Mês: julho 2010
No Twitter | 14-31 de julho
Uma compilação dos comentários-relâmpago sobre séries e filmes que postei no Twitter recentemente. Em alguns casos, com adjetivos e interjeições que não couberam nos 140 caracteres. Nesta edição, novamente, só filmes (que não ando com paciência pra séries). Com faixas-bônus, como sempre.
Salt | Phillip Noyce | 3/5 | Um bom filme de ação cuja maior esperteza é brincar com a persona mutante da Angelina Jolie. Não imagino outra atriz nesse papel. Mas pena que não chamaram Brian de Palma para ciceronear a moça.
!!! Kinatay | Brillante Mendoza | 4/5 | Uma câmera destemida, que não se esconde de nada, mas nunca inconsequente: a todo momento, Mendoza questiona as escolhas do personagem principal (um rapaz “inocente” que se torna cúmplice de um assassinato) e divide com o espectador a sensação de mal-estar provocada por atos de violência. Uma viagem ao inferno da alma, acima de tudo.
!!! Pom Poko (1994) | Isao Takahata | 4/5 | Um dos animes mais populares no Japão é também um dos melhores que vi. E um dos mais delirantes. A ideia é de Hayao Miyazaki, e contém lições ecológicas tão bem sacadas quanto as de A Princesa Mononoke. Depois dessa (e de O túmulo dos vagalumes), me associo de vez ao fã-clube do Takahata.
!!! 5 centimeters per second | Makoto Shinkai | 4/5 | Dizem que Shinkai é o novo Miyazaki, mas me parece um cineasta “à flor da pele”, herdeiro de Kar-wai (até na sensação de torpor provocada pelas imagens, que são deslumbrantes). Ao mesmo tempo, um discurso muito franco e emotivo sobre os amores de adolescência – você pode ter se esquecido disso, mas eles eram intensos assim.
O bem amado | Guel Arraes | 2/5 | Não li a peça nem vi a novela, mas o filme me pareceu uma longa série de tevê condensada num “especial” de duas horas – formatado por um editor com aversão ao silêncio e adoração por diálogos rápidos e espertinhos.
Mixtapes! | Duas vezes julho
A mixtape de julho (e não encontro definição melhor) é uma mãe.
Sabe quando você vai num daqueles bares bacanas que oferecem dois drinks ao preço de um? Sabe quando você pede o hambúrguer e ganha um pacote de fritas? É mais ou menos isso.
Minto: é muito melhor do que isso. Você não paga absolutamente nada e ainda leva uma mixtape totalmente grátis. É uma transação incrível ou não é?
Daí vocês me perguntam: por que o surto de generosidade, ó bartender? Sinceramente: não foi intencional. Quando comecei a juntar as músicas da mixtape, acabei com um combo de 30 faixas. Tudo isso. Uma fartura. Daí me vi diante de duas opções: descartar a maior parte das faixas, pelo bem da coesão; ou montar duas mixtapes, uma ligeiramente diferente da outra.
Minha primeira decisão foi dar uma de Edward Mãos-de-Tesoura e cortar, cortar, cortar. Terminei com um disquinho de 12 faixas, esquizofrênico que só ele. Depois, já quase de madrugada, deitei (literalmente) a cabeça no travesseiro e decidi acolher todas as canções rejeitadas, deletadas, injustamente execradas. Terminei com duas mixtapes, 22 faixas, e assunto encerrado.
Eu sei, eu sei, eu sei que dá uma preguiiiiça danada fazer o download de duuuuas mixtaaaapes e depois ainda ter que escutaaaaar a baboseira toda (só de escrever essa frase, bateu um cansaaaaço). Nos poupe, Tiago! Mas (aí vai o aspecto gentil da história) você não precisa adquirir as duas mixtapes. Elas são bem grandinhas e sabem andar com as próprias pernas. Na verdade, elas têm muito pouco a ver uma com a outra. Não são irmãs nem nada. Talvez primas, mas nunca irmãs.
O esquema funciona assim:
A primeira parte da mixtape é (como dizer?) um filme da Sofia Coppola. Delicadeza com algo de malícia. Dream pop, power pop, odes a Brian Wilson, cantantes melancólicos, muita saudade e tristeza e doçura. É a mixtape mais tocante que você ouvirá na sua vida, eu garanto. Tem Department of Eagles, tem Foals, tem Avi Buffalo, tem Best Coast, tem Mystery Jets, tem Here We Go Magic (olha aí, Felipe!) e tem até Johnny Cash. Uma lindeza.
Esta primeira parte é uma continuação da mixtape de abril, sentimental e siderada. E é dedicada a duas pessoas muito bacanas que costumam baixar as mixtapes e comentar com certa frequência aqui no blog: o Daniel, do Power Pop Station, e o Pedro Primo, do Ouvido Cego. Se vocês curtirem, ficarei bastante satisfeito.
A segunda parte da mixtape é (como dizer?) um filme do Robert Rodriguez. Com efeitos especiais toscos, dublês, mocinhas estridentes, passagens absurdas, muita emoção e sedução. É como que dividido em duas partes: na primeira, um balancê infernal. Na segunda, guitarras pegando fogo. Tem M.I.A., tem Gaslight Anthem, tem a nova do Kanye West, tem Big Boi, tem Wavves e fecha com Arcade Fire – que, apesar de ter entrado na mixtape do mês passado, assina o disco que mais gostei de ouvir neste mês: The suburbs. Por isso eles aparecem na foto lá em cima.
Esta primeira parte é uma continuação da mixtape de maio: tique nervoso e adrenalina. E é dedicada a todo mundo que usa headphones para matar o tédio provocado por exercícios físicos repetitivos.
Assim funciona. Faça o que bem entender, ok? Ouça apenas a primeira, ouça apenas a segunda, ouça as duas ou não ouça nenhuma. Não sou seu pai e não vou monitorar seu IP. Fique à vontade (e, como sempre, a lista das músicas está logo ali na caixa de comentários).
Só peço um favor: se aqueles que ouviram a(s) mixtape(s) fizerem um singelo comentário, vai ser joia. “Sua gentileza levar-lhe-a ao sucesso”, li agorinha mesmo numa mensagem que encontrei dentro de um biscoito chinês. Sigam o conselho e sejam felizes.
Faça o download da primeira parte da mixtape aqui ou aqui.
E (força, rapaz!) faça o download da segunda parte aqui ou aqui.
Sun | Caribou
O clipe novo do Caribou, dirigido por Simon Owens, mostra os efeitos provocados pela eletrônica de Dan Snaith sobre um grupo de distintas senhoras. Hipnose. Transe. E umas alucinações oitentistas. Lá pelas tantas, quando uns manos entram em cena, fica a estranha sensação de que estamos assistindo a um comeback do C&C Music Factory. Não faz muito sentido (e deveria fazer?), mas nos lembra de que Swim é um dos grandes discos de 2010. E isso é importante.
PS: Desta vez, vamos combinar com um pouco de antecedência. A mixtape de julho chega quinta-feira às 21h. Pode ser? Acertado? Então nos vemos lá.
The suburbs | Arcade Fire
As tardes na minha quadra eram as tardes mais silenciosas.
Eu chegava da escola e ficava deitado na cama olhando para o teto. Nenhum barulho.
Eu voltava da rua e ficava deitado na cama olhando para o teto. Nada.
Eu adoecia e passava o dia inteiro deitado na cama olhando para o teto. E a quadra lá embaixo.
Teve o dia em que eu me ajoelhei na cama para olhar da janela as crianças brincando de basquete lá embaixo. Eu morava no terceiro andar e raramente descia.
E o silêncio. Teve aquele dia em que o garoto (que eu não conhecia) gritou “o mundo tá acabando!”, e depois contaram aos vizinhos que ele era louco. Não se preocupem que ele é louco, o garoto, o coitado do garoto, o mundo não está acabando, sem grilo, ele é louco.
E o início da minha adolescência foi assim: silêncio, silêncio, silêncio, loucura (dos outros), silêncio (da quadra).
Então não acontecia quase nada. Eu e as minhas centenas de atividades, mas o que ficou foi a lembrança daquela quadra silenciosa. Daí que, em vez de pular da janela, eu ficava escrevendo. E lendo: Salinger, Goethe, Conta comigo, O senhor das moscas e outros livros sobre meninos prontos para pular da janela (no caso de O senhor das moscas, acho que nem havia janela, havia?).
Depois cresci e lamentei – quanto tempo perdido! Vivi intensamente dentro dos meus livros e dos meus discos e dos filmes e da minha cabeça. Como se isso tudo bastasse (não bastava). Wasted hours. Eu era um menino tão melancólico que, quando lembro, quase dói.
Passei este fim de semana ouvindo The suburbs, o terceiro disco do Arcade Fire, e foi como se eu tivesse sido atirado novamente àquele estado de espírito, àquela cama, àquele quarto, àquele apartamento, àquele prédio e àquela quadra silenciosa. Perdão, amigos: este é um texto mais pessoal do que vocês gostariam.
Desconfio que seja um álbum poderosíssimo para meninos e meninas melancólicos. Perigoso, até (como O apanhador no campo de centeio é, sim, um perigo, estive lá!). Eu, que já estou noutra (e hoje sou um adulto quase seguro de mim mesmo, quase saudável, quase pronto para ter um filho e mudar o mundo), o admiro como uma obra sobre um período, sobre uma fase da vida, um disco que consegue se aproximar dos sentimentos de quem cresce trancafiado em quadras silenciosas (no caso mais específico do disco, em subúrbios confortáveis, organizados e medonhos).
Os personagens têm tudo e não têm nada, têm tudo e ainda não sabem o que querem, têm todo o silêncio do mundo à disposição. E não se movem (apesar do desejo intenso, quase louco, por movimento, por ruptura, por uma vida diferente). “Nós costumávamos esperar por um tempo que nunca chegou”, resume Win Butler, nosso narrador-protagonista, amargo e desiludido e olhando para o teto.
No álbum de estreia do Arcade Fire, Funeral, de 2004, a morte acendia e apagava as luzes da vizinhança – era a ameaça que varria o cotidiano, e ela estava lá. Neon bible, de 2007, era uma viagem a um mundo de pesadelos (e de goth rock oitentista, meio maçante e tedioso). Menos surreal, The suburbs soa como uma continuação dos temas de Funeral, mas com uma diferença cruel: em Funeral, a tristeza era provocada pela perda de pessoas queridas. Em The suburbs, o desespero aparece com a dificuldade de seguir com a vida, de escolher um futuro, de pegar as chaves do carro e sair.
“Quando as primeiras bombas caíram, nós já estávamos entediados”, explica Butler, na faixa-título (que praticamente resume o universo do disco). E continua: “Os meninos querem ser durões. Mas nos sonhos estamos ainda gritando.” E continua: “Todos os muros que eles construíram nos anos 70 finalmente caíram. Eles não significaram absolutamente nada.”
E (que pancada!) é só o começo de um álbum que vai à estratosfera sem sair do quarto.
Butler é dos nossos: acompanha os personagens com a autoridade de quem viveu sensações parecidas (e quem não viveu?). Desde a primeira música, estamos com ele. Não há movimentos em falso. Desta vez, o Arcade Fire nos ganha por uma questão de cumplicidade. A banda está do nosso lado (está no nosso mundo) mesmo antes de decidirmos se queremos ou não acompanhá-la. Butler canta para a própria geração, para os meninos e meninas da América (e do Canadá, e da minha quadra silenciosa). Canta para uma multidão que provavelmente retribuirá em estádios lotados e com olhos cheios de lágrima.
É esse tipo de disco.
E o que ainda me impressiona (e já ouvi o álbum mais de uma dezena de vezes) é como esse laço que a banda cria com o público acaba por anular quase todas as fraquezas do disco. E (como não?) há fraquezas. É um álbum excessivamente longo, para começo de conversa. Que deixa a impressão de que três ou quatro faixas poderiam ter virado lados B de singles. É um álbum musicalmente conservador – que, no máximo, arrisca alguma combinação de Bruce Springsteen com Brian Eno e David Bowie fase Low (e quem fez isso recentemente? Quem? Quem? Cold-o-quê?). É uma dessas óperas-rock que não vão longe demais.
(Aliás, é curioso que Butler tenha falado nos “muros dos anos 70”, já que este disco inteiro parece criado com tijolinhos do rock dos anos 70, do punk de Month of may ao prog de Suburban wars ao soft rock de Modern man ao stadium rock de City with no children e ao clima new-wave de Mountains beyond mountains, que é quase uma versão lo-fi de Heart of glass).
Mas, é claro, é um disco que quer conquistar o mundo. E, hoje em dia, quantos discos querem conquistar o mundo? Não que isso seja mérito (e revistas como a Rolling Stone vão tentar convencê-los de que é sim um mérito). Eu mesmo prefiro os discos que não querem conquistar o mundo (ou que desprezam essa ambição muito ultrapassada, tão mid-eighties). The suburbs é Joshua Tree, é Born to run, é Use your illusion, é (sim, engulam) Viva la vida e é todos esses álbuns-monumentos family-size, grandes demais para nossos mundinhos. Estátuas de pedra, entertainment, quase autoparódia.
O fator-estranheza, no caso de The suburbs, é que esse porte épico parece contradizer um discurso introspectivo. Os hinos do Arcade Fire são frágeis e tristes, são hinos para consumo individual, hinos em cápsulas, hinos dos solitários. Mas, antes que eu cometa um erro muito feio (e eu já ia cometendo), devo notar que essa aparente contradição acaba se convertendo em força. Já que as melodias parecem ecoar os sentimentos gigantescos de personagens pequenos. The suburbs é, se prestarmos atenção, o som dos desejos que não se concretizam.
Um disco planejado para soar mundano (a faixa de abertura, por exemplo, é até contida para os padrões da banda; idem para Deep blue e Wasted hours) e espetacular. Talvez um salto maior do que as pernas, mas um salto. Talvez não funcione totalmente, mas eles tentaram.
Mas – como eu disse e repito – nenhuma dessas questões conceituais soa mais decisiva do que a forma como o discurso do Arcade Fire se infiltra em nossas vidas, em nossas lembranças, em nossas aflições. Não existe conclusão em The suburbs porque nossas vidas também são imprecisas. E, se o disco parece se movimentar em círculos (com trechos de melodias e de versos que se repetem), é que estamos sempre retornando às nossas casas, aos nossos antigos problemas, aos nossos sonhos mortos, às nossas frustrações e à nossa adolescência.
É que, de vez em quando, ainda nos pegamos deitados na cama olhando para o teto e decepcionados e melancólicos e sem ter para onde ir e o silêncio lá fora. Mesmo adultos. Não é simples como parece.
Terceiro disco do Arcade Fire. 16 faixas, com produção de Markus Dravs e Arcade Fire. Lançamento Merge Records. 8.5/10
Sunday | Sonic Youth
Num dia 25 de julho, nasceram Brad Renfro, Matt LeBlanc, Nelsinho Piquet e o Tiagão aqui. Certamente há muito em comum entre esses quatro leoninos muito exibidos, mas tenho medo de descobrir o que é. De qualquer forma, nessa data também veio ao mundo o Thurston Moore, do Sonic Youth. Que é o sujeito mais competente dessa patota. Em homenagem a ele (e, ok, como uma forma de me presentear – também sou filho de deus), aí vai um clipe de 1998 que tem muito a ver com a ocasião: Sunday, do Sonic Youth. Dirigido pelo Harmony Korine. E com Macaulay Culkin fazendo biquinho. Ah, a MTV nos anos 90…
Root for ruin | Les Savy Fav
Qual disco do Pixies é o seu favorito? O meu é Doolittle, de 1989, que pede bênção a Buñuel e inventa Smells like teen spirit. O preferido do Les Savy Fav, aposto, é Trompe le monde, de 1991. O capítulo em que nossos heróis perdem a cabeça (de vez).
Tensão. Eis a palavra. Poucos álbuns de ruptura soam tão atordoados, como que flagrados em pleno ataque de nervos. Frank Black queria gravar um disco pontiagudo e nervoso, o avesso de Bossanova (1990). E o resto da banda queria ir para casa. Resultado da guerra: um artefato que explode a cada cinco segundos, desmonta, volta a se erguer e, entre uma metralhada e outra, encontra um ou outro acorde agradável – só que nos momentos errados.
É uma obra-prima. Mas uma obra-prima quase acidental, marcada pela tragédia (e o charme, o mistério todo talvez esteja aí).
Pois bem: fico com a impressão de que, desde 1997 (quando lançou o ótimo Let’s stay friends), o nova-iorquino Les Savy Fav tenta simular esse contraste entre guitarras desesperadas e lapsos de candura. Tenta gravar um Trompe le monde.
E o pior é que eles são candidatos seríssimos a esse tipo de reprise. Tim Harrington, o vocalista, talvez seja o mais digno sucessor de Black. Ele entende que o elemento perigoso (e que nos desconcerta, nos perturba) dos Pixies era a disposição da banda se entregar a atos de loucura. Ao vivo, o barbudão parece interpretar o narrador de Debaser – o sujeito que, aos berros, tenta (e não consegue) descrever a excitação que sentiu diante das cenas surrealistas de Um cão andaluz.
Um pirado.
O desafio do Les Savy Fav é transportar essa persona psicótica de Harrington para os discos. Acredito que ainda não conseguiram. Let’s stay friends é um competentíssimo álbum de indie rock que poderia ter sido gravado pelo Modest Mouse. Nota 8+. Mas desconfio que Harrington não está aqui para agradar ninguém (era mais ou menos a angústia de Frank Black, não era? Daí Trompe le monde e uma carreira solo orgulhosamente ‘demodé’).
Root for ruin também não é esse terremoto todo. Mas a banda continua tentando encontrar o formato exato para provocar aquela sensação de que o apocalipse varreu o mundo (não sem ter deixado alguns cacos de melodia). Talvez o culpado (fica a dica!) seja o produtor Chris Zane, que cisma em adaptar o som do quinteto a um modelo-padrão de indie/hardcore, talvez polido demais para traduzir imagens febris, cenas surreais. Ainda não combina com o que eles têm a dizer.
O que devia soar como um contraste chocante acaba por parecer mera contradição. O disco abre com duas faixas violentas (dois golpes, quase nocaute!) que citam Dead Kennedys, At The Drive-In e outros atentados – uma delas fala em apetite, apetite, apetite (é um filme de zumbis, quase), e nos prepara para uma matança.
Mas aí chegam duas canções (isso aí: canções) que vão aplacando essa fúria e domesticando o lobo: Sleepless in Silverlake e Let’s get out of here (essa última, talvez o maior decalque de Pixes que eles já fizeram, com acordes roubados de Velouria, de Bossanova) dariam ótimos singles, mas soam um tanto oportunistas. De qualquer forma, ótimos singles. E quero muito ver a reação de quem acusou o Wolf Parade de, em Expo 86, ter se adaptado a um esquema confortável de indie rock.
O disco vai oscilando entre a celebração (Lips n’ stuff é uma delícia) e o horror (Clear spirits é uma confusão só, mas que deixa a sensação de que, finalmente, as peças estão todas fora dos lugares) – e confirma o Les Savy Fav como uma banda mais típica, mais convencional do que ela própria talvez queira ser.
Talvez o erro deles esteja num detalhe: Trompe le monde era um disco que nos pegava despreparados, que nos enfrentava. Root for ruin é um álbum que cumpre requisitos para agradar a quem já se adaptou a esse tipo de confronto. Um tapa, mas com luvas macias.
Quinto álbum do Les Savy Fav. 11 faixas, com produção de Chris Zane. Lançamento Wichita Recordings. 6.5/10
2 ou 3 parágrafos | Lola
Duas avós: Sepa e Puring. O neto de Sepa foi morto pelo neto de Puring, ladrão de celular (um sujeito tão pobre que possivelmente já roubou galinhas). O bandido é preso e cria-se o conflito entre as personagens. Puring quer libertá-lo – mas, para isso, precisa entrar em acordo com uma inconformada, inconsolável Sepa.
Se fosse um filme americano, o que aconteceria? Uma baita crise moral, talvez. Algo como Casa de areia e névoa, imagino. Mas aposto que o tema central não seria dinheiro. A falta de dinheiro. A necessidade de dinheiro. O desespero por (qualquer) dinheiro. E é do que trata este Lola (3.5/5), um longa filipino dirigido por Brillante Mendoza (em 2009, ele também fez Kinatay, prêmio de melhor direção em Cannes) e levado no colo por duas senhoras atrizes.
O filme passou na mostra Descobrindo o cinema filipino, numa cópia excelente em 35mm (o que, por si só, é um acontecimento). Infelizmente, não posso acompanhar toda a programação, mas o que comentam entre as sessões é que os filmes lembram algo do cinema brasileiro. Sei não: talvez lembrem mais a nossa realidade do que o nosso cinema (eu queria muito ver um Raya Martin por aqui). Mas voltando a Lola: o que noto de mais particular no filme é como ele transporta um dilema universal e até meio calculado (duas avós, dois dramas, as injustiças do sistema judicial, etc) a um determinado estado de coisas, a uma questão social. E aí tudo fica parecendo muito específico. Mesmo quando Mendoza (que procura realismo e crueza em tudo) cai na bobagem de eleger alvos de plástico – como os dois gringos que, apalermados, filmam e exploram as misérias do país.
Superoito express (27)
American slang | The Gaslight Anthem | 8
O maior pecado que se pode cometer com o Gaslight Anthem é tratá-la como mais uma banda americana que se aventura a cingir as estradas do abertas por Bruce Springsteen. De fato, não são os únicos: como o Hold Steady e o Titus Andronicus, este quarteto de Nova Jersey revisa o ‘rock clássico’ setentista (não só Bruce, mas Stones, Clapton, Greatful Dead) com uma sensibilidade punk e uma escrita realista – crônicas de uma América sem glórias, cotidiana. Mas as comparações logo perdem a importância: quando vai ao microfone, Brian Fallon se torna o porta-voz de todos os roqueiros que abandonaram a juventude, mas não perderam a inquietação. É o homem.
Enquanto o Hold Steady e o Titus ainda conseguem tomar algum distanciamento para narrar a saga dos meninos e meninas da América, Fallon parece contar a própria história (e talvez seja tudo ficção, mas o que importa é o grau de convicção, altíssimo). Mas, em vez de se retrair no canto do quarto, ele combina versos cheios de mágoas e nostalgia com uma sonoridade extrovertida, de cabeça erguida. “Aqueles velhos discos não vão salvar a sua alma”, Fallon avisa, em Stay lucky. Mas American slang, mais conciso e aparadinho do que The 59 sound (2008), soa como um álbum perdido do início dos anos 70: hinos robustos para o sonho que acabou.
Gemini | Wild Nothing | 7.5
Sem querer forçar a barra (mas já forçando), existe pelo menos uma semelhança entre o Gaslight Anthem e o Wild Nothing: ambos soam autênticos mesmo quando seguem todas as regrinhas de certos subgêneros do indie rock. No caso do projeto de Jack Tatum, a matriz é o shoegazing dos anos 80. Mas, se a neblina de Gemini nos transporta imediatamente a um disco do My Bloody Valentine ou do Cocteau Twins, Tatum vai remodelando e atualizando essa sonoridade com a leveza do pop sueco (Summer holidays é bonita de doer) e o noise doce de um Pains of Being Pure at Heart. Em resumo: a delicadeza às vezes exige uma arquitetura complicada.
White magic | ceo | 7.5
E o sol continua a brilhar na Suécia… O projeto solo de Eric Berglund, do Tough Alliance, é cartão-postal para as belezas do pop escandinavo, a ser consumido com cautela por quem se engasga com melodias acolchoadas e arranjos com cheiro de morango. Canções infinitamente otimistas como Illuminata, No mercy e Love and do what you will são quase exercícios de estilo: coros, flautas, ecos, barulhinhos divertidos, sentimentos nobres e sintetizadores gentis. Uma lindeza. Melhor do que isso, só quando caem as chuvas de verão: Oh God, oh dear, uma ode tocante a Brian Wilson, e a eletrônica nebulosa da faixa-título são remédios contra insolação. “Venha comigo para um lugar que eu chamo de realidade”, convida Eric. Por enquanto não, obrigado.
Night work | Scissor Sisters | 7
Nada como um produtor sagaz: no terceiro disco do Scissor Sisters, o parisiense Stuart Price transforma um conjunto de canções apenas medianas num álbum que flui como um DJ-set. Um milagre semelhante ao que ele operou em Confessions on a dance floor, da Madonna, e Day and age, do Killers. No caso de Night work, o espírito é o de uma festança para trintões, com doses de dance music safada, new wave e pop dos anos 1970 e 1980. Os nova-iorquinos ainda pilham os hits alheios com humor debochado, camp – mas, desta vez, ganham massa muscular graças aos esteróides roubados de discos antigos do Prince ou de um Midnite vultures, do Beck. De Bee Gees (Any which way) a Talking Heads (Running out), o DJ não falha. No calor da pista, sobra até para os mais românticos: Fire with fire é o tipo de baladona épica que venceria o Oscar de melhor canção em 1986. O suficiente para nunca mais confundirmos Scissor Sisters com Mika.
No Twitter | 10/6 a 13/7
Uma compilação dos comentários-relâmpago sobre séries e filmes que postei no Twitter durante a semana. Em alguns casos, com adjetivos e interjeições que não couberam nos 140 caracteres. Nesta edição, só filmes. Com faixas-bônus e easter eggs.
(Pescando os textinhos no Twitter, notei que escrevi uma torrente de barbaridades durante a Copa do Mundo. Perdão, amigos, e até 2014)
A mulher sem cabeça | La mujer sin cabeza | Lucrécia Martel | 4/5 | Daqueles grandes filmes de mistério em que o detetive é o público. Cada cena é essencial (ainda que, numa primeira impressão, possa sugerir um torto fluxo de consciência). Não se apresse usar o rótulo ‘lynchiano’ – antes, note as sutilezas de uma trama menos delirante do que as aparências indicam.
Um lago | Un lac | Philippe Grandrieux | 4/5 | Grandrieux tem todo um ambiente exótico à disposição (é um mundo congelante, e deslumbrante), mas prefere usar a câmera para ampliar sentimentos: amizade, amor, relações familiares, ciúmes, dependência, isolamento e solidão. Cada uma dessas palavras é encenada com tanta precisão que, em alguns momentos, passei meus olhos pelo filme como quem vira as páginas de um dicionário: as nossas emoções, capítulo 1.
Nausicaä of the Valley of the Wind (1984) | Hayao Miyazaki | 3.5/5 | Que poderia se chamar ‘James Cameron’s wet dream’: lições de ecologia + imaginação febril. Mas tudo bem (do que estou reclamando mesmo?): um tempo depois, Miyazaki revisou a ideia em A princesa Mononoke – esse sim, um assombro.
A Riviera não é aqui | Bienvenue chez les Ch’tis | Dany Boon | 2.5/5 | 80% das piadas se perdem na tradução. O que resta é uma comédia gentil (e quase singela) que não chegou a me irritar.
Encontro explosivo | Knight and day | 2/5 | Os atores se divertem mais do que o público. Mas são pouco exigentes e, por isso, senti alguma vergonha alheia: Cruise & Diaz, vejam que constrangimento, não superam o patamar de Brad & Angelina (Sr. e sra Smith) e Harrison Ford & Anne Heche (Seis dias e sete noites).
Patrik 1.5 | Ella Lamhagen | 2/5 | Os atores até enganam, mas as situações são tão forçadas que me lembraram as comédias românticas mais tolinhas. Bobagem.
2 ou 3 parágrafos | Shrek para sempre
O primeiro Shrek, hem, que baita alarme falso: a animação, lançada em Cannes em 2001, nos prometia uma disputa criativa muito interessante entre a Pixar (associada à Disney) e a PDI/Dreamworks. Mas a brincadeira perdeu a graça. A Pixar dominou o formato (e seguiu em frente) enquanto que a Dreamworks passou a reviver aquele ano de 2001, mais ou menos como o personagem de Bill Murray em Feitiço do tempo: um dia exatamente igual ao outro.
Não que o estúdio de Jeffrey Katzenberg tenha se afogado em desleixo. Como treinar o seu dragão, Kung fu Panda e Bee Movie são filmes até cuidadosos, mas nada que se compare a um Ratatouille, a um Wall-E, a um Up – Altas aventuras. Cruel mesmo, no entanto, é comparar os dois “carros-chefe” dos estúdios: as séries Toy story e Shrek. No primeiro caso, a tentativa de crescer junto com o público; no segundo, a repetição mecânica de ideias que deram certo.
Ao contrário de Toy story 3, Shrek para sempre (2/5) deixa a impressão de um episódio mediano de um seriado de tevê que, após três temporadas, perdeu o viço. A narrativa segue um modelo-padrão de programas televisivos (com uma inspiração distante, e muito rasteira, de A felicidade não se compra): o herói passa por um momento de crise que transfigura o mundo em que ele vive – ao fim da trama, porém, a normalidade é reestabelecida. No caso, a normalidade é a vida em família, o matrimônio. Quando o ogro resolve abandonar o home-sweet-home e se lambuzar na solteirice, ele é duramente penalizado. Lição conservadora (e incômoda) da semana: os finais felizes são infinitamente felizes para quem se conforma com as convenções.
/\/\ /\ Y /\ | M.I.A.
O que você procura na música pop?
Você quer conforto, identificação, sentimentos calorosos, um refrão bem escrito, uma melodia que se assemelha a outra melodia que se assemelha a outra melodia que, por sua vez, é a melodia que tocava no momento mais importante da sua vida?
Ou você busca o assombro estético, a provocação, o desafio, a ideia inusitada, a melodia dissonante e estranhamente sedutora que, como um bug inesperado, o convida a repensar a importância que você dá às melodias mais familiares?
Maya Arulpragasam, 34 anos, procura um pouco das duas coisas. O afago e o choque. Mas, decididamente, anda cansada de conforto.
Na capa do terceiro disco de M.I.A., nos deparamos com a imagem de uma tela de computador infestada de cursores do YouTube. A cingalesa se esconde atrás de blocos cor de rosa que poderiam ter saído de um game retrô. É uma colagem que lembra aqueles instantes horríveis em que aplicativos se multiplicam desordenadamente, poluem nossos monitores sem que possamos controlá-los. Um tufão de bits. Por alguns minutos, é como se a máquina – o lado misterioso da força – tivesse finalmente vencido.
O criptografado /\/\ /\ Y /\ (que, se você preferir, aceita ser chamado simplesmente de Maya) é um álbum pop que simula esses minutos de caos e pavor. Pânico de tecnologia.
Que, obviamente, não é provocado tão somente por defeitos momentâneos do Internet Explorer. Logo na primeira faixa, A message, M.I.A. aponta a escopeta para outros inimigos. “Fones de ouvido se conectam com iPhones, iPhones se conectam com a internet, que se conecta com o Google, que se conecta com o governo”, alerta. A introdução dura menos de um minuto de duração, mas resume o sentimento de paranoia, revolta (mas contra quem?) e tensão que contamina o disco inteiro.
Numa época em as redes sociais metralham os “toques” de modelos, boleiros, atores pornôs e ex-integrantes de reality show, pode parecer impressionante que a música pop não tenha adquirido o hábito de comentar a web – e especular sobre os efeitos sociais de todo esse ruído on-line. M.I.A. observa naturalmente essa dimensão tecnológica do tempo em que vive: é possível fazer pop de guerrilha, pop contemporâneo, sem levar em conta o YouTube, o Twitter, o MySpace, a Wikipedia? Para M.I.A., não é.
E talvez não seja mesmo possível. Talvez nós é que estejamos acostumados a encastelar o pop e a protegê-lo de uma realidade que ainda soa confusa, complicada demais. Perto da ambição de M.I.A., o pop-2010 soa como um filme desbotado.
O tema já estava presente, ainda que indiretamente, em Arular (2005) e em Kala (2007). Os discos foram elogiados por renovar a world music, mas M.I.A. sempre pareceu mais interessada em nos mostrar que, com a internet, a música dos ‘outsiders’, dos estrangeiros (antes, tida como exótica e obscura), passou a ser mais um elemento sonoro entre tantos, mais um arquivo em mp3 à nossa disposição. Colar um arquivo no outro – e, com isso, produzir combinações muito pessoais – era a lição (até simplezinha, para quem se adaptou a um planeta pós-Napster, mas que soou como uma imensa novidade).
Maya é o álbum que radicaliza esse estilo global, fragmentado, sem muros, que observa naturalmente (e, no caso, com agonia) um mundo que não passa no noticiário da CNN.
Radical, aliás, em mão dupla: a sonoridade está mais arredia, irritadiça, “difícil” (de propósito). Já o discurso, menos polido, desinteressado em explicar didaticamente as próprias intenções. É o que é, como ela bem avisa no título de uma das faixas.
Lovalot, talvez a melhor do disco, sintetiza o conceito: sob um loop áspero (imagine o som de um chocalho grudado a um sampler mínimo de baile funk), M.I.A. narra o caso de amor entre um casal islâmico envolvido em casos de terrorismo. “I really love a lot”, diz o refrão, que pode ser interpretado como “I really love Alah”. Mas é outro verso, insistente, que ecoa quando a música termina: “Eu luto contra os que lutam contra mim.” Eis que, sem condenar ninguém, M.I.A. dança no campo minado.
Na face menos incendiária do disco, a web serve de plataforma para casos de amor e crises de identidade. “Você quer que eu seja alguém que não sou realmente”, reclama a apaixonada narradora de XXXO. “Por que as coisas mudam e permanecem as mesmas? Por que as pessoas gostam das mesmas coisas?”, ela questiona, em Tell me why, talvez chocada com as semelhanças entre posts do Twitter. E duas das faixas-bônus atendem por Internet connection e Caps locks.
Antes do lançamento do disco, M.I.A. explicou que: 1. As canções foram escritas num momento de crise, quando ela, isolada em Los Angeles, se sentia desconectada do planeta; 2. Ao lado de produtores como Blaqstarr e Rusko, ela gravou uma jam demorada no estúdio caseiro, uma zoeira de ritmos e loops, de onde tirou as ideias para as músicas; 3. A intenção era criar um disco “tão estranho e desconfortável que as pessoas começariam a exercitar os músculos da crítica”, um projeto “esquizofrênico”.
O resultado soa menos desagradável do que M.I.A. esperava, mas chega perto dos atos de terrorismo musical praticados pelo Flaming Lips (Embryonic) e Radiohead (Kid A/Amnesiac). Chegaria ainda mais perto se o disco não se escorasse em três faixas que podem (e devem) rodar nas rádios sem provocar muita estranheza: o R’n’b fofíssimo de XXXO (uma das canções mais viciantes do ano, de longe), o remake dub de It takes a muscle (do grupo alemão Spectral Display) e Tell me why, uma faixa dançante e sutilmente multicultural que poderia ter entrado no repertório de Music, da Madonna.
À exceção desses três momentos (que aliviam e muito a vida do fã), Maya é cacofonia digital com inúmeros dejetos musicais que, numa primeira audição, soam irreconhecíveis. Nos álbuns anteriores, ainda dizíamos que M.I.A. mesclara hip-hop com funk carioca e bhangra. Agora, não dá mais: essas e outras influências são trituradas num caldo grosso, com tempero ardido de punk (em Born free, com sampler de Suicide) e de neo-industrial (Derek E. Miller, do Sleigh Bells, também colabora).
É um disco que permite (até alimenta) a divisão de opiniões: uma obra aberta, espinhosa, que será atacada por muita gente e tratada como uma revolução por outros tantos. Até aqui, goste ou não, é o álbum pop mais urgente do ano.
Em momentos como Teqkilla e Meds and feds, o disco se desprende de qualquer padrão melódico e vai criando camadas de ruídos sobre ruídos. São arquivos que soam como arquivos corrompidos (no segundo caso, M.I.A. consegue sujar a já sujíssima Treats, do Sleigh Bells). É o choque, o vírus que corrói a rede.
Mas, ao fim deste ‘post’ de 42 minutos, M.I.A. volta ao pop (e ao mundo real) com um canção que atualiza o desencanto de No surprises, do Radiohead, e a fase Zooropa do U2, quando um Bono Vox desplugado comentava sobre um mundo com centenas de canais de tevê, mas nada de interessante na programação. “Minhas linhas caíram, você não pode me encontrar. Preciso passar um tempo com você. Não há nada de novo no noticiário da tevê”, canta M.I.A., depois do fim do mundo.
E assim termina o apocalipse digital: numa tentativa de contato. Humano e (parem as máquinas!) real.
Terceiro disco de M.I.A. 12 faixas, com produção de Blaqstarr, Diplo, Switch, Rusko e M.I.A. Lançamento NEET, XL Recordings, Interscope. 8.5/10