Mês: março 2010
Congratulations | MGMT
Você já foi o primeiro da classe? Eu já. E garanto: não é tão divertido quanto parece.
Foi assim: aos 14, eu era um aluno muito tímido e, por isso, discreto – daqueles meninos invisíveis que fazem o possível para não tirar notas inferiores ou superiores a 7. Sempre 7. Naquela época, minha meta era desaparecer na lista de chamada. Eu vivia para não ser notado: preferia as roupas em tons neutros, podava meu cabelo com máquina 3 e lia revistinhas do Batman. Meus amigos me tratavam como um chapa razoavelmente bacana, já que eu era igual a eles. E as garotas, como que por tradição, me confundiam com as pilastras do colégio. Mais tarde descobri que todos – meninos e meninas, sem exceção – éramos simplesmente desinteressantes. Uns comuns.
Mas, naquela época, eu ainda era um rapazinho muito inocente. Tão ingênuo que, num surto de vaidade e fôlego olímpico, resolvi gabaritar uma prova de português. Não que eu precisasse dos pontos no boletim (eu era um estudante nota 7!), mas, na falta de algo melhor a fazer, resolvi me desafiar. Estudei duas horas por dia e, um touro!, tirei 10. O único 10 da classe. Os meus amigos começaram a me evitar na hora do recreio. Quando tirei meu segundo 10, comecei a receber sorrisos orgulhosos da professora. As garotas passaram a me encarar como uma geladeira vazia. No mês seguinte, milagrosamente, eu era o representante da turma numa maratona de gramática.
Aceitei. Eu mal sabia que, meu amigo!, aquela seria uma das experiências mais desagradáveis da minha vida. Passei três horas trancado numa sala gelada, preenchendo lacunas em textos de revistas semanais e respondendo questões enigmáticas que faziam minha cuca ferver. Saí da sala desencantado, insatisfeito com aquela sina solitária. Para meu alívio, fiquei em último lugar na competição. Salvei minha pele. Após cinco ou seis valentes notas 7, recuperei meu lugar entre os medíocres.
Às vezes acho que estou lá até hoje.
Mas chega de devaneios. Fim do flashback. E o que essas lembranças tão tolinhas têm a ver com o disco novo do MGMT?, você me pergunta. Eu respondo: é que eu entendo o que acontece com o MGMT. Sei muito bem que um hit pode representar uma espécie de condenação.
Meus hits (as notas 10 em português) me colocaram numa desconfortável posição de destaque diante dos meus colegas invejosos (mas muito queridos). Transformaram o Tiaguinho Sem Qualidades num cidadão de primeira classe (e tudo o que eu queria era me espreguiçar nas poltronas econômicas!). Os hits do MGMT fizeram estragos mais profundos: converteram Ben Goldwasser e Andrew VanWyngarden em astros pop. Lá no topo da classe. Gabaritaram o teste das rádios. Hoje sabemos que não era bem esse o objetivo deles.
Mas não é mesmo extraordinário ser um astro pop? Fama, moçoilas afoitas, programas bizarríssimos de auditório, clipes com CGI, trilha sonora de comédia retardada, contratos extravagantes, mansões em Miami Beach, champanhe e cerejas. Quem não quer? Mas e se você nunca tivesse desejado sinceramente nada disso?
Não conheço Ben e Andrew (e eles me parecem uns sujeitos bem convencidos), mas a história de Congratulations é essa aí: depois de acertar com três hits grandahões (Time to pretend, Kids e Electric feel), eles resolveram se dedicar ao que importa (a eles): reatar com os antigos amigos da turma do indie rock. Para os fãs, pode parecer uma reviravolta frustrante: aquela bandinha tão simpática, que se deleitava com o algodão-doce radiofônico, decidiu gravar um disco sem singles, sem gosto de milkshake de Ovomaltine, uma trava-língua psicodélico sem um único candidato a chacoalhar o assoalho e sangrar a pista de dança.
Sim, é um mistério. A Sony que se cuide. Enfezado, o MGMT penaliza os fãs que se deixaram enfeitiçar pelos três hits (e só por eles). Aposto que são muitos. Se você ignorar essas três faixas, o disco anterior deles (Oracular spectacular, de 2007, superestimado toda vida) soará até parecido com este novo: uma homenagem singela, mas carinhosa, ao rebanho sagrado do rock lisérgico, de Love a David Bowie, de Roxy Music a Syd Barrett.
Congratulations é a continuação desse álbum “paralelo”, adquirido por um milhão de pessoas, mas incompreendido por quase todas elas. Nos shows, sempre muito confusos, a dupla sofreu com comentários de que só os hits faziam a diferença (sorte a nossa: eram três!). Daí o salto corajoso: Ben e Andrew podiam simplesmente bolar mais um LP irregular porém acessível (e ninguém reclamaria disso: álbuns são tão démodé!). Mas preferiram gravar um disco que finalmente honra as influências setentistas do grupo – um disquinho coeso e esperto que quase mereceria ser chamado de “conceitual”.
Nada de efeitos rasteiros, portanto. Preocupado em criar uma obra respeitável (taí uma ambição saudável e difícil), o MGMT compôs um disco menos para os fãs e mais para os ídolos. Repare que duas músicas são homenagens: uma a Dan Treacy, da inglesa Television Personalities, e outra a Brian Eno (o Eno sapeca do Roxy Music, e não aquele que zanza por aí produzindo o Coldplay). As outras, ainda que não explicitamente, são declarações de amor: a de abertura, It’s working, é o mais próximo que eles chegaram de sintonizar as vibrações de Arthur Lee. E Siberian breaks, com 12 minutos, se desdobra infinitamente num épico esquizo com um quê de Frank Zappa. Parece até a trilha para o funeral da new rave.
Escalar esse arranha-céu sem o escudo dos hits é o desafio imposto pela banda. Com versos sobre a ressaca do sucesso, Congratulations até pode ser considerado a estreia deles no mundo dos álbuns. Como se, no encarte, eles reconhecessem que tomaram o caminho equivocado e, por isso, merecem uma segunda chance. Acontece que, nessa versão mais vulnerável, o MGMT revela fragilidades que já existiam no disco anterior: acima de tudo, a forma superficial como eles tratam referências que, nas mãos de um Beta Band (ou até de um The Coral), rendem experiências menos genéricas.
O importante é que Congratulations promete ao MGMT alguma longevidade. A partir de agora, podemos levá-los um pouco a sério. Talvez, no fim das contas, Ben e Andrew tenham mais admiração pelo Flaming Lips do que pelo Empire of the Sun. Não estão apressados para chegar ao fim desse arco-íris fluorescente. E, enquanto batem perna, estão dispostos a deixar pelo caminho álbuns sinceros, imperfeitos, álbuns quase à moda antiga, como este aqui. Um típico (e valente) nota 7.
Segundo disco do MGMT. Nove faixas, com produção de Pete Kember e do MGMT. Lançamento Sony/Columbia. 7/10
PS: Para quem acompanha este blog (vocês são poucos, mas são vips), informo que vou postar a mixtape de março às 21h de quarta-feira. Estão avisados: não quero ninguém reclamando quando os arquivos evaporarem, ok?
2 ou 3 parágrafos | Como treinar o seu dragão
Esta boa animação digital da Dreamkworks (3/5) bem que poderia se chamar Como sobreviver no mundo de Avatar. Os diretores de Lilo e Stitch, mais espertos do que imaginávamos, entenderam a lição de James Cameron: usam o 3D como elemento criativo, essencial à narrativa.
Os personagens do filme são vikings que enfrentam dragões. Os monstrengos voam alto, dão piruetas. E é como se voássemos com eles. Parece um detalhe bobo, mas poucas fitas do gênero se beneficiaram tanto da tecnologia para nos transportar a um ambiente fantasioso. Em alguns trechos, parece até que os diretores se entusiasmam com o truque, curtem a brincadeira. Não vi nada parecido em Up – Altas aventuras, nem em Monstros vs. alienígenas, muito menos em A era do gelo 3. É um avanço.
No mais, Dean DeBlois e Chris Sanders vão ao trabalho (isto é: confrontam a Pixar) com as armas menos vulgares: a exemplo de Wall-E e Up, vão buscar no cinema de Hayao Miyazaki uma pincelada de lirismo que dá uma outra dimensão à amizade entre o menino outsider e o dragão com fama de mau. Nada muito pessoal, é claro (aliás, quando é que vão lançar Ponyo no Brasil?). Estamos falando de uma animação by the numbers (tudo é fórmula: a narração em off, os coadjuvantes engraçadinhos, o motivo romântico etc). Mas é um alívio notar que os estúdios querem bancar a “revolução” de Avatar: não tenho muito a reclamar de filmes que levam a sério tanto o 3D quanto esse tipo honesto de sentimentalismo, à japonesa.
All days are nights | Rufus Wainwright
Talvez seja leviano julgar um disco pela capa (vide esta coisa medonha). Mas, no caso de Rufus Wainwright, não há erro: sempre existiu um esforço consciente de resumir a atmosfera de cada álbum já no projeto visual do encarte. O pop barroco de Want One e Two (2003/2004) era embalado num colorido kitsch, cafona de propósito. Já em Poses (2001), Rufus interpretava o personagem principal do disco: o popstar melancólico, condenado pela própria beleza. Release the stars (2007), o “álbum de Berlim”, abria com um detalhe do altar do Pergamon, um monumento pomposo reconstruído num dos museus mais visitados da Alemanha.
Existe uma qualidade cinematográfica nos discos do cantor e, até por uma questão de coerência, as capas funcionam como os melhores pôsteres: aqueles que vendem o peixe, mas não traem a obra.
É por isso que, para os fãs de Rufus, a maior surpresa sobre All days are nights: songs for Lulu começou a ser revelada assim que o cantor divulgou o “cartaz”. É, de longe, a imagem mais austera que ele já estampou num disco: um olho feminino, coberto por sombras e tingido em preto, encara a câmera. Apenas isso. E é espantoso como essa imagem contém a obra inteira.
Como suspeitávamos, não há cores extravagantes em All days are nights. Desta vez, o clique é seco. Olhos nos olhos. Fotografia granulada. Quando começou a rascunhar Release the stars, Rufus planejava um disco inteiro de canções interpretadas somente com voz e piano. Na turnê, chegou a apresentar-se sem banda (no show excelente que fez aqui em Brasília, por exemplo). Mas, talvez instigado pelo produtor Neil Tennant (Pet Shop Boys) e pelas boas experiências em Berlim, acabou criando um disco ensolarado, sereno e pop. No novo, ele retoma aquela antiga ideia num momento especialmente difícil: pouco depois da morte da mãe, a cantora Kate McGarrigle, Rufus expurgou um disco que soa como um réquiem respeitoso, contido.
Não é só a pose glam, as afetações calculadas e o teatro de excessos que perdem a vez. Até o humor venenoso e autocrítico, uma das características que contaminam todos os discos de Rufus, se ausenta num álbum que, se fosse um filme, teria sido dirigido com as restrições do movimento Dogma 95. Nada de orquestras, coros, guitarras, teclados, canções alegres ou finais felizes. Os versos dessas canções de despedida, à exceção de três sonetos de Shakespeare (voltaremos a eles), são quase singelos: cartas de família, páginas de diário, conversas ao telefone, confissões rabiscadas às pressas. Essa falta de rebuscamento parece proposital, como se Rufus quisesse compor um disco tão cru e desencantado quanto Pink moon, de Nick Drake, e Tonight’s the night, de Neil Young.
Pelo menos até a quinta faixa, All days are nights filia-se rigorosamente a essa linhagem: é a sequência de canções mais tocante que Rufus já gravou (e não é por capricho que, nos shows, ele toca todas as músicas do disco sem intervalos para aplausos). Para quem está disposto a ouvir estas confissões, a sensação de cumplicidade é inevitável. Em Who are you New York?, a faixa de abertura, Rufus caminha desnorteado pela cidade, que tornou-se irreconhecível. Na segunda faixa, Sad with all I have, admite que é um homem infeliz e, com o discurso romântico que lhe é muito típico, admite que só encontra conforto numa única pessoa.
As melodias, gentis e doloridas (ainda com a empostação teatral que é a marca do cantor), parecem citar Cole Porter, o Frank Sinatra de In the wee small hours, o Elvis Costello mais jazzístico. Na terceira canção, Rufus tira de vez a máscara. O autor está nu. Martha é a reprodução de um diálogo com a irmã, Martha Wainwright. “Está na hora de irmos visitar nossa mãe no Norte. As coisas estão ficando mais difíceis. Não há mais tempo para ficarmos irritados um com o outro”, canta. Num andamento mais acelerado, Give me what I want and give it to me now indica a perda da fé. A seguinte, True loves, celebra os amores verdadeiros com a simplicidade de uma canção teen. “Um coração de pedra nunca vai a lugar algum”, diz, sem cinismo.
Eis que, daí em diante, o disco transforma-se em outro. O conceito musical permanece – voz e piano, sempre -, mas a ideia de musicar três sonetos shakespearianos acaba por provocar um desnível no repertório. Existe uma conexão clara entre os poemas e o disco, e é curiosa a experiência de combinar a escrita floreada dos poemas com o estilo econômico do disco. Mas essas músicas provocam um desvio de rota quase definitivo, e um tanto frustrante para quem acompanhava o disco até ali (as faixas fazem parte de um projeto desenvolvido por Rufus com o diretor de teatro Robert Wilson).
As canções seguintes não provocam os calafrios da primeira parte do disco. Em The dream, Rufus lamenta que todo sonho vem acompanhado de um pesadelo. Nesse ponto, as limitações sonoras começam a incomodar. A última música, no entanto, volta a emocionar: Zebulon lembra do período em que Rufus passou cuidando da mãe, que enfrentava um câncer. “Minha mãe está no hospital, minha irmã está na ópera, eu estou apaixonado, mas não vamos falar sobre isso”, comenta. “Seu nariz sempre pareceu grande demais para o seu rosto. Mas ele faz com que você pareça sexy, mais como uma pessoa que pertence à raça humana.”
E aí o álbum termina. Sem clímax nem nada. Nas condições em que foi escrito e gravado, talvez não haveria outra saída. Rufus sempre escreveu canções que espelham as próprias experiências, e All days are nights não é exceção. Segundo ele, o subtítulo do disco, Songs for Lulu, refere-se a uma personagem (Lulu) que simboliza a escuridão humana. Ainda assim, é um álbum menos sombrio do que parece: aos 36 anos, Rufus entende que, diante da morte, toda revolta é inútil. Prefere refletir serenamente sobre tristezas que são incontornáveis.
Release the stars já indicava a mudança. Mas é em All days are nights que Rufus encara a idade adulta. Para quem o acompanha, será como encontrar o retrato de um outro artista. Eu também senti um certo incômodo. Com alguma paciência (e desprezando a segunda parte do disco, que dilui um início extraordinário), esse performer sem maquiagem parecerá estranhamente comum – um príncipe expulso do reino, perdido num mundo igual ao nosso.
Sexto disco de Rufus Wainwright. 12 faixas, com produção de Rufus Wainwright e Pierre Marchand. Lançamento Decca/Polydor. 7/10
2 ou 3 parágrafos | A caixa
Notem o quão interessante seria a experiência (e seria bem simples, nem tomaria muito tempo): você vai a uma sala de cinema que exibe A caixa (3/5), espera a sessão terminar e toma anotações sobre as reações dos espectadores. Nem será necessário submetê-los a questionários. Observe-os. Minha hipótese: a maior parte das cobaias mostrará sinais febris de frustração e, nos casos mais extremos, de fúria. Aposto que um engraçadinho vai ameaçar pedir de volta o dinheiro do ingresso.
É que o filme de Richard Kelly (o diretor de Donnie Darko e Southland tales) rejeita a principal regra para um relacionamento saudável com o público menos aventureiro (infelizmente, eles estão em maioria): cria uma trama de mistério que, após os créditos finais, permanece misteriosa. Um turbilhão de perguntas sem respostas. Quando Onde os fracos não têm vez entrou em cartaz, lembro que ouvi um comentário que ia mais ou menos assim: “Paguei para ver um filme que nem os próprios diretores souberam como terminar.” Oh, vida!
Por isso, muita gente vai desdenhar o que este filme tem de melhor. Que não é a trama (um episódio alongado de Além da imaginação, sustentado por um dilema moral que daria arrepios em M. Night Shyamalan), mas a euforia camicase de Kelly, que transforma uma corretinha fita de época num sonho louco, lynchiano. O sujeito é destemido (e narcisista à beça), dirige sem cinto de segurança, e comete a sandice de oscilar entre a ficção científica mais juvenil (portais reluzentes de CGI!), o thriller de teorias conspiratórias (a Nasa tem culpa no cartório!) e a tortura filmada (Jogos mortais!). Sem medo do ridículo (e a coisa fica muito ridícula, prepare-se). O importante é que o espectador não sabe onde está se metendo. E isso é bom, não é? Deveria ser bom? Se você acha que não, recomendo uma maratona de Fringe. Só de castigo.
The afterlife | YACHT
Neste clipe molhadinho, o YACHT mostra que o ramo dos batizados é um mundo à parte: estou começando a gostar dessa ideia de usar uma pequena piscina de plástico para receber a graça divina. Ok. Ha-ha. Mas, olha só: mesmo se você não achar graça na piada do diretor Judah Sqitzer, vale ouvir a música mais bacana que esta dupla de Portland (apadrinhada pelo LCD Soundsystem) já gravou. Amém.
Superoito express (20)
Volume 2 | She & Him | 6
O fã-clube de Zooey Deschanel que não me pendure praça pública, mas eu esperava encontrar, neste segundo disco do She & Him, a personagem que ela interpretou com tanta convicção em 500 dias com ela: Summer Finn, a musa imprevisível que atormenta os fãs românticos (e panacas) de indie rock. Mas (que vida!) meus desejos não foram realizados. Neste conto de fadas folky, ela ainda vive a mocinha indefesa, a heroína que caminha melancólica, inconsolável pelos campos ensolarados da Califórnia.
Tudo bem. Nem tudo é perfeito. E talvez a Zooey popstar se aproxime da Zooey real (o que seria uma pena, mas enfim). O problema é que essa (ops) personagem me parece cada vez mais monocórdica. Este Volume 2 é um disco do Camera Obscura, só que sem ironia ou finesse. Parece fácil fazer pop vintage, com aquela sonoridade quente de vitrola velha, mas o risco do diluir efeitos está sempre ali. Daí que o disco, comportadíssimo, só brilha quando o vinil de M. Ward ganha um outro colorido, uma doçura à Jon Brion. São duas músicas: In the sun e Don’t look back. Mas elas mostram que, sim, Zooey é capaz de virar o disco. Ao terceiro volume, então.
Dear God, I hate myself | Xiu Xiu | 7.5
Ao contrário do projeto de Zooey e M. Ward, o estilo de Jamie Stewart é um caso tão particular que parece projetado para provocar estranhamento. As canções, com mudanças abruptas de andamento e efeitos dissonantes, soam às vezes como arquivos corrompidos de MP3. Stewart vai picotando um punhado de referências (synthpop, lo-fi, indie, goth rock) até fazer com que o disco perca completamente o eixo, numa colagem doméstica, frágil, agoniada, que ressalta a franqueza do discurso. Como acontece com os álbuns do Why? e do Eels, este também cria um ambiente de intimidade quase sufocante. Pode soar simplesmente doentio. Mas, se não é tão forte quanto Fabulous muscles (2004), no mínimo serve para comprovar que Stewart ainda não encontra conforto nem no rock, nem em nada. É bonito, garanto. E recomendo que você tente pelo menos três vezes antes de desistir.
Big echo | The Morning Benders | 7
O Morning Benders pode ser considerado uma espécie de primo do Local Natives, outra banda californiana que usa a massa bruta do indie rock americano (no caso, o folk barroco de um Grizzly Bear) para criar uma sonoridade generosa, próxima do pop. Mas, antes que os acusem de oportunismo, aviso que eles se apropriam desses novos chavões sem cinismo. Estão verdadeiramente dispostos a disputar um espaço entre os ídolos. Big echo é, por isso, um álbum muito esforçado. Sei que a palavra é terrível, mas taí um quarteto que faz tudo para agradar a um público muito específico. E consegue, mesmo sem personalidade. Eficiência e bom gosto, no caso. Califórnia é uma grande nação (como diz a música do She & Him) e é interessante acompanhar uma banda tentando encontrar um lugar nesse mundo.
Fang Island | Fang Island | 7
Mas claro: mais interessante do que acompanhar uma banda deslumbrada com as próprias referências é descobrir aquelas que tentam criar todo um vocabulário. O Fang Island, de Rhode Island, é dessas. Eu definiria o som deles como um monstrengo prematuro nascido de uma rapidinha entre o Van Halen (os solos de guitarra a mil por hora, a pompa hard rock) e o Animal Collective (os corinhos infantis, o espírito comunitário). Para o Wikipedia, eles cabem no rótulo “progressive rock”. Talvez seja isso, ainda que tudo acabe soando tão frenético quanto um disco de hardcore. Ainda não sei se amo essa bagunça (e, se é para quebrar tudo, Dan Deacon me parece muito mais radical), mas reconheço que não ouvi nada igual.
Life is sweet! Nice to meet you | Lightspeed Champion | 6
Para quem conhecia e gostava do projeto anterior de Devonté Hynes (a banda de dance-punk Test Icicles, praticamente um tigre), o Lightspeed Champion vai continuar provocando muita frustração. No segundo disco, o texano (criado na Inglaterra desde os dois anos de idade) continua a enquadrar o próprio som de acordo com algumas convenções pop quase caducas: brit pop, easy listening, new wave. Tudo o que ele quer, aparentemente, é mandar um abraço para Jarvis Cocker e Morrissey (e quantos outros não querem?). A boa ideia deste Life is sweet é o olhar positivo para temas que costumam ser cantados com fatalismo (Dead head blues, por exemplo, é uma faixa alegre sobre o fim de um relacionamento). O oposto de A vida é doce, do Lobão. Nas recaídas, no entanto, Hynes escreve obviedades como I don’t want to wake up alone, que só reforça os clichês associados ao tal “som da Inglaterra”. E aí as piores do Morrissey soam pelo menos mais divertidas.
2 ou 3 parágrafos | Franz Ferdinande!
Depois de ter escrito um caminhão de abobrinhas sobre os shows do Guns N’ Roses e do a-ha, me sinto na obrigação de contar alguma coisa sobre a passagem diabólica (explico: fazia um calor infernal) do Franz Ferdinand por Brasília. Acontece que – a-há! – não tenho muito a dizer sobre a performance dos rapazes. Isso me deixa um pouco incomodado, já que foi um show muito, muito bom.
Não deixa de ser um negócio estranho: por que, no day after, bateu uma certa apatia. Teria sido um show apenas correto? Não pode: o Franz é uma das bandas mais precisas do mundo. Tudo está no lugar certo — o carisma do vocalista (que dá chutes no ar e sorri quando o fã salta do palco num mosh desengonçado, e diz ‘Franz Ferdinande!’ com sotaque carioca), o entusiasmo do baterista, os incríveis macetes do guitarrista (que manda muito bem nos sintetizadores), as jams hipnóticas (se bem que a batucada de Outsiders, marca registrada deles, já está virando um tique), o namorico com a dance music, o baixo pesadão, os hits poderosíssimos, a atitude invariavelmente cool (antes do show, eles aqueceram o público com quatro faixas do disco novo do Caribou!)…
De onde vem meu incômodo, então? Talvez tenha sido culpa do set list meio torto, que queima todos os hits bem antes do bis. Ou do uso desleixado do telão, jogado às traças. Ou nada disso. Talvez minha birra resulte de uma espécie de choque térmico: depois dos excessos (sentimentais, pirotécnicos, patéticos) do Guns N’ Roses e do a-ha, o Franz me pareceu carne crua, hambúrguer sem ketchup, biscoito sem recheio de marshmallow. Mas do que estou reclamando? É o que dá cair de barriga no século 21, sem asa delta. A filosofia da geração desse quarteto (e do Strokes, e do White Stripes) é podar a penugem e ir ao osso da canção, da atitude, da encenação, da pose (e há pose sim, como não?). O show deles deixou essa imagem: é ossudo. Cálcio à beça. Símbolo de uma época. E, possivelmente, um espetáculo que deveria ter feito de mim um sujeito realizado. Mas não foi bem o que aconteceu — e é bizarro, acreditem, não saber por que.
2 ou 3 parágafos | a-ha, uns chapas
Depois do Guns N’ Roses, não sei se eu precisava de um show do a-ha. Mas me mandei pra lá. Fiquei um pouco emotivo no refrão de Take on me e sujei meu tênis numa poça de vômito (cor de beterraba). Acredito que consegui matar as células da minha pré-adolescência que sobreviveram ao bombardeio de Axl Rose.
Não foi um show ruim. Nem foi (como no caso do Guns) uma bela merda. Nada disso. Aos fãs brasilienses (todos loucos por um freak show de dimensões catastróficas), os noruegueses se mostraram estranhamente comuns. Uns chapas. Uns bróderes. A trilha sonora para esta performance é um mash-up de Ordinary world, do Duran Duran, com Common people, do Pulp. Tudo muito simplezinho. Enquanto Axl tenta macaquear os próprios tiques – como se 1991 fosse um estado de espírito, e não é! – este trio simpaticíssimo comete o crime de envelhecer junto com seu público, como se não dependesse dos velhos hits para sobreviver (ainda que dependa sim – as canções mais recentes soam como Keane meets Seal e, ora bolas, o pop é mesmo muito cruel).
É a turnê de despedida, e eles agem como quem comemora o pedido de aposentadoria. Oh, folgas! Recesso por tempo indeterminado, manja? E o descanso vem a calhar. Lá pela quinta música, o vocalista anunciou que estava com uma infecção na garganta. Falou algo do tipo (e esta é uma tradução muito livre): “Olha, galera, o papai aqui está nas últimas, tem uma ambulância lá fora me esperando, as músicas vão ficar uma meleca, espero que vocês me ajudem cantando tudo o que vocês sabem. Ainda falta uma hora pra Take on me, vou avisando…” O estádio, coitado, caiu em desânimo. Mas eles têm sorte de contar com fãs muito educados (senhoras e senhores muito educados), que os ajudaram na agonia terrível de subir a Montanha dos Agudos Estridentes até que o maldito clipe de Take on me aparecesse projetado no telão (aliás, belo telão: de Discovery Channel a cartoons abstratos à Justice, teve de um tudo). Na maior parte do show, eu pude sentir a dor, o martírio do vocalista. Foi uma jornada muito tensa, exaustiva. O show deixou a sensação de que eles merecem férias. Era essa a ideia? Esses guerreiros. Esses chapas. Esses experts em Take on me. Eu me sensibilizo com a causa. E espero sinceramente que a ambulância tenha chegado a tempo.
Swim | Caribou
Dan Snaith é PhD em matemática e vive numa família de acadêmicos. Mas, talvez como uma forma de vingança pessoal, grava discos que soam como o avesso de uma equação de física. A soma das melodias dá em resultados imprevistos, que não se repetem e, por isso, rejeitam a definição de um padrão. São o pesadelo de qualquer cientista.
Cada álbum de Snaith — que atendia por Manitoba, depois por Caribou — é uma biosfera instável, uma capítulo muito diferente do anterior. Daí que, para quem espera um novo Andorra, esta nova fase soará frustrante. Aviso logo: a nova aventura deixa para trás toda a atmosfera afável, de psicodelia sessentista (à Zombies, Beach Boys), que transformou aquele belo álbum de 2008 num pequeno rubi que todo mundo queria ter na estante da sala.
Os elogios ao disco foram unânimes. Para os mais pessimistas, o apogeu parecia representar o início de uma temporada mais tranquila para o músico. Ufa, aconteceu o contrário: o (relativo) sucesso inspirou Snaith a fazer as malas, pagar o bilhete e trocar o itinerário. Swim é um álbum de dance music.
Um gênero que, remodelado por um compositor que adora triturar clichês, é assimilado com absoluta liberdade. A transformação começou no planejamento do disco. Em vez de escrever as canções de forma linear (como aconteceu em Andorra), ele preferiu gravar pedacinhos de ruídos e melodias para, mais tarde, montar o quebra-cabeças. Durante o processo, descobriu que gostava das faixas mais dançantes.
Ainda assim, nada em Swim pode ser classificado de acordo com fórmulas de nichos dance. “As canções têm elementos que a dance music não costuma mostrar, ou não pode aceitar. Sempre sigo meus instintos, não me preocupo com gêneros”, disse Snaith. As canções são feitas de instrumentos que não soam como instrumentos, sons do ambiente, variações irregulares de volume, timbres exóticos e vocais que poderiam ter sido gravados de improviso. Não há como rotular essa sonoridade. É o que é.
Mas é, sem dúvidas, uma sonoridade com limites muito bem traçados. A ideia de um disco que soasse líquido, movediço (um conceito que acaba lembrando o formato de Person pitch, do Panda Bear), é praticada da primeira à última música. As faixas se movimentam em ondas baixas, às vezes atingindo ápices que quebram com força na areia (é o caso de Kaili, o clímax prematuro do disco).
Tal como Panda Bear, Snaith usa as técnicas da eletrônica com a sensibilidade de um fã de rock psicodélico. O fundamental, nos dois casos, é simular a sensação de transe, alucinação, sem abandonar alguns valores caros ao rock: os vocais emotivos, a melodia assobiável, a combinação de acordes que provoca amor à primeira audição (ou o efeito revigorante de uma barra de chocolate, caso de Odessa, lindona).
Depois da décima audição, não sei dizer se é um disco melhor ou pior do que o anterior. Snaith criou um ambiente tão trancado em si mesmo — no bom sentido — que as comparações perdem o sentido. Noto, apesar disso, que o compositor vai crescendo a cada disco, ganhando traquejo para criar faixas que duram o tempo necessário para obrigar que voltemos a elas.
E, se ainda não encontrei nenhuma canção tão tocante quanto Irene (a minha favorita de Andorra e uma das preferidas da década), os prazeres aqui são outros: o de flutuar no mar esverdeado de uma ilha virgem, selvagem, bonita de doer (mas impenetrável em certos trechos — nem todos os enigmas são moleza).
Não é uma onda perfeita. Mas duvido muito que Snaith procurava algo redondinho, previsível. Ele quer mais é cair na aventura. E quem quiser que vá seguindo.
Quinto disco de Dan Snaith/Caribou. Nove faixas, com produção de Dan Snaith. Lançamento Merge Records/City Slang. 8/10
2 ou 3 parágrafos | Ilha do medo
No DVD de New York, New York (1977), Martin Scorsese conta que projetou o filme como uma espécie de experimento. A ideia era se apropriar dos grandes musicais hollywoodianos, mas com um olhar realista que estava muito em voga nos anos 1970. Uma América de arquitetura falsa — em miniaturas de neon — e sentimentos desvairados, imperfeitos. Acredito que o filme tenha incomodado muita gente (foi fiasco de bilheteria) por deixar a impressão de uma mistura heterogênea, muito desequilibrada (e curiosíssima, mas aí é outra história), entre dois cinemas.
Quando li que Ilha do medo seria um filme assumidamente artificial, inspirado num livro quase pulp de Dennis Lehane, fui correndo comparar aquele Scorsese (de 35 anos) com este aqui (já sessentão). E, como não?, lembrar da distância que separa o diretor de Last waltz (1978) do de Shine a light (2008), dois documentários sobre concertos de rock. No primeiro caso, ele filmou a despedida do The Band — um episódio que provocaria comoção independentemente da existência do filme. No segundo, preferiu encenar um show particular dos Rolling Stones — um momento cuidadosamente planejado para o filme (nas cenas finais, para acentuar esse tom de farsa, o diretor manipula a imagem com efeitos especiais).
Daí que Ilha do medo (4/5) me parece muito coerente com esse Scorsese de Shine a light (talvez este Shutter Island seja o grande filme dessa fase). O realismo é totalmente diluído num jogo de ilusões montado com as referências cinematográficas do diretor. Não é mais o caso de somar A (fantasia) e B (realismo), mas combinar uma infinidade de signos — filmes B, Hitchcock, surrealismo, horror, noir, romance — num redemoinho de imagens que acaba por derrubar o chão do espectador. Se não devemos confiar no narrador do filme, em quem acreditaremos? É esse tipo de incômodo — mais sutil, mais sofisticado — que Scorsese parece interessado em procurar.
Let go | jj
Os suecos misteriosos do jj (que estão com disco novo na praça, jj 3) não gostam de dar entrevistas, se recusam a posar de astros, e, se pudessem, evitariam revelar os próprios nomes (mas anote aí: Joakim Benon e Elin Kastlander). O elegante clipe de Let go, dirigido por Marcus Söderlund, desfaz um pouco o enigma e explica por que a banda foi convidada para abrir shows do The XX nos Estados Unidos: este também é um mundo em preto, branco e vermelho-sangue.
Superoito, o rei da comédia
Não sou um homem engraçado.
Mas sempre achei que sim. Sempre acreditei que esse fosse o caso. Desde muito cedo, ainda bem pequeno, quando aprendi a fazer barulhos estridentes com os beiços, encher minhas bochechas de ar até que quase explodissem, esticar a língua até o queixo e dançar feito um macaco dopado, com braços de fantoche. Minha mãe sorria. Minha avó rendia-se a elogios. “Esse menino é uma graça!”. Minhas tias obesas, que me apelidaram de Guigo, exclamavam bobagens superlativas. “Guigo é o máximo”. “Guigo é um menino muito esperto”. E aposto que, em segredo, admitiram: “Guigo é o novo Jerry Lewis!”.
Não tenho lembranças muito precisas daquela época – dois anos de idade! -, mas sei bem (como se fosse hoje) que eu sentia um tipo muito caloroso de satisfação quando as pessoas gostavam das minhas piadas. Meu troféu eram as risadas soltas, francas, demoradas. Eu me enchia de vaidade mesmo quando recebia sorriso com os truques mais tolos – e, nos meus primeiros anos de vida, quase todas as minhas gozações envolviam barulhos escatológicos.
Talvez minhas tias tenham encenado tudo com muito talento (ou simplesmente me mimado, já que Guigo era o homenzinho da casa), mas elas me convenceram de que eu era o rei da comédia. Aos cinco anos, eu contava anedotas com alguma habilidade. Era inaflível: eu sabia como criar uma atmosfera cruel de suspense e, depois, ir torturando as minhas vítimas até a frase final, hilariante e inesperada. Meu saquinho de gags não tinha fundo quando, no colégio, eu camuflava minha timidez na hora do recreio, contando histórias quilométricas, enervantes, que terminavam num golpe genial de humor barato, sujo, desaconselhável para menores.
Isso até os dez anos de idade, quando me entediei com as gracinhas de salão e decidi investir pesado no sarcasmo. Eu era o horror da ironia, das alfinetadas, dos comentários ácidos, das fofoquinhas malvadas. Acredito até que exorcizei toda a minha rebeldia adolescente nesses atos explícitos de escárnio. O poder de soltar a última gargalhada cínica fazia com que eu me sentisse um rapazinho muito inteligente, mas era um dom incompreendido. Mais tarde, notei que minha vocação era interpretada como arrogância.
Pior: notei que, ilusões à parte, não sou, nunca fui um homem engraçado.
Talvez todos os meus traumas de juventude tenham brotado aí, no dia em que encarei o espelho imaginário e percebi que nunca fui um bom palhaço. E que, para que crescesse como um adulto mais ou menos apresentável, eu não deveria me esforçar tanto para soar como um comediante decadente trancado num reality show de fiascos da stand-up comedy.
Toda a minha disposição para a sobriedade, porém, nunca vingou. O meu “eu palhaço” já havia devorado o meu “eu sisudo” e não havia nada que eu pudesse fazer para alterar esse placar. Uma guerra perdida. Daí que segui com esse jeito meio torto e vergonhoso, rindo das minhas próprias piadas e aproveitando todas as brechas do cotidiano para bolar trocadilhos e paródias que nunca sobreviveriam aos rascunhos de uma sitcom vagabunda.
Um humorista amador compulsivo, é claro, incomoda muita gente. Minha namorada detesta meu humor, que ela chama de “amargo e sacana”. Meus colegas de trabalho riem por educação. Meus amigos pedem para eu maneirar. Minha mãe é minha mãe. Minha irmã, como de costume, está pouco se lixando. Minhas tias escafederam-se no universo. E não converso com meu pai há uns seis meses.
O único que parece compreender essa compulsão é, curiosamente, meu padrasto. Digo curiosamente porque meu padrasto foi o homem que me ensinou a grande lição: bom mesmo é ser sério. Minha meta sempre foi simular o temperamento do sujeito. A ranzinzice elegante, a sobriedade à prova de deslizes morais, as risadas selecionadas com rigor. Um adulto feito. Esse era meu plano: vestir os sapatos muito bem engraxados do meu padrasto.
Daí o aspecto curioso dessa trama: desde que começou a perder a memória, consumido lentamente por uma das doenças mais terríveis do planeta, meu padrasto deixou de vestir os próprios sapatos. É um senhor de 55 anos que, a cada mês, regride algumas estações. Os momentos mais doloridos são aqueles em que ele próprio percebe que perdeu o controle das próprias ações. Não sabe (porque não consegue) mais tomar as decisões que, há alguns meses, pareciam automáticas. Quando percebe os sinais da própria doença, tranca o rosto e embranquece, depois fica quase amarelado, se recolhe no canto do sofá e (ele não diz, mas eu sei) se sente estúpido.
Tento passar muito tempo perto do meu padrasto porque sei que, nos dias mais desesperadores, ele precisa das pessoas que o amam naturalmente, sem esforço ou pena. Nos últimos meses, entendi que a melhor forma de lidar com a situação é tratá-la sem muita cerimônia. Conhecemos a doença intimamente: ela se instalou na nossa sala, ela sabe o caminho do quarto, ela brinca com nossos cachorros e, por isso, é inevitável que a encaremos como uma visitante desagradável, mas que chegou para ficar.
Quando encontro meu padrasto, o que nos une é (notem a ironia da coisa!) exatamente aquilo que nos afastava: o humor débil, ingênuo, paspalhão. Contar piadas nos distrai. Fazer graça de tudo (dos filmes que passam na tevê, das notícias narradas pelos jornais, nas trapalhadas dos nossos cachorros) nos aproxima de tal forma que começo a acreditar numa inversão de papéis que me parece bizarra: eu, o palhaço, virei exemplo para meu padrasto, o homem seríssimo.
Admito que, num primeiro momento, minha reação diante dessa nova mise-en-scene foi de total desconforto. Quando alguém repara que eu sou capaz de rir das minhas próprias piadas, fico envergonhado e peço desculpas. “Perdão, não consigo evitar.” Ver meu padrasto sorrindo com meu besteirol raquítico me deixa encabulado – mas, em segredo, também orgulhoso. É como se eu tivesse recuperado o narcisismo infantil que invadia a minha alma quando as minhas tias batiam palmas todas as vezes em que eu poluía a sala de estar e, logo depois, gritava babacamente: “Minha mão não está amarela!”
Com meu padrasto, eu volto a ser o rei da comédia. Um reizinho, vá lá. Um papel que aceito integralmente já que, nesse caso, é quase tudo o que posso oferecer a ele. A doença terrível nos deixa fracos, tensos, sem norte, sem chão, atados uns nos outros à espera de um futuro vazio. As esperanças existem, mas são traiçoeiras – preferimos não nos apegar a elas.
Daí que as risadas nos ajudam, estão na nossa torcida. A casa fica cheia quando gargalhamos. Sofremos com as luzes apagadas e sorrimos quando elas estão acesas. São os holofotes do palco. Até revezamos: eu sou o ator e meu padrasto está na plateia; meu padrasto é o ator e eu estou na plateia.
A risada do meu padrasto – e eu ainda não a conhecia! – hoje é meu ganha-pão e meu modelo. É meu remédio. O homem sorri de um jeito meio patético, engasgando, com os olhos fechados e os ombros girando freneticamente. É uma reação sem maldade ou culpa. Um riso sem destino, sem futuro, sem cobranças, arregaçado, soltinho na atmosfera.
É bonito de ver. E são nesses momentos ainda tão estranhos que eu – um homem nada engraçado – faço força para não chorar.
2 ou 3 parágrafos | E o Oscar foi para…
Vi o Oscar aos pedaços, pela internet (não sei se perdi muita coisa, perdi?), mas preciso dar duas palavrinhas sobre o resultado. É que me incomoda muito essa conclusão (cada vez mais generalizada) de que a vitória de Guerra ao terror é um soco em Hollywood, um sinal de mudança, uma sandice da indústria. Calma lá. Não é bem o que acontece.
Desde o fim dos anos 80, a Academia aprendeu a lidar com as pressões criadas pelos próprios “independentes”, que passaram a investir em campanhas mais agressivas para emplacar produções e aquisições no Oscar (e o maior exemplo é a Miramax). Mas, já no fim dos anos 90, quando a própria Miramax já tinha sido comprada pela Disney, o conceito de independência ficou nebuloso. O que diferencia verdadeiramente esses filmes daqueles validados pelos grandes estúdios? Quem quer ser um milionário, Juno e Pequena Miss Sunshine, todos com o selo da Fox Searchlight (setor de um estúdio enorme), devem ser classificados como indies? E essa classificação, o que representa hoje além de um valor de marketing? Lembro de uma entrevista que fiz com o Todd Solondz, de Felicidade. “O único cineasta independente é o George Lucas, que controla todo o processo de produção dos próprios filmes”, ele comentou. É por aí.
Guerra ao terror é uma fita distribuída nos Estados Unidos pela Summit Entertainment, uma “pequena empresa” que lançou Crepúsculo e Lua nova. Me pergunto que, se num ataque de loucura dos integrantes da Academia, uma vitória dos vampiros adolescentes teria provocado manchetes em defesa dos independentes. Aposto que não. O que me interessa mais é notar como, nos últimos anos, a Academia tenta usar a (muitas vezes falsa) ideia de autenticidade associada aos “pequenos filmes” para recuperar prestígio e simular a aparência de uma festa relevante e séria, comprometida com um cinema supostamente adulto e legitimado pela crítica. Guerra ao terror cumpre todos esses requisitos. E (ainda que, no contexto, este seja um detalhe) calha de ser um belo filme.
Guns N’ Roses em Brasília
O palco do Guns N’ Roses é um campo minado. Um rojão explode a cada 10 minutos. Ninguém está seguro. O bombardeio, quando chega, é tão extremo que solta algum cheiro de apocalipse. O estádio estremeceu? Em tempo de terremotos emmerichianos, não há como não ficar (pelo menos um pouco) estressado. Mas tudo é artifício. A terra treme, espalha fumaça, cospe fogo, dispara faíscas coloridas de festas juninas e, depois do vigésimo estouro, estamos anestesiados. É só um show de rock.
Antes de começarmos, um rápido flashback: comprei ingresso para o show do Guns N’ Roses (domingo à noite, no ginásio Nilson Nelson, Brasília) talvez disposto a reencontrar o Tiago meninão que, em 1991, queria ser Axl Rose. Chamem de masoquismo. Minha pré-adolescência, como muitas outras, foi estranha. Ainda não entendo como, naquela época, eu conseguia amar simultaneamente os hits medonhos do Information Society, Roxette, Skid Row, The Simpsons (sing the blues!), Paula Abdul, New Kids on the Block e… Guns N’ Roses. November rain era minha Bohemian rhapsody.
Dois anos depois, eu me envergonharia disso tudo. É natural. A pré-adolescência, como eu ia dizendo, pode ser pavorosa. Daí que entrei no ginásio, 30 anos no meio da testa, com aquela aparência esnobe de quem assiste a um megashow de rock com o distanciamento de quem se submete uma “experiência pop”. Ã-hã. Mal sabiam que o Tiago pré-adolescente, tinhoso e cruel, pulsava de saudades, faminto por sucessos radiofônicos moribundos. O show de abertura (Sebastian Bach!) provocou arrepios de nojo e nostalgia. 18 and life é mesmo um horror, mas diz muito sobre o babaca sentimental que eu era naquela época (e que ainda está um pouco vivo, e vaso ruim não quebra).
O que mais me agrada na ideia de escrever textos em blogs é que temos o direito de mandar os bons modos às favas: desculpem-me os fãs mais talibãs e os adeptos tardios da axlmania, mas o show do Guns N’ Roses em Brasília foi uma bela merda. Uma fedida, imensa, cafona, barulhenta, estúpida, bela merda. Mas, antes que o primeiro fanático grude este post numa comunidade odiosa do Orkut, peço para que reparem no adjetivo: uma bela merda não é qualquer merda. E, quando eu digo que o show foi uma bela merda, estou fazendo uma espécie de elogio. Acreditem em mim.
No início dos anos 90, essa fanfarronice ganharia o apelido da moda: farofa. Como todo legítimo espetáculo farofeiro, a turnê do Guns não tem limites. Perde a medida logo nos primeiros cinco minutos. É Onde vivem os monstros dirigido por Baz Luhrmann. A produção escolheu uma banda de heavy metal de Brasília para abrir os trabalhos, mas a quem eles querem enganar? Guns N’ Roses nunca escondeu no armário a quedinha por Queen, Elton John e Kiss. Se existe uma definição para esse som escancaradamente festivo, seria algo como glam-hard-rock. Sabe Extreme? Sabe Mr. Big? Axl Rose pairou sobre tudo isso feito um urubu-rei.
Não é um show que pede licença, e isso me agrada. Axl Rose não mira o cérebro, mas o intestino. Daí as explosões desagradáveis no palco. Que irritam. E pregam sustos no público. Daí a chuva de confete e serpentina. E a lista de pedidos estranhos à produção (muito champanhe, alguma cachaça, toalhas brancas). As imagens nonsense exibidas no telão (em You could be mine, o que significam as cenas de corrida de Fórmula 1, tio Axl?). Os solos ridiculamente exagerados. Cada música é devassada numa escala monumental. Impossível sobreviver às 2h45 de show sem ficar pelo menos um pouquinho cansado.
Eu admito: fiquei exausto. Às 2h45 da madrugada, quando Axl deixou o palco, tudo o que eu queria era deitar meus neurônios num balde de gelo.
Lá pela terceira música, quando meus tímpanos zuniam com o eco de uns cinco cabeções-de-nego, notei que o Guns N’ Roses que estava no palco não era exatamente o Guns N’ Roses da minha pré-adolescência. Não é nem poderia ser. A banda estava totalmente remodelada (um septeto formato por tipinhos calculadamente exóticos) e o próprio Axl era um avatar inflado daquele ídolo que, lá por volta de 1994, morreu e voltou na pele de um esquisitão obcecado por new metal e política chinesa.
E àqueles que me perguntam se o Axl ainda canta, respondo o seguinte: não sei. Pergunte a outro. Da arquibancada, ouvíamos absolutamente tudo (a bateria, a percussão, os chocalhos, o piano, a metralhadora de bombinhas, os ruídos bizarros à rock industrial), menos a voz de Axl Rose. Não é curioso? O que esperamos encontrar de aparentemente genuíno num show do Guns N’ Roses é a figura de Axl, a celebridade-problema, o monstro congelado no início dos anos 90, o Macaulay Culkin crescido. E tudo o que vimos foi um sujeito de bandana gesticulando agoniadíssimas canções de amor. Um videokê.
Coisas assim acontecem, eu sei. Shows são imprevisíveis, eu sei. Lembro de um da Marisa Monte: espremido na beirada da arquibancada, não consegui ver o palco (que estava aprisionado por um freezer luminoso de arte moderna) e não ouvi o som (cheio de delicadezas sussurradas). Em Brasília, no ginásio Nilson Nelson, esse tipo de coisa acontece com certa frequencia.
Sorte a minha que, no caso do Guns, consegui entender o que acontecia no palco. Os músicos improvisam melodias engraçadinhas (o tema de James Bond, David Bowie, Pantera cor de rosa) enquanto Axl some no camarim (e ele sumia tantas vezes que começamos a suspeitar que ele estaria assistindo ao Oscar e tocando nos intervalos da transmissão). Axl retorna e intercala um hit com uma faixa desconhecida de Chinese democracy. Bombas explodem. É uma guerra, é uma guerra, e ela continua assim por quase duas horas.
A banda (cover) o acompanha com muita precisão. No telão, vemos imagens de meninas depressivas e suicidas. Axl, para quebrar a rotina, vai ao piano e toca November rain. O povo chora, mesmo sem ouvir a voz do moço. Daí ele toca Patience (e dá a deixa pra todo tipo de piada maldosa – esperamos 1h30 para a montagem do palco). O povo se emociona e grita “esta é minha música!”, mesmo sem ouvir a voz do sujeito. Ele sai do palco e volta. Canta outra faixa obscura do Chinese democracy. E termina com Paradise city, que reprisa o entusiasmo com que recebemos o momento bombástico e irado da noite, Welcome to the jungle. Chove serpentina. É carnaval na farofalândia. Axl, bonachão, pede desculpa aos pais que precisam levar os filhos ao colégio. Muita gente boceja.
E é isto: um showzaço escroto e safado e muito ca-fo-na que esfrega na nossa cara o quão grosseiro era o nosso gosto musical em 1991. Tomem isto. Dancem com isto. Chorem com isto. E ainda houve quem disesse que Brasília nunca viu um evento tão grandioso, tão espetacular, tão bonito e poderoso. Então é isso que vocês querem, é? Farofa, suor e rock ‘n’ roll? Nós, brasilienses, ainda seremos devastados pelo nosso complexo de inferioridade.
Para mim, funcionou como uma espécie de terapia. Agora entendo por que, na minha autobiografia íntima, pulo essa temporada confusa da minha vida. Para todos os efeitos, nunca tive 11 anos de idade. Nunca comprei fitas cassete do Guns N’ Roses. Nunca usei bandana em bloco de carnaval. E nunca, em nenhum momento, juro que não quis ser Axl Rose quando eu crescesse.
Quero menos ainda. Pelo menos até o dia em que o fantasma da minha pré-adolescência resolver me atazanar de novo. Eu era um menino muito estúpido, já disse isso? Mas e o Poison, ainda faz turnês?