Together through life
I’m going away | The Fiery Furnaces
Eu não estou otimista.
Tudo bem, admito: eu não sou um sujeito otimista. Naturalmente vejo problemas onde deveria encontrar soluções, complico o que poderia ser simples e caço motivos para me sentir miserável. Talvez eu goste de me ver como uma pulga infeliz, desprezível, para sempre abandonada num mundo cruel. Agora mesmo, reparem, estou ouvindo Elliott Smith, trancado no meu apartamento friorento, me sentindo melancólico por alguma razão obscura. “Going nowhere”, o defunto canta. E eu não posso fazer nada além de concordar com ele.
É isso aí, chapa. A vida é dura.
Encontro as pessoas na rua e elas dizem que eu deveria me sentir bem. Tenho um emprego. Tenho a melhor namorada do planeta. Ganho um salário que paga o aluguel do apê e o pão e o suco de laranja e detergente e os outros produtos de limpeza. Não estou quebrado (por enquanto). Não fui demitido (por enquanto). Não estou totalmente sozinho (e taí uma perspectiva que arrepia minha nuca). Minha existência faz perfeito sentido nos momentos em que não penso na minha existência.
Mas deixemos esse papo sombrio de lado. Já que, oba!, o Fiery Furnaces, uma das bandas que moram no meu coração de papelão (e deixo isso bem claro, antes que me acusem de bajulação explícita, babação de ovo e outros crimes afins), está com disco novo.
E eles estão otimistas.
Aparentemente, pelo menos. Quando penso em Matthew e Eleanor Friedberger, prefiro sempre desconfiar de tudo. Sabemos que os irmãos dividem o gene da ironia e da dissimulação. Será que eles falam sério? Será que eles já falaram sério alguma vez na vida? Ouvi este I’m going away pela primeira vez e, tomado pelo susto (explico o motivo daqui a pouco, calma), fui procurar alguma dica no site deles. Encontrei um textinho que vai mais ou menos assim:
“Toda canção de rock é mais ou menos dramática. E, como os tempos estão difíceis, faz sentido transformar esse ‘drama’ em algo mais parecido com uma versão de Taxi que de Titanic. Gostamos mais de Taxi que de Titanic, de qualquer forma. Então esperamos que as canções deste disco possam ser usadas para que os chapas criem suas versões particulares de Taxi”
(E, depois de supor que eles falavam daquela comédia bobinha com a Gisele Bündchen, descobri que Taxi é uma série que foi transmitida na ABC entre 1978 e 1982, sobre o cotidiano de taxistas nova-iorquinos. Ganhou 18 Emmys e foi inspirada numa reportagem)
Eles continuam: “Idealmente, o cenário dramático de uma música é construído pela vida das pessoas que a ouvem. Esta é a promessa e o problema – e talvez o perigo – da música pop. Sim, estamos otimistas”
Está tudo explicado, não? Se eu fosse uma pessoa mais alegre e positiva, talvez as canções do Elliott Smith soariam como sambinhas divertidos e engraçados, daqueles que achamos em parques aquáticos ou aulas de lambaeróbica. E talvez por isso I’m going away me pareça um disco tão lindamente triste. A vida é dura. Os tempos são difíceis. E o Fiery Furnaces continua um ombro onde podemos chorar nossas pitangas.
Começando do começo: para os fãs, o sétimo álbum da banda é uma ruptura perversa numa carreira que, até agora, parecia narrar a história de dois nova-iorquinos que decidiram virar o tal “indie rock” pelo avesso. Isso, repito, para os fãs. Aos que não a conhecem, o disco é qualquer coisa (nessa altura, quem os detratores continuarão observando tudo de longe, meio desconfiados).
Depois de lançar um álbum ao vivo que, creio eu, deve ser ouvido com a disposição e entrega de quem compra ingresso para um show (e acho que foi por isso que tentei Remember só uma vez), o Fiery Furnaces preparou uma surpresa assustadora, impressionante, acachapante: virou uma banda de rock quase “normal”. Não sei o que aconteceu quando você ficou sabendo disso, mas eu quase caí da cadeira.
Sim, já que, para mim, sempre foi um prazer decifrar os enigmas de Matthew e Eleanor. Existe um humor fino e cruel em cada um dos álbuns, um radicalismo quase fora de moda, uma mania de narrar longas histórias, conceitos impenetráveis que nos desafiam a desvendá-los ou abandoná-los de vez (e aposto que muitos preferem essa segunda opção). Lembram do disco que eles gravaram com a avó? E daquele que soa como um álbum tocado de trás para frente? Ah. Bons tempos.
Trocadilhos infames à parte, a partir de Blueberry boat (2004) eles tomaram o barquinho rumo aos confins misteriosos do rock e seguiram em frente. Uma banda à parte. Ame ou deteste, nenhum disco do Fiery Furnaces parece qualquer disco.
Em I’m going away, o barquinho faz um desvio inesperado, depois de ser engolido por uma dimensão paralela, vai parar em algum ponto dos anos 1950. Alguns encontrarão o “disco pop do Fiery Furnaces” que tanto procuravam. Mas ouça com cuidado: a referência aqui é o pré-rock, o folk antiquado, as canções tradicionais (a faixa título é uma antiguidade de domínio público). Tentei ouvir o álbum junto com Together through life, do Dylan, e tudo se iluminou.
Num primeiro momento, soa como uma decepção. Confiem em mim: se o mundo afiar as garras como sempre faz, o destino do disco será semelhante ao do fabuloso Jim, de Jamie Lidell: será tratado como uma “obra menor”, uma espécie de Sky blue sky do Fiery Furnaces. Um projeto convencional e, por isso, pequeno. Não caiam nesse erro, meus irmãos e irmãs! Não. O disco está entre os melhores que a banda gravou – e, se você despir expectativas, encontrará nada menos que quatro obra-primas (dou os nomes: Drive to Dallas, The end is near, Cut the cake e Lost at sea) e um punhado de canções que explicitam o talento para a melodia que sempre se escondeu nas camadas mais profundas dos discos da banda (mas eu sei, eu sei: para o fã, isso não chega a ser uma novidade).
De forma planejada (já que, para os Friedberger, nada existe por acaso), tudo aqui é cristalino: das letras às melodias, dos refrãos aos rompantes econômicos de free jazz que quebram algumas das canções. A história narrada flui graciosamente. A voz de Eleanor atinge ápices inéditos de doçura, a produção parece tão serena quanto a de álbuns como The greatest, da Cat Power, e a falta de modernices faz parte da brincadeira. Uma das canções conta a história de uma mulher que “canta as músicas mais quadradas da jukebox”. O desafio para a banda (e um baita desafio) é soar inventiva dentro de um formato com limitações bem claras e específicas.
E é como eles soam. Seja quando repetem uma mesma ladainha em duas melodias diferentes (Charmaine champagne e Cups and punches) ou quando roubam uma linha de baixo de Black Sabbath (Staring at the steeple), eles interpretam as tradições do rock americano com um misto irresistível de elegância e atrevimento. É uma jornada sutil. Um filme de aventura para adultos sérios e maduros.
Se é assim, de onde vem a tristeza do disco? Surpreendentemente (mais uma vez!), o álbum me emociona em baladas supostamente óbvias que, para uma alma pessimista como a minha, soam francamente desiludidas. Em Drive do Dallas, Eleanor narra a história de uma mulher apaixonada que decide nunca mais dirigir para Dallas com os olhos embaçados. “Se eu vir você amanhã, não sei o que vou fazer”, ela repete e repete, sem fôlego ou conforto. Lost at sea é a confissão didática de uma vida que perdeu o norte. E ficamos sem saber se, em The end is near, ela canta o apocalipse ou o fim de um romance. De uma forma ou de outra, dói feito uma facada no peito (“The worst part is almost over”, canta Elliott, aqui no meu ouvido).
As melodias que embalam essas crônicas de passageiros solitários são arejadas o suficiente para não permitir que caiamos em depressão profunda. Talvez seja isso o que eles queiram dizer com um disco “otimista”. O momento mais luminoso (e meu favorito, de longe) é uma canção sobre uma mulher (sempre ela) que acorda num dia estranho e descobre que virou um sucesso. Está no noticiário local. Está nos jornais. E fica imensamente feliz com a novidade. “Quando ouvi a notícia, quase perdi o fôlego. Como isso pode ter acontecido de verdade?”, ela se espanta, acompanhado por um corinho jazzy de Matthew. “O caminho mais longo é o caminho mais doce para a casa”, ela afirma, naquela lógica estranha que conhecemos bem, na saltitante Take me round again.
Está tudo bem, então?
Para quem enxerga um mundo cinza (e eu enxergo!), uma canção tão alegre quanto essa pode soar dolorida em cada verso. I’m going away é um disco que permite a dupla interpretação. Um veneno agridoce. Eis o perigo da música pop.
Sétimo album do Fiery Furnaces. 12 faixas, com produção de Matthew Friedberger. Thrill Jockey. 8/10
Together through life | Bob Dylan
Together through life conta como o 33º álbum de Bob Dylan. Tudo bem. Um longo, longo caminho. Muita história para contar. Um mundo. Uma vida. Uma saga. Mas alguém precisa saber disso? Melhor seria tomá-lo como parte de um entardecer iniciado em Time out of mind, de 1997. Um quarto disco. E, por um momento, esquecer o resto.
É que nada será como antes, sabe? Depois de gravar dois álbuns revisionistas, com interpretações para antiguidades do folk (os incompreendidos Gone as I been to you, de 1992, e World gone wrong, de 1993), Dylan criaria ele próprio uma sonoridade descolada no tempo, de costas para o pop contemporâneo — a simulação de um passado musical muito distante, anterior ao período em que um jovem Robert Allen Zimmerman traçou as coordenadas de uma das maiores revoluções do rock.
Em algum momento, alguém perderia a vergonha e lançaria a pergunta: é um jogo interessante, mas que sentido isso faz? Há uma hora em que a brincadeira termina?
Existe um clima de frustração em muitas das resenhas de Together through life (aqui não falo das revistas que automaticamente aprovam todas as criações do cantor, mas de uma NME da vida, de uma Spin), e acredito que ele se explique pelo fato de que eu, você e todos nós esperamos incansavelmente pelo retorno de um Bob Dylan que pertence ao nosso passado. Queremos indícios do ídolo rebelde, quase inconsequente, iconoclasta e insolente, que implode festivais de folk com guitarras elétricas e resgata o country em meio ao frenesi psicodélico do final dos anos 60. Mesmo que inconscientemente, temos a esperança que a agonia que ainda existe nos versos do compositor termine por contaminar a música, exploda em acordes transgressores e novamente maltrate nossas expectativas. Mas, ao mesmo tempo, amamos o Dylan que não respeita nossos desejos, não anda nos trilhos, não se adapta em antologias musicais — o poeta ao sabor do vento.
Como conviver com um ídolo que insiste em nos apontar as direções que não queremos seguir? Talvez seja mesmo impossível agarrá-lo. Daí as biografias incompletas, as lendas urbanas, as declarações falsas em entrevistas, as anedotas, as múltiplas personalidades, I’m not there e todas as reentrâncias do mito Dylan, ainda nebuloso, imprevisível até quando parece repetir-se.
Aos 67 anos, Dylan busca um som. Talvez não mais que isso. Por coincidência, dia desses assisti a um documentário sobre o processo de gravação de um disco de Brian Wilson. O maestro tortura os músicos e repete takes obsessivamente até extrair os acordes e o clima já perfeitamente construídos em sua cabeça. É por aí.
Principalmente a partir de Love and theft, Dylan (ou Jack Frost, pseudônimo usado para a produção do álbum), encontraria satisfação na ideia de usar a tecnologia de estúdios para registrar um sentimento sonoro. O tema dos álbuns passaria a ser a própria descoberta de uma sonoridade. Se temos a impressão de ouvir um antigo disco de blues da Chess Records ou da Sun Records, então Dylan cumpriu o objetivo. A produção é parte importante da mensagem.
Together through life leva essas experiências ao limite. A seu modo, é um disquinho impertinente. Ao aceitar o convite do diretor francês Olivier Dahan para compor uma canção a ser incluída no filme My own love song, Dylan inspirou-se para um álbum inteiro. Com domínio da técnica de produção, gravou rapidamente acompanhado da própria banda e com participações de David Hidalgo, do Los Lobos, e Mike Campbell, do Tom Petty and the Heartbreakers. Diretor do próprio filme, Dylan sabe exatamente o álbum que quer: cru como um bootleg, fluente e despretensioso como Nashville skyline, calcado em blues e acordeão: uma coleção de canções de amor que poderiam ter sido gravadas nos anos 50. Ou nos 80. Ou em 2020 (acelere o andamento, inclua distorção e Beyond here lies nothing renderia o primeiro hit digno do Kings of Leon).
Imagino que, com o passar dos anos, a velhice de Dylan será compreendida como o período em que o artista finalmente conseguiu assumir controle integral da própria arte. Em entrevistas, ele confessa a insatisfação com o resultado de gravações que transformaria em clássicos. Não mais. Together through life é um filme de estrada. A dois. E a fotografia granulada não está lá por acaso.
Se os versos parecem ir sempre direto ao assunto (e a parceria com Robert Hunter, do Grateful Dead, já é histórica), eles criam conexões com os três álbuns anteriores ao levar a sério aquilo que o crítico Allan Jones define como um mandamento do blues (que não funciona muito bem quando traduzido para o português): “you might get better, but you will never get well”. São narrativas que não escondem a desilusão (Life is well é uma patada) e a falta que sentem de uma época irrecuperável (O personagem de Life is hard lamenta a solidão, o protagonista de If you ever go to Houston quer de volta as memórias dos antigos bares onde se perdeu, e talvez seja a mesma pessoa que canta Forgetful heart) e a proximidade da morte. “Sinto uma mudança se aproximando. E a quarta parte do dia está quase no fim”, admite, na a obra-prima I feel a change comin’ on.
Que sentido isso faz? Talvez nenhum. Os novos discos de Bob Dylan possivelmente querem nos lembrar que a vida é dura e às vezes segue caminhos incompreensíveis. Os amores passam. A dor não diminui. A saudade arde. E o rock ainda nem nasceu.
Trigésimo terceiro álbum de Bob Dylan. 11 faixas, com produção de Jack Frost. Lançamento Columbia Records. 8.5/10