos como “electropop” e “indie dance”. A primeira metade soa mais fluente do que a segunda; que, por sua vez, se aproxima das colagens de James Murphy (eletrônica pelo ponto de vista de fãs de rock). Mas, ao mesmo tempo, ele confirma uma banda que quer abraçar o mundo (Take me over é descaradamente um candidato a sucessor de Take me out, do Franz) e, ao mesmo tempo, soar imprevisível (a psicodelia de Where I’m going lembra outra banda australiana, o Tame Impala). Ben Allen, produtor de Animal Collective e do Deerhunter, faz a mixagem — talvez o responsável pela camada de poeira sonora que faz do disco um set turvo, dopado.
Muita gente vai elogiar (e esse tipo de esforço merece ser reconhecido), mas não vou esconder: é um álbum que me agrada quando relaxa os músculos — a parte final de This is all we’ve got, por exemplo, é uma lindeza. Deixa uma ótima impressão (e sim, vieram para ficar), mas… Não precisava tanto.
Dye it blonde | Smith Westerns | 7.5
No primeiro disco, de 2009, havia faixas como Dreams, Girl in love, Be my girl e My heart. No segundo, Weekend, Fallen in love, Smile e Dance away. Só pelos títulos, já se percebe que este quarteto de Chicago ainda não acordou de um sonho bom. E impressiona como eles conseguem prolongar este verão: Dye it blonde é um disquinho jovial de glam, power pop e certa melancolia teen (os integrantes têm entre 18 e 20 anos) que soa tão coeso, tão autoconfiante quanto a estreia do Pains of Being Pure at Heart, por exemplo, ainda que muito mais doce. E pode parecer simples, mas é algo raro — um álbum que soa muito agradável, mas nunca nos provoca com golpes de fofura barata. Várias doses por dia e aposto que dá espinha.
Ventriloquizzing | Fujiya & Miyagi | 6
Nos dias bons, Fujiya & Miyagi gravou faixas que soam como um Kraftwerk movido a antidepressivos — versos singelos, disparados como slogans publicitários, com texturas se sobrepondo de 15 a 15 segundos. É um modelo que ainda não me entedia (há pelo menos um grande momento neste quarto disco, Sexteen shades of black and blue), mas ele ainda não dá conta de justificar um disco inteiro. E, sinceramente, não sei se a situação melhoraria se eles decidissem lançar uma compilação com as melhores faixas da carreira: ainda assim soaria repetitivo, como se a primeira faixa fosse o suficiente. Em pílulas, no entanto, soam adoráveis.
Kills | jj | 6
Uma mixtape estranhíssima da dupla sueca, que sampleia quase didaticamente canções que conhecemos muito bem (Kill you, por exemplo, chupa Paper planes, da M.I.A., já batidíssima; também tem Power, do Kanye West) e vai “matando” uma a uma. Não conta como um álbum “oficial”, e esse tom de brincadeira deixa a banda mais livre para cometer todas as loucuras possíveis. Mesmo com tanta liberdade, não consigo encontrar muitas faixas realmente matadoras (perdoem o trocadilho), e em muitos casos a anedota não surte o efeito que eles desejam. De qualquer forma, uma banda capaz de tudo.
Os discos da minha vida (25)
A saga dos 100 discos que conheço como a palma da minha mão chega a um capítulo especialmente doméstico. Vamos esfriar a cabeça e conversar sobre família? Só por um minuto?
Sei que há temas muito mais urgentes (questões sobre gagueira em O discurso do rei, para ficarmos num tópico muito quente), mas este ranking já é grandinho e anda com as próprias pernas. Deixem o moleque ser feliz, ok?
Voltando ao tema: família. Os discos de hoje se aninharam na minha vida graças às influências da minha mãe e do meu padrasto. Eu disse que seria uma listinha muito pessoal, certo? Sejam bem-vindos à sala de estar.
Também são discos que, durante a infância, eu detestava até a morte. Detestava até debaixo d’água. Detestava até com cobertura de chocolate. Detestava até com geleia de framboesa. Detestava. Detestava.
E detestava porque eles sempre estavam lá. Eles sempre estavam rodando na vitrola. Produziam ruídos familiares. Acredito até que fui um pouco alfabetizado por eles. Primeiro em português, depois em inglês. Quando comecei a crescer, e a rejeitar tudo o que pertencia aos meus pais, esses dois discos sofreram muito, pobrezinhos.
A redenção veio muito depois, quando eu fiz 20, 25 anos, e voltei aos álbuns que soavam como parte do meu organismo. Fui ouvir os discos a sério e descobri que eles eram velhos companheiros. Irmãos briguentos, mas adoráveis. Irmãos que desaparecem e depois voltam. Irmãos que, quando a gente menos espera, começam a fazer falta.
É esta a história. Vamos a eles, esses bastardos cheios de glória.
052 | Construção | Chico Buarque | 1971 | download
Entre os discos do Chico, não é aquele de que minha mãe mais gosta (de longe, o preferido é Almanaque), mas é aquele que gravei numa fita cassete e levei comigo. Com o tempo, quando abandonei os traumas de infância e me familiarizei com a discografia inteira do homem, descobri aquele que talvez seja o mais valente dos discos brasileiros. Destemido em tudo: nos arranjos épicos de Rogério Duprat (que o aproximam de uma sonoridade tropicalista, impensável nos álbuns anteriores, muito comprometidos com a tradição do samba), em versos que confrontam o regime militar com uma proximidade quase suicida, nas canções que descortinam um país tomado por um certo mal estar (mas um Brasil também infinitamente lírico, vasto). Tudo isso e sim, claro: um disco mais moderno do que 90% do que é gravado hoje no país. As mães, acredite, têm razão. Top 3: Deus lhe pague, Valsinha, Construção.
051 | The dark side of the moon | Pink Floyd | 1973 | download
O disco favorito do meu padrasto sempre me pareceu de uma pompa insuportável. Lembro que, aos 12 anos, eu reclamava sempre que os sinos começavam a soar na sala – e isso acontecia praticamente todo fim de semana. Era o álbum que, na época, representava tudo o que eu queria combater: os enormes monumentos erguidos por meus pais. Eu me trancava no quarto e ouvia grunge, punk rock. Foi muito tempo depois, quando até o meu padrasto parecia ter se cansado do tilintar da máquina registradora (e de outros efeitos especiais), encontrei nas canções o lado obscuro da minha adolescência. O som que batia à porta do meu quarto. Foi como voltar àquelas tardes tão banais: meu padrasto encostado na janela, sugado por melodias que irradiavam de outro planeta. Uma parte da vida também foi engolida por este disco, e aí não importa mais se acho uma grande de uma chatice cósmica (mas fiquem tranquilos: não é). Top 3: Breathe, Us and them, The great gig in the sky.