Bob Dylan
Os discos da minha vida (top 5)
Amigos, chegamos: cá estamos dentro do top 5, já batendo perna no tapete vermelho do ranking dos 100 discos da minha vida. Incrível, não?
Bem, talvez não. Porque, nesta altura do joguinho, muitos de vocês já sabem o que vão encontrar nos próximos capítulos desta saga. Sobre esse assunto, serei breve: vocês, os mais ansiosos e sabichões, estão certos – e, ao mesmo tempo, tão errados.
Não sei se vocês lembram (espero que lembrem!), mas esta é uma lista absolutamente pessoal com os álbuns que marcaram a minha vida. Não é um ranking dos melhores, dos mais influentes, dos mais arrepiantes, dos mais premonitórios, dos 1000 que você precisa comprar antes da morte da indústria fonográfica (ou algo do gênero).
Nada disso. É apenas um top sentimental, íntimo e desengonçado feito aqueles desenhos que você faz quando criança e guarda no baú do quarto – por isso, desimportante. Não o levem muito a sério.
Estamos no começo do fim, portanto: cinco discos que eu levaria para um planeta deserto. E a história vai assim:
005 | Blood on the tracks | Bob Dylan | 1975 | download
Não minto em absolutamente nada quando digo que tive a sorte de viver uma infância feliz. E foi um período tão sorridente, tão fácil, tão cheio de recompensas e brindes que, aposto, nenhum roteirista sensato se sentiria desafiado a adaptá-lo para o cinema. Daria um filme otimista, singelo demais. Um “happy end” perpétuo; um inferno (para quem curte um drama).
Mas também não caio em exageros quando lembro que a minha adolescência soou como um “lado B” dessa primavera. Um período nada feliz. Nada sorridente, nem fácil, nem cheio de recompensas e brindes. Enquanto meus amigos demonstravam até fisicamente a raiva e o medo que sentiam (dizer adeus à infância talvez seja a mais dolorida das despedidas), eu também sofria – só que silenciosamente, sem rebeldias, na minha.
E, para complicar tudo, naquela época eu era um rapazinho tímido, trancado no meu quarto, perplexo diante dos pátios abandonados da minha superquadra. Não era o moleque mais radiante. Minha mãe e meu padrasto diziam que a fase passaria logo. Nem meus amigos entendiam o que acontecia comigo. Eu queria entrar em contato com um mundo que não me parecia mais tão próximo: e, às vezes, só os discos, os livros e os filmes me levavam até lá.
Blood on the tracks, um disco tão importante (e que está em 99 entre 100 listas de melhores álbuns de todos os tempos), me encontrou nessa temporada confusa. Eu ainda era um menino que precisava levar conversas sérias com meus ídolos.
Bob Dylan, que eu já conhecia de alguns discos que me pareciam enigmáticos (e entediantes, pelo menos naquela época), cumpriu o papel de um tio velho, talvez experiente demais, que chama o sobrinho para falar sobre as coisas difíceis da vida. e sobre, ahn, os tumultos do amor. Uma situação que nunca aconteceu comigo (infelizmente, meus tios eram todos mais confusos que eu), mas que, imagino, pode ser um tanto constrangedora.
É que, antes que eu ouvisse Blood on the tracks, Dylan me parecia um tio exemplar: um macho-alfa que, sempre no domínio da situação, inventava hinos com a segurança de um marceneiro que martela mais um prego na parede. Parecia sempre tão fácil; e ele nunca esmorecia, não era? Desta vez, porém, o homem parecia frágil, um caco.
Blood on the tracks foi classificado, e com razão, como um disco “confessional”. Em 1975, Dylan cantava o amor frustrado e frustrante, as paixões incompletas, os encontros desencantados, os efeitos surpreendentes provocados pelo vento idiota do acaso. Havia como interpretá-lo como um contraponto a Nashville skyline, de 1969 – o disco do amor pleno, solar. Mas também parecia uma espécie de desabafo, mais instintivo que cerebral. Dylan tinha 34 anos de idade: não era um garoto.
Sabemos que o homem criava discos como quem escrevia os episódios de um longo livro de “autoficção”. Mas ainda prefiro lidar com Blood on the tracks da forma inocente como descobri o disco: é aquele momento raro em que um ídolo baixa a guarda para comentar sobre o que há de mais banal, inexplicável (e patético, porque as coisas são assim) na vida. Sobre os erros que cometemos duas ou três vezes. E as canções que nascem desse processo tolo, difícil de aprendizagem.
Também é, antes que eu esqueça, um disco com canções que nos maltratam gentilmente (Simple twist of fate, mesmo aflitiva, soa pra lá de agradável). Se Nashville skyline soava reconfortante, Blood on the tracks me parece de uma elegância amarga, sábia. O tio não tem boas notícias para contar. Mas encerra a conversa numa nota doce: as coisas talvez não terminem bem, mas a aventura é boa. Top 3: Simple twist of fate, Idiot wind, Tangled up in blue.
Após o pulo, veja os discos que apareceram neste ranking.
Os discos da minha vida (36)
Os 100 discos da minha vida, edição especial. Edição comemorativa. Ou algo assim.
Minto, minto. Todas as edições deste ranking são especiais. São porque elas mexem aqui na minha essência, no meu eu interior, nas profundezas das minhas sensações, no lado esquerdo do peito. Você sabe como é, meu irmão. Admito que tenho um pouco de medo de escrever sobre esses disquinhos. Medo de ter um ataque cardíaco e desabar aqui no chão gelado do apartamento.
Sério! Ok. Não tão sério.
É que (repetindo toda a ladainha que vocês curtem à beça) este é um ranking estritamente pessoal, com os discos que abalaram a minha vida, portanto não espere encontrar indicações lúcidas sobre as obras fonográficas mais influentes, importantes, ambiciosas (deus!) da música pop. Não. É só uma listinha modesta, criada com um tanto de orgulho e outro de desleixo, mui sentimental, honesta, digna e que (ainda) está na flor da idade.
Ninguém quer saber dela, mas ela não tá nem aí. Se é que vocês me entendem.
Novidade! A partir desta edição, você pode clicar num linkzinho ali embaixo e conferir o restante do ranking. Pra refrescar a memória. Recordar é viver.
No mais, os dois discos de hoje não são apenas obrigatórios. São incontornáveis. Históricos. Fundamentais. São diamantes. São coisinhas tão bonitinhas do pai. São créme de la créme. E tudo o que mora acima desses elogios todos.
030 | Nashville skyline | Bob Dylan | 1969 | download
Em 1969, este não era o disco que o mundo queria de Bob Dylan. Ele, o auteur folk que trocou violões por guitarras, deveria estar matutando algo mais complexo: era uma época em que o rock era a arte moderna que todos os garotos sabidos da classe queriam experimentar. Mas nosso herói resolveu sacar não o álbum que esperavam dele, mas aquele que queria gravar. Que parecia, em tese, uma bolachinha singela: uma coleção curta de country rock sobre os momentos felizes na vida de um sujeito que (por um momento) encontrou na vida doméstica uma espécie de idílio. Nashville skyline se entrega já na capa: Dylan sorri como nunca antes, segura o chapéu num gesto elegante, encara a câmera sob o sol de um dia quente. Pois é nesse álbum tão banal, tão pouco inventivo, que o homem o conforto, a plenitude, a paz de espírito e o amor. É tão bonito que machuca (já que nós, pobres ouvintes melancólicos, estamos sempre à procura desses momentos totalmente felizes). E, se vocês buscam um motivo prático para colocar este disco pequeno entre os seus favoritos, Dylan canta como se estivesse descobrindo a própria voz. Uma interpretação serena, despreocupada, sublime – de um jeito que não existe em nenhum outro álbum do homem. Top 3: Tonight I’ll be staying here with you, Lay lady lay, Girl from the North Country.
029 | Low | David Bowie | 1977 | download
Quando descobri a discografia de Bowie (aos 15, 16 anos), decidi seguir o itinerário sem grandes estripulias: em ordem cronológica, álbum a álbum. Parecia que eu havia embarcado num foguete que se afastava lentamente do solo. Desde o começo da carreira, o compositor se cercou de símbolos de ficção científica, talvez por não encontrar outra forma de definir uma sonoridade ao mesmo tempo mutante e imprevisível, lost in space, flutuando em gravidade zero. Quando cheguei a Low, bateu em mim a desconfiança de que não havia mais para onde ir: a nave chegou ao ponto mais extremo da viagem. Era como se nosso comandante tivesse decidido abandonar todas as convenções mundanas que ainda apareciam nas jornadas anteriores para se escorar num estilo ainda virgem, ainda em gestação. Work in progress. Expedição inacabada. Nos discos posteriores, o encontro com o produtor Brian Eno ganharia um formato mais preciso, mais palpável. Mas foi em Low que Bowie dividiu com o público o prazer da descoberta de um planeta exótico, de um som novo. Ele gravaria ainda meia dúzia de belos discos: nenhum tão insólito quanto este. Top 3: Sound and vision, Speed of life, Warszawa.
Após o clique, confira os discos que já apareceram neste ranking.
Mixtape! | Fevereiro, lost in space
A mixtape de fevereiro é o evil twin da coletânea de janeiro. Aquela era quentinha e reluzente, verão sem fim. Esta aqui é sombra e neblina, temporada de chuvas.
A mixtape de janeiro era a adaptação de uma história real – a minha. A nova é, digamos, uma obra de ficção.
Explico: eu gosto muito, de verdade, da mixtape de janeiro. É uma das minhas favoritas. Mas, depois da centésima audição, comecei a imaginar que, para as pessoas que não estão na vibe do Tiagão in love, ela pode soar tão enjoativa quanto geleia de amendoim (quando a gente passa a tarde inteira comendo) e tão pueril quanto aquele filmezinho ordinário que ganhou o Oscar.
Então resolvi gravar uma espécie de antídoto, de “lado B”, de complemento/contraponto àquele CD.
O problema é que, como sempre acontece, os planos não deram muito certo.
Já ouvi esta nova coletânea algumas vezes e comecei a perceber que não é exatamente antídoto nem contraponto à anterior. Existe alguma coisa diferente nela. Não sei ainda o que é e talvez vocês me ajudem a decifrá-la (olha aí, Daniel, atenção).
Percebi, de início, que ela narra uma trama sobre um sujeito aflito, tenso, que vai aos poucos abandonando essa carga de neuroses e termina o “filme” entorpecido, flutuando no espaço, numa espécie de transe. Talvez tenha morrido e esteja no paraíso. Talvez tenha dormido e sonhado, não sei.
Depois descobri que esse personagem pode ser um adolescente. Há três ou quatro músicas sobre sentimentos muito juvenis.
Mas, já nos livrando dese plot estabanado, uma intenção muito real era evitar um CD arredondado (minhas mixtapes geralmente começam a terminam num mesmo tom) e gravar uma coletânea que começasse num determinado ponto e terminasse em outro. Entendam assim: é uma decolagem; da terra ao espaço.
Duas outras características: um disco de homens à beira de um ataque de nervos (repare as vozes dos sujeitos); um disco folk, até certo ponto.
Em termos práticos: trata-se de uma coleção siderada com faixas de Danielson, Telekinesis, PJ Harvey, The Low Anthem, Jason Isbell, Toro Y Moi, Jamie xx com Gil Scott-Heron (We’re new here é meu CD favorito do mês, daí a foto do Jamie lá em cima), Radiohead, Nicolas Jaar. Também tem um bootleg de Bob Dylan. A lista de canções está na caixa de comentários.
Não sei se vocês vão gostar. Talvez aqueles que curtiram a mixtape de janeiro não se entusiasmem tanto. Talvez não. Vá saber. Vocês são uma caixinha de surpresas. Explico de um jeito muito simples: é um CDzinho curto e agradável, mas que mora num planeta onde o sol não brilha com tanta força.
Ok? Então faça o download da mixtape de fevereiro. Boa viagem.
(e, se possível, avalie nossos serviços aqui na caixa de comentários. Que somos humanos, no fim das contas).
The people’s key | Bright Eyes
Conor Oberst é o homem dos planos impossíveis. Sabe que não vai superar os próprios ídolos (eles são insuperáveis), mas continua tentando.
Há como não torcer por ele? Compreendo o sujeito. Sempre me comportei um pouco assim. Meus colegas de trabalho admiravam o funcionário mais talentoso. Eu mirava o sujeito que papou o Prêmio Nobel. “O tipo de ambição que não não vai te levar a lugar algum, Tiago”, diziam. Eu ignorava os conselhos.
É claro, sofri muito por conta dessas aspirações inatingíveis. Ainda hoje, não sei lidar com rejeição. Faço que estou bem, mas sempre tento me convencer de que o problema está em quem me rejeitou. Um raciocínio falso. Mas, até aí, permaneço um garoto birrento.
Quero, por exemplo, ser o romancista que escreveu o parágrafo cuja estrutura ainda me parece um mistério. Perguntam: “Tiago, quando é que você vai escrever um livro?”. Faço que não me importo com nada disso. Mas penso, frustrado com as minhas limitações: nem sei com que palavra começar.
É o que percebo em Conor Oberst. Nota-se que o chapa é dedicado, cresceu ouvindo bons discos e tem mestres que flutuam muito acima das canções que ele consegue compor: Bob Dylan, Bruce Springsteen, Neil Young, os grandes. É novo — 30 aninhos, um ano a menos que o Tiagão aqui —, mas nada indica que o tempo fará dele um ídolo tão retumbante quanto aqueles que persegue.
Não é o que acontece, por exemplo, com um Thom Yorke, um Damon Albarn. Homens feitos. Quando querem elogiá-lo, dizem que Conor é o novo Dylan. Tudo o que queremos é que Thom Yorke continue sendo Thom Yorke.
Mas paciência: a personalidade musical de Conor sempre pareceu um tanto frágil, incompleta, como se ela precisasse se escorar em referências, tradições, cacoetes, modelos de “álbuns de rock” para não cair e quebrar.
E aí eu me identifico com ele. Ainda há muito a fazer, e sinto que nada será suficiente. Meu romance – me rendo! – terá parágrafos singelos.
No Bright Eyes (trio formado também por Natel Walcott e Mike Mogis), ele gravou o “disco épico” (Lifted, de 2002), o “disco folk” (I’m wide awake, it’s morning, de 2005), o “disco com blips eletrônicos” (Digital ash in a digital urn, de 2005), o “disco espiritual” (Cassadaga, de 2007). Solo, fez dois álbuns na tradição de singer-songwriters emotivos, coração rasgando, sons “de raiz”, diários de motocicleta.
Um homem que tenta surpreender — mas incapaz de forjar um estilo. Dedicação, meus amigos, não é tudo. Existe um elemento sobrenatural que separa um Conor Oberst de um Elliott Smith.
Tudo isso para dizer que The people’s key, o novo do Bright Eyes, é desde já meu disco favorito da banda. Mais do que Lifted. Mais do que I’m wide awake, it’s morning. Talvez por ser o disco em que Conor aparece com uma postura mais relaxada, como quem finalmente reconhece os próprios limites (ainda que continue tentando, a teimosia dele é uma arma pra nos conquistar).
É disco de fã de rock.
O que essas 10 canções entregam é um retrato quase ordinário, mas muito simpático, de um homem que ouviu as canções de protesto de Dylan, as “road songs” de Springsteen, que talvez tenha admirado o disco mais recente do Arcade Fire, e que, talvez incapaz de fazer algo diferente, adapta essas e outras referências ao próprio temperamento. Combina os conceitos dos álbuns anteriores numa betoneira sonora que funde folk, classic rock, um quê de country e efeitos de sintetizadores.
Há alguns meses, ele afirmou que este seria um último capítulo para o Bright Eyes. Faria sentido. The people’s key resume a trajetória: deixa a conclusão imediata de que Conor sempre esteve mais para um Ryan Adams (observador de certa história do rock) do que para um Beck Hansen (capaz de transformar a colagem em algo pessoal).
Eis o perfil do compositor. O que não tira os méritos do álbum, todo ele arredondado, potente, muito profissional, resultado de esforço, suor que praticamente ensopa os arranjos.
Aqui estão pelo menos três das melhores faixas que Conor escreveu: a trovejante Haile Selassie, a balada Ladder song (que só poderia ter sido escrita por um sujeito de 30 anos de idade, sem inocência) e o encerramento One for you, one for me, que termina com um sermão otimista sobre paz, amizade, piedade. Até certo ponto, um disco também simples. Mas uma simplicidade madura: por que precisamos de outro Bob Dylan quando temos o original?
Conor, ele admite, não tem muito a nos oferecer. Mas compensa essa ausência de uma arte extraordinária recorrendo a um discurso afetuoso, que soa transparente mesmo quando maquiado com as melodias mais superficiais, mais tolas.
Talvez por isso eu me veja um pouco nele. Não somos tudo isso, nunca seremos, não somos os melhores nas áreas em que atuamos, mas ninguém terá o direito de apontar o dedo e acusar: “rapazes, vocês nem tentaram!”
Sétimo álbum do Bright Eyes. 10 faixas, com produção de Mike Mogis. Lançamento Saddle Creek Records. 7/10
Os discos da minha vida (23)
Hoje este ranking é só saudade. A saga dos meus 100 discos inesquecíveis chega a uma episódio um tanto choroso, um tanto blue, mas nada grave: pode parecer incrível, mas voltei a ser um menino de 15 anos, ansioso e febril, que anda pelas ruas sem ouvir o barulho dos carros e nem dorme direito de tanto pensar nela. Olho para as nuvens e vejo desenhos engraçados. No trabalho, não me concentro. Sorrio quando os casais se abraçam.
Eu sei, meus bróderes: soa como uma enxurrada de sentimentos perturbadores. Mas estou me sentindo muito bem, obrigado.
É claro que ela faz falta, está longe, e isso machuca um pouco. Mas, por outro lado, ela se faz sempre tão presente que é como se a distância encurtasse. Entre uma e outra chamada de longa distância, vamos enganando o calendário até o próximo voo, que não demora. Pode parecer uma tortura. Mas estamos bem, obrigado.
Meu único desejo, neste momento, é que a sensação não vá embora. Talvez ela não vá, quem sabe? Me descobri um otimista.
Por tudo isso vocês notarão nos novos textos deste blog – e, por consequência, nesta saga que não acaba nunca – algo de juvenil, de muito ingênuo. Que sou eu na minha expressão mais sincera, eu em janeiro de 2011, eu abobado encarando a parede branca do meu quarto, eu queimando parágrafos com lirismo de colégio, eu num momento da minha vida que ainda me enche de surpresa e alegria.
Com o tempo, vou explicar melhor o que acontece. Enquanto não consigo, abro minha estante e tiro mais dois discos que talvez vocês gostem de ouvir – talvez vocês precisem ouvir (são dois álbuns que marcaram a minha vida e a vida de uma multidão). Talvez vocês se apaixonem por eles. E aí talvez vocês entendam mais ou menos em que pé estou.
056 | Bringing it all back home | Bob Dylan | 1965 | download
Entre todos os discos de Bob Dylan, Bringing it all back home era o favorito dos meus 15 anos de idade, um pouco antes de eu descobrir Nashville skyline e Blood on the tracks. Com o tempo entendi o motivo de tanto fascínio: é o disco em que Dylan bagunça o quarto de brinquedos, talvez entusiasmado demais com todas os objetos coloridos que estão espalhados no chão. É, para efeitos de história do pop, um álbum de transição: metade folky, metade elétrico, o prenúncio da revolução de Highway 61 revisited (também de 1965), mas já surreal e enigmático como as obras-primas que ele gravaria daí em diante. Uma diferença em relação aos outros: neste aqui, Dylan faz a invenção mais sofisticada soar como um hobby, uma brincadeira, uma ideia de diversão. Top 3: Maggie’s farm, Subterranean homesick blues, It’s alright ma (I’m only bleeding).
055 | Music from Big Pink | The Band | 1968 | download
Não foi proposital organizar este encontro extraordinário, dentro de um post, entre o meu disco favorito da The Band e um dos meus preferidos do Bob Dylan. Mas, forçando a amizade, acredito que eles têm semelhanças que vão muito além do fato de que a sonoridade da The Band foi em grande parte amadurecida nos shows de Dylan, com quem se apresentou anos antes. São dois discos que exalam um ar de descoberta. Dylan descobria aos poucos um estilo; já a The Band encontrava uma forma de condensar várias das referências que moldaram o fim dos anos 1960: o rock, o country, o folk, a psicodelia, a contracultura, as estradas sem fim, a cultura hippie, a saudade das tradições. Nasciam os fundamentos do country rock. Todo esse estado-de-coisas cultural inserido naturalmente num disco de 11 músicas. O tipo de fenômeno que não acontece sempre. Mas aconteceu. Top 3: This wheel’s on fire, The weight, I shall be released.
The king is dead | The Decemberists
Entre todos os discos de Bob Dylan, se eu tivesse que escolher só um, Nashville skyline seria aquele que eu salvaria de um desastre atômico.
Não é o que transformou a minha vida (talvez Blood on the tracks). Talvez não seja o mais relevante, se começarmos a raciocinar como pesquisadores sisudos de música pop (Blonde on blonde). Mas eu o exibiria aos sobreviventes da tragédia para provar que sim, é possível criar uma obra-prima sobre o bem-estar – o marasmo bonito dos sentimentos agradáveis.
Era Goethe, talvez exageradamente, quem dizia: “Nada é mais difícil de suportar do que uma série de dias belos”. Os críticos que trataram Nashville skyline como uma passatempo, uma “obra menor”, talvez tenham procurado nuvens pesadas num céu quase sempre azul e claro. Como poderia um artista com essa imaginação, essa importância, e em 1969!, nos entregar uma coleção de canções singelas de country e folk? Soava como uma piada sem desfecho.
Se um menino de 15 anos começa a fuçar o passado da música pop, pode parecer estranhíssimo: no ano do Woodstock e de Altamont, de Abbey Road, de Let it bleed, de Stooges e Jimi Hendrix, o que Bob Dylan teria a nos dizer? Que a vida em família pode ser gloriosa, que o amor nos preenche de satisfação, que existe um sorriso sob o chapéu de palha. A ideia de plenitude parecia ter afetado até a voz do nosso ídolo, agora cristalina, serena.
O disco, apesar de tudo o que se escreveu contra ele, foi recompensado por gerações posteriores, já protegidas contra as paixões intensas e os radicalismos daquela época. Por bandas como The Coral, por exemplo, ou Wilco e toda a onda de “country alternativo” dos anos 90. Por críticos mais jovens que puderam ouvir o álbum exatamente como ele é: 10 faixas, 27 minutos e uma música chamada Country pie. Tão simples quanto eterno.
The king is dead, do Decemberists, é um dos muitos discos contemporâneos que provocam a sensação de afinar as mesmas ambições de Nashville skyline. Como aconteceu com Dylan, a banda de Colin Meloy se refugiou no campo (uma fazenda de 32 mil metros quadrados em Oregon) e selecionou um repertório que sugere um dia de verão na relva. É um álbum que passa por nós como uma brisa suave – sem intenção algum de provocar abalos ruidosos no nosso cotidiano.
Apesar da referência de Smiths logo no título, não é um disco tão ornado quanto The queen is dead. Pelo contrário. A referência declarada do Decemberists é o R.E.M. do começo de carreira. O guitarrista Peter Buck participa de três faixas – uma delas, Calamity song, soa como uma lembrança não tão distante de Murmur (1983). Mas, ao contrário da banda de Michael Stipe, que adensava o folk, o Decemberists adoça as experiências com gêneros tradicionais que eram comuns nas college radios do início dos anos 1980. The king is dead é primaveril, arejado, quase sempre muito objetivo.
O desafio de Meloy é muito parecido ao enfrentado por Jeff Tweedy em Sky blue sky (outro que deve muito ao tom de Nashville skyline): desnudadas, as canções passam a exibir o que elas têm de mais primário. Temos a canção e nada mais que a sustente – o disco nada mais é do que uma costura dessas canções autossuficientes. Pode parecer mais fácil do que gravar um álbum revestido por um ambicioso, cheio de firulas, efeitos de estúdio e ideias extravagantes. É mais difícil: para cada Nashville skyline (um disco com canções amáveis e aparentemente singelas, mas que ficam, que se impõem por si só), há muitos Sky blue sky e The king is dead.
E com isso não estou desqualificando totalmente o disco. Não. Este é um passo até inusitado para o Decemberists, uma banda que valoriza a pompa e sabe como tratá-la dignamente (Picaresque e The hazards of love são exemplos disso). Em comparação, The king is dead é quase um unplugged: mesmo quando usa todo o arsenal de instrumentos típicos do country rock (gaita, violão, slide guitars etc), a banda nos transmite a imagem de uma gravação descompromissada, de um outtake que, por acaso, foi vendido como disco oficial.
Para quem se sufocava com os excessos dos álbuns anteriores, é o momento de respirar. E fica difícil negar: existe força em canções como Dear Avery (a favorita de muitos que ouviram a minha mixtape de dezembro), June hymn e Down by the water. Se o clima despreocupado remete ao Dylan de Nashville skyline, a atmosfera das letras é mais melancólica, introspectiva, num flerte contínuo com referências pop (a América de 2011 pouco tem a ver com a de 1969), como se Meloy estivesse declarando amor não a uma pessoa, a uma família, a um estilo de vida ou a uma época, mas aos discos que o emocionam.
Um belo disco de country/folk rock escrito por um aluno estudioso, ainda que um tanto apressado nos sentimentos e nas referências que tenta evocar. De qualquer forma, ele engrandece a aura de Nashville skyline: aquele sim, um álbum que ainda parece tão simples, tão mundano. Mas ainda não encontrei quem conseguisse fazer igual.
Sexto disco do Decemberists. 10 faixas, com produção de Tucker Martine. Lançamento Capitol Records. 7/10
Superoito express (33)
Man on the moon II: The legend of Mr. Ranger | Kid Cudi | 7
Um álbum de hip-hop dividido em cinco atos (um deles atende por You live and you learn), com uma faixa chamada Scott Mescudi vs. the world e um título que parece ter sido concebido pelo George Lucas. Tem como não gostar? Infelizmente tem, se o seu iTunes emperrar na faixa 8, Erase me, um rockzinho ordinário que nem Kanye West salva. Antes que você comece a refletir sobre o quão terrível é o fato de que os mais promissores pupilos do rap geralmente não sabem diferenciar Kings of Leon de Queens of the Stone Age, sugiro um rolê no segundo ato do disco, A stronger trip, usa psicodelia e dub para fins medicinais (a dobradinha Marijuana e Mojo so dope é, perdoe a falta de inspiração, viciante).
E, quando o sujeito resolve brincar com um sampler soturno de St. Vincent (“Paint the black hole blacker”, em Maniac), a pergunta volta a fazer sentido: tem como não gostar? Tem, principalmente para quem ainda se encontra perdido nos vãos de My beautiful dark twisted fantasy, de Mr. West. Dois álbuns talvez igualmente ambiciosos, mas note as diferenças: enquanto West bagunça o interior das canções (que são longas e sinuosas), Cudi tenta nos impressionar com o acúmulo de faixas que disparam ideias coloridas, mas por vezes superficiais. É daqueles discos que nos agradam mais pelo temperamento frenético do repertório do que pelas canções em si. Não é tudo o que pensa que é – mas tem como não gostar?
Le noise | Neil Young | 7
Em tese, é o disco em que Young decanta a própria identidade até que restem apenas os elementos essenciais: a guitarra (alta, ruidosa, massacrada por toneladas de efeitos) e a voz. Mas nada na trajetória do homem é simples como parece, e basta lembrar que o disco anterior a este é o desgovernado (mas muito franco) Fork in the road, praticamente um álbum conceitual acerca de um carro ecológico. O que o produtor Daniel Lanois faz em Le noise é um ‘extreme makeover’ parecido com o método que aplicou em Time out of mind, de Dylan: criar uma atmosfera crepuscular, cinematográfica, mas com lacunas para que o compositor vença os maneirismos de estúdio. Mas esse conceito rigoroso por vezes parece uma estratégia para empacotar canções não exatamente inesquecíveis. Elas condensam tudo o que esperamos de um disco de Young – os lamentos de guerra e os hinos pacifistas e os retratos de homens solitários e a fúria juvenil – sem muitas surpresas ou desafios. De qualquer forma, é sempre uma alegria ver o sujeito verdadeiramente se esforçando e criando maravilhas como Peaceful Valley Boulevard. E, sejamos justos, é o mais coeso dele desde Silver and gold, de 2000.
Marnie Stern | Marnie Stern | 7
O terceiro disco da nova-iorquina pode ser interpretado de uma forma pessimista (soa como uma reprise dos anteriores, um beco sem saída, um exercício seguro etc) e de uma forma muito otimista (soa como uma celebração do estilo que Marnie talhou nos dois outros discos). Minha tendência, no caso, é o pensamento positivo: este é o primeiro disco dela que não me parece um projeto frio de faculdade de Arte, com todas aquelas camadas calculadas de distorção supostamente agressiva. Acredito que, desta vez, Marnie conseguiu vencer se livrar desse véu chamativo e se encontrou nas canções. A última faixa, The things you notice (que incluí na mixtape de outubro) poderia muito bem servir de ponto de partida para o próximo disco: tem o molde atormentado, paranoico, pontiagudo, do restante da discografia que ela lançou – mas é como se a autora das canções finalmente se expusesse de corpo inteiro. É bonito, é delicado (de uma forma inusitada) e, melhor ainda, soa intenso.
Swanlights | Antony and the Johnsons | 6
Um dos discos mais valentes do ano, já que Antony renega quase todos as referências pop para encontrar uma sonoridade tão serena e introspectiva quanto é (aparentemente) o momento em que ele vive. E encontra: mas pena que é um som tão etéreo que às vezes se dissolve nos headphones. Ouvi o disco pelo menos cinco vezes e só consigo me lembrar das faixas que destoam desse climão solene: I’m in love, que soa como uma daquelas divinas criaturas de Van Dyke Parks, e Thank you for your love, que abre um caminho soul no coração desta floresta gelada. Não é um álbum que consigo ouvir com frequência (e não recomendo a ninguém que acabou de romper um namoro; a dose de melancolia pode ser brutal). Mas, no momento certo, pode ser o antídoto aos excessos que imperam no indie rock.
Os discos da minha vida (2)
Um ranking sentimental dos 100 discos que (pausa dramática) marcaram a minha vida. Dois por semana, talvez às segundas-feiras (mas, pensando bem, possivelmente às quartas). Pelos meus cálculos, terminaremos esta jornada antes do fim do mundo. Hold tight.
098 | Grievous angel | Gram Parsons | 1974 | download
Eu tive uma momento country-rock: ele durou mais ou menos uns seis meses (acho que por volta de 1997), mas foi tão intenso, tão dedicado, tão obsessivo que eu poderia incluir nesta lista quase todos os discos que ouvi naquela época. Meu quarto cheirava a slide guitars. Neil Young era meu pastor; Bob Dylan, meu arcebispo. Perto deles, Gram Parsons era só um coroinha. Mas, com Grievous angel, o branquelo do cabelo esvoaçante me ensinou a entender o que há de fundamental no gênero: alegria e dor, em cores primárias. E quando eu soube que o sujeito morreu de overdose de morfina pouco depois de gravar essas canções quase sempre tão tranquilas, o disco se transformou num mistério. Ainda é. top 3: Brass buttons, Hearts on fire, In my hour of darkness.
097 | Gentlemen | The Afghan Whigs | 1993 | download
O terceiro disco do Afghan Whigs começa com o som de um vendaval. O que vem depois soa ainda mais arrepiante: a voz de um homem confessando segredos por vezes constrangedores. Numa década de discos-de-catarse (uma das especialidades do grunge), poucos soaram tão críveis quanto este aqui. Talvez por parecer tão direto: Greg Dulli compactou o estilo do Afghan Whigs e, quase acidentalmente, acabou criando um padrão para o indie rock dos anos 90, com riffs repetitivos, às vezes dissonantes, quase sempre tristíssimos, engolidos por tufões de guitarras. Para mim, é um álbum que representa o início da adolescência: ódio e medo, mas não sabemos exatamente de quê. top 3: Gentlemen, Debonair, Be sweet.
2 ou 3 parágrafos | O mensageiro
Não era o filme que eu esperava do roteirista de I’m not there. No filme de Todd Haynes, o texto era suficientemente arejado (ou fragmentado, para usar uma palavra que todo mundo gosta) para evitar um retrato quadradinho da trajetória e das personas de Bob Dylan. O mensageiro (3/5), a estreia de Oren Moverman na direção, me parece algo muito diferente disso: a trama vem claramente em primeiro lugar, e ela exerce um baita peso sobre os personagens.
Os heróis do filme são vívidos e poderiam estar em The hurt locker, por exemplo: dois militares que sofrem as consequências psicológicas (aparentemente irreversíveis) da Guerra do Iraque. “A guerra vicia”, dizia Kathryn Bigelow. Aqui, os personagens aprendem que, mesmo longe do campo de batalha, não conseguem abandonar o conflito. Um sargento (Ben Foster, numa atuação excelente) e um capitão (Woody Harrelson, que, cheio de tiques, não me impressionou tanto assim) são os encarregados de dar a má notícia às famílias de soldados mortos.
Existe uma rotina de trabalho a ser seguida: cada família reage de um modo diferente (com agressividade, comoção etc) e o choque provocado por esses reações vai engatilhar todo tipo de crise na psiquê do sargento, iniciante nesse ramo sinistro. O capitão, é claro, acabará estreitando a amizade com o parceiro. Numa noite, eles bebem e caem na farra. É um buddy movie, portanto. Que, por isso, prevê que os personagens passem por certas transformações (o sargento vai se apaixonar por uma viúva, o capitão vai passar a enxergar a morbidez da profissão e blablabla). Nada disso me convence muito. Mas são personagens razoavelmente fortes, interpretados com comprometimento – e eu admito que gostaria de ter visto um outro filme, menos sufocado, sobre essas duas pessoas.
Cousins | Vampire Weekend
Alguém pode me explicar o que é essa nova música do Vampire Weekend? Carnaval de Olinda no moedor de carne? Sílvio Caldas meets David Byrne? Não entendi nada, mas não consegui deixar de balançar meus joelhos. O clipe faz jus à baderna (que, quando você se acostuma a ela, passa a soar como sequência natural da farra do disco anterior): numa prova de que eles não levam nada muito a sério, arriscam uma homenagem supimpa a Bob Dylan (foi isso mesmo que vi?). E correm pro abraço.
I’m going away | The Fiery Furnaces
Eu não estou otimista.
Tudo bem, admito: eu não sou um sujeito otimista. Naturalmente vejo problemas onde deveria encontrar soluções, complico o que poderia ser simples e caço motivos para me sentir miserável. Talvez eu goste de me ver como uma pulga infeliz, desprezível, para sempre abandonada num mundo cruel. Agora mesmo, reparem, estou ouvindo Elliott Smith, trancado no meu apartamento friorento, me sentindo melancólico por alguma razão obscura. “Going nowhere”, o defunto canta. E eu não posso fazer nada além de concordar com ele.
É isso aí, chapa. A vida é dura.
Encontro as pessoas na rua e elas dizem que eu deveria me sentir bem. Tenho um emprego. Tenho a melhor namorada do planeta. Ganho um salário que paga o aluguel do apê e o pão e o suco de laranja e detergente e os outros produtos de limpeza. Não estou quebrado (por enquanto). Não fui demitido (por enquanto). Não estou totalmente sozinho (e taí uma perspectiva que arrepia minha nuca). Minha existência faz perfeito sentido nos momentos em que não penso na minha existência.
Mas deixemos esse papo sombrio de lado. Já que, oba!, o Fiery Furnaces, uma das bandas que moram no meu coração de papelão (e deixo isso bem claro, antes que me acusem de bajulação explícita, babação de ovo e outros crimes afins), está com disco novo.
E eles estão otimistas.
Aparentemente, pelo menos. Quando penso em Matthew e Eleanor Friedberger, prefiro sempre desconfiar de tudo. Sabemos que os irmãos dividem o gene da ironia e da dissimulação. Será que eles falam sério? Será que eles já falaram sério alguma vez na vida? Ouvi este I’m going away pela primeira vez e, tomado pelo susto (explico o motivo daqui a pouco, calma), fui procurar alguma dica no site deles. Encontrei um textinho que vai mais ou menos assim:
“Toda canção de rock é mais ou menos dramática. E, como os tempos estão difíceis, faz sentido transformar esse ‘drama’ em algo mais parecido com uma versão de Taxi que de Titanic. Gostamos mais de Taxi que de Titanic, de qualquer forma. Então esperamos que as canções deste disco possam ser usadas para que os chapas criem suas versões particulares de Taxi”
(E, depois de supor que eles falavam daquela comédia bobinha com a Gisele Bündchen, descobri que Taxi é uma série que foi transmitida na ABC entre 1978 e 1982, sobre o cotidiano de taxistas nova-iorquinos. Ganhou 18 Emmys e foi inspirada numa reportagem)
Eles continuam: “Idealmente, o cenário dramático de uma música é construído pela vida das pessoas que a ouvem. Esta é a promessa e o problema – e talvez o perigo – da música pop. Sim, estamos otimistas”
Está tudo explicado, não? Se eu fosse uma pessoa mais alegre e positiva, talvez as canções do Elliott Smith soariam como sambinhas divertidos e engraçados, daqueles que achamos em parques aquáticos ou aulas de lambaeróbica. E talvez por isso I’m going away me pareça um disco tão lindamente triste. A vida é dura. Os tempos são difíceis. E o Fiery Furnaces continua um ombro onde podemos chorar nossas pitangas.
Começando do começo: para os fãs, o sétimo álbum da banda é uma ruptura perversa numa carreira que, até agora, parecia narrar a história de dois nova-iorquinos que decidiram virar o tal “indie rock” pelo avesso. Isso, repito, para os fãs. Aos que não a conhecem, o disco é qualquer coisa (nessa altura, quem os detratores continuarão observando tudo de longe, meio desconfiados).
Depois de lançar um álbum ao vivo que, creio eu, deve ser ouvido com a disposição e entrega de quem compra ingresso para um show (e acho que foi por isso que tentei Remember só uma vez), o Fiery Furnaces preparou uma surpresa assustadora, impressionante, acachapante: virou uma banda de rock quase “normal”. Não sei o que aconteceu quando você ficou sabendo disso, mas eu quase caí da cadeira.
Sim, já que, para mim, sempre foi um prazer decifrar os enigmas de Matthew e Eleanor. Existe um humor fino e cruel em cada um dos álbuns, um radicalismo quase fora de moda, uma mania de narrar longas histórias, conceitos impenetráveis que nos desafiam a desvendá-los ou abandoná-los de vez (e aposto que muitos preferem essa segunda opção). Lembram do disco que eles gravaram com a avó? E daquele que soa como um álbum tocado de trás para frente? Ah. Bons tempos.
Trocadilhos infames à parte, a partir de Blueberry boat (2004) eles tomaram o barquinho rumo aos confins misteriosos do rock e seguiram em frente. Uma banda à parte. Ame ou deteste, nenhum disco do Fiery Furnaces parece qualquer disco.
Em I’m going away, o barquinho faz um desvio inesperado, depois de ser engolido por uma dimensão paralela, vai parar em algum ponto dos anos 1950. Alguns encontrarão o “disco pop do Fiery Furnaces” que tanto procuravam. Mas ouça com cuidado: a referência aqui é o pré-rock, o folk antiquado, as canções tradicionais (a faixa título é uma antiguidade de domínio público). Tentei ouvir o álbum junto com Together through life, do Dylan, e tudo se iluminou.
Num primeiro momento, soa como uma decepção. Confiem em mim: se o mundo afiar as garras como sempre faz, o destino do disco será semelhante ao do fabuloso Jim, de Jamie Lidell: será tratado como uma “obra menor”, uma espécie de Sky blue sky do Fiery Furnaces. Um projeto convencional e, por isso, pequeno. Não caiam nesse erro, meus irmãos e irmãs! Não. O disco está entre os melhores que a banda gravou – e, se você despir expectativas, encontrará nada menos que quatro obra-primas (dou os nomes: Drive to Dallas, The end is near, Cut the cake e Lost at sea) e um punhado de canções que explicitam o talento para a melodia que sempre se escondeu nas camadas mais profundas dos discos da banda (mas eu sei, eu sei: para o fã, isso não chega a ser uma novidade).
De forma planejada (já que, para os Friedberger, nada existe por acaso), tudo aqui é cristalino: das letras às melodias, dos refrãos aos rompantes econômicos de free jazz que quebram algumas das canções. A história narrada flui graciosamente. A voz de Eleanor atinge ápices inéditos de doçura, a produção parece tão serena quanto a de álbuns como The greatest, da Cat Power, e a falta de modernices faz parte da brincadeira. Uma das canções conta a história de uma mulher que “canta as músicas mais quadradas da jukebox”. O desafio para a banda (e um baita desafio) é soar inventiva dentro de um formato com limitações bem claras e específicas.
E é como eles soam. Seja quando repetem uma mesma ladainha em duas melodias diferentes (Charmaine champagne e Cups and punches) ou quando roubam uma linha de baixo de Black Sabbath (Staring at the steeple), eles interpretam as tradições do rock americano com um misto irresistível de elegância e atrevimento. É uma jornada sutil. Um filme de aventura para adultos sérios e maduros.
Se é assim, de onde vem a tristeza do disco? Surpreendentemente (mais uma vez!), o álbum me emociona em baladas supostamente óbvias que, para uma alma pessimista como a minha, soam francamente desiludidas. Em Drive do Dallas, Eleanor narra a história de uma mulher apaixonada que decide nunca mais dirigir para Dallas com os olhos embaçados. “Se eu vir você amanhã, não sei o que vou fazer”, ela repete e repete, sem fôlego ou conforto. Lost at sea é a confissão didática de uma vida que perdeu o norte. E ficamos sem saber se, em The end is near, ela canta o apocalipse ou o fim de um romance. De uma forma ou de outra, dói feito uma facada no peito (“The worst part is almost over”, canta Elliott, aqui no meu ouvido).
As melodias que embalam essas crônicas de passageiros solitários são arejadas o suficiente para não permitir que caiamos em depressão profunda. Talvez seja isso o que eles queiram dizer com um disco “otimista”. O momento mais luminoso (e meu favorito, de longe) é uma canção sobre uma mulher (sempre ela) que acorda num dia estranho e descobre que virou um sucesso. Está no noticiário local. Está nos jornais. E fica imensamente feliz com a novidade. “Quando ouvi a notícia, quase perdi o fôlego. Como isso pode ter acontecido de verdade?”, ela se espanta, acompanhado por um corinho jazzy de Matthew. “O caminho mais longo é o caminho mais doce para a casa”, ela afirma, naquela lógica estranha que conhecemos bem, na saltitante Take me round again.
Está tudo bem, então?
Para quem enxerga um mundo cinza (e eu enxergo!), uma canção tão alegre quanto essa pode soar dolorida em cada verso. I’m going away é um disco que permite a dupla interpretação. Um veneno agridoce. Eis o perigo da música pop.
Sétimo album do Fiery Furnaces. 12 faixas, com produção de Matthew Friedberger. Thrill Jockey. 8/10
Beyond here lies nothin’ | Bob Dylan
Dirigido por Nash Edgarton, o novo clipe de Bob Dylan dá um sentido todo novo à canção que abre o álbum Together through life. Então era sobre isso que ele estava murmurando? Pancadaria gratuita, casais à beira do precipício e amores enlouquecidamente violentos? Não exatamente, mas a faixa até que parece combinar com esse tipo de rompante. Os atores são Joel Stoffer e Amanda Aardsma. E Dylan? Not there.
Together through life | Bob Dylan
Together through life conta como o 33º álbum de Bob Dylan. Tudo bem. Um longo, longo caminho. Muita história para contar. Um mundo. Uma vida. Uma saga. Mas alguém precisa saber disso? Melhor seria tomá-lo como parte de um entardecer iniciado em Time out of mind, de 1997. Um quarto disco. E, por um momento, esquecer o resto.
É que nada será como antes, sabe? Depois de gravar dois álbuns revisionistas, com interpretações para antiguidades do folk (os incompreendidos Gone as I been to you, de 1992, e World gone wrong, de 1993), Dylan criaria ele próprio uma sonoridade descolada no tempo, de costas para o pop contemporâneo — a simulação de um passado musical muito distante, anterior ao período em que um jovem Robert Allen Zimmerman traçou as coordenadas de uma das maiores revoluções do rock.
Em algum momento, alguém perderia a vergonha e lançaria a pergunta: é um jogo interessante, mas que sentido isso faz? Há uma hora em que a brincadeira termina?
Existe um clima de frustração em muitas das resenhas de Together through life (aqui não falo das revistas que automaticamente aprovam todas as criações do cantor, mas de uma NME da vida, de uma Spin), e acredito que ele se explique pelo fato de que eu, você e todos nós esperamos incansavelmente pelo retorno de um Bob Dylan que pertence ao nosso passado. Queremos indícios do ídolo rebelde, quase inconsequente, iconoclasta e insolente, que implode festivais de folk com guitarras elétricas e resgata o country em meio ao frenesi psicodélico do final dos anos 60. Mesmo que inconscientemente, temos a esperança que a agonia que ainda existe nos versos do compositor termine por contaminar a música, exploda em acordes transgressores e novamente maltrate nossas expectativas. Mas, ao mesmo tempo, amamos o Dylan que não respeita nossos desejos, não anda nos trilhos, não se adapta em antologias musicais — o poeta ao sabor do vento.
Como conviver com um ídolo que insiste em nos apontar as direções que não queremos seguir? Talvez seja mesmo impossível agarrá-lo. Daí as biografias incompletas, as lendas urbanas, as declarações falsas em entrevistas, as anedotas, as múltiplas personalidades, I’m not there e todas as reentrâncias do mito Dylan, ainda nebuloso, imprevisível até quando parece repetir-se.
Aos 67 anos, Dylan busca um som. Talvez não mais que isso. Por coincidência, dia desses assisti a um documentário sobre o processo de gravação de um disco de Brian Wilson. O maestro tortura os músicos e repete takes obsessivamente até extrair os acordes e o clima já perfeitamente construídos em sua cabeça. É por aí.
Principalmente a partir de Love and theft, Dylan (ou Jack Frost, pseudônimo usado para a produção do álbum), encontraria satisfação na ideia de usar a tecnologia de estúdios para registrar um sentimento sonoro. O tema dos álbuns passaria a ser a própria descoberta de uma sonoridade. Se temos a impressão de ouvir um antigo disco de blues da Chess Records ou da Sun Records, então Dylan cumpriu o objetivo. A produção é parte importante da mensagem.
Together through life leva essas experiências ao limite. A seu modo, é um disquinho impertinente. Ao aceitar o convite do diretor francês Olivier Dahan para compor uma canção a ser incluída no filme My own love song, Dylan inspirou-se para um álbum inteiro. Com domínio da técnica de produção, gravou rapidamente acompanhado da própria banda e com participações de David Hidalgo, do Los Lobos, e Mike Campbell, do Tom Petty and the Heartbreakers. Diretor do próprio filme, Dylan sabe exatamente o álbum que quer: cru como um bootleg, fluente e despretensioso como Nashville skyline, calcado em blues e acordeão: uma coleção de canções de amor que poderiam ter sido gravadas nos anos 50. Ou nos 80. Ou em 2020 (acelere o andamento, inclua distorção e Beyond here lies nothing renderia o primeiro hit digno do Kings of Leon).
Imagino que, com o passar dos anos, a velhice de Dylan será compreendida como o período em que o artista finalmente conseguiu assumir controle integral da própria arte. Em entrevistas, ele confessa a insatisfação com o resultado de gravações que transformaria em clássicos. Não mais. Together through life é um filme de estrada. A dois. E a fotografia granulada não está lá por acaso.
Se os versos parecem ir sempre direto ao assunto (e a parceria com Robert Hunter, do Grateful Dead, já é histórica), eles criam conexões com os três álbuns anteriores ao levar a sério aquilo que o crítico Allan Jones define como um mandamento do blues (que não funciona muito bem quando traduzido para o português): “you might get better, but you will never get well”. São narrativas que não escondem a desilusão (Life is well é uma patada) e a falta que sentem de uma época irrecuperável (O personagem de Life is hard lamenta a solidão, o protagonista de If you ever go to Houston quer de volta as memórias dos antigos bares onde se perdeu, e talvez seja a mesma pessoa que canta Forgetful heart) e a proximidade da morte. “Sinto uma mudança se aproximando. E a quarta parte do dia está quase no fim”, admite, na a obra-prima I feel a change comin’ on.
Que sentido isso faz? Talvez nenhum. Os novos discos de Bob Dylan possivelmente querem nos lembrar que a vida é dura e às vezes segue caminhos incompreensíveis. Os amores passam. A dor não diminui. A saudade arde. E o rock ainda nem nasceu.
Trigésimo terceiro álbum de Bob Dylan. 11 faixas, com produção de Jack Frost. Lançamento Columbia Records. 8.5/10