Mês: março 2008
Vale a pena ouvir de novo?
O disco do Portishead tirou férias do meu iPod e não voltou mais. Não sei o que está rolando, mas parece que nossa relação desgastou cedo. Tento até ouvir no carro, mas quando entra aquela voz do Otto rogando praga em mim, troco o CD. Se isso é bom ou ruim, não sei. Mas ontem reli meu texto sobre o álbum e percebi que escrevi duas ou três asneiras inaceitáveis.
Já o do Gnarls Barkley não é aquela atrocidade que meu comentário sugeriu. Fui cruel com o disquinho, até bem simpático. Surprise é ótima, aliás. Mas as duas faixas que vêm logo depois…
O do Raconteurs continua na mesma. Paro sempre lá pela décima faixa e deixo quieto.
O do Breeders parece que nem foi gravado. Não sinto falta.
Me surpreendi com o do Vampire Weekend. Fui a uma festa sexta-feira e tocaram uma música da banda. A DJ jurou que foi sem querer. Não é que as pessoas dançaram? E aí lembrei do álbum, voltei a ouvir e virei fã de novo.
E enjoei do Jamie Lidell. Não agüento mais aquelas palminhas fake e aqueles refrões bobinhos. Tá, esse último parágrafo é mentira. Primeiro de abril antecipado.
Walk hard: the Dewey Cox story **
Sim, havia os desenhos animados. Mas lembro bem de quando me apaixonei terrivelmente, incondicionalmente por comédias. Na minha alfabetização, nada de Mel Brooks ou de Buster Keaton ou de Charlie Chaplin – esses viriam bem depois. Culpem o final dos anos 80, mas Corra que a polícia vem aí é meu Diabo a quatro (dos Três Patetas, que fique claro). Um clássico da minha pré-adolescência. Que, obviamente, morro de medo de rever.
Mas reconheço que o gênero defendido pelo trio David Zucker, Jerry Zucker e Jim Abrahams poderia ter sido enterrado em alguma matinê esvaziada de 1994. Banalizaram tanto as paródias de fitas de sucesso que hoje em dia qualquer lagartixa dirige filmes melhores que, para ficarmos no exemplo mais grotesco, Espartalhões. Daí a surpresa que é esse Walk hard, a melhor aplicação rigorosa da cartilha desde… não lembro quando.
Infelizmente, ainda não é a paródia dos nossos sonhos. Co-escrito por Jude Apatow (de Ligeiramente grávidos), o filme poderia ter rendido muito mais que um simples amontoado de gags. É bem-vinda a ambição de espinafrar as cinebiografias mais automáticas de Hollywood (se bem que, ops, I’m not there também acaba virando alvo). Menos interessante quando as piadas se inspiram basicamente no repertório de dois blockbusters: Ray e Johnny & June.
A narrativa cai naquele vício de parecer uma compilação de esquetes do Saturday Night Live (está mais para Todo mundo em pânico que para Apertem os cintos, o piloto sumiu). Mas esse tipo de produto aborrece tanto que, no caso, dá para ficar muito animado com a qualidade das gags. A colcha de retalhos é alinhavada por um ótimo John C. Reilly, por boas canções e (algumas) sacadas atentas sobre os clichês da música pop. Toda a “fase obscura” de Dewey Cox, com viagens lisérgicas que descambam num álbum psicodélico absolutamente pretensioso e em canções políticas cheias de metáforas incompreensíveis, vale as referências abobadas aos Beatles e, bem, a Ray e Johnny & June.
Pena que Dewey Cox não sobreviva ao filme. Não é como Frank Drebin, um personagem de carne e osso. O herói de Walk hard é a soma de três ou quatro caricaturas. E de, ok, cinco ou seis piadas verdadeiramente hilariantes.
‘The odd couple’ Gnarls Barkley **
Meu álbum despretensioso fez um baita sucesso, e agora? “Conquiste mais 35 territórios”, aconselha o Raconteurs. “Faça da brincadeira uma fórmula”, ensina o Gnarls Barkley. Até ontem, eu me perguntava por que tenho tanta preguiça de escrever sobre este The odd couple. Ia deixar passar. Mas agora sei: desta vez, também muito preguiçosos, Danger Mouse e Cee-Lo querem apenas manter o time em campo com dignidade.
Uma ambição que faz sentido se você é o U2 ou o Rolling Stones. Mas não quando você vende a idéia de se esforçar ao máximo para soar inventivo a cada novo single, a cada nova foto de divulgação. The odd couple, apesar de competente e etc, decepciona pela falta de ousadia.
A historinha é previsível. Há pelo menos três variações de Hey ya! (a mais interessante é a faixa de abertura, Charity case, mas Run também vai bombar nas pistas) e umas duas tentativas de reescrever Crazy (Who’s gonna save my soul, porém, acaba parecendo coisa do Moby). Blind Mary é (preguiça!) até bem divertida. De qualquer forma, ficam num estranho zero a zero. Vocês querem um antídoto ao marasmo? Então tomem Jamie Lidell, Jamie Lidell, Jamie Lidell.
‘Jim’ Jamie Lidell ****
Meus favoritos do ano, até 16h47 (horário de Brasília) do dia 27 de março de 2008: uma monumental revisão da tradição do country rock (Brighter than creation’s dark, do Drive-By Truckers), uma festança de punks adolescentes enloquecidos e ultrapassados (Get awkward, do Be Your Own Pet) e, finalmente, um álbum que presta homenagens apaixonadas, apaixonantes e rigorosas a uma escola de velhos gênios da soul music. Três “discos de gênero”, que devem tanto ao passado da música pop. O que acontece?
Outro dia eu estava espinafrando o novo do Raconteurs, e não peço desculpas. Existe, creio eu, um abismo entre artistas que seguem parâmetros envelhecidos e aqueles que, mesmo sem pretensões (como no caso do Be Your Own Pet), atualizam ou subvertem um conjunto de símbolos culturais. É essa a praia de Jim, o novo de Jamie Lidell.
Acima de qualquer teorização besta, trata-se de um álbum que soa direto, aconchegante e econômico como uma coleção de hits gravada por algum soulman em 1967. A maior ousadia do projeto está nessa aparência bastante acessível. Explico: Lidell construiu toda a reputação como um artista de música eletrônica “de vanguarda” com certa inclinação pelo soul. As influências de canção popular já contaminavam Multiply (2005), mas aquele era um álbum com momentos experimentais que satisfaziam os fãs mais radicais. Essa lógica foi deliciosamente invertida numa guinada que pode irritar quem espera do músico uma colagem sonora à Panda Bear.
Não é meu caso.
Em Jim, Jamie praticamente abandona underground e cobra atenção do público que compra CDs em supermercados e ouve Jamiroquai. Um golpe, se não arruinar a carreira do sujeito, provavelmente o transformará num ícone pop. E daí? Pelo menos para Justin Timberlake e Timbaland, que cairão de quatro por este grande disco.
Seria isso maturidade? Sabe-se lá. Acontece que, hoje em dia, Jamie testa uma nova hierarquização para a própria arte. Em primeiro lugar, as melodias. Em segundo, os vocais calorosos, emotivos. Em terceiro, as letras otimistas, tostadas ao sol. Em quarto, e só em quarto, as experiências com música eletrônica, que enriquecem a sonoridade do disco sem aparecer demais. No processo, ressalta o sublime num gênero maltratado pela constante ameaça de pasteurização. São tocantes as referências a James Brown (Little bit of feel good) e a Marvin Gaye (Rope of sand), e a alegria como Another day abre o disco, ao som de passarinhos e com um refrão que vai fazer você chorar no próximo comercial de margarina.
Espero sinceramente que o álbum não seja interpretado como uma diluição da trajetória de Jamie (mas reconheço que isso deva ocorrer, o mundo é cruel). Gente como Lauryn Hill e até Kanye West veste a soul music com as roupas da estação, e o faz com muita competência. Jamie pertence a outro grupo de artistas. Ele é o alquimista que une elementos conhecidos na tentativa de sintetizar a canção mais viva. Jim é o resultado da experiência: o robô com suíngue e coração.
Ainda Raconteurs
Sei que vocês não confiam nada em mim, então aí vai uma crítica “em tempo real” e muito elogiosa, cortesia da Uncut, para o Consolers of the lonely.
E eu sigo achando um disquinho quase medíocre.
‘Consolers of the lonely’ The Raconteurs **
Olhe mais de perto e você perceberá que, deus!, Jack White e Brendan Benson são dois sujeitinhos bem conservadores. Daqueles que estocam discos de vinil em abrigo nuclear com medo do domínio de uma nova onda tecnológica qualquer.
Só essa desvairada nostalgia justifica a estratégia de marketing do segundo álbum do Raconteurs. Um mini-manifesto explicando a razão de um lançamento simultâneo em todos os formatos num mesmo dia – já sei: por amor ao rock ‘n’ roll? – destoa tão completamente do momento em que vivemos que a capa do álbum só poderia mesmo conter referências à América… de uma época distante em que a comunicação se fazia apenas por cartas (daí o título do disco, o velho lema do prédio principal do Correio em Washington).
É aquela lição que nossas vovós nos ensinaram: quem se apega demais ao passado vira Lenny Kravitz (ok, inventei essa agora). Claro que White e Benson tratam a história do rock com um humor faceiro que Kravitz nunca teria capacidade intelectual para simular. Mas eles se deixam guiar por parâmetros artísticos caducos. Por exemplo: essa pretensão boba de gravar o “grande disco de rock ‘n’ roll”, um rótulo que Consolers of the lonely adoraria ostentar. Já não passou da hora? Isso ainda serve?
E vê como é a vida? Eles planejaram todo um esquema para fazer com que o álbum chegue a todos os seres humanos simultaneamente amanhã, dia 25, e aconteceu o que? Ele escorregou pelo iTunes e, nesta altura, até minha tia caduca já decorou as letras. Tentaram domar a rede mundial de computadores, os tolinhos.
Sabotar o hard rock e o heavy dos anos 70 num formato lo-fi é uma coisa – e essa é uma idéia que o White Stripes já tratou com muito esmero. O Raconteurs, uma “banda de verdade”, não se dispõe a esse tipo de desafio. O que Benson e White fazem na hora do recreio é gravar discos que poderiam ter sido consumidos durante os anos 70. Com muito cuidado. Com algum talento. Com vigor. Com tino pop. Com faro comercial. Eles são bons compositores. Mas os dois álbuns do Raconteurs soam apenas corretos. Perigosamente corretos, alías. Já que, sabemos, rock correto equivale a sexo com boneca inflável (nunca tentei, mas aposto que deve ser pelo menos um pouquinho gostoso, apesar da ressaca moral).
Neste monumental segundo álbum, a banda se revela mais entrosada, mas ainda sem uma estética particular. Na maior parte das faixas, fica a impressão de que Jack White engole o grupo aos poucos, como quem compõe canções anabolizadas do White Stripes – em The switch and the spur, aparecem até os sopros mariachi de Conquest. Os grandes candidatos a hit são como que remixes radiofônicos do WS. E Top yourself, Salute your solution e Five on the five são remixes até bem eficientes. Há trechos em que Benson tenta se libertar das correntes e infiltrar algumas melodias à Paul McCartney no jogo, mas sai perdendo. É inevitável. Jack White tem carisma, e sabe o que faz.
Poder de fogo eles têm. Mas, lá pela décima faixa do disco (são 14!), a pompa começa a pesar. O Raconteurs não era para ser um projeto despretensioso? A partir de agora, ninguém tem o direito de se enganar: dominar o planeta é a idéia deles de diversão.
O sonho de Cassandra **
São mesmo grandes as semelhanças entre as premissas do novo Woody Allen e do recente (e impecável) Sidney Lumet. Mas acredito que mais interessante do que tomar um dos filmes como exemplo de “bom cinema” é aproveitar as coincidências para entender as especificidades de cada cineasta. O filme de Allen é desconjuntado e bem menos furioso que o de Lumet, mas eu não esperava nada muito diferente. A crítica do Roger Ebert é problemática por conta disso: se Allen tivesse feito um thriller à Lumet, qual teria sido a graça?
Prefiro outro tipo de comparação: frustrante é como este Cassandra’s dream parece minúsculo (em estofo reflexivo, já que estamos na fase inglesa e supostamente sofisticada do cineasta) perto de Match point e talvez até do esquecível Scoop. O cineasta passa tão à margem das pretensões do material, e de uma forma tão desleixada (ele filma uma tragédia grega como quem narra uma crônica londrina) que aposto como este filme será motivo de culto em algumas estranhas comunidades fechadíssimas – aquelas que encontram momentos de brilhantismo em Igual a tudo na vida.
No currículo de Allen, o filme não fará muita falta. Mas me interesso pelo modo como o cineasta obsessivamente repete uma velha ladainha – “a vida é uma tragédia irônica” – e, com um tipo de distanciamento meio blasé, acaba encurralando os personagens numa conclusão esparsa, sombria, que qualquer outro diretor (até mesmo Lumet) encenaria em tom maior. E conseguir esse efeito friorento acompanhado de uma trilha espalhafatosa do Philip Glass não é para qualquer um.
BBB
Você conhece alguém que torce pela Gyselle?
Então dê uma gravata nessa pessoa. Por mim. Obrigado.
Ainda R.E.M.
Michael Stipe na Pitchfork:
Eu já sabia. Mas é interessante a palavra “óbvio” saindo da boca do Stipe. No mais, ele comenta que a dica do produtor Jacknife Lee veio, como suspeitávamos, do The Edge mesmo.
Juízo ***
Os repórteres que cobrem histórias de crimes acabam sempre tombando na limitação de não poder divulgar a identidade de criminosos ou vítimas menores de idade. Há um sem-número de explicações para a barreira jurídica (e não tenho opinião formada sobre o assunto), mas estou certo de que ela trava a humanização, na mídia, desses personagens. Os jovens que cometem crimes – ou sofrem algum tipo de abuso – se transformam em iniciais, ou em nomes fictícios. Não têm rosto, não têm voz. Quase não existem. Como escrever o perfil de um fantasma? Já vivi essa dúvida algumas vezes, e ainda não encontrei saída para o questão.
Neste documentário, Maria Augusta Ramos toma uma decisão muito corajosa e acertada ao substituir os menores infratores por outros jovens, atores do drama alheio. É corajosa por que o recurso provoca no espectador um distanciamento inevitável a cada cena, a cada interrogatório que sabemos tratar-se de (pelo menos em parte) escancarada encenação. Não temos o direito da ilusão. E acertada por garantir a esses personagens rostos, expressões. Eles ganham o direito à vida, nada menos que isso.
Mas voltemos à questão da encenação. As comparações com Jogo de cena me parecem um pouco apressadas, já que a diretora desce as cartas logo nos letreiros iniciais. Ela não quer nos enganar, não quer provocar profundas reflexões sobre a imagem. No filme, aliás, o trato com a imagem é grosso e reto, sem rebuscamento. Maria Augusta se diz influenciada por Bresson e Ozu, mas é forçar amizade. O que aproxima Juízo das obsessões de Coutinho é o quebra-cabeças de múltiplas encenações. Os meninos atuam. Mas eles estão inseridos num processo jurídico que, por si só, já se entende como um conjunto de atuações (e a juíza, principalmente, faz por merecer um prêmio de melhor atriz).
O fio entre Juízo e Justiça, o longa anterior da cineasta, se amarra aí: para a diretora, é possível revelar os bastidores de fóruns e juizados, mas não sem expor o teatro que move as instituições. Os dois filmes tratam do tema com foco impressionante. Melhor: não exigem do espectador conclusões imediatas nem consensuais. Estamos diante do problema. De vários problemas: na vida e no cinema.
Meet Kevin Johnson *
Sempre acreditei que o maior problema de temporadas quebradas em longos intervalos nunca foi o tempo de espera por novos episódios (eu levo isso numa boa, sem crises de ansiedade). Pior que isso são os baques que a narrativa sofre com a necessidade de prender a atenção do público. A fluência vai para os ares quando os produtores precisam tirar da cartola ganchos chamativos e, em muitos casos, infantis. Um exemplo desse tipo de solução desengonçada é o desfecho deste Meet Kevin Johnson, que poderia muito bem estar numa paródia de Lost.
Em condições normais, este seria um típico capítulo de transição. Teria o simples propósito de explicar ao público o que Michael fez no período em que sumiu do radar dos roteiristas. Para uma série que nunca foi um primor de sutileza, é até previsível que tenham criado um episódio inteiro para ilustrar o que, em grande parte, estava nas entrelinhas. É um capítulo dedicado a quem caiu da cadeira com a revelação de que Michael era o espião de Ben – convenhamos, quase ninguém.
O que mais me incomoda em Meet Kevin Johnson nem é essa queda pelo didatismo. É que Michael nunca foi um personagem com estofo psicológico, e o longo flashback sobre o tempo que o paizão passou fora da ilha confirma essa inconsistência. O espectador só comprará a fase auto-destrutiva do sujeito se tiver muita boa vontade. É, no mínimo, over. Michael passa os quarenta minutos batendo numa mesma tecla – ele quer se matar, ele quer se matar, ele quer se matar – e, quando ganham algum espaço para avançar no desenho do personagem, os roteiristas tropeçam em uma piada de mau gosto. A bomba falsa com recadinho irônico, diga aí, não seria divertida nem nos momentos mais insanos de Missão: impossível.
Mas a gag sintetiza o episódio. Um explosivo que promete desertificar o mundo, mas vejam só: é de mentirinha, a-há.
‘Antidotes’ Foals **
Eles não são Strokes nem Klaxons nem nada, mas criou-se um hype tão exagerado em torno da estréia do Foals que a banda passou a carregar a responsabilidade monumental de salvar o rock inglês em 2008. E, infelizmente, levou a missão a sério. Daí que Antidotes, um típico álbum irregular de estréia, não foi defendido com entusiasmo nem pela New Musical Express, que engordou as expectativas de que o quinteto se transformaria na maior revelação do ano (eles ganharam uma capa antes do lançamento do disco).
Para a NME e congêneres, o Foals seria a resposta britânica para o math rock norte-americano, liderado hoje pelo Battles. O grupo chegou a gravar uma primeira versão do disco com o produtor Dave Sitek, do TV on the Radio, mas rejeitou o resultado e decidiu arrumar a casa por conta própria. A estratégia desengonçada talvez explique a falta de foco do disco, e acaba ressaltando o lado mais conservador da banda, que às vezes soa como derivação de Bloc Party. Mas há ótimos momentos (os mais despreocupados e juvenis) em que eles se libertam das cobranças e se divertem, como em Cassius e The french open. A exemplo de nove entre dez bandas britânicas, perigam ser atropelados pela aflição alheia antes de amadurecerem.
PS: Desde o início do blog, era uma intenção minha escrever sobre todos os discos e filmes que eu ouvia e via. Mas o tempo anda escasso e, além do mais, percebo que muitos dos discos e filmes interessam apenas a uma parcela mínima dos já poucos leitores deste blog. A partir de agora, vou deixar de escrever sobre alguns dos lançamentos listados no meu log. Se vocês quiserem comentários sobre algum caso específico, basta pedir que escrevo. Estamos conversados?
‘Accelerate’ R.E.M. **
Sobre o novo do R.E.M., de mim vocês não ouvirão muito além de um sussurro desanimado. Já tentei cinco vezes, sempre à espera de uma revelação mirabolante que justificasse o auê em torno do álbum, mas não encontrei a chave do pote de tesouro. Me esforçarei outras vezes, mas não acredito em uma mudança de opinião. É um disco competente e deslocado em tempo-espaço (“out of time”, eles diriam), mais ou menos como todos os que a banda gravou a partir de Up. Mas que não me entusiasma ao ponto de tecer comparações com álbuns como Document ou até mesmo como o sujinho Monster, que pelo menos era
divertido sacana.
Estou ficando velho, vocês sabem, e por isso vejo graça nessa frenética movimentação de jornalistas aflitos por rotular este Accelerate como um “retorno à forma”. Engraçado porque a própria Rolling Stone, que hoje celebra o “renascimento” do R.E.M., havia elogiado o frívolo e hoje crucificado Around the sun. O marketing de Accelerate se concentra nessa promessa de um grupo novamente furioso, pronto para a luta. Mas é isso mesmo? De verdade? Dá a impressão de que muito jornalista escreveu sobre o disco antes da primeira audição.
Há um clichê na música pop que o R.E.M. hoje incorpora. Grandes bandas abaladas por projetos fracassados geralmente retornam com discos simples, crus e diretos. Depois da bad trip de Pop, o U2 contra-atacou com o demasiado-humano All that you can’t leave behind. Em seguida ao álbum psicodélico, os Rolling Stones voltaram a soar como Rolling Stones. No novo álbum, o R.E.M. tenta um retorno aos “anos de ouro” com uma sonoridade menos polida, às vezes mais agressivas. Nada muito radical, já que ainda há a balada consternada, à Drive (Until the day is done) e o fluxo de consciência enérgico, à Imitation of life (Supernatural superserious).
O vírus que maltratou Around the sun atende por um nome: produção. Era o álbum mais plano da banda, e às vezes soava simplesmente tosco. Já Accelerate, com todas as tripas à mostra, desce mais redondinho. Funciona assim, como a resposta de Michael Stipe ao Arctic Monkeys. Mas há uma questão que, desde Up, não se resolve: as letras, que eram o principal trunfo do grupo, hoje parecem ter perdido a verve, o sarcasmo, as rimas venenosas e o lirismo lindamente desiludido. No máximo, Stipe se declara um “DJ do fim do mundo”. Depois de 35 minutos de calculado “retorno à forma”, não me resta muito além de uma difícil adaptação à morna fase “madura” desses gigantes.
‘Third’ Portishead ***
Apague as luzes. Conte até dez. O retorno do Portishead não é amigável. Não é algodão-doce. Não é neve rala em Londres. Não tem cheiro do casaco que você usava na infância. Por isso, sugiro que você pense algumas vezes antes de desancar o álbum com um ríspido “decepção!”
Entendo. De certa forma, é mesmo uma decepção. Pelo menos para quem esperava um novo álbum do velho Portishead. Prefiro outro termo: anti-clímax. Third é o anti-clímax do ano, e duvido que encontre concorrentes à altura.
Os fãs do Portishead são heróis da resistência. E eles se dividem praticamente em dois grupos. Há os que torciam por um álbum que simplesmente desprezasse um intervalo de onze anos e continuasse alegremente (ou melancolicamente, melhor dizendo) o álbum anterior, o acinzentado e maravilhosamente glacial Portishead, de 1997. E há os que queriam uma atualização do som do trio. Um Portishead electro, imagine aí. Ou um Portishead remixado pelo James Murphy, quem sabe.
Third não é um nem outro. É um objeto estranho, que poderia ter sido criado em qualquer ano entre 1998 e 2008. Ou entre 1978 e 2008.Há momentos no álbum que recorrem a um tipo tão primitivo de eletrônica que remetem ao uma homenagem crua ao Joy Division de Isolation, de She’s lost control. Em faixas mais plácidas, a banda arrisca mesclar violões (que lembram o projeto solo da Beth Gibbons com o Rustin Man) com batidas desencontradas, opacas. No wikipedia, o disco é definido como trip hop. Ainda há elementos de hip hop e de dub, mas o Portishead cobra a redefinição do conceito. A fórceps.
Essa tentativa de adaptação a um novo tempo (e não exatamente aos novos tempos) não deixa de soar como um esforço sobrenatural para uma banda que, nos dois primeiros discos, forjou uma marca sólida e intransferível. Quem ouve os primeiros acordes de All mine, por exemplo, sabe exatamente quem está escutando. Já Third confunde o jogo com a instabilidade que se espera de um trabalho de transição. Seria ótimo se, em um ano, o trio retornasse com outro álbum. Sinceramente? Duvido muito que isso vá ocorrer.
Se a estética da banda sofreu um colapso, um terremoto (o que não impede faixas lindas como Magic doors ou experimentos bem-sucedidos como o krautrock de Machine gun), esse abalo deixou a atmosfera que cerca o trio ainda mais pesada. Talvez seja o álbum mais dolorido da trajetória do grupo, com letras que invariavelmente lidam com desastres emocionais, amores frustrados, dores de cotovelo quase fatais. Nas canções do Radiohead, o mal-estar da civilização está na rotina vazia, no tédio do cotidiano, na linha de trem que leva ao trabalho todas as manhãs. Já Gibbons geme para o furacão de uma eterna crise íntima, existencial. “Me sinto incompleta”, confessa, em Magic doors. É daí para pior.
Há como imaginar pontos de contato entre Third e In rainbows. São dois álbuns que exibem o quão difícil deve ter sido concebê-los. Mas que tiram da tensão criativa novos sentidos para a existência de bandas fundamentais, ainda fascinantes de tão misteriosas. A diferença é que In rainbows era convidativo. Third é um baque. Mas vamos lá: você ficaria verdadeiramente contente se o Portishead tivesse demorado dez anos para nos informar que passou a se sentir muito confortável com a vida no planeta Terra?
Horton e o mundo dos quem **
Me interessei pelo filme depois da recomendação muito entusiasmada de um amigo meu, que calha de ser crítico de cinema, e talvez por isso eu tenha saído da sessão assim, decepcionado. Está muito longe de ser uma bela animação, do nível de um Ratatouille e até de um Monstros S.A. Frustra por seguir à risca uma fórmula que a Blue Sky aplicou em Era do gelo 2 e Robôs. Isto é: as tramas podem ser compreendidas por crianças de três anos, mas existe um subtexto ambíguo que abre nessas historinhas uma gama de interpretações mais, digamos, adultas.
Em Era do gelo 2, não sei se vocês lembram (e estarão perdoados se não lembrarem, o filme é bem esquecível), havia a questão do aquecimento global. E Robôs tinha um quê marxista demodé, tratava da luta de bichinhos fofos contra a exploração de uma sociedade cada vez mais mecanizada. Neste Horton, há como encontrar uma mensagem pacifista sobre a convivência entre diferentes povos. “Pessoas são pessoas, não importa o tamanho”, eis a lição largada pouco antes dos créditos finais. A igualdade em tom pastel.
Sabemos que há motivações políticas nos livros do Dr. Seuss (de onde o filme tira inspiração), mas o que me incomoda em Horton é como esse método da Blue Sky virou uma cartilha. É procedimento mecânico, frio. O que os operários insatisfeitos de Robôs diriam disso? Ora, é um desenho que poderia ter sido feito por qualquer funcionário do estúdio que compreendesse mais ou menos o universo de Dr. Seuss e entendesse as regrinhas básicas das animações digitais – piadas auto-referenciais, por exemplo. Não vejo nada extraordinário no filme, ainda que não consiga encontrar grandes problemas.
É mais ou menos como As crônicas de Spiderwick (**), que nem faz por merecer um comentário à parte. Não ofende, funciona até direitinho (no caso, é uma fita de horror para menores de 14 anos, e superior a Nárnia e A bússola de ouro) mas também deixa aquele sabor de produto excessivamente calculado. Falta autoria. No caso de Spiderwick, é caso até interessante: Mark Waters, de Meninas malvadas, faz filmes decentes quase invariavelmente. Mas quem é Mark Waters? Não sei. Não me pergunte.