Solidão

Superoito, mesa pra dois

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Estava eu salinha de espera da oficina mecânica, virando as páginas de uma revista de celebridades, quando li a notícia: depois de muitas tentativas infelizes de subir ao altar, a apresentadora de tevê finalmente decidiu acertar ponteiros com Santo Antônio. A modelo se casaria sim, em breve, graças ao bom pai, mas com uma condição – ela e o marido, um empresário que preferiu não conversar com a repórter, morariam em casas separadas.

A jornalista, e todas são curiosíssimas, quis saber: “Casas separadas? Como é isso?” Sempre alerta, a atriz respondeu com frases prontíssimas. Pregou uma lição sobre como, no mundo moderno, a convivência pode minar a individualidade, principalmente entre pessoas atarefadas, bem sucedidas e que aprenderam a gerenciar a solidão.

Gostei da palavra. Gerenciar. Pensei ali, enquanto o mecânico virava meu carro pelo avesso: soa poético quando as pessoas usam termos empresariais para tratar do cotidiano. Um lirismo frio, metálico, mas que me parece contrabandeado de um bom filme do David Cronenberg. De qualquer forma, acho que já comecei a fugir do assunto que é central a este post.

Voltemos então à revista, à celebridade, à apresentadora de tevê, à modelo, à atriz (talvez cantora). Num certo momento, desviei minha atenção do texto (que começava a ficar cansativo, uma repetição de comentários otimistas sobre isso e aquilo) e mirei as fotos. Parecia haver algo forçado, artificial nelas – e aqui não falo em maquiagem, penteado ou efeitos digitais.

A mulher sorria para a câmera, radiante com a novidade. Um casamento. Uau. Não acontece todo dia. Mas, ao mesmo tempo, notei algo desconfortável naquelas imagens. A estrela independente posava em quartos de hotéis, restaurantes, bares, ruas parisienses, cafés. Mas estava sempre sozinha. Sempre sozinha. E, se você reparasse no olhar azulzinho da moça, notaria que algo a incomoda.

Seria isso? Algo a incomodaria de verdade? Havia, de fato, uma distorção naqueles flashes. Mas seria o caso de uma lente equivocada? De um filtro escolhido com desleixo? Ou apenas a percepção de um leitor que queria encontrar algo incômodo no olhar daquela celebridade?

A última opção me parece a mais verdadeira. Para minha sorte, o mecânico mostrou extrema agilidade e terminou o serviço em pouco mais de 15 minutos. Eu ainda teria a manhã inteira de segunda-feira para pensar em outras frivolidades (arrepiantes) antes de pegar o avião para São Paulo.

É uma viagem que faço com freqüência. Há cinco meses, vivo um namoro em casas separadas. Talvez por isso eu me identifique um pouco com a noiva famosa da revista. Eu moro num apartamento em Brasília. Ela mora num apartamento em São Paulo.

Entendo que, no meu caso, são casas extremamente separadas. Uma relação menos simples do que aquela que a modelo/atriz/cantora tenha projetado. Ela provavelmente imaginou o formato mais recorrente dos casamentos modernos: ela se acomoda num loft estilo Sex and the City (cheio de sapatos e laptops róseos) enquanto ele, do outro lado da rua, convida os amigos empresários para tomar um uísque enquanto jogam sinuca e baralho num apê todo acinzentado, estiloso e com a aparência de um Hard Rock Café.

Ok. É um sonho possível. Mas talvez ela não tenha a cogitado que, numa relação amorosa, a distância pode exercer dois movimentos simultâneos e opostos: arejar o dia-a-dia, mas corroer a intimidade. Prolonga o amor (cada encontro soa como um recomeço, eis o clichê), mas provoca uma sensação de afastamento e desamparo que pode ser fatal.

Amor à distância: eu poderia escrever um livro sobre o tema. E seria um livro cheio de contradições e questões obscuras, sem certezas, mais ou menos como uma biografia de banda de rock dos anos 70. Não há existe uma única verdade, uma única linha narrativa, uma regra que resolva todas as equações (até porque os integrantes da banda estavam chapados demais para lembrar de alguma coisa).

Mas este não é um post sobre amor à distância. É, sim, um post sobre convivência. Sobre dividir a casa, apesar do mundo moderno, da globalização, da convergência tecnológica e das revistas de celebridades.

Minha experiência nesse ramo é, aviso logo, quase nula. Levei um namoro longo em casas separadas (mas a convivência era mais intensa que a de muitos casais grudentos), depois morei sozinho por um período curto e, em seguida, engatei um namoro interestadual. Ainda não testei a ideia de compartilhar, na real, um lar. Na verdade, admito que eu ficava um pouco nervoso com o conceito, com o modus operandi da coisa.

Descobri há pouco que, quando eu pensava sobre essa perspectiva de mudança, o que me perturbava era o medo de perder algo. Algo. Algo que eu não sabia o que era. Não exatamente a minha liberdade, ou a minha individualidade. Não estou falando em termos abstratos. Eu temia o custo dessa espécie de negociação. Porque meu professor de economia ensinou que havia um custo para tudo. E certamente eu teria que abrir mão de muitas coisas, de manias e hábitos, para ter a coragem de pedir uma mesa para dois.

Foi uma aflição parecida àquela que me invadiu quando deixei a casa dos meus pais. Na época, eu suspeitava que seria uma transição terrível. Que seria um trauma. Lembro que eu não queria me desfazer de nada. Não queria perder a minha cama, o meu computador, a minha conexão banda larga, a estante dos meus livros, meu armário, o jardim da casa, meus pais, minha irmã, os cachorros, os sofás, o aquário feioso. Eu sentia que estava fazendo uma escolha equivocada. E que eu iria pagar um preço alto, talvez alto demais, por aquela odisseia.

Acabou que, mais ou menos como numa fábula urbana (e moralista, boboca), o herói da história entendeu que, além de necessária, a mudança revelou algo profundo: que o medo de mudar, de abandonar o conforto e seguir em frente, talvez tenha feito com que perdesse tempo, que adiasse por teimosia a estação seguinte. Quando morei sozinho, percebi que meu quarto era pequeno demais. E que, apesar de confortável, o ninho familiar estava transformando um adulto num crianção.

E, no mais, era tempo de crescer.

Hoje percebo que meus planos são outros. Namorar à distância atiçou em mim um desejo totalmente contrário ao da celebridade da revista: o que mais quero é a experiência de viver numa mesma casa. É isso aí. Estou na contramão da contemporaneidade, eu sei, mas é mais forte do que eu. Por enquanto, essa é uma meta difícil (ainda não sabemos como estreitar a distância que nos afasta, e seguimos em cidades separadas, trabalhando um aqui e o outro lá). Mas uma meta que existe. E, filosoficamente falando, me parece muito viável.

E ela começa aqui, agora, mais ou menos enquanto escrevo este texto.

Há quem decida investir 15 dias de férias em pacotes turísticos ou retiros espirituais. Eu preferi usar o recesso para conviver com a minha namorada, dividir uma casa, esboçar uma rotina, dar o primeiro passo. Depois de cinco meses, sinto que estamos finalmente sedimentando nosso namoro. E me parece um bom começo. Nesta primeira semana, notei que eu estava novamente enganado em relação às minhas angústias: não sinto como se estivesse perdendo algo. Não é como se eu tivesse trocado minha liberdade por outro bem. Não. É diferente disso.

Ontem à noite conversei com minha namorada sobre a situação. Ela me perguntou se me sinto em casa. “Tá tudo bem, Tiago?” (ela é sempre muito atenciosa, e isso me mata de alegria). E eu disse que sim, é o que sinto. Estou em casa, estou bem, estou feliz. Depois ela contou que, num período recente, levou muito a sério a ideia de que o certo mesmo seria apostar numa relação em casas separadas. “O ideal, imagine isso, seria morar no apartamento ao lado. Ele ficaria sempre lá, perto, mas eu poderia dormir sozinha quando estivesse de mau humor”, ela explicou. Um bom argumento, na minha opinião.

Talvez ainda seja cedo para tirar alguma conclusão sobre a experiência. Uma semana é muito pouco. E, depois de tanto tempo namorando à distância, o conforto de um lar compartilhado se tornou, para mim, insuperável. Não sou parâmetro para nenhum casal. Meus sentimentos estão desregulados. Quando ela chega do trabalho e preparamos hambúrgueres, sinto que vivo alguns dos momentos mais felizes da minha vida.

Talvez eu seja um sujeito apto à vida de casal, ao confinamento amoroso. Faço concesões com facilidade, ainda que eu saiba agora (e mais do que nunca) que não se deve fazer concessões em excesso. Entendo que, nos momentos de crise, dividir um apartamento pode ser sufocante. Vi dezenas de filmes sobre o assunto. Conheço casais que, em espaços abertos, não se aguentam. Imagino como deve ser torturante para eles o ato de recolher a toalha que foi largada por descuido em cima da cama. Ou de baixar a tampa do vaso sanitário.

Mas o ceticismo dos que alertam sobre os perigos da convivência também deveria valer quando se trata das relações em casas separadas. Ou não? Porque a distância, mesmo que mínima, não bloqueia o fim do amor, não ameniza as discussões, o destempero. Sei de casais que vivem em cidades separadas há muitos anos, mas se encontram pouco para não se agredirem. Sei de casais que se amam quando estão juntos, mas que precisam viver aos amassos com outras pessoas. Acontece.

Nessa selva, o único exemplo que tenho é a minha história. As minhas histórias. E, até agora, elas me mostram que o medo de conviver às vezes pode ser pior, mais massacrante que a convivência em si. Deve parecer uma lição barata, muito típica dos livros de autoajuda e das revistas de fofocas, mas ela me traz algum alento.

Porque, para alguém que se acostumou à solidão (mas não se conforma com ela), existe algo muito poético, muito emocionante naquele momento em que ela deita no sofá sem pentear o cabelo, com o pijama antigo, girando a colher dentro de uma xícara de chocolate quente. Isso é intimidade. Para mim, isso é o paraíso.

Yulia | Wolf Parade

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Com certo atraso (justificado pela dificuldade de encontrar uma versão decente no YouTube), eis o clipe novo do Wolf Parade. Um clipaço, aliás. Em Yulia, dirigido por Scott Coffey, um cosmonauta deixa a atmosfera enquanto uma mulher o acompanha pela tevê. Ou: de amores e viagens espaciais.

Lisbon | The Walkmen

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Viajei a Lisboa certa vez, mas é como se eu ainda não conhecesse a cidade. É essa a sensação: estive lá, mas não estive. 

Uma viagem curta demais (dois dias), mas lembro que acordei cedo numa manhã de sábado para bater perna. Outro dia sonhei com aquela paisagem surreal: prédios centenários anexados a shoppings ultramodernos, escolas muito simples diante de consultórios médicos pré-históricos, ruelas curvilíneas que pareciam não levar a lugar algum (ou nos trazer de volta ao ponto de partida, o que me parece ainda mais estranho). Se eu pudesse, ficaria caminhando sem parar, indo e voltando e indo mais uma vez. 

É uma cidade que parece conciliar algo do passado e algo do presente (e do futuro?), mas que também parece solta no tempo, flutuante, desinteressada em atualizar-se ou em justificar a própria nostalgia. Algo assim.

Peter Bauer, o organista do Walkmen, contou numa entrevista que o novo disco do quinteto de Nova York se chama Lisbon muito por conta de um sentimento associado àquela terra, uma ideia que não consegue descrever. “A cidade captura algo que tem a ver com a nossa música”, resumiu (sem resumir coisa alguma).

O engraçado é que eu, que conheço pouquíssimo da capital portuguesa, consegui sentir aquele meu breve passeio por Lisboa quando ouvi o disco. É como se aquelas imagens, que resistem com muita força na minha memória, entendessem perfeitamente os objetivos de uma banda que faz um tipo de música pop simultaneamente contemporâneo e antiquado. Mais importante: uma música que integra naturalmente o hoje e o ontem, sem esforço, sem refletir muito sobre o assunto.   

Experimente transportar essas 11 músicas (sem a produção ruidosa tipicamente novaiorquina, é claro) para os anos 1950: elas soam como standards bastardos do cancioneiro americano. Great oldies. Desde You and me, o disco anterior, o Walkmen encontrou uma sonoridade em sépia, envelhecida e melancólica, que pode deixar uma certa impressão de familiaridade: já ouvimos isso em algum lugar, em outro tempo, em uma jukebox empenada, (talvez) dentro de um sonho.

Se existe um personagem escondido em todas as canções do disco, ele é um homem bêbado e aflito que, numa madrugada congelante, entra em um bar e geme velhos clássicos de Elvis Presley e Roy Orbison. 

Lisbon é uma continuação de You and me (quase um You and me too), e não encaro isso como uma notícia ruim. Sim, fica o deja vu. Mas o entendo como uma confirmação de que, no disco anterior, a banda finalmente encontrou o som que procurava. Guitarras dissonantes sob melodias cristalinas – versos diretos sobre amores perdidos, solidão e desespero. Canções que cravam punhais na garganta de Hamilton Leithauser.

É, em comparação ao anterior, um disco mais conciso, com versos ainda mais límpidos (sensações ainda confusas, no entanto). Um disco ainda mais sóbrio, digamos. E um disco que não nos soterrra, que não embaça nossa visão. Talvez por isso eu não tenha me apegado muito a ele e ainda prefira com muito mais força o anterior.

A banda gravou mais de 30 faixas, mas preferiu optar por um formato mais compacto, direto. O curioso é que o conjunto soa tão homogêneo que precisei de algumas audições para desgrudar uma canção da outra. Imediatamente, as mais diferentes se destacam: principalmente a marcha fúnebre Stranded, um dos poucos momentos em que o disco quase endoidece de vez.

Não é, apesar disso, um álbum monótono: Angela Surf City, Woe is me e Victory têm a fervura que se espera de uma banda que, por algum tempo, representou a crueza nervosa do rock nova-iorquino circa 2000. Mas, honestamente, não me interessam tanto quanto as love songs despedaçadas, oblíquas, sem salvação, antigas-porém-novas, hinos gospel interpretados por um vocalista que parece não acreditar em mais nada: dessas, fico com All my great designs e Torch song.

Se existe um personagem escondido em todas as canções do disco, ele é aquele homem estilhaçado de You and me, só que às oito da manhã, caminhando pela cidade, de volta para casa. “Nessas primeiras horas da manhã, conte uma história para a sua esposa”, eles aconselham, na faixa-título, que termina com guitarras manhosas, como que anestesiadas, desabando aos poucos.

E a vida do nosso pobre herói retorna à aparência de normalidade, a uma Lisboa serena, purificada pelo olhar de um estrangeiro  – um país inventado; uma ilusão, enfim.

Sexto disco do Walkmen. 11 faixas, com produção de John Congleton. Lançamento Fat Possum/Bella Union. 7/10

Superoito, filho

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Combinamos de nos encontrar no aeroporto às onze e meia da manhã. Cheguei mais cedo, às onze, e comprei uma revista. O avião pousou um pouco antes da hora marcada. Meu padrasto estava entre os primeiros passageiros a cruzar o portão de desembarque. Trazia uma bolsa azul retangular que parecia pesada.

Ele apertou minha mão quase furiosamente (como sempre fazia) e perguntou se eu estava bem. Eu não estava bem, mas falei que sim.

O dia em São Paulo: céu descoberto após um fim de semana noir. Uma segunda-feira agradável, quase de primavera – cenário que, portanto, não combina com esta história.

Os personagens principais – eu e meu padrasto – estavam mais para seres de inverno. Introspectivos e desiludidos, mesmo quando contavam piadas infantis.

O homem que cruzou o portão de desembarque era sério. Como de costume.

É claro, no entanto, que muita coisa havia mudado nele. Desde que começou a perder a memória, há dois anos, meu padrasto tornou-se uma outra pessoa. Um outro homem dentro do corpo e dos gestos e do cheiro daquele homem que conhecíamos. A transformação era sutil (e perversa, já que às vezes nos enganava, nos confundia) e ainda não havia chegado ao fim. 

Eu preferia preservar a imagem do meu padrasto de antigamente – o sujeito que me acompanha desde a adolescência, que sempre esteve lá -, mas começo a me acostumar com a pessoa mutante em que ele se tornou. Um homem de 55 anos de idade incapaz de conduzir a própria vida (e, mais grave, consciente de que a parte mais dolorida ainda virá).

Encontrá-lo daquele jeito no aeroporto – vestido elegantemente, de barba feita, carregando a bolsa com dezenas de exames médicos, tentando rir das minhas piadas – me comoveu.

Tomamos um táxi para a Avenida Paulista. A consulta estava marcada para o fim da tarde, por isso planejei uma pausa para o almoço e uma caminhada pela cidade. Era uma situação, para mim, totalmente incomum: nas raras viagens que fizemos, meu padrasto definia os itinerários e nos tomava pelo braço – eu, minha irmã e minha mãe. Dessa vez, eu estava no comando (e a sensação era de que me faltava um curso preparatório, um guia para guias).

Meu padrasto ainda não se conforma com as recomendações médicas. Me pergunto se eu me conformaria (acredito que não). Um senhor atlético, habituado a longas séries de exercícios físicos, não consegue mais se orientar. Precisa de um tutor, de carona. Perde-se frequentemente, e não somente nas ruas das cidades. Perde-se dentro dos filmes e dos livros. Esquece até do que comeu no café da manhã. 

Apesar do sentimento de revolta (cada vez maior), ele aceitou fazer a viagem a São Paulo para ser atendido por um médico mais experiente. É o que nos resta, já que não é possível diagnosticar a doença com exatidão. No caso, o que se pode é, no máximo, se aproximar de um resultado aceitável, mas nunca preciso. O que sabemos (e isso é uma má notícia) é que a memória do meu padrasto se vai como os grãos de areia de uma ampulheta. Num ritmo lento, porém constante.

No restaurante, um fast food muito colorido e alegre, evitamos conversar sobre o assunto. Falamos sobre a cidade e sobre o trabalho. Sobre os meus pesadelos (recorrentes) e sobre os nossos cachorros. Sobre o tempo em que ele entregava telegramas (as memórias da adolescência ainda estavam frescas) e sobre como a Avenida Paulista, para ele, soa como uma incrível novidade. “Sei que estive aqui várias e várias vezes, mas não lembro de nada”, comentou, com um sorriso de quem ironiza o próprio fracasso.

Depois caminhamos duas, três, quadro quadras. Bebemos suco de laranja. Descansamos sob o Masp, observamos o guitarrista solitário à frente do Trianon. Chegamos cedo ao consultório e logo fomos atendidos.

Antes da consulta, a secretária pediu que meu padrasto preenchesse um pequeno questionário, com nome completo, endereço, telefone e o nome da pessoa que o acompanhava naquela tarde. Nessa última lacuna, ele escreveu: Tiago, filho.

Quando notou que eu o observava, perguntou desajeitadamente se deveria ter me classificado de outra forma. “Não, filho está ótimo. É isso e sempre foi”, eu confirmei. E lembrei, num flash agressivo, que não vejo meu pai há pelo menos três anos e que eu e ele talvez devêssemos oficializar a distância infinita que nos separa. 

O médico, um gigante de jaleco com pinta de J.M. Coetzee (quase dois metros de altura, um pouco mais robusto que o escritor sul-africano), fez perguntas enviezadas para testar a memória do meu padrasto:

“Quem o levou ao aeroporto?”

“Não lembro”

“Seu filho o buscou em casa, de carro?”

“Acho que sim”

“Onde estava seu filho hoje pela manhã?” (e, nessa pergunta, o médico pediu para que eu não me manifestasse)

“Estava lá em casa, em Brasília”

“Onde você almoçou hoje?”

“Não sei”

“O que você comeu?”

“Folhas. E um peixe rosa. Não lembro o nome.”

Enquanto eu preenchia um questionário sobre o meu padrasto, observei os pacientes que esperavam para ser atendidos. Uma mulher tentava explicar à filha por que todos estamos fadados a perder a memória. “É muita preocupação (pausa), informação (pausa longa) e decepção (pausa curta) com a vida”, e a filha acenou positivamente com a cabeça.

As paredes eram todas brancas e, no canto da sala, havia uma orquídea branca.

Na despedida, após duas horas de consulta, o médico preferiu não comentar sobre a doença. Pediu mais dois exames. “Pra minha coleção”, meu padrasto brincou. Era o tipo de comentário que eu faria. O tipo de sorriso abobalhado que eu arriscaria numa situação sisuda daquelas. Os mesmos gestos, tudo. Estava tudo diferente, tudo desfigurado, tudo amargo e amarelo (um prédio em chamas), menos o fato de que meu padrasto ainda era meu pai.

Rapidamente, fizemos o exame que faltava e tomamos um táxi para o aeroporto. Eu seguiria em São Paulo por mais dois dias, mas ele precisava de alguém que o acompanhasse ao portão de embarque. Mais uma vez, chegamos cedo demais. “Teve um momento, lá no consultório, quando eu olhei para o lado e percebi que você estava ali. Me perguntei: o Tiago? O que ele está fazendo aqui?”, e disso ele lembrava.

Por volta das oito, minha mãe telefonou e perguntou se eu estava bem. Eu não estava bem, mas falei que sim. “É um bom médico. Muito atento”, resumi. “E ele fez algum teste de memória?” “Fez sim” “E então?” “O pai diz que bombou no vestibular” “Meu deus” “Mãe, é um bom médico. Eu acho até que confio nele”, eu expliquei, e ela se acalmou um pouco.

Me preocupei quando meu padrasto entrou sozinho no setor de embarque, entregue aos lapsos cerebrais, ao medo de esquecer. Acenei, tenso – como um pai acena para o filho que vai à escola pela primeira vez. O menino se afasta e está perdido para sempre.

A porta se fechou e, ali, depois daquela cena, eu deveria entrar no táxi. Já era noite. Mas me sentei diante das lanchonetes e fiquei assim por dez, vinte minutos. Quando o avião decolou, continuei naquela posição. Estava tudo bem? Fiquei sentado ainda por algum tempo, mais uns minutos, totalmente só, e então saí.

Together through life | Bob Dylan

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bobTogether through life conta como o 33º álbum de Bob Dylan. Tudo bem. Um longo, longo caminho. Muita história para contar. Um mundo. Uma vida. Uma saga. Mas alguém precisa saber disso? Melhor seria tomá-lo como parte de um entardecer iniciado em Time out of mind, de 1997. Um quarto disco. E, por um momento, esquecer o resto.

É que nada será como antes, sabe? Depois de gravar dois álbuns revisionistas, com interpretações para antiguidades do folk (os incompreendidos Gone as I been to you, de 1992, e World gone wrong, de 1993), Dylan criaria ele próprio uma sonoridade descolada no tempo, de costas para o pop contemporâneo — a simulação de um passado musical muito distante, anterior ao período em que um jovem Robert Allen Zimmerman traçou as coordenadas de uma das maiores revoluções do rock.

Em algum momento, alguém perderia a vergonha e lançaria a pergunta: é um jogo interessante, mas que sentido isso faz? Há uma hora em que a brincadeira termina?

Existe um clima de frustração em muitas das resenhas de Together through life (aqui não falo das revistas que automaticamente aprovam todas as criações do cantor, mas de uma NME da vida, de uma Spin), e acredito que ele se explique pelo fato de que eu, você e todos nós esperamos incansavelmente pelo retorno de um Bob Dylan que pertence ao nosso passado. Queremos indícios do ídolo rebelde, quase inconsequente, iconoclasta e insolente, que implode festivais de folk com guitarras elétricas e resgata o country em meio ao frenesi psicodélico do final dos anos 60. Mesmo que inconscientemente, temos a esperança que a agonia que ainda existe nos versos do compositor termine por contaminar a música, exploda em acordes transgressores e novamente maltrate nossas expectativas. Mas, ao mesmo tempo, amamos o Dylan que não respeita nossos desejos, não anda nos trilhos, não se adapta em antologias musicais — o poeta ao sabor do vento.

Como conviver com um ídolo que insiste em nos apontar as direções que não queremos seguir? Talvez seja mesmo impossível agarrá-lo. Daí as biografias incompletas, as lendas urbanas, as declarações falsas em entrevistas, as anedotas, as múltiplas personalidades, I’m not there e todas as reentrâncias do mito Dylan, ainda nebuloso, imprevisível até quando parece repetir-se.

Aos 67 anos, Dylan busca um som. Talvez não mais que isso. Por coincidência, dia desses assisti a um documentário sobre o processo de gravação de um disco de Brian Wilson. O maestro tortura os músicos e repete takes obsessivamente até extrair os acordes e o clima já perfeitamente construídos em sua cabeça. É por aí.

Principalmente a partir de Love and theft, Dylan (ou Jack Frost, pseudônimo usado para a produção do álbum), encontraria satisfação na ideia de usar a tecnologia de estúdios para registrar um sentimento sonoro. O tema dos álbuns passaria a ser a própria descoberta de uma sonoridade. Se temos a impressão de ouvir um antigo disco de blues da Chess Records ou da Sun Records, então Dylan cumpriu o objetivo. A produção é parte importante da mensagem.

Together through life leva essas experiências ao limite. A seu modo, é um disquinho impertinente. Ao aceitar o convite do diretor francês Olivier Dahan para compor uma canção a ser incluída no filme My own love song, Dylan inspirou-se para um álbum inteiro. Com domínio da técnica de produção, gravou rapidamente acompanhado da própria banda e com participações de David Hidalgo, do Los Lobos, e Mike Campbell, do Tom Petty and the Heartbreakers. Diretor do próprio filme, Dylan sabe exatamente o álbum que quer: cru como um bootleg, fluente e despretensioso como Nashville skyline, calcado em blues e acordeão: uma coleção de canções de amor que poderiam ter sido gravadas nos anos 50. Ou nos 80. Ou em 2020 (acelere o andamento, inclua distorção e Beyond here lies nothing renderia o primeiro hit digno do Kings of Leon).

Imagino que, com o passar dos anos, a velhice de Dylan será compreendida como o período em que o artista finalmente conseguiu assumir controle integral da própria arte. Em entrevistas, ele confessa a insatisfação com o resultado de gravações que transformaria em clássicos. Não mais. Together through life é um filme de estrada. A dois. E a fotografia granulada não está lá por acaso.

Se os versos parecem ir sempre direto ao assunto (e a parceria com Robert Hunter, do Grateful Dead, já é histórica), eles criam conexões com os três álbuns anteriores ao levar a sério aquilo que o crítico Allan Jones define como um mandamento do blues (que não funciona muito bem quando traduzido para o português): “you might get better, but you will never get well”. São narrativas que não escondem a desilusão (Life is well é uma patada) e a falta que sentem de uma época irrecuperável (O personagem de Life is hard lamenta a solidão, o protagonista de If you ever go to Houston quer de volta as memórias dos antigos bares onde se perdeu, e talvez seja a mesma pessoa que canta Forgetful heart) e a proximidade da morte. “Sinto uma mudança se aproximando. E a quarta parte do dia está quase no fim”, admite, na a obra-prima I feel a change comin’ on.

Que sentido isso faz? Talvez nenhum. Os novos discos de Bob Dylan possivelmente querem nos lembrar que a vida é dura e às vezes segue caminhos incompreensíveis. Os amores passam. A dor não diminui. A saudade arde. E o rock ainda nem nasceu.

Trigésimo terceiro álbum de Bob Dylan. 11 faixas, com produção de Jack Frost. Lançamento Columbia Records. 8.5/10

Superoito não mora mais aqui

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270420091011

(O horizonte na janela do meu apartamento: things they are a-changing)

Sair da casa dos pais, dizem, é um rito de passagem. Um daqueles episódios que modelam o futuro. O primeiro capítulo do resto de nossas vidas. Não? Quase seis meses transcorreram desde o dia em que levei meu colchão, minhas roupas e a tevê para o pequeno apartamento onde durmo quase todas as noites. Seis meses – e, apesar de saber perfeitamente que passei por uma espécie de teste importantíssimo, ainda não consigo avaliar minha performance. A estranha impressão é de que tudo, de alguma forma, mudou. Só não entendo exatamente como.

Há algumas perguntas recorrentes, que interrompem meus pesadelos e martelam alfinetes na minha consciência: como me saí nessa prova? Qual foi o resultado? Fui aprovado? Está tudo ok? Mais importante: se me transformei numa pessoa diferente, quem é ela?

Aparentemente (e surpreendentemente), deu certo. Com o devido distanciamento, sou capaz de reconhecer que cumpri algumas etapas corretamente e que, num período reduzido de tempo e aos olhos invisíveis do mundo, eu tenha finalmente me transformado num cidadão adulto e independente. É esta a versão oficial dos fatos: pago todas as minha contas, compro alimentos e produtos de higiene, lido com impostos e taxas, organizo compromissos, cultivo minha vida social e (um pequeno passo para o homem) estou a alguns minutos de virar sócio na videolocadora da quadra.

Falta plantar uma árvore, escrever um livro e ter um filho. Mas são detalhes. E quem lê livros, afinal?

Para mim, ainda parece incrível imaginar que, há um ano, nada disso parecia plausível. Durante minha adolescência, rejeitei conscientemente as expectativas e os hábitos do cidadão comum. Revoltei-me contra adultos metódicos, conformam com rotinas medíocres. Contra indivíduos sorridentes que, felizes com pouco, contentam-se com empregos maçantes. Deixam-se massacrar pela burocraria. E ainda assim casam-se, têm meninos fedorentos e com eles visitam o zoológico. Eu não os compreendia. Eu não me enxergava neles. A idade adulta parecia apenas entediante e aborrecida: uma infinidade de obrigações que não dão em nada. Muito trabalho, nenhuma diversão.

Talvez por isso eu tenha imaginado que viveria até os 25 anos de idade. Seria o suficiente. Aos 26, me vi sem um plano B. Aos 29, olhei no espelho e notei um adolescente desbotado. Era hora de mudar.

Conheço algumas pessoas que também nasceram no final dos anos 70 e, como eu, viveram sem a necessidade ou a angústia de pensar no futuro – até o momento em que o futuro bateu à porta. Possivelmente faça parte de uma doença geracional: uma resistência quase irracional à idéia de abandonar o ninho. Sabemos que algo está errado, mas não queremos saber. Entendemos a necessidade de seguirmos em frente, mas não entendemos por que. E assim vamos: presos à barra da saia de mães superprotetoras, no aparente conforto de um lar que nos oferece segurança e, como contrapartida, poda nossa liberdade e nos cobra obediência a regras infanto-juvenis. Queremos sair de casa. Mas não queremos.

Desde quando me mudei, virei uma espécie de guru para esse tipo de incerteza. Eu, que pensava ter sido o último solteiro da cidade a alugar uma quitinete, me vi cercado por pessoas em crise, cheias de dúvidas. Pessoas que trabalham, recebem salários razoáveis, freqüentam restaurantes bacanas, gastam uma fortuna com o combo do Cinemark mas, ainda assim, não sabem direito se estão aptas ao Grande Passo. Qual o momento certo?

A elas, só tenho a minha versão da experiência – ainda nebulosa. Não sei muito bem o que aconselhar (e, no mais, este não é um blog de autoajuda), mas compreendo esse tipo de cobrança. Para quem está longe do furacão, o drama pode parecer ridículo, insignificante. Tai você, zombando: “eu me mudei aos 12 anos para um cortiço, quando aprendi a conviver com estivadores e estelionatários: quem quer papo com essa gente imatura?” Para quem está metido lá dentro, é como desbravar uma selva sob ameaça de mães inconsoláveis, chantagens sentimentais, insegurança financeira, aluguéis caríssimos, filas de supermercado, IPTU, vizinhos rabugentos e medo de ter abandonado cedo demais os sonhos de juventude.

Eu, que não sou o superman, também sofri essa trama diabólica. Mas saí vivo e forte. Pergunto-me como.

Para variar, não vou me fazer de vítima: foi até fácil, sabe? Como arrancar um dente de leite. Não há entretenimento no processo de lidar com a papelada do aluguel do apartamento, e organizar as contas com alguma eficiência também leva um certo tempo. Mas, com dois ou três meses, nada disso passa a irritar. Quer dizer: a menos que a operadora de tevê a cabo vá à falência e o obrigue a comprar o pacote de uma concorrente acostumada a preços abusivos. Acontece. Mas é uma questão de saber definir uma margem de risco para absolutamente todas as situações do dia-a-dia. E lidar com autocontrole. Troquei os DVDs pelos livros. Cortei viagens. Não fui ao Coachella (ok, não iria mesmo). Há noites em que passo fome. Perdi cinco quilos. E não consigo reclamar de nada disso.

O que mais mudou na minha rotina não tem a ver com dinheiro, mas com relações familiares. Foi o grande baque. A maior ruptura. Talvez a aventura definitiva. Nesse ponto, tudo está diferente, e não tenho condições de prever o desenrolar da história. Quando me perguntam sobre o impacto da mudança, respondo de imediato: ganhei uma outra família. Note a confusão: eu, uma outra pessoa, ganhei uma outra família. Devo marcar terapia?

Se bem que, descubro lentamente, a boa nova tem um quê de maldição. Não é simples acostumar-se a um núcleo familiar renovado, e a primeira sensação é de que aquelas pessoas que você conhece intimamente não vivem mais com você (reparem que é uma sensação ao mesmo tempo óbvia e profunda). Você é uma visita querida, recebida com sorrisos e regalias. Ao mesmo tempo, você não está lá.

Desde que minha mãe passou a me receber com um generoso tapete vermelho (e toneladas de chocolate), não consigo encarar esse cenário sem dar algumas risadas. Parece que trocaram a aquela mulher por um robô adorável, programado para me agradar. E que, reparem a sofisticação da tecnologia, me telefona algumas vezes por semana para massagear meu ego e me perguntar se está tudo bem. O único defeito de fabricação é que, depois de duas ou três horas de visita, a andróide passa a lamentar a ausência do filho. Às vezes se tranca no quarto. Chora silenciosamente enquanto prepara o pudim.

Passei pela fase em que a distância da família parecia o paraíso. Ok, eu sei, tudo mundo vive esse tipo de coisa e eu devia estar escrevendo sobre o novo álbum do Bob Dylan. Mas veja: até meu padrasto, que não é de muita conversa, me recebia com análises demoradas sobre as principais notícias da semana. Minha irmã, que quase me trucidou com uma faca de cozinha quando eu tinha 14 anos de idade, faz convites graciosos para tocarmos violão e cantarmos canções bobinhas que escrevemos juntos quando éramos pequenos. Até meus cachorros parecem especialmente gentis. Eles sentem minha falta e, mais importante, querem demonstrar isso.

Levou quatro, quase cinco meses para que eu sentisse o empurrão. O susto. Depois de um período de intensa felicidade, me descobri afastado da minha família de uma forma que talvez nunca conseguirei entender. O que aconteceu? Quem deu permissão para que cortassem as cordas que me prendiam ao teto do teatro? Cumpro com afinco a rotina de visitas nos fins de semana, telefono e pergunto por novidades. Ainda assim, é como se eu não participasse ativamente de nada. No tempo em que levei para me acostumar com a ausência da minha família, eles se acostumaram com meu desaparecimento. E decidiram continuar vivendo, corajosamente.

É, veja bem, quase uma idéia de morte. Mais ou menos quando encerramos um longo caso amoroso.

Às pessoas perturbadas pela idéia de mudar-se de casa, evito comentar que existe sim uma conseqüência desagradável para essa saga: mesmo quando não se quer notar, você assina um contrato com a solidão. Ela estará lá, de qualquer jeito. Não haverá como evitar. De madrugada, quando todos os ruídos parecem bombas nucleares. Na estrada que nos leva de volta à casa, depois de um domingo em família. Principalmente quando nosso cérebro começar a tecer prognósticos de um futuro que parece assustadoramente indefinido, incompleto. Diante dele, estamos sós. Com os ruídos. Um apartamento vazio. E ninguém mais para nos guiar pela mão.

Pode ser que aí esteja a resposta para a pergunta que nos atormenta: o que vamos ser quando finalmente crescermos? Um pouco mais solitários, possivelmente. Mas com a esperança tranquila de que, um dia, já perfeitamente curados, conseguiremos lidar com esse e outros tipos de aflição. De uma forma adulta. E sem drama.