Mês: março 2011
Mixtape! | Março, a terra treme
A mixtape de março é um pouco mais ruidosa e bruta que as dos meses anteriores, mas não acredito que faça mal aos ouvidos mais sensíveis. Ela ruge, porém não fere. Pode provocar alguma aflição. No entanto, garanto que isso passa. Não tenham medo. Não é pra tanto.
E não foi criada pra incomodar, arrepiar pelinhos do braço, nada disso. Nas três últimas faixas, por exemplo, ela se transforma na coletânea mais adorável que eu gravei. A mais adorável. E olha que já são quinze.
Março, lembrem aí, foi um mês de tsunami, terremoto, bombas, ataques aéreos. A terra tremeu (literalmente e metaforicamente), e estas faixas de certa forma também se abalam com tudo o que acontece. A ideia era que o CD soasse um pouco mais nervoso, um pouco mais instável (acho que a palavra é essa) que os outros.
Não sei se funcionou. É assim que ele é: mais ou menos como o meu cachorro de um ano de idade, o Tom, que às vezes nos morde quando tenta fazer carinho. Um tantinho perigoso, mas amável.
Ao contrário da mixtape de fevereiro, esta não tem um conceito muito fechado nem conta uma história, ainda que alguns temas tenham aparecido mais do que eu gostaria que aparecessem. Acaba que ele se torna um CD de amor, muito otimista e esperançoso. Ouça até o fim e comprove. Que peculiar: as minhas mixtapes acabam sempre mostrando em que pé estou.
Musicalmente, ele forma uma imagem: um céu azulzinho (pop sessentista, girl groups, etc) com algumas nuvens muito cinzentas ao redor da moldura, esperando para atacar. Caem pingos de Lykke Li, The Kills, The Vaccines, Alex Turner, Yuck, Kurt Vile, Vivian Girls, R.E.M., Elbow e The Pains of Being Pure at Heart.
A foto lá de cima é da Lykke Li, que gravou meu disco favorito do mês (Wounded rhymes). Mas a minha música favorita da mixtape é a do Yuck.
É possivelmente a melhor mixtape que eu gravei. Ouço há duas semanas sem parar, e minha namorada parece também ter gostado um tanto (sobretudo da música do Alex Turner, que fez com que ela abrisse um sorriso muito bonito).
Então taí: uma mixtape com sentimentos nobres embalados em papel áspero. É por aí. Espero que vocês gostem e, quem sabe?, escrevam um comentário sobre mais esta humilde seleção musical do tio Superoito.
Faça aqui o download da mixtape de março. E boa semana.
Trecho | Luz e silêncio
“Kathy fez o que sabia que não deveria fazer, pois os clientes sem dúvida precisavam e esperavam poder falar com ela de manhã. Desligou o celular. Fazia isso de vez em quando, depois de as crianças descerem do carro e quando estava voltando para casa. Só para ter aquela meia hora de solidão durante o trajeto – aquilo era um luxo, mas era fundamental. Ficou olhando para a rua, em silêncio completo, sem pensar em nada. O dia seria longo, e não iria terminar até as crianças irem para a cama, então ela se permitiu aquela única extravagância, um intervalo ininterrupto de trinta minutos de luz e silêncio.”
Trecho de Zeitoun, de Dave Eggers
Os discos da minha vida (33)
Só por hoje, vou simplificar a equação. Os discos + Minha vida = Saga dos 100 discos da minha vida. Capítulo 33.
Facinho.
Sem pormenores, então. Que não tá fácil pra ninguém, a vida. Tenho uma montanha de livros para ler, muitos discos para ouvir, filmes para três vidas, séries de tevê que adormecem na dimensão dos desejos que não serão realizados. No meio tempo entre uma e outra coisa que não vou fazer, ainda tenho que aprender a fritar ovo e a talhar madeira. Hoje, o que me resta é escrever este post, esticar as pernas na cama e dormir. Que o tio aqui está pregado.
E ainda tem que peça pra eu escrever mais sobre cinema. Vocês, hem.
Os dois discos deste post são insubstituíveis. Caso contrário, não estariam entre os meus 40 favoritos de todos os tempos. Darei um jeito de encher uma caixa de papelão com os 40 disquinhos, daí vou carregar todos comigo para uma ilha deserta. Vamos ficar bem.
036 | Daydream nation | Sonic Youth | 1988 | download
Este é um dos raros discos de rock que a Biblioteca do Congresso, nos Estados Unidos, selecionou para efeitos de preservação. É justo. Mas imagino o que vai acontecer quando, daqui a 50 anos, um menino muito curioso, 12 anos de idade, se aventurar numa pesquisa sobre a música pop do fim do século 20 e esbarrar nisto aqui. Certeza: um tanto de susto será inevitável. Ainda mais se ele tiver crescido na companhia de bandas que se acostumaram ao conforto das escolhas óbvias, dos pequenos riscos, dos hits de efeito imediato e curta duração. O Sonic Youth de Daydream nation é um esporte inseguro: as longas jam sessions que deram origem ao disco transformam cada música em cruzamentos de pop e vanguarda, Jimi Hendrix e Joni Mitchell, Neil Young e Andy Warhol. O estilo da banda já estava criado, mas aqui ele é amplificado numa moldura monumental. Para museus de arte contemporânea, garagens encardidas e afins. Top 3: Teen age riot, Providence, Silver rocket.
035 | What’s going on | Marvin Gaye | 1971 | download
What’s going on é soul music naquilo que, a partir dos anos 70, o gênero teria de essencial: um homem perplexo diante do mundo. Depois de se tornar uma das vozes mais populares da Motown, Gaye ignorou as obrigações do pop-para-rádios para compor um disco que pode ser “lido” como uma carta aberta, uma crônica pessoal sobre o início dos anos 1970. O personagem principal – um veterano que retorna do Vietnã e encontra um país despedaçado – era um reflexo do cantor, perdido numa década que não prometia ilusões. A pergunta que guia o álbum ecoava, por isso, com o poder de um emblema: “O que está acontecendo?”. Ainda ecoa, aliás. Hoje, pode não ser fácil a identificação com versos que comentavam um período histórico muito específico. Mas o sentimento de inadequação que transborda nessas canções é universal, eterno, e continua a nos emocionar. Top 3: Mercy mercy me, What’s going on, Inner City blues.
Superoito express (38)
Yuck | Yuck | 8
Escrever um texto longo sobre o disco do Yuck seria repetir quase tudo o que eu disse naquele post enorme, de dois milhões de toques, sobre o Vaccines. A grande diferença que noto entre as duas bandas — ambas estreantes — é que os ídolos do Yuck são um pouco mais velhos (em grande parte, vêm dos anos 90). E, é claro, que as canções do Yuck, apesar de parecer tão monocromáticas e diretas quanto as do Vaccines, são daquele tipo raro que revelam novas dimensões a cada audição – e que nos seduzem no exato momento em que estamos prestes a descartá-las.
As influências do quarteto aparecem logo na superfície das músicas (são broches coloridos grudados numa jaqueta): Teenage Fanclub, Dinosaur Jr, Sonic Youth, Pavement. Mas é depois, quando vamos nos aproximando do disco, que esse jogo da memória deixa de incomodar, deixa até de parecer tão importante, já que as referências funcionam como molduras (e não tanto como muletas) para canções que soam fortes por outros motivos: os versos Daniel Blumberg e Max Bloom, por exemplo, são francos o suficiente para nos fazer de cúmplices (Sunday é uma joia), e o contraste entre noise e melancolia se dá naturalmente: o disco perfeito, para eles, deve ser uma mixtape que alterne canções de Slanted and enchanted com as de Crooked rain, crooked rain. Aqui, eles tentam praticar essa utopia indie.
Belong | The Pains of Being Pure at Heart | 6.5
É um disquinho adorável, confortável, cheio de lindas canções (Too tough é minha preferida) e, eis o problema, cômodo demais. Parece ter sido composto após enquete com os fãs da estreia do Pains of Being Pure at Heart. “O que a banda deve fazer para não perder o seu carinho?” A resposta é: adensar as guitarras (se aproximando às vezes perigosamente de uma polidez comercial que agradaria a uma gravadora grande), reforçar o DNA shoegazer (mais Kevin Shields, menos Belle & Sebastian) e adoçar versos que poderiam ter saído de um diário de adolescente. “Nem em sonhos eu consigo te trair”, eles garantem. Fofo. O produtor que faz deste um álbum menos encardido que o anterior é o nosso velho Flood, de discos do U2 e da PJ Harvey. Entende quase tudo, o homem. Mas talvez não disso.
Blood pressures | The Kills | 6
Tenho a impressão de que os discos do The Kills são variações de um tema: tensão sexual. Alison uiva, Jamie martela uns loops safados, mas o clima é mais de angústia que de satisfação. Noites atormentadas. Há trechos em Blood pressures que me deixam com a certeza de que, finalmente, eles encontraram a sonoridade para esse sentimento de insatisfação, tesão reprimido. Em Baby says, digamos, os sintetizadores praticamente derretem junto com a voz de Alison. Em Future starts slow, as guitarras vão e vêm em ondas de repetição, enquanto o casal dialoga nos microfones (e é uma ótima faixa para pista de dança). Mas são exceções num disco que, quando não repete a grife do Kills, não sabe muito bem o que fazer para atualizá-la. Satellite, por exemplo, é quase um reggae. E, ainda assim, ninguém sai do zero a zero.
Different gear, still speeding | Beady Eye | 5
Este é exatamente o que parece: o disco que Liam Gallagher faria no Oasis se Noel não fosse um sujeito tão preocupado com coisas como relevância e coerência. Os discos do Oasis, mesmo os fracos (são muitos) não soam inconsequentes. Já Beady Eye é uma banda de pub que vai apelar a todos os truques para chamar a sua atenção. De referências explícitas ao rock sessentista (uma faixa que se chama Beatles and Stones me mata de vergonha) a baladas enormes, épicas, o disco é a mixtape empolada, o brainstorming que a antiga banda de Liam não teve a coragem de gravar. Em alguns momentos, essa liberdade rende excessos curiosos — há uma faixa que se chama Standing on the edge of noise! Mas é uma banda ainda sem norte, sem um capitão. Título alternativo para o disco: A falta que o Noel faz.
Os discos da minha vida (32)
A saga dos 100 discos que cegaram a minha vida chega a um episódio de estourar as retinas: dois discos reluzentes, brilhantes, que nos obrigam a usar óculos escuros.
Não adianta, meus amigos: a tendência é que os textos desta lista se tornem cada vez mais descontrolados, dramáticos, um derramamento de lágrimas sem fim. São álbuns tão luminosos já me arrepio só de ver as capas.
Nessa altura, vocês já sabem como este neverending ranking funciona. Ele não obedece a nenhum tipo de critério muito prático e a única certeza que temos é a seguinte: provavelmente, ele não acaba nunca. Ok, falando sério: são discos que estiveram lá nos momentos mais importantes da minha vida e que, de certa forma, determinaram a forma como ouço música. Eles explicam quase tudo o que eu sei: atenção a eles, portanto.
E, caso vocês não os conheçam (duvido muito), há como fazer o download dessas joias.
038 | The soft bulletin | The Flaming Lips | 1999 | download
Em 1997, o Flaming Lips lançou Zaireeka: uma coleção de quatro CDs que, para serem compreendidos, deveriam ser ouvidos simultaneamente. Lembro que só conseguiu realizar a experiência uma única vez – depois de pedir emprestado o micro system do vizinho -, mas não esqueço a sensação: era como estar no centro de uma orquestra de space rock formada por um bando de músicos pirados. Era um projeto fascinante, mas só para os devotos de Wayne Coyne. Lançado dois anos depois, The soft bulletin transporta essa sonoridade 3D, obsessivamente criativa, para o formato de um disco de pop rock. O efeito, inebriante, não deixa nossos sentidos em paz. Interpretando o papel de um louco cientista de sons, o vocalista escreveu canções sobre ciência, filosofia, o espaço sideral e morte. No disco inteiro, a impressão é de que Coyne está surpreso, perplexo, eufórico com as músicas que inventou. Na última faixa, ele se desintegra diante dos nossos olhos. De volta ao pó, e certo de que não conseguiria repetiria o truque. Top 3: Suddenly everything has changed, Race for the prize, Waitin’ for a Superman.
037 | Abbey Road | The Beatles | 1969 | download
A despedida mais tocante da música pop não é frágil e desconjuntada (como são os discos de bandas decrépitas, desunidas, aos pedacinhos), mas o oposto disso: seguros de que existe algo muito desafiador, muito excitante na ideia de escrever um capítulo final, os Beatles se reuniram para compor uma obra-prima. Especialmente no lado B, quando uma canção tropeça na outra e formam uma espécie de ópera-rock-n’-roll, a intenção de escrever uma obra definitiva supera as promessas da banda e as nossas expectativas: lá estava um disco singular, como ninguém ainda havia ouvido. Até chegar na apoteose que é esse desfecho, ainda nos deparamos com os Beatles na forma mais pura (Here comes the sun e Because) e na mais áspera (I want you, Oh! Darling). O futuro parecia enorme. Mas não olhar para trás é, no fim das contas, uma forma digna de dizer adeus. Top 3: The end, Because, Something.
What did you expect from the Vaccines? | Vaccines
Bom dia, muito prazer, meu nome é Tiago e levo uma vidinha comum.
Acordo às seis e meia, quando o sol ainda é um borrão alaranjado encoberto por nuvens. Quase me engasgo com as colheradas de cereal (estou com sono), faço a mochila, depois enfrento os religiosos 40 minutos de esteira ergométrica. Mais tarde vocês me encontram no trabalho e, ainda mais tarde, estou de volta ao meu apartamento pequeno. Faço uma coisa ou outra, aí durmo.
Na prática, é o que acontece.
Não há eventos extraordinários, heroicos, na minha rotina. Mesmo quando — entre a esteira ergométrica e as noites no meu apartamento pequeno — calho de entrevistar alguém importante ou apurar uma reportagem que me enche de orgulho, sei que não existe nada especial nisso. É o meu trabalho. É o que eu faço. No fim do dia, sou apenas um sujeito tão perdido e inseguro quanto você e seus amigos.
Outro dia, já há muito tempo, eu estava na fila do cinema conversando com um amigo meu quando uma mulher ouviu meu nome e perguntou: “Você é o Tiago? O Tiago que escreve no jornal?”
Eu, sempre muito tímido, respondi que sim, mas fiz um sorriso desconfortável, de menino quando é pego fazendo besteira. Ela foi muito espontânea: não escondeu, nem por um segundo, a decepção que sentiu com aquele encontro. “Eu jurava que você era mais alto, mais velho, óculos e barba, mais…”
E ficamos em silêncio.
Se eu não fosse um bicho-do-mato, teria achado graça naquele descompasso inevitável entre as expectativas da leitora e a realidade. Fiquei, na verdade, um pouco constrangido com a situação. Mas outras situações parecidas ocorreram em outros momentos. Não adianta, nunca adianta: sempre insistimos em criar expectativas que nunca serão correspondidas.
Lembrei do caso assim que bati o olho no título desta estreia do Vaccines. O disco poderia ser horrível, equivocado do início ao fim; mas o título continuaria soando, para mim, brilhante. “O que você esperava dos Vaccines?”, eis a questão.
É a pergunta que todos os discos (e livros, e filmes, e as pessoas) fazem silenciosamente quando os encontramos pela primeira vez: o que você esperava de mim?
Sem querer alargar demais a discussão, fico na música pop. Diante de um disco novo, antes de conhecê-lo, criamos expectativas às vezes muito altas, às vezes baixas. Às vezes ficamos indiferentes: pagamos para ver. Quando finalmente o ouvimos, o que se dá é um confronto entre as nossas expectativas e a matéria (as canções e a tessitura que as une).
Avaliamos os discos de acordo, em grande parte, com a forma como eles respondem às nossas expectativas. O quarto disco dos Strokes será avaliado com mais rigor do que, digamos, o primeiro disco do Yuck. Esperamos muito, talvez exageradamente, dos Strokes. Não esperamos nada do Yuck. (E isso tudo é muito óbvio, eu sei, mas precisa ser dito)
O Vaccines é um caso intermediário. Uma banda muito nova (formada em junho do ano passado) que foi adotada pela imprensa britânica como a salvação do rock. Alguém comparou aos Beatles. Alguém certamente comparou aos Strokes.
Ninguém precisa comprar esse tipo de invencionice da mídia (e o rock não precisa ser salvo, mas ameaçado; é do risco que nasce o conflito, o desconforto que nos interessa). Mas o Vaccines entende que esse marketing faz parte do jogo e responde com um disco que pergunta: o que você esperava da “maior banda da temporada”?
O título lembra outro, que acaba se enquadrando na mesma situação: Whatever people say I am, that’s what I’m not, do Arctic Monkeys. São dois títulos que resumem os desafios de duas bandas inglesas iniciantes — conscientes do fato de que, no hiperbólico pop inglês, as expectativas são sempre incompatíveis com a realidade.
Então, lá vamos nós: eu, particularmente, não esperava nada dos Vaccines. Da mesma forma como não esperava nada do Arctic Monkeys. Li um ou outro elogio exagerado ao quarteto, mas fiz que não era comigo. Desde a guerra encenada entre Oasis e Blur, lá nos anos 90, não dou muita trela ao oba-oba da imprensa inglesa. Quando se vende publicações semanais de música, é preciso assunto para preencher as páginas. Ouvi o disco, portanto, com expectativas quase nulas.
Mas entendo a decepção de quem buscou na banda um novo Strokes, um novo Libertines ou um novo Arctic Monkeys ou (deve ser o caso mais comum) uns novos heróis do Reino Unido. O Vaccines é um pouco disso tudo, mas não é nada disso. É, se descontarmos toda a aura que se criou para eles, uma banda iniciante, que gravou bons singles e agora os reúne num disco. O que você esperava deles?
As comparações com o Strokes procedem sim, é claro: a banda de Nova York está entre os ídolos do Vaccines (e a influência está óbvia em faixas como Post break-up sex) e este primeiro disco remete à estrutura de Is this it. São coleções compactas de singles. Até aí, no entanto, não vejo nada anormal. Que banda iniciante não exibe amor exagerado aos ídolos? Quantas bandas iniciantes não estreiam também na pressa, reunindo os singles para não perder o bonde do marketing?
Outra semelhança com Is this it é que este disco do Vaccines também apresenta uma banda muito jovem, imatura, ansiosa, apressadíssima (tudo no bom sentido, ok?), que soa como se estivesse atrasada para pegar o trem que vai partir em cinco minutos. Essa aflição transparece nas faixas, que soam muitíssimo mais vívidas, entusiasmadas, alegres que as novas do Strokes.
O disco flagra o nascimento de uma banda. Coisa boa de se ouvir. De imediato, dá para notar o gosto por versos mundanos porém nada triviais (rimar F. Scott Fitzgerald com Morning Herald, e dentro de uma faixa que soa como homenagem ao Ramones, é o tipo de bobagem inteligente que deixaria o Vampire Weekend feliz) e um interesse mais por simplicidade que por rebuscamento. É um disco que sabe muito claramente aquilo que quer para si — apesar dos objetivos limitados, da falta de ousadia, de um certo comodismo nas referências.
É um álbum, no entanto, que cumpre a intenção de descer como um “disco de verão”: os singles fortíssimos (Post break-up sex, Blow it up e If you wanna) são arejados por acenos ao pop sessentista (Wetsuit), guitarradas primárias, toscas, e a sensação de que estamos soltos numa colônia de férias patrocinada por tios punks. Na faixa de encerramento, o inverno chega; tudo o que resta é encostar a cabeça no ombro, à la Brian Wilson.
Os personagens das canções, aliás, não fazem grandes coisas. São tipos quase anônimos às voltas com as aventuras mais típicas. Anti-popstars. “O que você esperava de sexo pós-separação?”, eles ironizam, numa das faixas. Nada de glamour, portanto.
Não vai alterar o eixo do planeta, certo? Mas diga aí: o que você esperava deles? A resposta à pergunta vai definir a forma como você encara este disco. Que, para mim, soa como o diário de quatro sujeitos comuns, talvez nada especiais, se divertindo com o que tem para hoje.
Primeiro disco do Vaccines. 11 faixas, com produção de Dan Grech. Lançamento Columbia Records. 7/10
Angles | The Strokes
Quem me conhece sabe que meu filme favorito é Um corpo que cai, do Hitchcock. Que prefiro Godard a Truffaut. Que não consigo entender por que vi Presságio quatro vezes no cinema (apesar de gostar de Hitchcock, Godard e Truffaut). E que o Strokes, não estou mentindo, é uma das minhas bandas preferidas entre todas as que começaram a lançar discos de 2000 para cá.
Sobre minha admiração pelo quinteto, (acho que) sei explicar. Outro dia, fiz um parágrafo – daqueles bem irresponsáveis — sobre Is this it (2001) para o ranking dos 100 discos da minha vida. Lá pelas tantas, escrevi o seguinte:
“Com o passar do tempo, ficou até um tanto embaraçoso explicar por que este álbum tão sucinto, um resumo do pós-punk de Nova York (numa coleção de singles de dois, três minutos de duração) foi acolhido como um marco. Mas talvez devamos tomá-lo como o sintoma de um período muito específico – o início do século, o começo dos anos 00. Com o placar zerado, o Strokes entrou em cena como um bando de pioneiros. Estilosos, irônicos, ridículos. Nos tomaram pelo braço. E com eles nós dançamos como se fosse a primeira noite.”
Hoje, apesar da minha má vontade com o novo disco da banda, eu não reescreveria esse texto. Ele resume, mesmo de uma forma meio desastrada e cheia de floreios, as minhas impressões sobre o Strokes. É uma banda de rock muito talentosa e competente que, graças aos poderes do timing, virou ícone.
Sem exagero: quem ouve os dois primeiros discos do Strokes, queira ou não (ame ou odeie), é conduzido à porta de entrada dos anos 2000. De alguma forma, sabe-se lá como, eles nos levam até lá. É como ouvir Nirvana, e ser atirado aos anos 90. Ou ser devorado pelos anos 80 (mesmo sem ter vivido a década) ao ouvir uma canção dos Smiths. São bandas que nos situam em determinados momentos, fases (arbitrárias, é claro) da história do pop e das nossas trajetórias tão pessoais.
Mas a importância do Strokes não anula ou compensa as fragilidades da banda – que nunca foram invisíveis para ninguém.
Até o segundo disco, quando Julian Casablancas pensava primeiro nos singles e depois nos álbuns, eles produziram coletâneas quase perfeitas. Não conheço quem questione o talento do sujeito para criar hits fulminantes, que nos conquistam à queima-roupa. Sei de DJs que criaram sets inteiros só com o repertório de Is this it e Room on fire. Na pista, ninguém reclamou.
Algo mudou no terceiro disco, First impressions of Earth (2006), e às vezes desconfio que ali nasceu uma outra banda. Mais ou menos como o Oasis de Standing on the shoulder of giants, o Strokes mudou o sistema de governo – de monarquia (do príncipe Casablancas) a uma espécie de parlamentarismo (todos os integrantes da banda passaram a ter mais poderes). E, mais ou menos como o Blur de 1997, resolveu arriscar, ampliar o cercadinho, desafiar as expectativas dos fãs.
Esse desejo de ir além (e desculpe se soa brega, mas soa brega) aparece já na letra do primeiro single do disco novo, Under cover of darkness: “Todo mundo está cantando a mesma canção há 10 anos”, diz Casablancas. Mas soa como ironia (e uma boa ironia), já que a música é uma das poucas do disco que reprisam o modelo das primeiras faixas do grupo, como Someday e Last nite. Escritas, claro, há 10 anos.
É um single que nos deixa um tanto nostálgicos. Precocemente nostálgicos. Como nos bons tempos, Casablancas segue agonizando na pista, gemendo feito um menino que acabou de perder os dentes de leite: “Não vá por esse caminho. Eu vou esperar por você”, diz. O efeito do single, porém, não é de catarse. Soa um tanto cínico, na verdade. Como se a banda soubesse exatamente os botões que deve apertar para mimar os fãs.
O restante do disco, com poucas exceções, não vai por esse caminho. Casablancas ainda não encontra satisfação (e tome pensamentos vagos como “não quero te contar nada”, “você vai esperar por mim também?”, “alguém está sempre atrasado”, “não tente nos parar”, “eu queria contar que está melhor, mas que sentido faz?), mas a banda parece disposta finalmente a gravar um ÁLBUM (em maiúsculas) tão poderoso quanto os hits que coleciona desde sempre. E, literalmente, anguloso.
Não é simples como parece. Ainda que o discurso de Casablancas tenha um quê de Kurt Cobain (as frases são curtas, vomitadas, desesperadas), a sonoridade do grupo está mais para Ramones do que para Radiohead. Explico: o estilo do Strokes é inconfundível, mas ele tem limites muito claros, é até estreito. Não é uma banda de mutações radicais, mas que se sente mais confortável quando faz movimentos repetitivos com uma ou outra transformação sutil.
Desde First impressions of Earth, o que ouço é Ramones tentando agir como Radiohead. Soa, no mínimo, frustrante. Principalmente porque, ao contrário de bandas que se contentam com pouco, os Strokes estão tentando, estão olhando para frente, estão jogando um jogo que deveria nos entusiasmar. Amamos as bandas que rejeitam a repetição oportunista, certo? No caso do Strokes, até eu começo a perguntar se não seria melhor depurar a fórmula (em vez de se aventurar por aí).
Em tese, Angles é o disco mais arriscado da banda, o mais corajoso. Na prática, porém, é desconjuntado e um pouco melancólico – talvez como reflexo de uma gravação tumultuada, cheia de desencontros. Não acho agradável assistir a um acidente desses: cada faixa apresenta pelo menos três boas ideias que, após muito sofrimento, morrem na areia. É uma tragédia ambiental, praticamente.
Two kinds of happiness, por exemplo, começa com os ares de pop eletrônico de Ibiza, mas logo esbarra num refrão que, de tão óbvio, maltrata a alma. Metabolism, a pior do disco, já rende comparações com Muse – mas soa como um cruzamento deprimente entre heavy metal e Interpol.
You’re so right também deixa a sensação de mal estar provocada por uma fita de tortura à la Jogos mortais: não há beleza ou graça nesses riffs mecânicos, desalmados. Não vejo prazer nessas canções. Nem a agonia que nos remeteria, digamos, a um Joy Division. São esboços de canções (e não noto canções que foram escritas para soar fragmentadas, despedaçadas, como é o caso do Radiohead).
Muito se falou sobre o tom oitentista do disco, mas existe algo diferente aqui: as referências dos Strokes não indicam uma pesquisa de sons ou um interesse específico por alguma fase da música pop, e sim um esforço frio de agregar ao som da banda uma série de elementos que hoje são considerados “in”: os sintetizadores datados do MGMT e do Crystal Castles, os riffs adoçados do Phoenix, a eletrônica delirante e leve de um Delorean e tudo o mais que eles descrevem como “música do futuro”. Soa como um disco de garage rock produzido por um menino que passou muito tempo lendo a Pitchfork.
O que não seria um problema (nada errado com a Pitchfork!) se o Strokes fizesse justiça a ambições que, infelizmente, pairam muito acima das capacidades da banda. Às vezes as coisas são simples assim: há os ídolos que, a cada disco, miram (e acertam) um planeta diferente. Já o Strokes se sente pesado, um outsider, sempre que ameaça decolar.
Quando tentam abandonar a bela cidadezinha onde vivem, eles perdem o caminho de volta. Nos deixam dançando na pista – desta vez, solitários.
Quarto disco do Strokes. 10 faixas, com produção da própria banda e de Joe Chicarelli. Lançamento RCA. 4/10
Os discos da minha vida (31)
A saga dos 100 discos que estilhaçaram a minha vida chega a um episódio particularmente descontrolado. Um dos discos aqui listados é a obra-prima do punk rock – sem mais. O outro tem uma capa bucólica, árvores e tudo, mas soa mais furioso que qualquer hardcore.
Cuidado que o cão ladra e morde!
Aos que tropeçaram e caíram de barriga neste blog, aqui vai um guia relâmpago para este ranking: isto aqui, caro visitante, é a lista sentimental dos discos que eu vou levar para o shopping center deserto quando o mundo for tomado por uma epidemia zumbi. Um lance muito pessoal, entende? Portanto, aqui você não encontra (ainda que coincidências às vezes ocorram): 1. os álbuns mais relevantes, mais elogiados, mais queridos da música pop; 2. os álbuns que mais fizeram amigos e influenciaram pessoas; 3. os 1001 álbuns para ouvir antes de morrer; 4. ou algo do gênero.
Aos visitantes mais experientes, toda essa ladainha é antiga e enfadonha. A novidade é a seguinte: hoje entramos no maravilhoso, inesquecível, fundamental, fascinante top 40!
Não que isso represente algo muito importante (esta lista, convenhamos, é uma bela bobagem). Mas pelo menos você tem mais dois discões para fazer o download e ir recheando a sua coleção. É bom, né não?
040 | London calling | The Clash | 1979 | download
Lançado dois anos antes, Never mind the bollocks, do Sex Pistols, é o emblema do punk britânico: urgente, ruidoso e irônico/suicida o suficiente para se destruir em pedacinhos. Mas London calling, ainda que exiba quase todas as características da onda de 77 (muita gente boa o considera, e não por pouco, o maior entre os álbuns punk), é tudo menos efêmero. A estrutura é a de um álbum de rock “convencional”, com um mostruário bem amplo de sons e temas que, no fim das contas, parece criar o mapa afetivo para uma Inglaterra que se transformou para sempre. Talvez nenhum outro disco tenha conseguido mostrar simultaneamente um olhar combativo para a vida (as faixas enfrentam temas como desemprego, racismo, rebeldia juvenil) e para a música (do punk faz-se ska, jazz, rockabilly, reggae). Daí que ele acabou se transformando no modelo de perfeição para muitos dos álbuns que viríamos a amar. Um template inatingível, digamos, mas que ainda nos guia. Top 3: Train in vain, London calling, Spanish bombs.
039 | Plastic Ono Band | John Lennon | 1970 | download
É o avesso de um disco dos Beatles: se as canções de Lennon/McCartney nos espantam pela forma como são cuidadosamente projetadas (suor + arte), os espasmos de Lennon em Plastic Ono Band tiram o nosso ar quando deixam a impressão de que não poderiam ter sido gravados de modo mais cru, mais verdadeiro. Toda a história que cerca este registro – as sessões de terapia de Lennon, o acerto de contas com o ‘fab four’, etc – rendem reportagens muito interessantes, mas o que nos sobra, sempre, é a voz de um homem adulto confrontando incertezas. É uma briga sangrenta, levada aos trancos, mas que nos revela um artista que não conhecíamos: frágil e imaturo, desconfortável e ainda incapaz de compreender a liberdade que exigiu para si. Os outros discos de Lennon são mais profissionais, mais apresentáveis. Este aqui é um grito no escuro, desesperado, incompleto, quebrado e único. Top 3: Isolation, Mother, Hold on.
Build a rocket boys! | Elbow
Numa entrevista recente, Chaz Bundick (Toro Y Moi) deixa escapar que, mais cedo ou mais tarde, vai abandonar a música para procurar um “emprego comum”. A estratégia parece sensata: ele entende que, quando a arte se transforma num trabalho obrigatório, algo precioso se perde.
Como não admirar esse projeto de vida? Eu admiro. O sujeito é formado em design gráfico. Quando o cotidiano na indiesfera pesar nos ombros, ele pode distribuir currículos, assinar carteira, conseguir uma “colocação no mercado” e escrever música exatamente como fazia aos 13 anos: no quarto, nas horas de folga, sem prazos ou a necessidade de cumprir expectativas desse ou daquele fã.
Quando ouço um disco como Underneath the pine, o novo do Toro Y Moi, noto imediatamente esse olhar despreocupado, muito pessoal, para a música pop: Chaz não está aqui para fazer carreira. Talvez por isso, mostra prazer em se desafiar, tomar atalhos inesperados, arriscar tudo (não há nada a perder). Por consequência, nos surpreende sem deixar a impressão de que faz esforço.
Mas essa filosofia do desapego é rara no pop e não necessariamente produz obras-primas. Os discos que ouvimos a cada semana quase sempre são feitos por bandas que compõem para (entre outras coisas, das mais transcendentais às mais mundanas) ganhar dinheiro, influenciar pessoas e, de preferência, continuar compondo.
Há, no entanto, bandas de rock mais “carreiristas” que outras (entre aspas, para eu não levar pedradas dos fãs). O que nos leva ao disco do Elbow, um grupo que leva a labuta a sério.
É, mais ou menos como o R.E.M., o Coldplay e o U2, uma banda de rock antiquada, que pensa com os neurônios empoeirados de ídolos que nasciam até o fim dos anos 90. Na época, assinar com uma gravadora grande e alcançar a longevidade dos Rolling Stones era uma meta quase que universalmente aceita. Não dá para dizer que esse desejo morreu. Mas hoje há mais espaço para um Toro Y Moi do que havia antes.
A própria lógica da internet e dos pequenos selos facilita a multiplicação de pequenas bandas, que não querem nem precisam crescer (e ok, estamos bem em relação a isso).
O Elbow, como eu dizia, sente saudade de um tempo em grandes bandas lançavam grandes discos que, de preferência, agradavam a grandes plateias. Álbuns com hits e conceito, faixas densas e rasteiras, momentos um tantinho experimentais e outros totalmente comerciais, grandiosidade e delicadeza. Diversão para toda a família. Out of time, do R.E.M., e Achtung baby, do U2, preenchiam esses requisitos (Viva la vida, do Coldplay, também).
Build a rocket boys! é, seguindo esse raciocínio, o disco mais anos-90 do Elbow. Não à toa, ele vem na esteira de um disco que se tornou sucesso de vendas (The seldom seen kid, de 2008). Faixa a faixa, o que se ouve é o desejo de permanecer no topo. Não só no topo das paradas, mas da cotação dos críticos e dos fãs.
É uma equação complicada, e que (ninguém precisa se enganar) a banda executa com muita elegância. O disco abre com Birds, uma faixa longa, de oito minutos, com as idas e vindas de um remix trance — a atmosfera prog, no entanto, é confortável e polida como num velho single do Genesis. Lippy kids, a seguinte, tem seis minutos. Novamente, porém, são seis minutos de lembranças da infância, entoadas com graciosidade por um Guy Garvey sereno, preciso — um operário experiente em ação.
As duas canções que vêm logo depois praticamente fecham o conceito do disco. Tanto nas letras — sobre relações familiares, amizades perdidas, medo de ficar adulto e outros dramas de gente como a gente — quanto em melodias, que, quando ameaçam se aproximar de esquemas aventureiros, acabam soando familiares, agradáveis. Não é exagero notar: o Elbow gravou o disco de brit rock que os fãs de The bends ainda cobram do Radiohead.
Na segunda metade do disco, ele vai se distendendo em baladas tristes — mas não tão tristes, nem tão incômodas, nem tão pessoais, muito menos vulgares.
Esse formato caloroso, quando não austero — “uma banda de rock como nos bons tempos, veja!” — explica as reações de entusiasmo que aparecem em tantas críticos. O Elbow é confiável mais ou menos da mesma forma que o R.E.M. inspira segurança. Os chapas não vão nos deixar na mão — em retribuição, nós perdoaremos discos que ficam sempre num meio-termo cômodo: nem tão arriscados, nem tão óbvios; sempre adoráveis.
Viveremos em paz com o Elbow porque também sentimos falta de uma época em que as nossas bandas preferidas prometiam nos acompanhar para sempre, a exemplo dos amigos que não somem.
Entendo quem prefere se apegar a bandas como o Elbow, e a eles recomendo este Build a rocket boys! É um disco que, mais ainda do que o novo do R.E.M., dá motivos para que se ame e se defenda uma filosofia pop que deixou de fazer muito sentido. Não dá para acusar o Elbow de cinismo.
Mas, quando comparado a um disco como Underneath the pine, do Toro Y Moi, pode ficar a impressão de que um certo gosto por liberdade transformaria esta grande banda inglesa (tão inglesa, aliás) num ser menos domesticado, que não aceita estacionar sobre o muro e jogar para a torcida.
Build a rocket boys! não quer mudar nada. E deveríamos cobrar isso dele? É um tio conservador. E bonito, principalmente se você não se incomoda com os modos tão formais dos rockstars de carteira assinada, terno e gravata, dinheiro no bolso e uma família imensa (de fãs) para criar.
Quinto disco do Elbow. 11 faixas, com produção de Craig Potter e Elbow. Lançamento Fiction/Polydor. 6.5/10
Superoito express (37)
Wounded rhymes | Lykke Li | 8
Francamente: quando usada para fins terapêuticos, a música pop pode provocar efeitos vexatórios. Para cada Blood on the tracks e Plastic Ono Band, há toda uma galeria de astros do emocore e musas folk “sensíveis” para deixar muito claro que às vezes é melhor abrir um blog do que torrar dólares em estúdios de gravação. Wounded rhymes prometia momentos de vergonha alheia — é um álbum à beira de um ataque de nervos, neurótico toda vida, em que Lykke Li tenta nos convencer de que não é a menina graciosa e sentimental de Youth novels (2008) —, mas prefiro entender este disquinho chiliquento, temperamental, como o primeiro capítulo de uma série de HQs sobre uma super-heroína sueca que calhou de acordar com o pé esquerdo. Robyn que se proteja.
Lykke Li entende o funcionamento desse tipo de álbum e, como acontece de forma quase generalizada no pop sueco (o disco é produzido por Bjorn Yttling, do Peter Bjorn and John), interpreta as canções com um distanciamento irônico que altera o sentido das letras enfezadas: elas deixam de soar como desabafos gratuitos e passam a contrastar com melodias que simulam a doçura de grupos femininos dos anos 60. Os hits são facílimos, o clichê do clichê, mas existe algo dissonante nos arranjos, cheios de ecos e efeitos fantasmagóricos que sugerem a imagem de um galpão vazio, abandonado. No meio desse deserto cor-de-rosa, depois de se rasgar toda, Lykke cria o clima sinistro: “O silêncio é meu namorado. Ó, silêncio, eu sou soa namorada.” Uma graça. E assustador.
Underneath the pine | Toro Y Moi | 7.5
O segundo disco de Chaz Bundick pode soar como uma evolução se comparado ao anterior, Causers of this (2010). Mas, pelo menos para mim, a comparação parece quase impossível. Aquele era um disco introvertido, sussurrado, tão nórdico — o novo é um mil-folhas recheado de soul e psicodelia, caixinha de sonho nos moldes de Andorra, do Caribou. Em entrevistas, Chaz diz a ideia era criar um álbum folk, e talvez essa seja uma boa forma de descrevê-lo: é folk music processada no laptop de um leitor de blogs de indie rock (Sonic Youth, Daft Punk e J Dilla estão entre os ídolos do sujeito). Nas primeiras faixas, parece um joguinho frio — mas é no miolo do disco (com as carnudas Got blinded e How I know) que Chaz mostra o plano de voo de um álbum que decola lentamente, vai às nuvens e depois desce ao solo com total elegância. É o que chamam de ataque surpresa.
Hardcore will never die, but you will | Mogwai | 7
Meu preferido do Mogwai ainda é Come on die young, de 1999. Mas admito que o disco me infernizou porque a sonoridade da banda, para mim, ainda soava como um mistério. Era diferente de tudo o que eu ouvia na época: selvageria e delicadeza em medidas equivalentes, free jazz + punk (e a impressão de que havia algo doentio no ar). Com o tempo, a banda teve que lidar com o fato de que esse estilo passou a soar familiar aos nossos ouvidos. Talvez desde Rock action (2001), eles gravam discos que não nos assustam, mas que vão humanizando esse estilo (“space rock”, prog, “pós-rock”, chame como quiser). Hardcore will never die é um dos melhores momentos dessa fase mais desencarnada: você ouve o disco e imagina uma banda ensaiando no estúdio, procurando por horas e horas o “riff mágico”. É uma outra beleza, muito diferente daquela antiga, mas tá lá: ela também nos hipnotiza.
Space is only noise | Nicolas Jaar | 7
A história de Nicolas Jaar é tão cinematográfica que nos deixa à vontade para ignorar o que há de mais frágil neste disco de estreia: nascido em Nova York, ele passou a infância em Santiago (Chile) e estreou na eletrônica aos 14 anos. Space is only noise é o catálogo de referências desse garoto-prodígio (agora com 21 anos): pop francês e jazz, Kraftwerk e trilhas sonoras de ficção científica, minimal e Ray Charles. Os sons desencontrados, às vezes abandonados em vinhetas — mas tudo de propósito, já que o conjunto abre centenas de possibilidades para o próximo disco, vide Flying Lotus e Bibio —, mostram que Nicolas está afinado a um grupo de artistas que vê o álbum como uma espécie de bloco de notas: cada faixa é uma experiência — e a graça não é transformá-la numa canção convencional (mas exceções como a faixa-título e I got a woman provam que o garoto se sairia muito bem nesse ramo).
Collapse into now | R.E.M.
Escrevi pro jornal um textinho sobre o novo do R.E.M., Collapse into now. Quase tudo o que eu penso sobre o disco, que passou quase batido pelos meus headphones, está lá.
Para evitar que este blog perca o timing dos acontecimentos – e sem medo de soar incoerente, já que o próprio álbum é confuso, desconjuntado -, dou o “ctrl+v” na resenha para, logo em seguida, fazer alguns comentários que não couberam na página de papel. É assim:
Um estilo no automático
Ainda que não faça questão de esconder as rugas, o R.E.M. rejuvenesceu pelo menos 10 anos com Accelerate, de 2008. Aquele era um disco de rock compacto, tostado por uma iluminação dura que incidia em todas as canções. Em comparação, Collapse into now sinaliza um retrocesso: uma aventura sem tantos riscos, que provoca no fã a sensação imediata de familiaridade.
Em entrevistas, Michael Stipe comentou que o álbum espelha uma nova forma de consumir música, mais desatenta e fragmentada. Talvez faça sentido. Tal como The king of limbs, o mais recente do Radiohead, este conjunto de faixas também carece de unidade, de uma narrativa que garanta a elas um chão.
Talvez o vocalista tenha razão quando nota, que em 2011, o público se apaixona mais por canções que por discos. Esse “estado de coisas” justifica o formato despreocupado de Collapse into now, com um punhado de cenas fortes — como a vibrante All the best, que gruda na primeira audição, e as delicadas Überlin e Walk it back — que não se encaixam.
De um lado, há os herdeiros ruidosos de Accelerate. De outro, as reminiscências dos anos 1990. Ao afrouxar as ambições, o R.E.M. produz uma obra de impasse (e, quem sabe, transição), na linha de New adventures in hi-fi (1996) e Reveal (2001).
O que distancia este novo R.E.M. da obra-prima Automatic for the people é, acima de tudo, um certo desânimo com as palavras. Os versos se tornam cada vez mais singelos, sem a densidade dos tempos de Document, por exemplo.
A soma desses microcontos, apesar de flashes de inspiração (como Oh my heart e Discoverer), resulta numa obra efêmera. Ou, no melhor dos cenários, uma pausa breve no meio do caminho.
Duas ou três coisas mais:
1. Numa entrevista, Mike Mills apontou a diferença entre Accelerate e Collapse into now: aquele era um “statement”, este novo é um conjunto de canções “sem regras”. Pois percebo cada vez mais que o R.E.M. se sai melhor quando grava “statements” – discos coesos, cheios de regras, envolvidos numa atmosfera, num tom muito específico. São esses os meus preferidos: Murmur, Document, Automatic for the people, Monster (e daria para incluir Accelerate aí, mas não vejo tanta potência nas canções).
2. Já os discos “de transição” sempre têm dois ou três momentos de parar o coração (At my most beautiful, em Up!, E-bow the letter e Electrolite, em New adventures in hi-fi), mas soam como exercícios leves, que não exigem muito esforço – uma banda ganhando tempo. Collapse into now faz parte desse círculo – não tão potente quanto New adventures in hi-fi, não tão irregular quanto Reveal.
3. O mais triste é que, nos versos de Collapse into now, dá para notar um “tema” – melhor: um estado de espírito – que poderia formar um álbum menos desfocado. Os personagens de faixas como Walk it back e Oh my love são tipos que chegam à meia-idade como quem tenta reconhecer uma cidade em ruínas (não à toa, parte do álbum foi gravada em Nova Orleans). As faixas mais alegrinhas aliviam esse disco cinzento que existe aqui dentro. Mesmo quando Stipe avisa que vai ensinar os meninos a agir do jeito certo (em All the best), fica a imagem de uma risada amarga, irônica. Desconforto.
4. Existe aí dentro um álbum sobre efeitos do tempo, reconstrução, reencontros. Mas a ideia está dissolvida; talvez ganhe corpo mais tarde.
Décimo quinto disco do R.E.M. 12 faixas, com produção de Jacknife Lee. Lançamento Warner Music. 6/10
I’ll take care of you | Gil Scott-Heron e Jamie xx
Os remixes de Jamie xx para a música de Gil Scott-Heron são econômicos o suficiente para deixar a impressão de que foram gravados num laptop sem tanto espaço no HD (e é essa concisão, aliás, que faz de We’re new here um dos meus discos favoritos deste ano). Mas, dentro desse álbum doméstico, I’ll take care of you é o momento em que o produtor abre a janela e deixa entrar uma lufada quente de dance music. O clipe, de James Medina e AG Rojas, também é caloroso: o dia a dia de uma lutadora, no ringue e em casa. Pés no chão.
Best of Gloucester County | Danielson
Se você tateia a web à procura de uma ou duas informações sobre Gloucester County — o cantinho aprazível de Nova Jersey onde vive Daniel Smith — provavelmente cairá no site oficial do condado. A página o receberá com o seguinte slogan: “Perto de qualquer coisa. Longe de tudo.”
No lado direito da tela, um link leva o leitor a uma eleição on-line. No 15th Annual Best of Gloucester County, os moradores podem votar nos melhores serviços locais. O dentista mais eficiente, o banco que não deixa ninguém na mão, o médico de confiança, a melhor agência de turismo, o lava-jato número um. Imagino que, na cerimônia de premiação, sirvam ponche com gelatina para a comunidade.
Parece um bom lugar para ancorar a família e envelhecer.
Esse ambiente um tanto quanto plácido – mezzo urbano, mezzo rural, mezzo lugar-nenhum – é o cenário do novo disco do Danielson, a banda de Smith. É um endereço apropriado. Desde 1994, quando lançou o primeiro álbum, o compositor adota um esquema comunitário de gravação – entra em estúdio acompanhado da família e dos amigos (no disco Fetch the compass kids, de 2001, ele assina ‘Danielson Famile’). Desta vez, assume de vez o status de líder da vizinhança.
Smith escreve canções com nervos à mostra, íntimas e por vezes complexadas, que o colocam no mesmo clube de compositores como Jason Lytle (Grandaddy), Mark Linkous (Sparklehorse) e Sufjan Stevens. Mas o coração do sujeito é espaçoso, gregário: sempre cabe mais um; a impressão é de que ele nunca está só.
Já a partir do título, o espírito de Best of Gloucester County é de reunião de músicos do bairro no galpão à esquerda do coreto. Sábado à tarde. Com cerveja e petiscos.
Aparentemente, o arranjo lembra discos anteriores de Smith. Mas um detalhe muda tudo. O cantor se afastou da família para se aproximar dos amigos – e, nesse processo de reconhecimento do mundo lá fora, criou uma banda nova, com os “locais” Patrick Berkery (bateria), Evan Mazunik (piano), Joshua Stamper (baixo), Andrew Wilson (guitarras) e, last but not least, Sufjan Stevens (banjo).
O desejo de simular uma “banda de meninos” acaba tensionando as melodias de Smith, que reaparecem mais compactas, sem muito dos penduricalhos e dos colorido “space rock” de Ships (2006). Aquele era um discaço de pop psicodélico cristão. Best of Gloucester County é um caso mais informal, menos ambicioso: longe das obrigações domésticas, Smith se espreguiça.
Essa atmosfera de leveza, no entanto, não nos poupa de agonia que sempre transparece nos discos do homem. Ships era, em grande parte, um álbum angustiado sobre fé. Aqui, Smith pisa o chão com faixas sobre questões mais mundanas: a o desânimo diante de um cotidiano repetitivo (a excelente Compliemtary Dismemberment Insurance), as lembranças da infância espelhadas no medo de enfrentar responsabilidades de adulto (Grow up), uma certa euforia infantil (Lil Norge, com participação de Jens Lekman) e a espiritualidade que remedia os momentos de crise (Hosanna in the Forest). Um homem comum.
É o disco mais simples – e também o mais franco, o mais pessoal – que Smith gravou. Quando as confissões do cantor encontram uma banda também emocionada, pronta para derrubar as paredes da garagem com marteladas de hard rock e psicodelia folky – nas três primeiras faixas, principalmente -, ele faz por merecer o trono de Gloucester County. Os violões de This Day is a loaf, por exemplo, nos levam ao Beck de Mutations – e é uma dessas comparações monumentais, sim.
Só que não é um disco perfeito: o formato franciscano, em clima de brodagem, acaba por revela mais as fragilidades do compositor (as ideias se esgotam rapidamente, antes da metade do repertório) do que a aura de mistério e de estranha pureza que nos fazia voltar a discos como Ships e Brother is to son (2004).
É que o olhar para as ruas e os vizinhos – para o cotidiano — poderia ter renovado as canções de Smith. Poderia. De certa forma, é um disco que surpreende os devotos – é modesto demais. Best of Gloucester County, no entanto, nos deixa com saudades do tempo em que este líder comunitário desprezava as reuniões de condomínio e passava noites e noites olhando para o céu.
E aí, aí sim: não havia limites.
Oitavo disco de Danielson. 11 faixas, com produção de Daniel Smith. Lançamento Sounds Familyre. 6.5/10
Os discos da minha vida (30)
É carnaval, afinal: a saga dos 100 discos que jogaram serpentina na minha vida apresenta dois clássicos para ouvir antes da quarta-feira de cinzas.
O blog está um pouco combalido, coitado, numa eterna ressaca de viver, mas este ranking não nega fogo. É muito chão, ó folião. Muito samba, suor e download.
Se este blog fosse uma escola do grupo especial, estes discos desfilariam na velha guarda, ensinando à ala dos novatos como é que se dança.
O download é obrigatório. Minto: não é obrigatório nada, já que obviamente vocês conhecem os disquinhos como a palma da mão.
E perdoem o desânimo. Este post foi escrito quando o trio elétrico passou na poça de lama e deu um banho no sujeito que estava ali no calçamento. O sujeito era eu. Em outras palavras: muito trabalho e pouca diversão fazem do Tiago um blogueiro sem paixão.
E chega de concentração.
042 | Younger than yesterday | The Byrds | 1967 | download
“Então você quer ser um astro de rock ‘n’ roll?”, provoca o Byrds, logo na faixa de abertura deste disco. Antes de inventar o country rock (e Sweetheart of the rodeo é desses discos indispensáveis), a banda de Jim McGuinn e David Crosby ajudaram para criar a ideia de juventude que fez dos anos 60 uma década fundamental para a música pop. Genial já no título, Younger than yesterday é todo dedicado a essa mescla de ingenuidade e atrevimento, como se dissesse adeus a um tempo que estava prestes a mudar. No lado B, a versão para My back pages (Bob Dylan) funciona como uma declaração de intenções: uma banda de rock um tanto saudosista, mas que nada pode fazer além de olhar para frente — quase por acaso, ia deixando discos extraordinários no meio do caminho. Top 3: Have you seen her face, My back pages, So you want to be a rock ‘n’ roll star
041 | Exile on Main St. | Rolling Stones | 1972 | download
Ninguém deve entrar na discografia do Rolling Stones por esta porta aqui, mas foi o que aconteceu comigo. Não me arrependo, mas audições compulsivas de Exile on Main St. podem lançar uma luz dura, cruel, sobre os outros álbuns da banda. Seria melhor tratamos como uma espécie de hors concours: nas primeiras audições, soava como pura selvageria — a longa jornada de um grande grupo de rock rumo à selva do blues. Literalmente: soul music. Depois, já conhecendo a história do disco, percebi que ele vai muito além de uma homenagem a certas tradições americanas. Este mamute registra os humores de uma banda que é sim gigantesca, por vezes caótica, e, por isso tudo, se revela por completo quando numa sala espaçosa, com tempo livre, dezenas de guitarras coloridas para brincar. Um retrato ampliado, este aqui. Top 3: Shine a light, Tumbling dice, Rocks off.