Mês: novembro 2008
El Mapa de Todos: duas noches
Não sei se planejaram as duas primeiras noites do festival El Mapa de Todos para que sentíssemos a contraste entre o lado introspectivo e o extrovertido do rock ibero-americano. Mas foi o que aconteceu. Se a noite de quinta-feira caiu acinzentada de tão melancólica (culpem Marcelo Camelo), a de sexta brilhou no tom amarelo-ovo da calça de Adrián Rodriguez, vocalista do Babasónicos.
Infelizmente não estarei lá hoje para assistir ao Mundo Livre S/A. Só que já dá para cravar que este é um festival merece ser defendido: a curadoria (inteligentíssima) une alhos, bugalhos e uma penca de desconhecidos ilustres para formar o painel de um rock latino que desmonta os preconceitos do público brasileiro. Ainda me parece assustador que a estréia brasileira do Babasónicos, uma banda formada em 1991, tenha rolado apenas agora, e aqui em Brasília. Se o El Mapa de Todos veio para corrigir essas e outras distorções, que não nos abandone.
Quinta-feira: ‘Isso lá é bom, doce solidão?’
A seleção da noite de Marcelo Camelo parece ter sido montada para Marcelo Camelo. Dois outros convidados – o português Azevedo Silva e o brasiliense Beto Só – bateriam na tecla dolorida do rock em tom menor, com violões, murmúrios e versos sobre solidão, amores perdidos, saudade. Até os uruguaios do Danteinferno, que destoaria desse tom deprê, surpreenderam com um set mais calminho que de costume.
E Camelo? O barbudo confirmou o papel de trovador recluso (nosso Bon Iver!) e de ídolo de menininhas de 16 anos (era, e estou falando sério, a maior parte do público que lotou a casa de shows). Como entertainer, sai-se um ótimo professor de História. Camelo não quer entreter ninguém, certo? O que ele compõe é tão caseiro, tão íntimo, tão intransferível, tão essencialmente dele que parece pequeno demais até para um teatro para 800 pessoas.
Em disco, esse tipo de viagem ao redor do umbigo parece fazer mais sentido. Soa como um sussurro (e no bom sentido). No palco, alguma coisa parece fora da ordem. Antes de assistir ao show me contaram que os músicos do Hurtmold garantiam profundidade à caixinha de música de Camelo. Há alguns barulhinhos sutis e tal. Mas nem isso compensa o clima aborrecido que paira sobre o lual.
Camelo, o anti-astro, faz um anti-show. Conversa pouco com os fãs (histéricos, como de hábito), não esboça sorriso e, num certo momento, toca de costas para a platéia. Como performance calculadamente blasé, não cola. “Ele tá dando uma de João Gilberto”, avaliou um fã. Repito: um fã.
As versões para músicas do Los Hermanos como Pois é e Morena conseguem soar diferentes sem trair o espírito das gravações originais. Mas, amplificadas num palco, diante de várias pessoas, as canções de Sou se revelam inacabadas, quase esquecíveis, e tão antipáticas quanto a pose do cantor (como antídoto, o português Azevedo Silva provou que é possível ser intimista sem fazer marra). Lição quase futebolística da noite: disco é disco, show é show.
Sexta-feira: ‘Algunas noches soy fácil, no acato límites’
Com Camelo jogando na defensiva, o melhor show do festival foi (fácil, fácil) o do Babasónicos. Em clima de ‘tudo ou nada’, os argentinos não se conformam com o fato de – com uma trajetória de nove álbuns! – vender bem em todo canto, menos no Brasil. Deve ter sido uma experiência estranhíssima: na Argentina eles lotam o Luna Park; em Brasília, levam metade do público do Camelo ao Espaço Brasil Telecom.
Mas eles pareciam preparados para lidar com a apatia da platéia – tanto que, no bis, conseguiram fazer com que muita gente se levantasse para dançar em frente ao palco. Não há como ficar emburrado com as acrobacias de Adrián Rodriguez, o baixinho-espoleta que emula James Brown, Mick Jagger e Michael Jackson num mesmo refrão. Ninguém pode pará-lo.
Quem conhece a banda de meados dos anos 90 pode ter reclamado de um set list previsível, armado em torno dos dois discos mais recentes deles (Mucho e Anoche). Ok, não deixa de ser, mas vale lembrar que o show apresentou o perfil de um cartão de visitas – e, para efeito máximo, o grupo lançou mão dos hits mais acessíveis, da fase pop iniciada com o álbum Jessico, de 2001.
Foi esse Babasónicos manso que vimos por aqui. O que não chega a incomodar, já queo grupo sabe (como poucos) aliar os truques comerciais à influência indie, psicodélica. Ainda se vestem como hippies sujos saídos de uma rave que varou a madrugada.
A noite de sexta ainda teve o skabilly do peruano Turbopótamos (uma espécie de Franz Ferdinand latino, bastante eficiente), mais um show hipnótico do Macaco Bong e a revelação Facas Voadoras, do Mato Grosso do Sul (que une Johnny Cash, Pixies, The Cramps e, incrivelmente, não soa como Matanza).
Será que em 2009 rola Los Tres? Depois de ter visto Babasónicos a cinco palmos de distância, tudo é possível.
Festival de Brasília | Vencedores
Melhor filme (júri oficial): Filmefobia, de Kiko Goifman
Melhor filme (júri popular): À margem do lixo, de Evaldo Mocarzel
Diretor: Geraldo Sarno, Tudo isso me parece um sonho
Ator: Jean-Claude Bernadet, Filmefobia
Atriz e atriz coadjuvante: elenco feminino de Siri-Ará
Prêmio de crítica: Filmefobia
O restante da lista de vencedores está neste link aqui.
Ou seja: os filmes não entusiasmaram, mas os jurados (de longe o destaque da mostra) foram extremamente sensatos ao não se deixar levar pelo oba-oba do público e consagrar os longas mais “difíceis” do festival: Filmefobia, mais odiado que amado, ficou com cinco prêmios (filme, montagem, direção de arte, ator e crítica) e Tudo isso me parece um sonho levou direção e roteiro.
Favoritos da platéia, À margem do lixo e O milagre de Santa Luzia ficaram com, respectivamente, júri popular (e prêmio especial de júri) e trilha sonora.
Foi como se, aos 46 do segundo tempo, o júri tivesse decidido corrigir a rota desenhada pela comissão de seleção dos longas, que privilegiou documentários acadêmicos a criações mais arriscadas. Deram a vitória ao risco, à (tentativa de) invenção.
Para mim, não poderia ter sido melhor. Aliás, até eu, um dos poucos defensores de Filmefobia por aqui, fiquei surpreso com a coragem do júri. Em outras edições do festival, o longa de Goifman talvez teria de se contentar com um prêmio especial. Este ano, a premiação caiu como um manifesto a favor de um cinema que não se deixa amarrar pela função meramente informativa. Por obras um tantinho complexas, enfim.
A equipe do jornal onde trabalho decidiu entregar o Prêmio Saruê (para o melhor momento do festival) a Se nada mais der certo, de José Eduardo Belmonte. Também funcionou como uma alfinetada na seleção dos longas: foi a primeira vez que escolhemos premiar um filme ausente da mostra competitiva.
No mais, a insatisfação com o festival é generalizada e até Vladimir Carvalho, que participou do júri, escreveu um artigo sobre a crise do evento. Num trecho, ele protesta: “O Festival de Brasília envelheceu, esclerosou-se e precisa urgentemente de uma reforma ampla, geral e irrestrita”. No texto, o documentarista chega a criticar o excesso de documentários na competição. “O júri enfrentou sérios problemas porque não havia filmes para premiar nas categorias previstas no regulamento”, contou.
“Uma sombra escura desceu sobre este que já foi o maior e mais importante festival de cinema”, ele lamenta. Está coberto de razão.
Festival de Brasília | Encerramento e apostas
O júri do Festival de Brasília ficou trancado durante toda a madrugada para escolher os vencedores da edição. Fiquei sabendo que o encontro não resultou em bate-boca, mas numa negociação demorada. “E o festival nem estava tão complexo assim”, ouvi de um jurado. Posso imaginar a dificuldade.
Numa mostra em que os integrantes do júri provocaram mais interesse que os cineastas em competição (e aposto que Vladimir Carvalho, Murilo Salles, Sandra Corveloni, Sérgio Machado, Carlos Reichenbach e Maria Flor prefeririam ter passado a semana diante de filmes mais fortes), a vitória de Tudo isso me parece um sonho, de Geraldo Sarno, soa bastante provável. Não que me impressione tanto assim (ainda que deva conquistar o apoio apaixonado de muita gente boa), mas é o único na competição que apresenta a assinatura de um autor.
Os prêmios de atuação devem ir para Siri-Ará (o único longa que se assume totalmente como ficção) e Evaldo Mocarzel deve ficar com um prêmio de júri ou até de direção. O sanfoneiros de O milagre de Santa Luzia devem ter mobilizado o júri popular. Por mim, o Candango de melhor filme ficaria com Tudo isso me parece um sonho, um documentário em crise que desagradou o público (mais da metade do Cine abandonou a sala no decorrer das 2h30 de projeção) e encerrou a mostra num estranho anti-clímax.
Quer dizer: estranho não, já que o desfecho foi até coerente com o clima de desânimo que pairou sobre esta edição.
Tudo isso me parece um sonho | Geraldo Sarno | ««
Antes que o classifiquem como obra-prima, vale lembrar que Geraldo Sarno desenvolve há muito tempo (na surdina) o projeto de fazer documentários que desmontam e discutem o processo de criação artística. Nada mais oportuno que iluminar a obra do diretor num momento em que a metalinguagem contamina profundamente o gênero (vide Santiago e Jogo de cena).
Neste caderno de anotações para um filme sobre o general José Ignácio Abreu e Lima (um herói pernambucano esquecido, que lutou ao lado de Simon Bolívar e participou da Revolução Praieira), Sarno filma um ensaio sobre revoluções e movimentos fracassados. Não é à toa que o próprio filme pareça inacabado, indeciso, errado.
Faz sentido. Sem acesso a imagens do general, Sarno coloca em xeque a existência do próprio filme. Isso nas primeiras cenas. Depois decide encenar os momentos derradeiros do personagem, inverter a narrativa num making of, que logo se transforma num documentário-dentro-do-documentário sobre os canaviais pernambucanos. A colagem de idéias poderia se desdobrar infinitamente.
É uma premissa que qualquer cinéfilo ou crítico de cinema compraria de olhos fechados. Mas a experiência de assistir ao filme deixa a sensação de um passeio desgovernado por momentos de grande inspiração e declives que exigem paciência e boa vontade. Há seqüências que valem pelo festival inteiro, como aquela em que uma menina analisa em off a performance desastrosa de Sarno como cortador de cana. Só que aí esbarramos em entrevistas didáticas, intermináveis, e a coisa desanda.
O ritmo esparramado de Sarno – que leva os entrevistados para a rua e, nos melhores momentos, prefere filmar o mundo que se movimenta ao redor deles – dificulta o acesso à narrativa. Mas, num diálogo inusitado com Filmefobia, o formato do longa se constrói com o acúmulo de tentativas. Nem sempre faz justiça à ambição, mas é, antes de tudo, um filme de cinema – artigo em falta neste festival.
Festival de Brasília | À margem do lixo
À véspera da cerimônia de premiação, o Festival de Brasília criou uma controvérsia dentro da controvérsia. Primeiro, o motivo de preocupação era o predomínio de documentários entre os longas-metragens. Agora, o que se discute é algo mais trivial: a qualidade dos filmes selecionados. Se o festival queria valorizar o bom momento do gênero documental, o tiro parece ter saído pela culatra – a precariedade dos filmes nos faz sentir saudade de uma boa ficção.
Aliás, tudo o que quero saber neste exato momento é os nomes dos filmes de ficção que ficaram de fora da mostra competitiva. O híbrido Sagrado segredo, excluído da disputa, continua à frente da maior parte das produções exibidas nas sessões noturnas do Cine Brasília. E, por enquanto, o melhor filme do festival é disparado Se nada mais der certo, do José Eduardo Belmonte.
Entre os curtas-metragens, a situação também não é animadora. Mas a seleção resultou menos desastrosa que a do ano passado. Por enquanto, o documentário Minami em close-up, sobre a Boca do Lixo, é o favorito tanto da crítica quanto do público. É um filme divertido, com a compilação de cenas bizarras que se espera de um projeto com esse perfil, mas que parece o prólogo para um longa-metragem (ironicamente, um curta com personagens mais interessantes que todos os apresentados nos documentários da mostra até aqui).
À margem do lixo | Evaldo Mocarzel | «
Até quem esperava pouco de Mocarzel parece ter se decepcionado com esta terceira parte da tetralogia iniciada com os bons À margem da imagem e À margem do concreto. No primeiro longa da série, Mocarzel discutia o roubo da imagem de moradores de rua. O tema foi desdobrado como um filme-guerrilha no segundo episódio (o clímax era uma invasão de sem-teto, filmada como uma seqüência de fita de ação) e, agora, serve de palanque para as reivindicações dos catadores de lixo de São Paulo.
A proposta inicial do projeto continua intacta: lançar uma luz de dignidade sobre tipos marginalizados. Mas o diretor – que parecia ainda instigado pela reflexão sobre a imagem em Jardim Ângela – dá alguns passos para trás ao fazer política de uma forma automática, como quem sai a campo para apurar mais uma reportagem de jornal diário. A estrutura do longa alterna depoimentos sobre a vida e origem dos catadores com seqüências que, inspiradas em Vertov, dão um quê abstrato ao processo mecânico de reciclagem. Nesses momentos, o diretor se liberta de um formato desgastado e faz cinema. Nos outros, frustra pela forma segura e unidimensional como encara um tema (a indústria da reciclagem) que merecia um debate mais amplo.
Festival de Brasília | Ñande Guarani
Se a seleção de longas-metragens do Festival de Brasília já provocava reações de desânimo antes da exibição dos filmes, já podemos afirmar com alguma certeza que os pessimistas não estavam errados. Faltam dois concorrentes na mostra 35mm (um Evaldo Mocarzel e um Geraldo Sarno) e, por enquanto, o clima oscila entre a mais decadente edição de Gramado e uma morna seleção do Festival Internacional de Cinema Ambiental de Goiás Velho.
Isto é: um festival nas últimas (e, para mim, não é nada engraçado ou divertido chegar a essa conclusão). A insatisfação é geral: está nas conversas de jornalistas, no bate-papo da praça de alimentação e até no júri. Aliás, atiraram uma batata quente para os jurados: como eleger a melhor atriz numa seleção que não apresentou nenhum papel feminino de destaque (e nem vai apresentar, já que os próximos filmes são documentários)? Mistério.
Tudo indica que o melhor longa da programação será mesmo Se nada mais der certo, de José Eduardo Belmonte, que passa hoje na Mostra Brasília (seleção de filmes da cidade excluídos da competição). O curioso é que, ontem, a sessão paralela exibiu o novo longa de André Luiz Oliveira, Sagrado segredo – que, ainda que irregular, provoca mais interesse que todos os filmes escolhidos como atrações principais (com exceção de Filmefobia).
O que aconteceu com o Festival de Brasília? Provavelmente um curto-circuito entre a organização da mostra, que se recusa a rever as regras do evento, e uma postura conservadora da seleção de comissão de longas, que privilegiou documentários puramente informativos que ficariam escondidos na grade da TV Sesc.
Sagrado segredo | André Luiz Oliveira | «
O projeto mais pessoal do diretor de Meteorango Kid caminha em pelo menos três direções: é um documentário sobre a via sacra da cidade de Planaltina (um espetáculo comunitário que mobiliza uma multidão todos os anos), um ensaio sobre religiosidade e a encenação da crise existencial do cineasta, que não lança um longa desde Louco por cinema (vencedor do Festival de Brasília em 1994).
Com apenas 70 minutos de duração, o filme é (perdoem o trocadilho) uma via crúcis que acumula informações de uma forma errática, mas quase sempre provocativa (é um documentário sobre a encenação da via crúcis ou sobre Jesus Cristo?). Para um longa maldito que demorou nove anos para ser concluído, o resultado não frustra as expectativas de ninguém: é caótico e bastante precário, todo manco (e escorrega na pregação de uma religiosidade introspectiva). Mas trata-se pelo menos de uma experiência cinematográfica arriscada, inclassificável, que por isso não deve ser tratada apenas como a egotrip (ainda que seja um pouco isso) de um cineasta em transe.
Ñande Guarani (Nós Guarani) | André Luís da Cunha | «
Um documentário que cumpre um papel muito específico (foi encomendado pelo Ministério Público para registrar as condições de vida dos índios Guarani) com função exclusivamente informativa. Segue a cartilha do formato com austeridade, mas sem a fluência que se espera de uma produção que quer apenas transmitir uma série de dados e depoimentos ao espectador. A situação dos índios é mesmo grave – mas não me peçam para explicar por que a comissão de seleção decidiu incluir este relatório maçante na mostra competitiva de um festival de cinema.
Festival de Brasília | Siri-Ará
Em 1993, um ano depois da minha chegada à capital, eu já era um freqüentador do Festival de Brasília. Na época, o cinema brasileiro ainda cambaleava das pancadas recebidas pelo governo Collor, que fechou a Embrafilme e a mostra servia de reflexo melancólico para a crise. Não havia muitas filas para as sessões e os filmes selecionados eram verdadeiras peças de resistência: precários, esqueléticos, eles pareciam celebrar a própria sobrevivência.
Foi exatamente naquele ano que assisti ao meu primeiro Rosemberg Cariry: A saga do guerreiro alumioso. Duvido que algum leitor deste blog dê alguma importância ao diretor cearense. No meu caso, um laço afetivo obriga que eu lembre do cineasta sempre que penso naquele cinema em frangalhos do início dos anos 90. Ele retornaria ao festival com Corisco e Dadá e Lua Cambará, mas foi aquela alegre alegoria do Nordeste, colorida e orgulhosamente pobre, que deve ficar na minha memória como uma espécie de marca d’agua borrada para o estilo de Cariry e para minhas primeiras experiências no festival.
Não consigo descrever muito do longa-metragem, mas tenho absoluta certeza de que ele era – apesar dos excessos visuais, e taí um diretor apegado a excessos – uma viagem espontânea, fluente, por símbolos da cultura regional. Se me perguntarem, direi que gosto do filme, mesmo correndo o risco de estar redondamente enganado (e não pensamos poucas bobagens aos 14 anos de idade).
Por que o flashback? É que retornei àquela sessão de 1993 ontem à noite, na sessão do novo filme de Cariry, Siri-Ará. Não por uma boa razão, infelizmente. Logo no início da sessão, abandonei o setor de poltronas reservado à imprensa e decidi assistir ao filme nas últimas fileiras, junto com o público que fez filas e comprou ingressos. A experiência não foi nostálgica nem nada – foi só triste.
Se o público já parecia minguado para uma noite de sexta-feira, a debandada no início da sessão deixou várias poltronas vazias e um clima de abandono que me atirou instantaneamente a 1993. O filme não ajudou: Cariry parece ter perdido o entusiasmo, a vibração desajeitada que ainda vive na minha memória (talvez como uma forma de miragem, não sei). Parecia até o fim da festa.
Otimismo é bom e a gente gosta, mas taí a realidade difícil que corre entre as poltronas: este Festival de Brasília, com exatamente esses mesmos filmes que estão na seleção, poderia ter ocorrido em 1993. Num dos piores momentos do cinema brasileiro. É verdade: estamos sim diante de um dos festivais mais sofríveis de todos os tempos.
Parece até Gramado. Sério.
Ainda faltam três documentários e podemos sim tropeçar numa obra-prima. Mas as uma simples comparação com qualquer outra edição da mostra deixará o ano de 2008 em séria desvantagem. O júri terá um trabalhão para escolher os vencedores, e por enquanto não vimos nenhum filme com perfil de ganhador (e, goste ou não de Baixio das bestas, é um longa que resolve várias questões básicas de conceito ou narrativa que faltam a cada noite da competição).
Sejamos sinceros, pelo menos uma vez (e a tradição que cerca o festival abafa esse tipo de opinião direta): dá até desânimo acompanhar as sessões. Há esperanças de surpresas, mas acompanhar uma mostra à 1993 em pleno 2008 deixa a sensação incontornável de que há algo muito errado em cena. Não com o cinema brasileiro, que vai razoavelmente bem. Mas com a organização do evento cultural mais importante da cidade. Deu tilt?
Siri-Ará | Rosemberg Cariry | «
Em Siri-Ará, Cariry dá continuidade ao resgate histórico e folclórico do sertão nordestino com um delírio que, em muitos momentos, chega a lembrar os momentos mais abstratos de Júlio Bressane. Na trama, um homem velho que retorna da Europa adentra o sertão cearense acompanhado de uma índia – e perseguido por guerreiros do reisado, banda de pífanos e alucinações que remetem a um Nordeste lírico, imaginário. Para tecer essa visagem, o diretor nega o convencional: o filme corre com a liberdade de um fluxo de consciência.
É uma idéia que poderia ter soado fascinante, mas o que continua a incomodar em Cariry é a forma pouco imaginativa (eis a ironia da coisa), e até tosca, como ele compõe alegorias – e alegoria não é para qualquer um. Apesar da secura da fotografia, é um filme que quase nunca deslumbra (as fotos de divulgação provocam mais impacto que qualquer cena do longa) e se arrasta numa narrativa truncada, que penaliza o espectador com uma lição enfadonha de história popular brasileira desde os créditos iniciais. É superior a Lua Cambará – mas sente o peso de traduzir uma premissa delirante com os recursos limitados de uma produção de baixo orçamento.
Festival de Brasília | Filmefobia
Passou um furacão aqui na cidade: ele se chama Filmefobia. Todo Festival de Brasília tem um filme que monopiliza os debates e divide opiniões do público e da crítica. Geralmente esse papel é assumido por um Júlio Bressane ou um Cláudio Assis. Com o filme de Kiko Goifman acontece algo parecido: muitos detestam, outros respeitam, ninguém sai apático das sessões.
Ontem à noite houve debandada do público e (previsíveis) vaias nos créditos finais. Os dois curtas que o antecederam também foram vaiados – e, como eram filmes que não rezavam a ladainha das histórias com início, meio e fim, dá para desconfiar de uma certa má vontade da platéia (que provavelmente preferiria assistir a mais um clipe do Dominguinhos).
Muita gente reclamou das cenas de tortura (é um documentário fictício que submete fóbicos a verdadeiras máquinas do terror) e alguns não compraram o jogo de Goifman, acusado de ter feito um experimento excessivamente cerebral. Eu gostei. Do longa (que, se não é um grande filme, tem idéias para três ou quatro edições do festival) e dos curtas (No 27 e Cidade vazia são um tanto singelos, mas que privilegiam as sensações dos personagens às obrigações de um roteiro fechadinho).
Por falta de tempo (e para não repetir o trabalho de uma manhã inteira, tenham paciência), aí vai uma versão reduzida e sutilmente modificada do textinho sobre Filmefobia que escrevi para o jornal (a versão integral sai amanhã vocês sabem onde).
Filmefobia | Kiko Goifman | ««
O diretor Kiko Goifman chama Filmefobia de “filme torto”. No contexto do 41º Festival de Brasília, seria melhor defini-lo como um artefato explosivo. Atirado em meio à polêmica sobre o predomínio de documentários na seleção da mostra, o primeiro longa-metragem de ficção do cineasta é um ataque despudorado – e cerebral – às certezas dos que teimam em delimitar fronteiras entre gêneros e artes. Gostar ou não desta provocação é o de menos – difícil mesmo é classificar um experimento que bagunça signos do horror psicológico e da comédia e, sem obedecer a regras de conduta, se deixa envenenar pelas artes plásticas, pela fotografia e pelo ensaio acadêmico.
Que filme é este? Documentarista experiente, Kiko levou para o terreno da ficção a crise de um formato que ele questiona a cada novo projeto (em 33, o cineasta adotou clima noir para narrar a própria jornada em busca da mãe biológica). Registro inacabado desse processo, Filmefobia provoca incômodo ao disparar um jorro de possibilidades narrativas e de perguntas que ficarão sem respostas.
Metido num jogo intelectual, cabe ao espectador a decisão de participar do debate ou de, incrédulo, simplesmente abandonar a sala (ou zombar da “pretensão” da premissa, sobre o medo e o status da imagem no mundo contemporâneo). Mais complicado é adotar uma posição de passividade diante de uma sucessão de grotescas (e às vezes cômicas) cenas de tortura catalogadas com o distanciamento de um relatório científico.
Em um determinado momento da trama, Zé do Caixão (José Mojica Marins) é convidado para dar palpites na direção do falso documentário que confronta um grupo de fóbicos com bizarros objetos de terror. O público não sabe se deve rir ou se irritar como o “mau gosto” do diretor, que aplica a descarga de angústia num elenco de cobaias apavoradas por borboletas, palhaços, botões e ralos de banheiro.
A falta de traquejo de Kiko com a ficção responde, para o bem e para o mal, pela estranheza do que bate na tela – do tom onírico acoplado às máquinas delirantes construídas pela artista plástica Cris Bierrenbach à queda pelo trash e pela escatologia. No tiroteio de artimanhas, não são poucas as que resultam gratuitas e pueris (como a agulhada no olho de Jean-Claude, interpretado pelo crítico Jean-Claude Bernadet, justificada didaticamente logo em seguida). O perfil de Jean-Claude, que serve de eixo para a narrativa, é quase sabotado por um roteiro que privilegia as divagações filosóficas do anti-herói ao mergulho numa imaginação doentia.
Mais decisivo é notar como, sob o barulho intencionalmente provocado pelo show de pavor, Kiko vence pelo menos um desafio: filma o medo sem condenar o público a uma sessão de sadismo.
Festival de Brasília | O milagre de Santa Luzia
Sabemos que um filme é um filme, certo? Quase. No Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, um filme é principalmente um evento.
Impossível entender esta mostra sem levar em conta a atmosfera que cerca a exbição dos longas e curtas-metragens. Quando cineastas destacam a importância do público do festival, eles não estão fazendo campanha antecipada para votos do júri popular. Em tese, o termômetro da torcida não deveria contar na avaliação do que é exibido na tela do Cine Brasília. Mas, em muitos casos, soma pontos valiosos para o sucesso de um candidato aos prêmios principais.
Por aqui há o filme que “o público adorou”, o filme que “o público detestou” e o filme que “o público achou difícil”. Antes que alguém pergunte “que público é este?” (e não perguntem a mim, já que só vou conseguir rascunhar duas ou três simplificações bestas sobre o assunto), deixemos claro que, para o bem o para o mal, taí uma audiência acostumada a tomar partido.
Tudo isso para informar que, no primeiro dia de mostra competitiva, Brasília viu um desses filmes que contam com apoio irrestrito e apaixonado da platéia. O milagre de Santa Luzia é um documentário que não difere tanto daqueles que encontramos na programação de canais de tevês por assinatura. O que não seria exatamente um problema, mas pode parecer esdrúxulo que uma produção com ambições tão modestas (um filme-catálogo sobre as adaptações sofridas pela sanfona em diversas regiões do país) tenha sido tratada pelo público como uma espécie de Santo forte.
O fenômeno da supervalorização de filmes é comum em festivais de cinema brasileiro, e Brasília, para não fugir à regra, costuma receber os convidados com carinho muitas vezes exagerado. Sempre foi assim. Este ano, a história se repetiu logo no primeiro dia.
Aos que criticavam o excesso de documentários na competição (o que nem é uma questão a ser discutida ao pé da letra, já o importante é a qualidade dos filmes), a primeira sessão da mostra competitiva parece ter encerrado o debate. O público adorou. Aplaudiu seis vezes durante a projeção. Mas me pergunto: não haveria no filme questões mais interessantes que a da aprovação popular?
Quem freqüenta o festival há muitos anos notou que poucas foram as edições recentes que selecionaram um documentário tão convencional. Mas esses foram silenciados pelo coro da multidão.
O milagre de Santa Luzia | Sérgio Roizenblit | «
Entendo a comoção provocada por depoimentos de artistas como Patativa do Assaré e Sivuca (e as conversas são boas). Mas, para um documentário que pretende uma viagem musical pelo Brasil, me incomoda como o filme vê o país por uma janela tingida em cor-de-rosa.
Ao final da sessão, o diretor disse aos jornalistas que não aceita a idéia de filmar as mazelas do país. Quer mostrar um “Brasil maravilhoso”. É um projeto que pode soar duvidoso (nas andanças por cidades do Nordeste, será que o diretor só encontrou belezas?), mas que também parece honesto. Digamos que Roizenblit seja o Breno Silveira dos documentários – um diretor que, ao lançar um olhar ingênuo para a realidade, nos convence pela sinceridade do discurso.
Então tá: O milagre de Santa Luzia é um filme simples e sincero. Correto em todos os detalhes. Que não trai o tom otimista do diretor. O que vejo como um problema sério é como o documentário se contenta em preencher alguns “requisitos básicos” e acaba se esquivando dos principais desafios que ele próprio sugere. A tal “viagem musical” se resume a uma agenda de entrevistas com personagens famosos e/ou extravagantes. E a história da sanfona é apenas esboçada, sem muitos pormenores (talvez isso entediaria metade da platéia, mas trata-se de um filme sobre a sanfona, oras).
Tem tudo para se transformar no filme-xodó do Festival de Brasília. Calculado e cuidadosamente fotografado, eis o “Brasil real” que – incrivelmente – foi abraçado com entusiasmo pela cidade que consagrou Amarelo manga e O invasor. Isso eu juro que não entendo.
Festival de Brasília | Abertura
Parece até tradição: não existe Festival de Brasília de Cinema Brasileiro sem polêmica. Mas algo estranho parece ter acontecido na edição deste ano. Antes, os filmes provocavam controvérsia. Agora, o que se discute é a seleção dos filmes.
Dos seis longas concorrentes na mostra de 35mm, quatro são documentários – os outros dois são filmes de ficção com forte inspiração do gênero. Filmefobia, de Kiko Goifman, é definido como “o making of de um documentário fictício”. Há um filme sobre a sanfona no Brasil. E outro sobre os índios Guarani.
Há quem defenda a comissão de seleção com o argumento (meio simplório) de que os documentários estão em alta e o festival soube captar essa tendência. Há quem a ataque com a suspeita de que o critério de ineditismo aplicado pela organização da mostra acabou prejudicando o público, que assistirá à rebarba de outros festivais.
Dá para concordar com um e com outro. Mas o que ouço por aí é que pouca gente tem esperança de encontrar um grande filme no cardápio da mostra. A ausência de cineastas conhecidos (e relevantes) e de temas minimamente curiosos chega a provocar frio na espinha. Ano passado fizemos filas para ver os filmes de Julio Bressane, Carlos Reichenbach e José Eduardo Belmonte. E agora? O máximo que temos é Kiko Goifman, um (imprevisível) Geraldo Sarno e um filme-jogo com 11 opções de desfecho.
Quem acompanha este blog sabe que (por motivos profissionais, mas também por uma quase obsessão) minha vida pára durante o Festival de Brasília. Até terça que vem, este será meu eixo. Reconheço que os quatro leitores deste sitezinho metido a bacana não estão nem aí para o novo longa de Rosemberg Cariry. Mas um festival (e este festival especialmente) nunca é feito só de filmes. Há também as insanas batalhas travadas entre repórteres e cineastas, para ficarmos num exemplo infame de uma história que costuma se repetir ano a ano.
Torço para estar enganado. É óbvio que o rapaz aqui, que enfrentará maratonas de trabalho enlouquecedoras, preferiria passar o tempo diante de bons filmes (a vida é breve). Só que nem sempre tenho esse tipo de sorte – e prometo não usar o blog como muro de lamentações. Quer dizer: vou tentar, ok?
São Bernardo | Leon Hirszman | « « « «
Se podemos esperar o pior possível dos longas em competição, a boa notícia veio logo na abertura do festival. Foi uma das melhores em muitos anos. Desconfio até que tenha sido a melhor de que participei (e freqüento a mostra desde 1992). Exibido em cópia restaurada, São Bernardo ganhou a pompa que faz por merecer. É uma obra-prima, e espero que seja relançada também nos cinemas (o DVD chega às lojas esta semana).
O filme de Leon Hirszman, adaptação da obra de Graciliano Ramos, tem um quê premonitório. É uma alegoria para as trevas do capitalismo (muito antes de Sangue negro, o fazendeiro Paulo Honório é o self-made man bruto, mesquinho, condenado à solidão) que usa a narração em off do protagonista como um contrponto para as imagens de miséria e submissão provocadas por ele (muito antes de Tropa de elite, taí um filme cuja voz se opõe à do narrador).
No início da sessão, a filha de Leon, Maria Hirszman, disse que se tratava de um filme “atualíssimo”. Está coberta de razão. Mas não é um filme que se mantém vivo apenas como reflexo dos jogos de poder na vida brasileira (e, se cumprisse apenas esse requisito, já seria formidável). O uso de planos longos e silêncios como recursos para abafar e assombrar o discurso do protagonista é uma lição para a onda de filmes ‘de arte’ que abusam de imagens lentas, mas sem estofo.
Enfim: uma preciosidade que deve ser redescoberta urgentemente. E um filme de ficção que é uma aula para os documentários sobre a vida brasileira que vemos por aí.
O primeiro dia
Meu apartamento é muito engraçado. Não tem parede entre a cozinha e a sala, não tem box no banheiro (um banho de ducha equivale a um dilúvio), não tem fogão, não tem mesa nem espelho. Nenhum espelho. Saio do chuveiro e só deus sabe o estado do meu penteado.
Ainda assim (e talvez por causa disso tudo), entrei de manhã cedo e ainda não consigo sair daqui de dentro. Por mim, nem sairia. Não consigo me mover. São oito da noite. Logo no primeiro dia de mudança, ganhei um lar. Eu fico. Digam ao povo que fico.
Escrevo isso ainda impressionado, maravilhado com a forma como este apartamentozinho esquisito me ganhou. Foi no fim da tarde, por volta das 17h. Antes disso, nada ia bem. Eu estava no inferno. E um inferno econômico – que, descobri, é o pior tipo de apocalipse.
Parecia até piada. No mesmo dia, descobri que meu cartão de débito novo ficaria pronto em nada menos que um mês (enquanto isso, tento me acostumar com os avisos de erro de leitura nos caixas eletrônicos), que a revisão do carro sairia por uma soma desesperadora, que o seguro do automóvel vence segunda-feira e que (notem como a coisa só piora) uma escrivaninha mais ou menos decente sai por uns R$ 700. Decidi comprar uma mesa. Uma mesa e nada mais que uma mesa.
Comecei o sábado às voltas com a necessidade de organizar os trabalhos da rapaziada do caminhão de mudança e, mais ou menos ao mesmo tempo, fazer as compras de tudo o que é essencial para o meu dia-a-dia (no tapa, acabei descobrindo o que é essencial). E isso tudo num feriado (só descobri a existência da data comemorativa ontem à noite).
Durante a manhã, desejei sinceramente que o apartamento explodisse. Evaporasse. Seria uma boa desculpa para eu me livrar da decisão de morar sozinho e voltar para o chamego das asinhas dos meus pais. Pensei tanto nisso, e só nisso, que quase não dormi. Esqueci de todo o resto. Esqueci até que eu tinha um blog. Quando somei todos os meus gastos, notei que era um homem falido. Pensei em pedir desculpas para a mulher da imobiliária e desfazer o trato. “Posso assinar o contrado ao contrário?”, e era tudo o que eu queria perguntar.
Acho que foi o orgulho que me fez seguir adiante. Daí que, por volta do meio-dia, eu já estava arrumando meu novo apartamento – como quem joga as malas desejeitadamente na cama de um quarto de hotel. Desinteressado, fiz de conta que não era comigo. Aprendi todos os serviços domésticos em meia hora (algo digno de Guinness Book?). Às 13h eu estava limpando o chão com Veja, um esfregão e um pano encardido. Não sei se eu daria uma boa empregada doméstica, já que derrapei no banheiro e dei de joelho no vaso sanitário.
Quando vi a mini-montanha de caixas no meu quarto, pensei em jogar meus bens mais preciosos (i.e, CDs e DVDs) pela janela. Mas a janela é tão pequena que não serviria nem para o suicídio de um menino de três anos de idade (não que eu tenha pensado na hipótese, mas sei lá, Freud explica, talvez eu tenha me sentido imaturo e impotente como uma criança pequena, de qualquer forma a imagem do petiz suicida me veio à cabeça).
No fim da tarde, depois de ter limpado a sala, o banheiro e o corredorzinho tosco que não leva a lugar algum (mas que dá um bom escritório!), decidi ouvir música. Meu aparelho de som estava ali, jogado no chão (não há estantes por enquanto). Quer decisão mais corriqueira? Saquei meu CD-talismã e, em quinze minutos, o apartamento nasceu de novo. Era outro. Mais amplo, confortável. Meu quarto não parecia ser o quarto de outra pessoa. Não parecia um hotel. Aquela decoração banal dizia muito sobre mim.
Para aproveitar o momento, organizei com lentidão os pratos, os garfos, os copos e o abridor de garrafa. Dobrei as toalhas de banho, ajeitei o tapete da cozinha e o pano de prato. Eu precisava de tempo para entender o processo. O que havia acontecido? Acho que nada. Acho que o resultado da mudança, que parecia impossível, só ele, me mostrou que ainda posso assombrar as pessoas com grandes surpresas – no caso, a pessoa era eu.
Juro que quase caí no choro enquanto guardava o suco de laranja na geladeira (!).
Agora, aqui, neste momento, digito estes parágrafos sentado num tapete velho, apoiado na mesinha que servirá para o café da manhã, o almoço, o jantar, o jogo de baralho. Chove horrores. E é a quinta vez que ouço o mesmo CD. Não sei o que faz com que eu me sinta o homem mais realizado do mundo. Mas é isso. É só mais um sentimento engraçado que não dou conta de explicar.
007 – Quantum of solace
Quantum of solace, 2008. De Marc Forster. Com Daniel Craig, Mathieu Almaric, Olga Kurylenko e Judi Dench. 106min. «
Há quem diga que esta é uma seqüência que segue a linha de Cassino Royale, o episódio que retornou às origens de James Bond para redesenhar o herói com tintas menos fantasiosas. Tudo o que vi foi uma franquia andando em círculos.
Eu, que já não me interesso tanto pelo anterior (um Bond sem canastrice e com sede de vingança é um agente secreto qualquer), fiquei sem entender o rumo tomado por este Quantum of solace, que tem algumas seqüências de ação tão mirabolantes quanto as que víamos nos tempos de Pierce Brosnan (há uma perseguição de jatos que chega a ser cômica, e no bom sentido). Onde querem chegar?
O Bond de Daniel Craig tem um dilema moral: truculento, é daqueles justiceiros que preferem matar a prender. Ele sai à caça dos bandidos que mataram a mulher que amava – no caminho, esbarra numa organização criminosa tão poderosa que provavelmente foi responsável pelos atentados à Torres Gêmeas e pelo assassinato de John Lennon. O bando liderado por um hilariante Mathieu Almaric é digno de revistas em quadrinhos – e daquelas que a gente lê sem levar muito a sério.
Os planos dos malvados incluem patrocinar uma ditadura na Bolívia e se apossar de uma importante fonte de abastecimento de água da América do Sul. Não menos que isso. O roteiro (co-escrito por Paul Haggis) tenta nos convencer de que não vive com a cabeça nas nuvens: o vilão é um ambientalista fake que prejudicará habitantes pobres de regiões carentes do mundo subdesenvolvido. Ou seja: num mundo de trairagem globalizada, Bond agora tem consciência social.
O que, para uma seqüência pautada por cenas de ação, não conta muito. Os conflitos psicológicos do personagem até existem, mas por causa disso ele não deixará de desfilar com ternos estilosos nem de seduzir as bondgirls mais desejadas (e atormentadas) do planeta. É a velha ladainha dos que mudam para permanecer do mesmo jeito: Quantum of solace acaba revelando que o verniz de Cassino Royale não grudou. Bond continua o que sempre foi, só que sem o bom humor e a ingenuidade de (alguns bons momentos de) antigamente.
Agora, se a idéia é explodir carros e prédios, que escolham um cineasta mais confortável com esse tipo de espetáculo. Marc Forster, que para mim ainda é um enigma (qual o elo entre A passagem e O caçador de pipas?), não parece ser o mais indicado para bancar um Bond tão perturbado quanto anabolizado. Quantum of solace não é uma montanha-russa tola nem um thriller com tique nervoso. Trata-se apenas de uma superprodução empenada que, como este herói em crise, não encontra um sentido para a própria existência.
Se meu apartamento falasse…
… ele diria às paredes: “que inquilino mais verde!”
Hoje à tarde recebi as chaves do apartamento onde vou morar a partir de sábado. Foi como se eu tivesse vencido um Pulitzer. “Está tudo certo, senhor. O aluguel vence todo dia trinta”. E eu: “Com tudo o que está acontecendo no mundo, desejo paz a todos nós.”
Sobre minha cabeça, o brilho de um holofote imaginário.
“Esta aqui é a chave da porta. Esta é a da caixinha do correio. Este é o controle da garagem. Esta é do carrinho de compras.” E eu, uma pilha de nervos: “Explica de novo?”
Depois fui ao supermercado comprar o essencial: uma lata de lixo. E só. Deu branco, não sei mais o que é essencial.
É mais fácil do que parece. Mas também é difícil. Por enquanto, essa história de morar sozinho virou minha rotina do avesso. Esqueça os resorts: passei minhas férias mergulhado em contratos, cópias de documentos, cartórios, vistorias e dilemas financeiros complicadíssimos (qual a melhor forma de parcelar uma escrivaninha? Quantos DVDs terei que sacrificar para pagar a conta de luz?). Tem mais: hoje o dia foi dedicado a encaixotar tudo o que eu havia desencaixotado há três semanas, quando me mudei para o apê da minha avó. Um processo lusitano, mas que, espero, me transformará num encaixotador de mão cheia.
A inexperiência, no caso, atrapalha tudo. Taí um ramo onde os iniciantes não têm sorte nem vez. Fizeram a vistoria e eu nem sabia que esse tipo de procedimento existia. “Olha, você precisa checar se está tudo certo com o apartamento. Tem que pedir pra religarem a luz. Liga no 0800. Depois tem que agendar a mudança lá na portaria”. E eu ainda impressionado com a água que pingava da torneira. Meu apartamento tem uma torneira, e dela sai água (Quem diria, Tiagão, quem diria).
Assim que assinei o relatório da vistoria, caiu a ficha: fiz um péssimo negócio, aluguei o imóvel mais tenebroso da região e ficarei enclausurado lá dentro por no mínimo doze meses. Depois tentei ver o lado positivo da situação toda. Não encontrei resposta. Eu e minha nova vida. Eu e a liberdade. Eu e os gastos mensais. Eu e a conta do supermercado. O sol bateu na minha testa como quem desafia: agora, meu filho, agora aguenta.
Na certa as paredes sorriram. Com sarcasmo.
R.E.M. em São Paulo
Este não foi o melhor show do ano: foi um dos shows da minha vida.
Por isso mesmo, vamos com calma. Que ninguém espere deste post um relato minimamente distanciado da apresentação do R.E.M. na Via Funchal, em São Paulo, na noite de segunda-feira. Não dá. Foi um daqueles espetáculos impecáveis que conto nos dedos da minha mão direita.
Mas vocês deveriam acreditar um pouco em mim. Pelo menos um pouquinho. Este talvez seja o melhor exemplo de uma banda com muitos anos de estrada que nega a auto-indulgência dos desfiles de hits. Que imprime novos conceitos a antigos sucessos. Não é detalhe. O Jesus & Mary Chain poderia aprender com eles: o R.E.M. fez um show pulsante, contemporâneo, carregado de urgência – o espelho de ídolos que olham para o passado, mas fazem questão de habitar o tempo presente.
Note as imagens do telão, uma sobreposição de flashes fora de sintonia (e uma aula para Kanye West). Elas dão o clima da apresentação: mescla letras de música e videoclipes, cenas da platéia e slogans a favor de Obama. É um caos visual, frenético, que chega a lembrar a idéia que havia por trás da turnê Zoo TV, do U2. ‘São centenas de canais de tevê, mas nenhum que gostariamos de ver’, dizia Bono. Mas Michael Stipe fala de um “novo mundo”, canta sobre pessoas que “não se importam” (no hit mignon Supernatural superserious) e lança o desafio: “nossos shows são reflexos de nossas opiniões políticas. Escolhemos estas músicas de acordo com o que estamos sentindo no momento.”
Aposto que foram poucos os fãs que tentaram decifrar as conexões entre Drive, Losing my religion, Everybody hurts, Imitation of life e Barack Obama. Eu estava perdido nas minhas memórias de adolescente, e num determinado momento parecia até que aquele show tinha sido planejado para a minha geração, que acompanhou o R.E.M. a partir de Out of time. Foram nada menos que cinco faixas de Automatic for the people (entre elas, a obra-prima Sweetness follows) e três de Monster (Let me in, escrita em homenagem a Kurt Cobain, ganhou uma surpreendente versão acústica). O que eles querem com isso?
Talvez nada muito complicado. Ao vivo, o R.E.M. é um animal em extinção: uma banda madura o suficiente para interpretar e modelar o próprio repertório por caminhos nada previsíveis (mesmo quando tocam as músicas que todos querem ouvir). Quem imaginaria que as canções de Accelerate, quase anêmicas, combinariam tão bem com as de Automatic for the people? E que as de Monster, como I took your name, parecem extremamente sofisticadas perto das novas faixas? Eu não tinha pensado no assunto.
Se o R.E.M. é um dinossauro do pop (e não no mau sentido: é que hoje simplesmente não há habitat para bandas tão grandes), como fica Michael Stipe? Taí um vocalista completo, quase ultrapassado (até no discurso político, em desuso), um mestre de cerimônias que toma as rédeas do espetáculo sem se deixar vencer por ele – ele dialoga constantemente com o público, brinca com a pose de superstar, tem consciência absoluta da dimensão do próprio ofício (que Kaiser Chiefs tome anotações).
Desde New adventures in Hi-fi, não há um único álbum do R.E.M. capaz de ilustrar o imenso potencial criativo da banda ou o gênio de Michael Stipe. No palco, tudo passa a fazer sentido. O grande momento do show, o que sintetiza o trio, é Man on the moon: versos maravilhosamente literários e lotados de referências pop e políticas (que citam Elvis Presley e Andy Kaufman) cantarolados com facilidade por uma multidão. Se não estivessemos tão saturados de Losing my religion e It’s the end of the world (as we know it), notaríamos nessas músicas essa mesma qualidade: mesmo nos momentos mais acessíveis, o R.E.M. nunca cobrou barato do público (e não falo dos R$ 200 cobrados pela produção do evento), nunca se fez de bobo.
Juntas, as 25 canções do set list também sublinham o gosto da banda pelos momentos mais emotivos, delicados, com melodias que estão à altura do lado cerebral das composições (e essa batalha o R.E.M. trava desde o primeiro disco): Everybody hurts, uma das letras mais simples deles, é também a mais devastadora. O impacto de Drive se mede pelo acúmulo de versos que se repetem feito um mantra. E The one I love chega a destoar do conjunto verborrágico de Document, um álbum que, apesar de tão político, foi pouco lembrado no show (e não teve nada de Around the sun, felizmente).
Sem o neon da turnê de Up, o R.E.M. de Accelerate é preto no branco: uma banda lúcida, perene e relevante num mundo pop que devora a si mesmo a cada frame (atenção ao telão!). De um monumento, impossível cobrar mais que isso.
PS: Tudo isso para tentar convencê-los de que não caí no choro em What’s the frequency, Kenneth? à toa, ok?
No Planeta Terra
1 | Emergência no Planeta Terra: com quantos decibéis se faz um festival de rock?
2 | O lugar era jóia (a Vila dos Galpões, com um visual underground-de-mentirinha que combinou com a proposta do evento), os convidados prometiam, o público compareceu (15 mil pessoas), mas só faltou um detalhezinho: o som. O som, minha gente. O som, meu pai. Como puderam esquecer disso? Onde foi parar o som?
3 | No palco principal, onde se apresentaram Jesus & Mary Chain, Offspring, Kaiser Chiefs e Bloc Party, as performances soavam tão poderosas quanto uma rádio AM com transmissão abafada. Já o galpão indie, de Spoon, Breeders e Animal Collective, com volume altíssimo, era um pedregulho: distorções mil, sutileza zero. Como faz?
4 | Resultado: sair de um palco em direção ao outro provocava uma espécie de choque térmico. Precisei de uma média de dez minutos para me adaptar à atmosfera de cada ambiente. E ainda não me conformo de ter visto um show de Animal Collective tão tecnicamente desastroso.
5 | A pergunta que não nos deixa dormir: na batalha dos festivais, ganhou o Planeta Terra ou o Tim? Pra mim, deu empate. O Tim pode ter nos decepcionado com ingressos caríssimos e atrações canceladas. Mas pelo menos havia conforto e, principalmente, um som espetacular (exceção: Kanye West). Se bem que um festival não deveria se destacar por cumprir requisitos técnicos que são básicos em eventos musicais. Isso se chama respeito ao público. Simples desse jeito.
6 | Aos shows, em ordem de preferência – e rapidinho, na pressa, como de praxe.
7 | Spoon | Palco Indie | ****
Nos álbuns, o Spoon pode parecer a banda independente mais econômica dos Estados Unidos. No show, a precisão das canções (que alternam momentos dançantes com pirações psicodélicas) ganha um elemento adicional: uma performance simples e emocionante, de arrepiar. Britt Daniel pode não ser o band leader mais acrobático (vide Kaiser Chiefs), mas defende cada criação com o orgulho de um pai coruja (e deixa claro que o álbum favorito dele, para desespero deste fã de Kill the moonlight, é Gimme fiction). As notas da introdução de The way we get by, sozinhas, valeram a noite: a repetição sublime de poucos acordes; o melhor show do ano.
8 | The Breeders | Palco Indie | ***
Uma grande banda de garagem sabe que nenhum show deve ser levado excessivamente a sério. Kim e Kelley Deal fizeram do palco do Planeta Terra um balcão de bar – e sorte de quem foi convidado para a bagunça. Em meio ao clima de despretensão, uma surpresa: as faixas dos dois álbuns mais recentes da banda ganham o peso merecido (apesar da vergonha alheia de acompanhar o bis cantado em espanhol) e os clássicos de Last splash renascem sujinhos e deslumbrantes. Cannonball foi a catarse indiscutível da noite – mas No aloha despedaçou de vez o coração dos fãs. Alguns pediram Kim Deal (com forma física à Magic Numbers) em casamento. Com toda razão.
9 | The Jesus & Mary Chain | Palco Principal | **
Sabe aquela banda que estourava caixas de som nos anos 80 com uma parede quase insuportável de distorções? Ela não assombra mais ninguém. E precisa? Para os fãs, este foi um dos melhores shows de todos os tempos (se bem que qualquer versão de Teenage lust será comovente). Para o restante do público, quase um aperitivo. Um resumo de melhores momentos da carreira, surpreendentemente clean e agradável, que deve ter deixado um ponto de interrogação plantado no cérebro de quem ainda se espanta com Psychocandy (ou com o ruidoso Munki, o último deles). Mas com um som pífio daqueles, só nos restou fantasiar aquele mesmíssimo show (digno, honesto, íntegro etc) com algum peso.
10 | Animal Collective | Palco Indie | **
Eu esperava qualquer coisa do Animal Collective. O que recebi foi bem isso: qualquer coisa. Nocauteados por uma confusão sonora (uma falha técnica que pouco tem a ver com as experimentações do grupo) que deixou o público zonzo, a selvageria da fase Strawberry jam soou ainda mais agressiva, quase impenetrável. O rolo compressor azedou a doce Fireworks e provocou contrangimento logo na primeira canção, interrompida bruscamente. Ainda assim, dá gosto ver uma banda que faz o que bem entende, com liberdade absoluta, com nojo das fórmulas do pop rock. Prova disso é que abriram o show com Comfy in nautica, do álbum solo de Panda Bear, e terminaram com uma batucada não menos que infernal.
11 | Kaiser Chiefs | Palco Principal | **
O oposto do Jesus & Mary Chain: uma banda populista – quase uma sessão de aeróbica – que sabe como arrancar o último suspiro de entusiasmo de uma platéia cansada. Um show bastante eficiente e alegre, apesar do som, mas que confirma o Kaiser Chiefs como uma banda divertida, esforçada (quantos hits eles têm!) e só.
12 | Mallu Magalhães | Palco Principal | **
Menina precoce: depois de passar por uma fase folk à The freewheelin’ Bob Dylan, Mallu rompe o namoro e sai à estrada com sua The Band (e olha lá, ela está usando uma cartola!). Dou seis meses para que ela grave um desiludido Blood on the tracks e, em crise depressiva, enfrente os fantasmas da existência numa espécie de Time out of mind. Continua cantando lindamente bem, apesar do crescimento acelerado e desgovernado.
13 | Foals | Palco Indie | **
Só vi as três últimas músicas, mas foi o necessário: uma banda ainda tão nova, mas já disposta a não ser engolida por obviedades do indie rock. Estão a meio caminho entre Bloc Party e Battles – mas ainda não dá para saber de que lado vão sambar.
14 | The Offspring | Palco Principal | w/o
Vi as três primeiras músicas. Em Come out and play, entendi por que, naqueles estranhos anos 90, eu preferia Pavement e Breeders. Como disse um colega meu, californiano demais.
15 | Bloc Party | Palco Principal | w/o
Duas músicas e a definição viva para a palavra fake.
16 | E hoje à noite tem R.E.M. Espero que o som inconstante da Via Funchal não me decepcione mais uma vez. Seria o fim do mundo (como o conhecemos). Será que rola Everybody hurts?