Mês: setembro 2011

Os filmes da minha vida (2)

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A saga dos 100 filmes mais cultuados cá na Tiagolândia chega ao segundo episódio com mais dois títulos que cuspiram lava no meu infinito particular. Vocês entendem a dimensão desta série de posts, entendem?

Mas, sem querer ficar marisamonteando, serei sucinto: já que este ranking só vai terminar após a Copa de 2022, sugiro que os cinco frequentadores deste blog relaxem e, sem fazer julgamentos cruéis, aproveitem o passeio ao pântano das minhas lembranças & sentimentos imperfeitos. Ainda estamos nos trêilers, ok? E a sessão é tripla, tá certo? Então sit tight que…

098 | A esquiva | L’esquive | Abdellatif Kechiche | 2003

Quando penso em muitos dos meus filmes preferidos, geralmente lembro de características que nada têm a ver com a trama, com os conflitos que eles narram. Tomei um susto, por exemplo, ao ler hoje que as crianças de A esquiva ensaiam uma peça de Marivaux. É uma informação importante dentro do filme, mas que havia desaparecido dentro das minhas memórias. O que ficou foi uma impressão até infantil de coração partido: o desejo de ter permanecido verdadeiramente mais algumas horas, dias, dentro daquele mundo onde vivem os personagens. A encenação me convidou a entrar, digamos assim, e de repente eu me tornei um dos meninos da trama. Não foram poucas as vezes em que eu saí da sala de cinema como quem acorda de um daqueles sonhos que parecem muito vívidos: mas eu tinha uns 28 anos quando vi este filme. Não era mais inocente. Não era criança. Mas foi nisso que me transformei, naquela sessão (na embaixada da França), para meu espanto. Quando acenderam as luzes, me senti desamparado.

097 | Império do sol | Empire of the sun | Steven Spielberg | 1987

A história da minha minha relação com este longa de Spielberg está cheia de incompreensão e repulsa. Detestei o filme. Mas detestei, antes de tudo, porque não o compreendi, não entendi absolutamente nada da trama. Minha mãe cometeu um erro (uma ousadia?) ao me levar para o cinema numa época em que eu ainda não sabia ler legendas: o que ficou daquela sessão foi uma coleção de imagens desconexas. Também restou: um menino (mais ou menos da minha idade) perdido dentro de uma guerra e dentro de uma tela, tudo destroçado dentro da minha imaginação. Foi um embate difícil, sangrento, entre o espectador de oito anos e o pequeno J.G. Ballard (que se tornaria um dos meus escritores preferidos; mas muito mais tarde). Lembro que, nos créditos finais, me senti ainda mais pequeno, burro: enquanto o público aplaudia e chorava, eu só queria que alguém me explicasse aquela história, os diálogos, qualquer coisa. Mas eu me recusava a pedir orientações – e, depois que aprendi a ler legendas, me recusei a rever o filme. É um porre, eu dizia aos meus amigos. Menino orgulhoso, como vocês podem perceber.

Mixtape! | Setembro, teen spirit

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A incrível, contagiante (e um tantinho neurótica) mixtape de setembro chegou cedo (surpresa!) para iluminar setembro.

“Por que a pressa?”, vocês me perguntam, intrigados. É que, na próxima semana, o Tiaguinho aqui não terá tempo para nada: não vai ouvir música, blogar bobagens, bolar mixtapes, muito menos respirar. Estarei no Festival de Brasília: trampo day&night, portanto (vou tentar postar alguns textinhos sobre os filmes da competição, mas não garanto nada).

Mas isso aí é assunto pra outra hora.

Cá está ela, então. Prematura porém bonitona, cheia de charme, com um desejo enorme de te emocionar. Irresistível. Sério. Eu já ouvi tanto que decorei e aprendi as cifras de todas as músicas (!).

Em resposta à mixtape de agosto, que veio sequelada por uns tons de cinza-deprê, esta aqui irrompe iluminando a paisagem. É uma coletânea para os dias muito amarelados da estiagem brasiliense. E uma coletânea que, além de sugerir alguma coisa de juvenil (daí o título), está povoada de moças e rapazes eufóricos/confusos.

Aqui você encontra (nesta ordem) Neon Indian, The-Dream, CSS, St. Vincent (que está na foto lá no topo do post), Laura Marling, Cymbals Eat Guitars, Wild Flag, Wilco e Male Bonding. O lance é dinâmico, e flui que é uma beleza (a lista de músicas está na caixa de comentários).

Minha sugestão: faça o download (desta vez, todas as canções se encaixam direitinho). Mas você também pode ouvir a coletânea aqui no site, clicando na jukebox que se encontra no fundo deste post.

Seria bacana se, além de ouvir, você escrevesse um comentário avaliando a seleção musical deste mês. Mas não vou cobrar nada. Eu não tenho tempo, você não tem tempo e isto aqui, no mais, é só um blog. Relaxe.

E faça o download da mixtape de setembro.

Ou ouça aqui:

Vídeos do VodPod não estão mais disponíveis.

[chuck palahniuk]

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“Nos anos 1960 e 1970, os programas de culinária na televisão estimulavam uma categoria crescente de gente a gastar seu tempo vago e dinheiro com comida e vinhos. De comer, eles passaram a cozinhar. Guiados por especialistas em como fazer, como Julia Child e Graham Kerr, explodimos o mercado dos fogões Viking e das panelas de cobre. Na década de 1980, com a liberdade dos vídeos e CD players, o entretenimento passou a ser nossa nova obsessão.

Os filmes se tornaram um território em que as pessoas podiam se encontrar e debater, como fizeram sobre suflês e vinho na década anterior. Como havia feito Julia Child, Gene Siskel e Roger Ebert apareciam na televisão e nos ensinavam a ser óbvios. O entretenimento passou a ser o próximo ponto para investir nosso tempo e dinheiro.

Em vez do buquê, da safra e da lágrima do vinho, falávamos sobre o uso mais eficiente da voz em off, de uma história de fundo e do desenvolvimento do personagem.

Nos anos 1990, nos viramos para os livros. E, no lugar de Roger Ebert, entrou Oprah Winfrey.

Mesmo assim, a real e grande diferença era que podíamos cozinhar em casa. Não podíamos fazer um filme, não em casa. Mas podíamos escrever um livro. Ou um roteiro de cinema. E esses se transformam em filmes.”

Trecho do ensaio Você está aqui, de Chuck Palahniuk, no livro Mais estranho que a ficção.

express | 44

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Wild Flag | Wild Flag | 78 | O último disco do Sleater-Kinney (The woods, um dos meus favoritos dos anos 00) era um prédio implodindo, e soava mesmo como a desintegração sofrida de uma longa história. A estreia do Wild Flag (quarteto com Carrie Brownstein e Janet Weiss, ambas ex-Sleater) bate como uma espécie de renascimento: um bebezinho eufórico e hiperativo, sorrindo, batendo palminhas, cuspindo purê e descobrindo a beleza que existe nos discos do papai punk. As roqueiras-on-board não são mães de primeira viagem, e poderiam muito bem ter criado um disco calculadamente animadíssimo. Mas não. O Wild Flag passa uma impressão muito firme de que elas reaprenderam a se divertir, e o que se ouve é um recomeço a sério. “O som é o sangue entre nós dois”, elas cantam, logo na primeira faixa. E são as canções mais simplezinhas (como Boom, digamos) que se alastram com mais força – e o que seria apenas um disco back-to-basics, com os limites estreitos de uma garagem de quitinete, se torna um álbum que tenta (e consegue) recuperar um sentimento de estreia, de debutar graciosamente. Bonito.

Era extraña | Neon Indian | 71 | É aquela história que vocês conhecem: há os discos sobre a adolescência (Boys and girls in America, por exemplo) e os discos adolescentes (que se comportam inconscientemente como meninos de 15 anos). Este do Neon Indian me parece pertencer ao segundo grupo, e me transporta a um período da vida cheio de contradições, em que eu me sentia simultaneamente horrendo e especial, inadequado no mundo e entusiasmado com o desejo de descobrir esse mesmo mundo. E não faltam bipolaridades teenager a este disco: apesar de atender por Era extraña, ter sido gravado na solidão de um inverno congelante (na Finlândia) e soar dodói, ferido pela contemporaneidade (Future sick é a faixa-tema), também é um álbum empolgadíssimo com tudo o que está up-to-date na indielândia: cada música dá lambidinhas numa referência cool, do synthpop ao shoegazing, tudo amplificado e colorido pela mixagem de Dave Fridmann (aqui, mais para MGMT que para Flaming Lips). Tudo muito pulsante, às vezes cansativo de tão pulsante, às vezes genuinamente juvenil (Alan Palomo tem só 23 anos), às vezes viciante mesmo (Suns irrupt, grude bonito), com repulsa/ tesão por tudo o que brilha nos trending topics. Um disco que será acusado de tudo (novidadeiro e superficial), e talvez seja todo tolo mesmo. Mas se mantém vivo graças a uma energia meio pueril, adolescente (de usar o pop como balão de oxigênio), e dentro dessa fiação elétrica corre sangue – sangue purinho, inocente, mas sangue.

Lenses alien | Cymbals Eat Guitars | 71 | Um daqueles discos que não entrará em quase nenhuma lista de melhor do ano, mas que periga ser reavaliado lentamente. É que as ambições desta banda (pelo menos as ambições que aparecem aqui) têm menos a ver com provocar um efeito acachapante (um “uaaau” de primeira audição) e mais de ir acumulando pequenos efeitos e detalhes, que podem ir nos conquistando sem que percebamos. Parece até um disquinho perverso, que nos tenta a tirar conclusões apressadas (“todas as faixas se repetem numa eterna monotonia, que chato!”), mas depois se mostra muito seguro daquilo que quer – que é criar uma espécie de manto sonoro, que encobre e conecta todas as faixas. Para mim, é uma surpresa: a banda que eu conheci no disco anterior parecia mais disposta a sair se aventurando por aí do que a criar um itinerário circular, simétrico, meio matemático. Pois bem: disco impressiona quando nos familiarizamos a ele, ainda que eu não me sinta atraído a ouvi-lo com frequência, talvez porque a banda ainda me pareça um holograma de bandas mais interessantes dos anos 90. E é um álbum que admiro a certa distância – belo até pode ser, mas tocante (pelo menos para mim) não é.

The High Country | Richmond Fontaine | 59 | Os discos anteriores do Richmond Fontaine (pelo menos a parte que conheço, como Post to wire e o ótimo The Fitzgerald) podem ser lidos como livros de contos, com canções independentes (tramas) que comunicavam sutilmente entre elas. O novo arrisca com um projeto diferente: o que era coletânea de contos agora vira uma espécie de romance beat, com personagens que aparecem e desaparecem entre uma faixa e outra, melodias que alinham cenas, numa estrutura com algo de cinematográfica (tem cena pré-créditos, sequência de ação, momento intimista, clímax…). O repertório de temas daria uma fita indie americana bem previsível: violência doméstica, dramas de “gente comum” em paisagens interioranas e um script com tragédias waiting-to-happen, bem à moda da Fox Searchlight. Como acontece com esse tipo de disco-filme-novelão, a trama às vezes se impõe sobre as canções, a música (mesmo nos belos lamentos country que eles escrevem até dormindo) vai a reboque da ficção. É quando dá a vontade de desligar o disco e ver o filme (ou ler o livro, ou ouvir Johnny Cash).

[philip roth]

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“O sr. Cantor quebrou por fim o longo silêncio: “Algum de vocês tem amigos que ficaram doentes?”, perguntou.

Alguns confirmaram com um gesto de cabeça, outros disseram que sim.

“Isso é duro pra vocês, eu sei. Muito duro. Nós todos precisamos esperar que eles se recuperem e estejam logo de volta ao pátio.”

“A gente pode acabar num pulmão de aço para sempre”, disse Bobby Finkelstein, um garoto tímido que estava entre os mais tranquilos e que ele vira usando um terno nos degraus da sinagoga após o serviço fúnebre de Alan Michaels.

“É verdade”, disse o sr. Cantor. “Mas isso é quando ocorre uma paralisia respiratória, coisa muito rara. É muito mais provável que a pessoa se recupere. É uma doença grave, pode causar muito estrago, porém há exemplos de recuperação. Às vezes, ela é parcial, mas também pode ser fatal. A maior parte dos casos é relativamente branda.” Ele falou com autoridade, pois a fonte de seu conhecimento era o dr. Steinberg.

“A gente pode morrer”, disse Bobby, insistindo no assunto como raramente fazia. Em geral, parecia preferir que os extrovertidos tomassem a palavra, porém não era capaz de se calar sobre o que aconteceu com seus amigos. “O Alan e o Herbie morreram.”

“É, pode-se morrer”, o sr. Cantor concedeu, “mas as chances são poucas.”

“Não foram poucas para o Alan e para o Herbie”, Bobby retrucou.

“Estou dizendo que as chances são poucas em toda a comunidade, na cidade.”

“Isso não ajudou o Alan e o Herbie”, Bobby insistiu com voz trêmula.

“Você tem razão, Bobby. Tem razão. Não ajudou. O que aconteceu com eles foi terrível. O que aconteceu com todos os meninos é terrível.””

Trecho de Nêmesis, de Philip Roth.

Os filmes da minha vida (1)

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A ideia de criar uma lista com os 100 filmes da minha vida pode parecer uma grande bobagem. E, pensando bem, é mesmo.

Refleti bastante, ó meus amigos, antes de sair por esta estrada perdida. Bastante. Mas cheguei à seguinte conclusão: se eu não começasse esta jornada, envelheceria para sempre frustrado. E não estou sendo dramático em relação a tudo isso, acreditem.

O objetivo aqui é, acima de tudo, não repetir os erros que cometi na neverending saga dos 100 Discos da Minha Vida. O maior deles: em alguns momentos, olhando agora no retrovisor, percebo que aquela lista ficou um pouquinho impessoal, como se eu quisesse listar os discos que admiro – e não muito aqueles que acabaram marcando a minha vida, talvez por motivos que escaparam do meu controle.

Pois bem: nesta lista de filmes, o critério definitivamente não é o de um ranking de melhores, de mais influentes, de mais mágicos ou perfeitos (ou algo do gênero). O que vocês vão encontrar é uma listinha muito particular, uma espécie de diário-a-lápis que conta histórias sobre a minha relação com o cinema.

Em muitos casos, nem lembro muito sobre o conteúdo dos filmes. Por isso, este guia será totalmente inútil a quem procura indicações para alugar DVDs ou programar opções na tevê por assinatura. Tentarei escrever textos também rasteiros, inúteis, como que flashes de lembranças. Não vão servir para muita coisa, garanto.

Minto. Talvez eles sirvam para que vocês entendam um pouco mais sobre a pessoa que escreve neste blog. Estes filmes, de uma forma ou de outra, me entregam. O blogueiro está nu. Eles foram afinando meu olhar, mesmo sem o meu consentimento.

Ao contrário da lista de discos, esta aqui não tem links para downloads. Infelizmente. Se vocês quiserem se aventurar nesses filmezinhos, terão que ir à luta por conta própria (mas sei que os cinco leitores deste blog são todos grandinhos e, portanto, tudo vai dar certo).

A lista segue numa ordem que não é linear. Começa na minha infância, com o primeiro filme que vi no cinema, e termina na minha adolescência. Tem filmes que vi este ano e alguns que vi em 1991, 1995. Filmes em película, em DVD, em VHS. Filmes medíocres e obras-primas. Filmes que não consigo rever (porque desatam memórias difíceis) e filmes que revi vinte vezes. Filmes que me ensinaram e que me deseducaram, filmes cujo impacto ainda não sei explicar.

Tal como o ranking dos discos, este aqui vai irritar profundamente àqueles que lutam contra o “umbiguismo” na escrita sobre obras de arte. A esses supostos leitores, peço paciência: estes pequenos textos tratam apenas dos encontros entre um sujeito irrelevante (eu) e imagens que talvez vivam centenas, milhares de anos.

Uma grande bobagem, portanto (que vou tentar atualizar às segundas-feiras, toda semana; stay tuned).

100 | Os Trapalhões no Auto da Compadecida | Roberto Farias | 1987

O primeiro filme que vi no cinema estremeceu a minha rua. Eu, oito anos de idade, estava tão perplexo quanto os vizinhos, os meus primos, os meus amigos. “Vi com meus próprios olhos: o Didi morre“, eles diziam. E aquela ideia me dava arrepios. Porque os filmes dos Trapalhões, que eu via em VHS e na tevê, eram espetáculos de circo: comédias que deveriam nos alienar da ideia de morte. Daí que a sessão de O Auto da Compadecida, com Renato Aragão no papel de João Grilo, contaminou o cinema (e era um cinemão, desses que não existem mais) com um ar de desemparo. Lembro bem. Era como se alguém tivesse lançado fogo na lona, maltratado os bichos, assediado a bailarina. O fim do filme resolve essa impressão de desencanto (Didi vive!), mas, quando penso naquela sessão, tudo o que aparece nas memórias é a derrota do herói. A morte. E o cinema, para mim, começou estranhamente assim: como um espaço de melancolia, um templo de verdades difíceis, de descobertas às vezes desagradáveis.

099 | Confiança | Trust | Hal Hartley | 1990

É um dos filmes da minha pré-adolescência, e tenho quase certeza de que o encontrei na hora certa. Lembro muito pouco sobre ele, mas o que lembro me parece imaturo, um tanto pueril. Não sei se, numa revisão, ele ainda me diria alguma coisa. De qualquer forma, na época era um dos filmes que eu mais admirava, e eu até achava que o compreendia totalmente. Eu queria ser um daqueles personagens, vagando vagabundamente por Long Island, conversando sobre Sentimentos Densos de um jeito descompromissado, como quem discute o capítulo da novela. Uma ceninha ficou: aquela em que Adrienne Shelly de repente despenca do muro, só para ver se o Martin Donovan vai impedir que ela caia. Ele impede: e aquilo ali me tocava, quando eu tinha 11 anos de idade e não sabia quase nada sobre cinema independente americano, Hal Hartley, juventude, amizade e confiança.

A creature I don’t know | Laura Marling

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Quando ouço Laura Marling, lembro imediatamente das meninas que sentavam nas primeiras fileiras da classe, tão perto dos professores e do quadro-negro (e tão longe dos alunos mais bagunceiros: aqueles que, nos casos mais trágicos, seriam reprovados).

E essas lembranças são de um tempo que eu tinha 10, 11 anos de idade. Era um moleque. Laura canta às vezes como uma senhora de 52 anos (a inglesa tem 21), mas sempre que ela começa eu acabo voltando àquelas meninas. E aí penso na dedicação que demonstravam naturalmente, todos os dias. Dedicação como que infinita. É uma lembrança inevitável.

Eu admirava essas meninas (mas não as amava, e nem havia como, porque elas eram como estátuas de bronze em exposição; e, no mais, não tinham tempo para ficar amando à toa). Sempre tão atentas, prematuras, pareciam ter nascido com todas as respostas. Estavam verdadeiramente, e há muitos-muitos anos, à frente dos outros, os menos aplicados (eu, por exemplo, era um aluno nota 7).

Elas tiravam nota máxima nas provas e, como se não bastasse, respondiam as questões com a mais arredondada das caligrafias. Preenchiam cada lacuna com uma cor (do rosa ao preto) de forma que o exame alegrassem os olhos dos mestres. E outros agrados que, de tão bem bolados, provocava na classe um tipo de inveja muda, reprimida (de tão forte), que nem percebíamos sentir. Na maioria do tempo, fazíamos de conta que elas não existiam, essas meninas nota 10.

E algumas permaneciam para sempre invisíveis. Visíveis para os professores, mas não para os alunos (que tinham mais o que fazer).

Davam a impressão, elas, de que não estavam nunca, jamais para joguinhos tolos, para brincadeiras: quando o professor pedia o trabalho para ser feito em casa, criavam capas em plástico vermelho, com adesivos. Quando tinham que apresentar palestras para a turma, exibiam trechos de filmes legendados. E traziam cartolinas, usavam roupas típicas (quando o tema era, digamos, cultura italiana).

Não sei o que elas fazem hoje, essas meninas (aposto que se tornaram médicas ou advogadas ou talvez dentistas, mas é impossível cravar; talvez tenham perdido tudo, até a inteligência, não dá para saber). Na época, me pareciam irreais, seres em holograma (ou, pensando hoje, ilusões de um tempo em que eu inventava coisas demais). Talvez tenham se transformado em cantoras extremamente eficientes e detalhistas. Será? Deve ser por isso que penso nelas quando ouço Laura Marling.

E talvez por isso eu consiga admirar a música de Laura Marling – sem conseguir amá-la, no entanto. As meninas nota 10 me ensinaram algo sobre empenho, sobre dedicação, mas quando penso nas garotas que eu amava naquele tempo… Nenhuma delas era perfeita. Na verdade, todas eram até muito erradas, cheias de defeitos que me deixavam caído, fraco.

Já no terceiro disco da carreira, Laura (e nem sei se posso chamá-la apenas assim; essa mulher me intimida) me parece conquistar tudo o que perseguia. Absolutamente tudo. É um disco accomplished, como se diz. A cantora/compositora escolhe uma quantidade não muito exagerada de cores (uma aquarela conservadora, mas estamos falando de uma artista à procura de simetria, de uma beleza clássica), desenha um mundo, o habita, e nos transporta para lá.

É um CD de estatura média (tem 10 faixas), conciso, que demarca uma trajetória cristalina (ele começa convidativo, vai se tornando tenso e feroz, encontra um ponto de ebulição, e depois vai relaxando os músculos até encontrar um certo tipo de happy end). Os versos são tão harmônicos que deixam a sensação de que foram escritos num período de dez anos, uma palavra por dia. Não foram, o que as torna ainda mais espantosas.

Ao contrário de uma St. Vincent, de uma Fiona Apple, Laura parece ter nascido sem paciência para qualquer um dos clichês das mulheronas-superpoderosas, e por isso vai pegar indicações nas fabulações de uma Joan Baez, de uma Joanna Newsom, de um Robert Plant, narrando casos, criando personagens, indo e voltando a temas recorrentes (relações familiares, arrependimentos, culpa, as criaturas estranhas da intimidade e da idade adulta) para se afirmar dentro de um sistema de referências/sonoridades que não é muito particular, mas de que ela se apropria música a música, como quem customiza um sofá antigo.

Ao contrário de St. Vincent, que tenta criar uma espécie de assinatura sonora, Laura prefere decorar o próprio quarto (ou, digamos, o próprio repertório) com uma série de objetos vintage, organizando-os de tal forma a compor um arranjo delicado, agradável, “sofisticado”, que não nos parece bagunçado ou dissonante nem nos momentos supostamente enfezados do disco (em The beast, por exemplo, quando as guitarras tentam fazer chover pedra na cidadezinha aprazível da cantora).

É por excesso de zelo, por causa um perfeccionismo ideia-fixa, que Laura às vezes tangencia a assepsia técnica – como em I was just a card, que parece implorar por uma versão by Dave Matthews Band. Mesmo nesses momentos, a voz da cantora se impõe com tanta segurança que cobra nossa atenção. A insegurança nunca se mostra na música, ainda que às vezes apareça nas letras. “Pode não ser o certo, mas é real”, ela canta.

Sim, soa real. Mas também soa sempre muito certo. Corretíssimo. Ou (sei que é uma crueldade dizer isso; pobres das meninas dedicadas, elas não merecem tanta relativização) certo em demasia, como se Laura tentasse criar uma arte totalmente sob controle, uma fera domesticada, um animal de dentes pontiagudos, mas que nunca ameaça a saúde do tratador. A creature I don’t know me parece um disco que se adequa a certos limites riscados por sua “dona” – e que, por isso, nunca dá chance para o erro (muito menos para o acaso, mas aí estaríamos cobrando outro disco, de outra cantora).

Com este álbum, Laura chega ao ápice da carreira, e não duvido disso. Talvez muito cedo. É o disco perfeito que ela procurava; um álbum inatacável, a menos que você cobre dele aquilo que ele próprio não pretende oferecer. Como acontecia com as meninas nota 10 lá do colégio, Laura acerta todas as questões – e faz as palestras mais complicadas sem desarrumar o penteado.

Não dá para dizer que este disco me aborreça. Não. Nem me mata de tédio. Há momentos até que me emocionam (Night after night, e o trecho de Salinas em que ela se teletransporta para a fase 68 de Bob Dylan). Mas, acima de tudo, ele me deixa curioso em relação às próximas criações de Laura. Existe arte após a perfeição?, eis a questão. No mais, o que acontece com as alunas dedicadas do primário quando entram na faculdade?

Desconfio que, aí sim, vamos conhecer uma história fascinante: uma criatura talvez irreconhecível.

Terceiro disco de Laura Marling. 10 faixas, com produção de Ethan Johns. Lançamento Virgin Records. 72

[jeff tweedy]

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“Não compartilho da ideia de que a criatividade nasce do sofrimento. A maior parte da grande arte foi criada apesar das tristezas, e não graças a elas. Não estou feliz o tempo todo, mas tampouco sofrendo permanentemente. Me parece que as pessoas compram essas histórias terríveis sobre mim porque querem que as coisas soem mais heróicas.”

Jeff Tweedy, vocalista do Wilco, em entrevista ao El País. Texto completo aqui.

1977 | Terius Nash

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O fim de uma relação amorosa produz angústia, pesadelos, talvez tremedeira, incertezas, traumas, dor, noites maldormidas, às vezes alívio, quase sempre medo, em alguns casos saudade, rancor, pode ser que raiva, insegurança. Também produz blogs terrivelmente pessimistas, diários borrados em canetinha vermelha, e-mails furiosos (que nunca serão enviados) e canções tristes que você dedilha no violão enquanto chora feito um menino órfão.

A primeira separação, dizem, pode ser fatal. Há quem não se recupere. Conheço gente que ainda não sarou. Tem aqueles que se arrepiam só de pensar no assunto. E os que guardam fotos e cartas, esperando o dia em que, sabe-se lá, quem sabe.

É uma dor universal. É um clichê.

Aprendi que existe sabedoria no lugar-comum dos corações regenerados (e ele diz: “o tempo resolve tudo”). Mas essa é apenas minha experiência — ela não pode ser tratada como uma espécie de regra geral para namoros&casinhos. Há os que sofrem muito, há os que sofrem pouco, há os que não sofrem nada (e há os psicopatas). Mas uma sensação, uma espécie de ressaca sentimental, talvez nos conecte, nós que já namoramos e separamos: com distanciamento, após um certo tempo, as lembranças do período imediatamente posterior à separação podem parecer um tanto patéticas.

E digo isso com todo o respeito por aqueles que estão passando por essa fase neste exato momento (força, gente!): a única perspectiva boa que posso oferecer é que, quando terminar a temporada de sofrimento excessivo, você vai olhar para trás com um pouco de vergonha. “Por que sofri tudo isso?”, é a pergunta recorrente que as pessoas fazem antes de começar a sofrer tudo de novo.

O inferno é que, nesse período desconfortável de quase-loucura (quando estamos no parapeito, pulando sem asa delta), as pessoas às vezes escrevem e gravam discos. Infelizmente, elas não têm amigos que recomendem “escreve as músicas, meu velho, mas deixe para gravá-las daqui a três anos. Enquanto isso, faça um blog, veja séries de tevê, leia Nick Hornby, coma sorvete.”

Há grandes discos que são escarrados por esse furacão pós-separação. Mas são poucos. Posso contá-los nos dedos da minha mão. O melhor deles, Blood on the tracks (de Bob Dylan), não é apenas terapêutico: ele parece flutuar sobre a tragédia, observando (até com um pouco de graça) toda a dança confusa de encontros/desencontros/tropeços/azares que desenha a trajetória de uma história de amor. Sea change (de Beck), me parece mais agressivamente pessoal: ainda assim, existe no disco um produtor (Nigel Godrich) que cumpre o papel do bom amigo, que não deixa o sofredor dar vexame.

Nenhum desses milagres, no entanto, acontece neste 1977. Aqui, temos um compositor com total controle do processo de gravar as mais confessionais das canções de dor de cotovelo. E sem amigos por perto.

É um disco franco e imaturo. Honesto, talvez até verdadeiramente honesto. A alegria do ouvinte sádico. E a polaroide já amarelada de um período muito específico na vida de Terius Nash (mais conhecido como The-Dream), que se separou de Christina Milian em julho de 2010, pouco depois de ter completado 33 anos.

O produtor “profissa” de hits femininos como Single ladies e Umbrella (e de bons discos “de amor” como Love vs. money, de 2009, e Love king, de 2010), talvez tenha se inspirado em Kanye West para gravar um “break-up album” de machinho que, como aconteceu com 808s and heartbreak, poderia muito bem ser chamado de Love vs. sanity. Lembranças de Here, my dear (1978), de Marvin Gaye, serão inevitáveis.

Como Kanye e Gaye, Nash também se deixa engolir pelo tumulto sentimental. E não deve ser culpado por isso (o doente de amor pode ser especialmente irritante, mas quem nunca sofreu disso?). Mas, ao se exibir com tanta franqueza, ele acaba listando um festival de bobagens juvenis que serviriam de bons argumentos para os amigos da ex-mulher. Eles apertariam o play e diriam: “Foi com esse sujeito que você se casou, menina?” Nos momentos de humor involuntário, 1977 pode ser lido como uma espécie de Blood on the tracks for retardados.

Se eu tivesse 18 anos de idade, me identificaria com este disco. Juro que sim. Sim. E muito. Ele mostra um homem sofrendo (de um jeito estúpido) por amor. Eu adorava esse tipo de confissão. Hoje, me sinto um pouco constrangido diante desses desabafos. É como se um terapeuta tivesse violado um segredo e decidido me contar mágoas que não quero conhecer. O que mudou em mim? Talvez eu tenha crescido. Ou talvez eu tenha ouvido “break-up albums” em demasia.

Que seja. 1977 soa, antes de tudo, como um desperdício de bons arranjos, de ideias musicais até decentes, tudo muito bem acolchoado numa linda sonoridade que é de Terius Nash e de mais ninguém (e, se nos concentrarmos apenas no som dos sintetizadores e violões, este é um disco que supera o mais recente do Weeknd, por exemplo).

Daria uma ótima mixtape instrumental. Uma das faixas (a única que não me deixa com vergonha alheia) me parece um hit extraordinário: Long gone mereceria entrar numa coletânea do The-Dream. Pena que, para chegar lá, temos que ouvir ladainhas lamentáveis.

Used to be, a faixa número 2, é a mais humana de Nash. E deixa saudades do tempo em que ele soava como um androide. “Pare de foder com a minha vida, mulher”, ele ordena, no refrão. Antes disso, compara o tempo em que a esposa era sua “cool bitch”, antes de se transformar numa chata. “Você era contra a internet, agora fica aí blogando e fazendo outras merdas”, desabafa. E depois passa a lição: “As ‘bitches’ de verdade sabem que estou falando a verdade, já as ‘fake bitches’ estão todas se mijando”.

Medo!

As músicas em que ele admite que se sente carente soam menos infantis. Miss you still, apesar da pobreza poética (“O sol brilha, mas a dor nunca seca”), não é tão sofrível quanto Wake me when it’s over (“Por que você é tão estúpida? É fácil expor quem você ama, o difícil é ficar com a boca fechada”). Na metade do disco, eu já me perguntava se não estaria perdendo tempo demais com um sujeito que merecia ficar trancado no quarto por alguns meses, sem contato com pessoas and shit.

Nash lançou o disco de graça, na internet. Brigou com a gravadora, chorou pitangas, se sentiu agredido e humilhado etc. Mas acho que lançou do jeito certo, e tem razão – este é um disco feito para durar o mesmo tanto que um trending topic. No fim do ano, quando lançar The Love IV, talvez consiga observar a experiência dolorida da separação de forma a transformá-la em, quem sabe, arte. Aqui, em 1977 (o ano em que nasceu), ele consegue produzir faixas ocas, quando não estúpidas. Como Wedding crasher, quando Nash admite que está muito bêbado e que tem medo de não encontrar uma mulher à altura daquela que o abandonou.

Acontece, meu velho. Agora vá lá abrir um blog.

Quarto disco de Terius Nash (The-Dream). 11 faixas, com produção de Terius Nash. De graça na web: baixe aqui. 42

The whole love | Wilco

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O disco novo do Wilco ainda não dobrou a primeira metade quando Jeff Tweedy, do alto de seus 44 anos, ameaça um desabafo adolescente. “Não quero perder esta briga”, ele diz, com o coração já sujando as pontas dos dedos. Em seguida, cai em contradição: “Eu não quero terminar esta briga”. E termina a estrofe com uma conclusão enigmática: “Adeus”.

A música, Sunloathe, soa como um lamento. Mas não consigo entender exatamente por que. Não me pergunte. Os versos são imprecisos, abstratos. Musicalmente, ela começa como uma canção delicada à la Brian Wilson (com pianos e sintetizadores, num arranjo quase natalino), termina com uma linha de guitarra à la Abbey Road. É bonita e breve. Só que termina talvez cedo demais, como se o galão de ideias tivesse de repente secado.

O restante do disco também me deixa um tanto às escuras: não me oferece desafios, não me parece exatamente burocrático, mas soa vago, etéreo, como se fracassasse na tentativa de dizer alguma coisa nova. É um disco que balbucia, que ameaça, que oferece camadas sofisticadas de rascunhos, que chega quase lá. E que fica nisso, infelizmente.

Havia um tempo em que as canções e as intenções do Wilco me pareciam ao menos tangíveis. Sky blue sky (2007) soava um suspiro de alívio (após um período de naufrágios). A ghost is born (2004) era turbulência e depressão. Being there (1996) me lembra do tempo em que eu era mais novo e achava que poderia fazer tudo (álbum duplo, sabe como é…). Summerteeth (1999) é Brian Wilson via Chicago. E Yankee Hotel Foxtrot (2002), a invenção de um som.

Os discos, mesmo os mais bagunçados, pareciam fazer sentido. Informavam alguma sensação/experiência. Pareciam compor uma trajetória que segue sempre em frente (apesar dos acidentes), sedimentar uma discografia em formação. Eram álbuns, e não coleções de canções.

A partir de Wilco (The album), de 2009, algo muda na história dessa banda: cria-se uma barreira ao fim da trajetória e, em vez de seguir em frente, a banda passa a fazer passeios curtos ao próprio passado, indo e vindo, criando itinerários provisórios, sem muito rigor. Aí estava um disco que parecia tratar a história do Wilco como um conjunto de “cenas” que agora poderiam ser reordenadas para produzir novas canções. Wilco (The album) é, muito apropriadamente, um disco sobre o Wilco.

O que não me dizia muita coisa, e me deixava um pouco envergonhado (ainda mais porque, naquele momento, banda já se acomodava num método de produção indulgente, que confundia simplicidade com singeleza).

O desejo autorreferente de Wilco (The Album) criou nos fãs um tipo de expectativa que a banda nunca havia criado. Antes, se esperava do Wilco o risco, a criação. Depois, começamos todos a torcer por discos ao menos dignos, que soassem como os melhores que eles gravaram. Um novo Yankee Hotel Foxtrot (quem dera!). Ou, ao menos, um outro Summerteeth.

The whole love é um pouco de todo esse passado: um pouco Yankee Hotel Foxtrot (principalmente na produção, polida, reluzente e cheia de detalhes, que recomeça de onde aquele disco havia parado), um pouco de Summerteeth (faixas falsamente ensolaradas, beachboyanas, como Sunloathe e I might), um tanto de Being there (a matriz rancheira das love songs dedilhadas ao violão) e a serenidade de Sky blue sky embalando o combo todo. No fim das contas, no entanto, acaba soando como um prolongamento de Wilco (The album). Já que a banda segue dando voltas em torno da própria história, presa no carrossel colorido.

Para quem trata quer uma banda “empresarial”, daquelas que cumprem as expectativas da clientela para melhor servi-la (e este é o primeiro disco pelo selo do grupo, o dBpm Records, então beware!), The whole love pode ser bastante satisfatório: uma jukebox que condensa todos os discos anteriores em canções, no máximo, ameaçam alguma impressão de estranheza (a primeira faixa, Art of almost, lembra os arranjos econômicos, mecânicos, do Spoon; e o nome, se tomado ao pé da letra, sintetiza o disco inteiro).

E uma jukebox elegante, que me alegra horrores ao usar o som inventado em Yankee Hotel Foxtrot para efeitos pop: é sutil a forma como a banda “isola” e ilumina referências musicais em acenos curtos, precisos (a linha de guitarra beatle de Sunloathe, os ruídos ambiente à Sgt Pepper’s de Capitol City, a guitarrada meio Pixies de Born alone). Nesse ponto, o que temos é um disco com sonoridade muito mais consciente da própria força, muito mais arredondada e “controlada” (no bom sentido, já que é essa a marca do Wilco pós-Foxtrot) que a dos álbuns que eles gravaram depois de A ghost is born. Aqui, o Wilco finalmente parece entender que criou algo particular por volta de 2002.

Mas era só isso? Quem descobriu o Wilco por volta de Sky blue sky vai encontrar um disco tão “bonito” quanto aquele outro. Quem conhecia aquele outro Wilco, que se destruía e se reinventava com o desespero louco de quem não dá conta de viver dentro do próprio corpo, The whole love será apenas um disco amável. Apenas um disco.

Oitavo disco do Wilco. 12 faixas, com produção de Jeff Tweedy, Pat Sansone e Tom Schick. Lançamento dBpm Records. 68

cine | Amizade colorida

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Era uma daquelas tardes eternas, impossíveis de quinta-feira: dezenas de e-mails engarrafavam o Microsoft Outlook, meu Nokia smartphone E5 detonava mil torpedos de SMS e os envelopes pardos com cópias de divulgação de livros da Editora Record e da Companhia das Letras se amontoavam na mesa, numa pilha alta que me lembrou um vulcão de projeto escolar. Minha cabeça apitava, ardia em lava. Decidi: “vou sair um pouco mais cedo e pegar um cineminha”.

Daí que tomei um comprimido de Tylenol, guardei alguns dos livros na minha mochila Adidas, conferi meu saldo (constrangedor) no caixa eletrônico do Bradesco, comprei uma barra de chocolate Talento com amêndoas (amargo, sem lactose), engatei meu Fiat Palio e notei que precisava abastecer o tanque do carro. Parei no posto BR, onde torrei 50 reais em gasolina aditivada.

No carro, ouvi um bom trecho do CD Tha Carter IV, de Lil Wayne, um lançamento Young Money/Universal Republic. Quando cheguei ao estacionamento do Carrefour, onde estacionei o carro, tive que parar a audição na faixa 6. Não consegui me concentrar na música. No mais, o cheiro de carne da Churrascaria Pampa acabou me distraindo. A sessão começaria em 15 minutos; foi com pressa, e passadas longuíssimas, que caminhei até o ParkShopping.

Apesar da aflição para chegar a tempo, não fiquei esbaforido: o treino diário na academia Smart Fit do Sudoeste, pensei (muito satisfeito comigo mesmo), fez de mim um sujeito com ótimo preparo físico.

Para não enfrentar a fila da bilheteria do Kinoplex Severiano Ribeiro, usei o terminal eletrônico, onde comprei o ingresso com meu Visa Electron. Saiu por 17 reais. Havia tempo para comprar o combo pipoca+guaraná (Antarctica), mas optei por uma garrafinha de Mate Leão — para não criar pança, todo cuidado é pouco. Já dentro da sala, pedi licença a uma mulher que bloqueava o corredor com uma imensa bolsa Louis Vuitton. Ela foi gentil e me deu passagem. Em seguida, apagaram as luzes parcialmente.

Na tela, eu e os outros 10-15 espectadores assistimos a anúncios de Coca-cola e uma seleção de notícias rápidas do IG. Após os trailers da sequência de Missão: impossível, uma produção Skydance/Bad Robot/Paramount Pictures, apareceram cenas de uma comédia em que um homem gorducho leva um chimpanzé para se divertir no restaurante Friday’s.

O filme, enfim, começou. Amizade colorida (em inglês, Friends with benefits), uma produção da Castle Rock Entertainment, distribuição da Sony/Screen Gems, que custou 35 milhões de dólares e arrecadou, até hoje, 74 milhões. Se não é um grande sucesso de bilheteria, diriam os especialistas, não chega a ser um fracasso.

O começo do longa, de alguma forma, se confunde com os anúncios que haviam aparecido antes dele. Mas sabemos que o filme começou porque agora as luzes apagaram totalmente e os personagens falam atendentes de telemarketing, numa velocidade assombrosa (eles habitam o mundo pós-A rede social, produção da Sony sobre a criação do Facebook).

O herói, Dylan (Justin Timberlake, o ídolo pop que lança discos pela gravadora Jive Records), é o diretor de arte num blog em Los Angeles. Numa das primeiras cenas, ele instrui a equipe a escolher a fotografia mais atraente para a página principal do site. Mais adiante, ele explica que a página dá uma média de zilhões, centenas de zilhões de visitas por dia. É um homem jovem, bem sucedido, atlético, que veste ternos justos e bem aparados, corta o cabelo curtinho e tem “talento visual”.

A heroína, Jamie (Mila Kunis, uma das 102 mulheres mais sexies do mundo, segundo a revista Stuff), é uma headhunter também muito bem sucedida, que mora sozinha num apartamento em Manhattan e tem uma mãe hippie. Dylan e Jamie estão desiludidos com o amor. Para eles, histórias românticas só acontecem no cinema, em filmes como Uma linda mulher e similares. Como bons consumidores antenados de cultura pop, eles curtem George Clooney, detestam John Mayer e conhecem todos os truques baratos das comédias românticas (se Amizade colorida fosse um filme de terror, ele chamaria Pânico).

Me perguntei se eles teriam visto Sexo sem compromisso, uma produção Spyglass Entertainment com Natalie Portman e Ashton Kutcher sobre um casal que decide praticar a atividade sexo-sem-amor. Acho que não viram (e nem era um filme legal, então tá).

São “pessoas reais”, os personagens de Amizade colorida. Mas isso se você, caro leitor, é daqueles que consideram o “mundo real” um Starbucks jeitoso que fica aberto 24 horas por dia dentro do cérebro de Steve Jobs ou de Mark Zuckerberg.

Mas ok: vamos supor que este seja o mundo desejado pelo público potencial deste filme, uma faixa formada por jovens entre 14 e 25 anos, que talvez sonhem em morar em Nova York e já se decidiram por um dos lados no conflito tecnológico de iPhone versus Android. Para esse público, o filme funciona como um anúncio fulltime: quem não quer ser Mila Kunis ou Justin Timberlake? Nos primeiros 15 minutos, quando Jamie apresenta Manhattan a Dylan, admito que bateu a vontade de comprar um pacote turístico da CVC (parcelado em seis prestações).

Anyway. A missão de Jamie é atrair Dylan para a função de editor de arte na revista GQ. Dylan não parece muito animado com a ideia. Ele gosta de Los Angeles, onde as ruas são largas e a vida flui como um churrasco de domingo. Mas a moça dá um golpe fulminante ao levá-lo para conhecer a Times Square. Nesse ponto da trama, o filme mostra um turbilhão de letreiros luminosos de marcas que não conheço (mas talvez já tenha sonhado em conhecê-las). Reconheci a fachada do Friday’s, mais uma vez. E, desta vez, a imagem abriu meu apetite.

(E aí refleti: é uma pena que trocaram o Friday’s do shopping Pier 21 pelo Fifties. Às vezes dá uma saudadezinha. Se bem que o Fifties não me parece desonesto, então ok)

Onde paramos? Sim. Na Times Square. Nos letreiros luminosos. Dylan não está convencido por eles. Ele quer algo mais puro, algo mais verdadeiro, algo que o inspire e o tire do chão. Eis que, numa sacada espertíssima, Jamie o apresenta a um legítimo flash-mob. Sim! Uma manifestação bacanérrima de afetuosidade urbana. Ao sinal dos acordes de uma canção de Frank Sinatra, os engravatados e as executivas dançam e fazem coreografias complicadas nas ruas de Nova York. Dylan se emociona e (como não?) decide ficar.

É um pouco complicada a adaptação à rotina nova-iorquina, já que, por exemplo, as pessoas não costumam esperar o sinal de trânsito fechar para atravessar a rua. E elas são tão estressadas e práticas, às vezes tão transgressoras, e de uma forma tão natural e desencanada (o editor de esportes, vejam só, parece machão mas é gay!). Ainda assim, Dylan chega ao escritório da revista GQ e cria uma bela companha publicitária que mistura a espontaneidade dos flash-mobs com a elegância da marca GQ. Fica muito joia, porque, cê sabe, propaganda boa é aquela que inspira verdade, humanismo e graça.

Para ambientar Dylan na nova cidade, Jamie prepara uma festa onde jovens atléticos e antenados se reúnem para beber cervejas Heineken e se divertir com um joguinho de videogame que lembra muito o Kinect do Xbox (com sensores de movimento! Onde vende?). Na trilha sonora, toca Janelle Monae, uma artista da Atlantic Records que faz relativo sucesso de público e grande sucesso de crítica.

Eis que Dylan e Jamie, dois corações despedaçados pelo cinismo bacana da era pós-Napster, se tornam amigos. Depois de assistir a uma comédia romântica na tevê (que, na verdade, é uma paródia de comédias românticas, com todos os clichês à flor da pele), eles decidem fazer um trato: transar só por diversão, como faziam os hippies. Nada de compromisso amoroso, nada da encenação carinhosa que os casais de verdade fazem quando se amassam sob lençóis. Nada disso. Só sexo. E sexo pragmático, mais ou menos como num treino de academia de ginástica. Eles curtem.

Antes de transar pela primeira vez, Jamie pede para Dylan jurar que eles não serão namorados. Ela não tem uma Bíblia em casa (quem tem Bíblias em casa? Estamos em 2011, deus!), mas tem o aplicativo-Bíblia no iPad. Dylan jura com a mão grudada no touchscreen da Apple, mas, antes disso, faz uma piadinha sobre a interface mais ou menos inteligente do iPad. Nesse momento a plateia ri, porque aparentemente todo mundo tem iPad, e todos já viveram aquele probleminha na vida real quando tentaram usar o aplicativo-Bíblia com a fuckfriend da ocasião.

Ou algo assim. E Dylan, que é um amor, confunde uma música do Semisonic com um hit do Third Eye Blind (bandas que, notem a sacada do roteiro, são tão descartáveis quanto este roteiro aqui).

Jamie e Dylan transam “a lot” e, quando tomam fôlego e decidem parar com a brincadeira, tentam entrar em relacionamentos de verdade. Não se sabe por que tentam (talvez por tédio, ironia), já que pareciam cansadíssimos do ritual romântico. Dylan encontra mulheres insuportáveis, chatérrimas. E Jamie encontra um médico perfeitinho, que consome cultura pop e cuida de crianças com câncer, mas ele se revela um crápula como todos os outros. Não acontece como nos filmes.

Nesse ponto da trama, quando a narrativa perde o ritmo e caminha para o inevitável happy end, aproveitei para checar meu smartphone. Havia duas mensagens no WhatsApp e um SMS da minha mãe, que pedia um sanduíche do Giraffa’s. Nessa altura, eu já havia bebido toda a minha garrafinha de Mate Leão, e pensava em ouvir com atenção o disco novo do Wilco, uma banda da Nonesuch Records.

Quando dei por mim, Dylan já havia levado Jamie para passar o feriado de 4 de julho na casa dos pais dele, em Los Angeles. E o filme havia ficado mais sério: descobrimos com o pai de Dylan tem Alzheimer. É o personagem mais verdadeiro em cena, mesmo quando tira as calças num restaurante, antes do almoço. Pena que o filme não esteja tão interessado nele: mais importante é mostrar os “problemas de intimidade” de Dylan, que também é péssimo em matemática.

Porque Dylan, na lógica do filme, parece mesmo bastante real.

Uma noite, depois de brincar alegremente (Jamie o espezinha com o livro Maths for dummies, daquela coleção bacana de capa amarela que vendem nas melhores livrarias), eles se conectam de um jeito, hmm, romântico. A trilha sonora do filme fica melosa, o sexo se torna mais lento e “amoroso”, os lençóis são de seda e, de repente, o amor está no ar. No dia seguinte, porém, Dylan não percebe nada disso e faz comentários infelizes sobre Jamie — que ela, a amiga, acaba ouvindo. Tá feita, como diria o locutor da Sessão da tarde, a confusão.

Num rompante, Jamie decide pegar um voo noturno para Nova York (cartões de crédito servem para isso), e o filme se torna melancólico. O amor é mesmo um curto-circuito terrível e frustrante, não é mesmo? Dylan liga para o telefone de Jamie, mas ela não atende. Quando Jamie decide enfim ligar para o telefone de Dylan (já que apareceu uma oferta de emprego para ele na Barnes & Noble), é o telefone dele que está desligado. Dá vontade de ter aqueles telefones (ainda que eu odeie touchscreen), mas não dá vontade de estar naquele relacionamento sem fio.

Quando Dylan percebe que está mesmo apaixonado (o filme, afinal, tem que terminar em algum momento), mexe os pauzinhos e organiza um flash-mob supimpa na estação de trem que serviu de cenário para o filme romântico babaca que eles viram na noite em que decidiram transar pra valer. Ufa. O importante é que a declaração romântica dá certo, e o filme termina mais ou menos como aquelas comédias românticas artificiais e quadradinhas que ele queria satirizar. A diferença é que, em vez de tomar a carruagem branca, o casal bate um papo num café confortável, que lembra o ponto de encontro da turma da série Friends.

E aí a gente pensa: ah, deve ser bom frequentar esse café, mas talvez ele só exista em Nova York. Talvez, pensamos, ele só exista em filmes que parodiam outros filmes e que, ainda assim, sentem saudade daqueles filmes que estão parodiando. Um cinismo cheio de nostalgia e afeto. Se é retrato de uma geração, Amizade colorida (dirigido por Will Gluck, que nunca vi mais gordo) me parece revelador: seria bom se trocássemos esta geração no balcão da megastore, porque as peças estão em curto-circuito e não haverá assistência técnica que dê jeito.

Na saída da sessão, comi um sanduíche de peito de frango no Giraffa’s (sem queijo), dei uma espiada na vitrine da loja da Nike (lembranças da minha conta bancária castraram o meu id) e chequei se o preço do Macbook Air permanecia altíssimo (permanecia). Duas horas depois, eu lembrava mais do sanduíche de peito de frango que do filme. Com uma dose menos exagerada de maionese, seria perfeito.

Slave ambient | The War on Drugs

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Confesso que não foi moleza: nas primeiras audições, me arrastei no solo arenoso de Slave ambient mais ou menos como um pagador de promessas. Tenho certeza que, quando a música parou, meus headphones foram correndo ao bebedouro.

Não é um disco difícil. Não é um disco cheio de pedrinhas. Mas sei o que me afasta dele. Eu sei, e é uma bobagem. É uma besteirinha, mas vamos lá: à exceção mui nobre de Dan Bejar, não levo muito a sério (muito menos consigo entender) os vocalistas que cantam forçadamente como Bob Dylan.

Eles estão por aí (eu sei!), eles estão se multiplicando (eu sei!), essa irritação é um problema todo meu e só meu (eu sei!), mas para mim esses cantores soam um pouco como os cineastas que tentam construir carreiras inteiras macaqueando, digamos, os trejeitos de diretores cujas marcas são reconhecíveis numa primeira espiada. De um Tarkóvski. Ou de um Woody Allen.

O que acontece com essa gente? O que elas querem?

E o mais intrigante é que, deus!, deve ser trabalhoso simular a voz rascante, fibrosa, lindamente dissonante de Dylan (e aqui estamos falando no Dylan fase Blonde on blonde, que parecia flagrado às três da manhã, quase no fim da festa, já despenteado e doidão). Pois é o que Adam Granduciel, o vocalista do The War on Drugs, faz (até com eficiência; o sujeito é um ‘impersonator’ competente).

E digo tudo isso, todas essas besteirinhas, não como uma forma de quebrar o gelo que se interpõe entre nós dois (eu e você, leitor). É a mais simples verdade, apenas: nas primeiras audições de Slave ambiente, tudo o que consegui ouvir foi um fã de Bob Dylan ruminando sobre arranjos de guitarra&teclados que foram encontrados em algum deserto perto da Joshua Tree, circa 1988. Não foi legal.

Mas não desisti. Fui à luta com bravura, já que este é daqueles discos “importantes”, que ganham elogios do tipo “uma justaposição grandiosa de sons antigos e novos” e que são avaliados com cinco estrelinhas pela Uncut (uma revista velha de guerra, digna e coerente, que, entre outras coisas, costuma valorizar os vocalistas que calham de ser fãs de Dylan).

Depois de algumas audições, comecei a me familiarizar com o disco, a cantarolar as canções e a notar a estrutura que as une. Não é um álbum ingênuo. Talvez, pelo contrário, seja um álbum excessivamente planejado, um disco engenhoso: a sonoridade da banda (uma jam session um tanto zoneadinha, mas com hora para terminar), ainda que não me pareça tão instigante assim, está totalmente demarcada, e o quarteto a defende com muita convicção, como quem lê uma carta de intenções.

Quando você ouve o disco pela quinta vez, percebe que existe uma tentativa de afirmar um idioma: Granduciel segue e sempre seguirá soando como um aluno de Dylan (a comparação é inevitável, sorry), mas parece usar as marcas do ídolo como um dos tecidos sonoros de uma confecção que ainda inclui trechos instrumentais (muitos teclados ensebados) e uma quedinha pelo synthpop, que aparece quando menos esperamos.

Já as letras fantasmagóricas me lembram um pouco de Wolf Parade, Joy Division e mortos-vivos congêneres. “Sigo andando na sua sala, mas nada acontece. Você é como um espírito que eu sigo enfrentando”, e assim o disco abre, com Best night. Outras faixas têm o formato dos micro-hinos que o Simple Minds gravava na fase “roots”: difícil não se entusiasmar com Come to the city, que vai se instalando aos poucos, espirrando poeira pelas ventas.

Como acontece nos discos de Kurt Vile, ex-integrante da banda, essas e outras referências-clichê — familiares a todo mundo que viveu nos anos 80 ou viu algum filme sobre os anos 80 — são embaladas num envelope de palha, amarrada em barbante e vendidas como algo rústico-portanto-autêntico, como se a estética lo-fi tivesse sido inventada ontem à noite numa convenção de blogs. Não me parece muito palpitante, sinceramente. Mas não me mata de tédio, também.

Hype à parte, encontrei em Slave ambient um disco que sabe exatamente o que quer ser (as vinhetas instrumentais, irrelevantes mas cheias de atmosferas moderninhas, não estão aí por acaso), que mora dentro de um cercadinho de muros já altos e firmes, mas que deixa a sensação de que é elogiado mais por cumprir certas tendências que estão em voga (em certos círculos) do que por ser singular, potente de verdade.

É um disco que entende o que deve ser feito para que gostemos dele. E que vai lá e faz, de forma precisa. Agradar à plateia não era o método de Dylan, de forma alguma, mas cá estamos com uma banda que simula corretamente (e às vezes apaixonadamente, sempre com altivez) o que há de superficial na música que conhecemos e que (em alguns casos) amamos.

O que, lá pela décima-quinta audição, quando o disco já estiver bem acomodado nos headphones (e ele é capaz disso), pode se mostrar uma missão não tão vazia quanto este post aqui dá a entender. Em caso de dúvida, tente ouvir mais uma vez.

Segundo disco do The War on Drugs. 12 faixas, com produção da própria banda. Lançamento Secretly Canadian. 61

Strange mercy | St. Vincent

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O disco anterior de St. Vincent, Actor (2009), soava como uma versão às vezes sinistra (imagens descoloridas, trilha sonora em slo-mo, final infeliz, heroína dilacerada) para um desenho animado da Disney. Branca de Neve, no caso, preferiria não ter despertado do sono.

Em Strange mercy, Annie Clark não abandona os limites do conto de fadas. No entanto, ele se torna mais assombrado e neurótico, como num mashup de A bela e a fera com De olhos bem fechados. Tensão sexual (para toda a família).

Estamos no terceiro disco de Clark. E a impressão, agora muito clara, é de que ela decidiu demarcar uma trajetória, “assinar” a própria história. E, se essa trilha ainda não me parece exatamente singular, já mostra coerência tanto na sonoridade quanto nos temas que a cantora vai acumulando, reiterando.

Juntos, a começar por Marry me (2007), os discos vão narrando uma trama, que parece se tornar progressivamente mais pessoal (se bem que são sempre misteriosas as diferenças entre a personagem St. Vincent e a pessoa Annie Clark). É um disco, aparentemente, de “confissões”, de “descobertas íntimas”, sobre uma mulher em embate com o mundo, sobre histórias de amor que não se realizam, sobre culpa e frustração — a primeira faixa se chama Chloe in the afternoon, que foi o título em inglês para o Amor à tarde, conto moral de Eric Rohmer.

O script de Strange mercy, portanto, vai provocar as comparações inevitáveis com os, digamos, “thrillers psicológicos” de outras cantoras agoniadíssimas, como Aimee Mann (à frente de todas elas), Fiona Apple, Emily Haines. Há canções do disco, como Cheerleader e a faixa-título, que poderiam ter sido gravadas por qualquer uma delas. Há clichês do rock de “mulheres livres em crise” que St. Vincent segue, mesmo que inconscientemente.

Há momentos em que esses lugares-comuns deixam a dúvida: este sofrimento é de Annie Clark ou de todas elas?

Os versos facilitam a vida de quem escreve resenhas de música. Porque, de certa forma, está tudo lá: uma personagem que se revela sem pudores, que vai tirando a roupa e se examinando faixa a faixa. “Tive bons momentos com caras ruins, contei mentiras inteiras com meios sorrisos”, ela conta, antes de resolver que “não quero ser sua cheerleader, não mais” (em Cheerleader). Lá perto do fim do disco, já começa a soar como uma teenager carente: “Você alguma vez se importou de verdade por mim?”, ela pergunta, em Neutered fruit.

E ela canta, é claro, o desejo. Mais desejo (quase nunca correspondido) que sexo em si. “Você é uma festa que ouço quando colo o ouvido na parede”, ela admite, em Dilettante. “Mas ninguém está ganhando, e os tubarões estão nadando no vermelho”, conclui. A solução que encontra para não se decepcionar com tanta frequência é cínica. “Vou ganhar a vida dizendo às pessoas o que elas querem ouvir. Não é um plano perfeito, mas é o que temos”, afirma, em Champagne year.

Então taí: não é uma narrativa muito diferente daquela que havia aparecido em Actor ou em Marry me. A diferença é que, agora, Clark parece mais disposta a encontrar uma sonoridade também irritadiça, desgrenhada (e também uniforme, recorrente em toda a duração do disco). À voz delicada, sobrepõe camadas quase grotescas de teclados, interferências de guitarras, sintetizadores baratos que às vezes sugerem um filme de soft-porn para as madrugadas dos anos 80. E, como antes, arranjos de cordas roubados de peças de teatro infantil.

O efeito pode ser mesmo apaixonante (Annie é femme fatale em pele de gatinha manhosa), principalmente para quem conhece St. Vincent só agora. Para aqueles que dobram estas páginas há mais tempo, Strange mercy pode bater como um capítulo com algo de perturbador (e de redundante), ainda longe do clímax.

Terceiro disco de St. Vincent. 11 faixas, com produção de Annie Clark e John Congleton. 4AD Records. 74

Endless now | Male Bonding

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Estou certo de existe um projeto de obra-prima na agenda do Male Bonding: um álbum ultrareluzente, que vai nos tirar do solo e nos atirar numa outra galáxia.

Em Endless now, o segundo disco do quarteto, uma faixa serve de teaser para essa revelação (que virá, eu sei). Em Bones, a banda usa um turbilhão de overdubs para criar uma versão épica para uma melodia que possivelmente foi abandonada pelo Dinosaur Jr no estúdio em que os londrinos gravaram este disco, em Woodstock. Soa tão marcante que o próprio grupo retorna ao riff no fim do disco.

Mas, se existe mesmo (eu sei, tem!) esse projeto de obra-prima, não é desta vez que o Male Bonding o leva a cabo. Em Endless now, o esforço é outro, oposto: o de ampliar uma sonoridade sem romper os limites estreiros que foram marcados pela própria banda no disco anterior, Nothing hurts, de 2010.

Para ficarmos numa comparação entre britânicos que sonhariam em ter gravado Bandwagonesque: enquanto o Yuck toma um passado recente (o fim dos anos 1980, início dos 1990) como parque temático onde se tem vários brinquedinhos e todos parecem atraentes e “brincáveis”, o Male Bonding tenta simular um disco do Teenage Fanclub que a Sub Pop lançaria naquela época: breve, plano, potente.

Endless now soa, portanto, como o elo perdido entre Bleach e Nevermind. Nem tão áspero (como Bleach), nem tão superpoderoso (como Nevermind). Ainda não dá para encontrar no Male Bonding uma identidade, mas seria ingenuidade acusá-lo de falta de foco: os quatro ingleses conhecem muito bem o mapa onde se movimentam.

E o que eles querem é comprimir, com máxima eficiência, um torrone sonoro de sensibilidade/estrondo — que soa datado e genérico, sim (e não oferece muitos desafios a mais ninguém), mas que pode ser interpretado como uma espécie de exercício de estilo, um disco “à moda de” uma época, à serviço de uma sensibilidade demodé que eles querem ressuscitar (e as letras deprês, pessoais, sobre se sentir velho e coisa e tal, são muito apropriadas).

O curioso é que a banda vê a necessidade de mostrar que ela pode (quando bem entender) ignorar os dogmas e sonhar “fora da caixa” (para ficarmos num clichê corporativo). Bones é o melhor exemplo, uma belezinha que soa até deslocada dentro do disco; Can’t dream é outra, com algo de trilha de Sofia Coppola. Mas aí, depois de se exibir para a plateia, o grupo volta ao business as usual.

Mais interessante, acho, é quando eles tentam se aventurar dentro do quartinho abafado onde moram, mudando os móveis de lugar, usando timbres pouco típicos e deixando as canções criar rabichos que vão se desdobrando em desfechos não muito previsíveis.

Depois da terceira audição, as canções já estão todas lambuzando a nossa memória, escorrendo na orelha. Talvez provoquem lembranças de adolescência, se você também foi um adolescente que se entusiasmava com a elegância modesta dos discos concisos, aqueles cuidadosamente planejados para não cometer excessos, para não mirar ambições impossíveis.

Endless now é simples (às vezes complexo) assim. Quando e se o Male Bonding resolver gravar o tal projeto de obra-prima, talvez sintamos um pouco a falta de álbuns tão decididamente pequenos. Tem beleza nisso aí também.

Segundo disco do Male Bonding. 12 faixas, com produção de John Angello. Lançamento Sub Pop. 66

[st. vincent]

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Pitchfork: Críticos geralmente apontam o segundo disco como o momento do “agora ou nunca mais”, mas eu sempre achei que os terceiros discos são mais catárticos, porque o artista de repente se vê livre das pressões.

Annie Clark: É, acredito que é parecido com a forma como as pessoas falam sobre os filhos pequenos. Com o primeiro filho, você administra cada detalhe, quer ter certeza de que nenhum fio de cabelo está fora do lugar quando o menino vai à escola. Mas, com o terceiro filho, é mais como “oh, você quer usar essa camisa do Hard Rock Café por sete dias seguidos e não pentear o cabelo? Faça isso. Seja quem você quiser ser.”

(entrevista completa aqui).