Mês: janeiro 2012

cine | Os descendentes

Postado em Atualizado em

Volta e meia, ouço alguém comentar que, com o passar do tempo, o cinema de Alexander Payne vai ficando melhor. Mas não, apesar disso, não consigo ver neste Os Descendentes um filme superior a, por exemplo, Eleição. Ou a Sideways, de que nem sou grande fã. Ou, indo um pouco mais longe, a Ruth em Questão. É muito fácil perceber algumas diferenças entre este projeto novo e os anteriores, e nove entre dez resenhas vão apontar que ele parece, por exemplo, mais direto e sincero que os outros — mas eu, que não tenho absolutamente nada contra as sátiras, ainda acredito que o diretor segue aplacando as próprias forças à serviço de um cinema brando, que não quer (nem vai) incomodar ninguém.

Ao contrário de Eleição, que ia desmontando lentamente uma série de estereótipos grosseiros, os personagens de Os Descendentes são pessoas comuns e plausíveis, bem intencionadas, que se envolvem em conflitos também não muito espetaculares, engatilhados por uma tragédia doméstica. Numa das primeiras cenas, o protagonista do filme nos avisa, em off, que ele quer ser um bom pai. Não soaria muito convincente — mas, já que é George Clooney quem diz, acredito. Certa vez, num perfil publicado na Vanity Fair, alguém escreveu que ele é “o único ator americano que irradia uma sensação tranquila de maturidade”. O personagem do livro de Kaui Hart Hemmings parece ter sido criado especialmente para provocar fissuras na persona do astro.

A tranquilidade desse herói-como-a-gente é tão falsa quanto os lugares comuns que se associa ao lugar onde ele vive, o Havaí. Payne brinca a todo momento com essas aparências enganosas: a trilha, composta por delicadas canções havaianas, dá uma aparência de leveza ao filme que contrasta com temas que estão envenenando o ambiente (doença, morte, infidelidade). O diretor evita alguns maneirismos visuais que apareciam, por exemplo, em Sideways (como as cenas kitsch da vida caipira que interligavam as sequências da trama) — mas não sei se esse espírito de contenção deve ser tomado como um passo a frente para o estilo do cineasta. É apenas o tom que combina com um roteiro também muito modesto.

Dentro desse formato discreto — e ok: o filme é uma crônica, ainda que sem os encantos das anotações de um Hong Sang-soo —, algumas marcas do cineasta destoam: os personagens de efeito cômico (como o namorado da filha do protagonista) soam como caricaturas, perdidas dentro da trama. O próprio personagem de Clooney às vezes parece pronto para fitar a câmera e perguntar por que o filme decide acompanhá-lo com exclusividade, sem se importar muito com os restante do elenco. Payne não responde, mas consegue criar o filme franco, sem cinismo (mas eu não diria sutil, nem engraçado) que muitos esperavam dele. Se o cinema do diretor seguir nessa toada, só torço para que ele encontre uma viés particular para lidar com esse tom bege de drama. Por enquanto, não vejo razão para ficar festejando: a experiência não produziu mais que um filme adorável porém singelo, de que não lembrarei na próxima temporada do Oscar.

(The Descendants, EUA, 2011). De Alexander Payne. Com George Clooney, Shailene Woodley e Amara Miller. 115min. C+

mixtape | Janeiro, from a room

Postado em Atualizado em

A mixtape de janeiro é um pouco diferente da de dezembro, mas não muito.

A ideia era gravar uma coletânea mais alegre e dançante, só que todos os planos tiveram que ser alterados depois que ouvi os discos da Sharon Van Etten (que está na foto acima) e do Leonard Cohen (daí o nomezinho do post, em homenagem ao homem). A mixtape, portanto, passou a ser conduzida pela sonoridade, digamos, crepuscular desses dois álbuns.

É uma das minhas mixtapes preferidas – e acho que gosto muito dela porque não foi tão simples encontrar as músicas que combinassem direitinho com a atmosfera que eu queria sugerir. Tive que me livrar de algumas boas faixas, que estão entre as minhas preferidas do mês. Na minha modestíssima opinião, o esforço de não fugir ao tema compensou: o disquinho faz sentido e conta uma história.

Aqui dentro, vocês vão ouvir músicas novas também de John K Samson, Whistle Peak, Bears, Lana Del Rey (ok, essa não é tão nova), Craig Finn, Damien Jurado e Lambchop. A lista das faixas está na caixa de comentários.

Como de costume, você pode fazer o download da mixtape ou ouvi-la aqui no blog. Recomendo a segunda opção: desconfio que o arquivo em mp3 vá desaparecer rapidamente.

Comentários serão bem recebidos. E, antes que eu esqueça, esta mixtape é dedicada ao Daniel (nada de hip-hop desta vez!) e ao Adalberto, que talvez curtam os climas tão realistas (e adoráveis, de vez em quando) deste disquinho.

Faça o download da mixtape de janeiro

Ou ouça aqui:

Vídeos do VodPod não estão mais disponíveis.

♪ | Provincial | John K. Samson

Postado em Atualizado em

No episódio de ontem, quando falei sobre o disco novo do Lambchop, tentei (sem sucesso, acho) descrever um som que remete a um livro elegante de crônicas sobre o cotidiano e as responsabilidades de um homem adulto. Este primeiro álbum solo do canadense John K. Samson — líder da banda de folk punk The Weakerthans — também soa como um apanhado de impressões sobre o dia a dia. Mas com uma diferença importante: enquanto o Lambchop vem afinando uma sonoridade que tenta se colocar à altura dos temas das músicas, as anotações de Samson ainda soam informais, sem estilo ou tanto rigor; Provincial não é um livro, mas uma coleção de post-its sobre certos assuntos, paisagens e situações.

O compositor organiza as canções no disco como quem espalha polaroides na cama: o álbum é simplesmente um apanhado de canções já gravadas (e lançadas em dois EPs) com algumas músicas novas. Nos identificamos com Samson porque ele é o boa-praça, o chapa, o sujeito comum que talvez tenha ouvido muito Elliott Smith, Big Star, Neil Young (fase Harvest Moon) e R.E.M.. One of us, one of us.

Nada disso impede Provincial de nos ganhar com alguns cliques adoráveis da vida como ela é (especialmente na província de Manitoba, onde o músico vive): em When I Write my Master’s Thesis, ele conta a história de um estudante que, aflito, tenta se manter saudável enquanto escreve a tese de mestrado. Em outro momento, entra na campanha para levar o jogador Reggie Leach ao Hall da Fama do Hockey (ah, as grandes causas!). E tem Cruise Night, que encena com euforia power pop o passeio (desimportante) do narrador, no carro do irmão, num domingo igual aos outros. Banal, certo? Também muito agradável.

Primeiro disco solo de John K. Samson. 12 faixas com produção do próprio músico. Lançamento ANTI- Records. B

♪ | Mr. M | Lambchop

Postado em Atualizado em

Ninguém vai levar como ofensa (talvez nem a própria banda) se você afirmar que o Lambchop grava sempre o mesmo disco. Será, é claro, uma generalização. Mas não muito absurda, principalmente quando se fala numa fase que começou em 2002 (com Is a Woman) e segue imperturbável há uma década, cingindo um céu aberto e tranquilo.

Nenhum dos discos do Lambchop pós-Is a Woman contém os desafios de Nixon (2002), que acabou representando um período de transição para o grupo de Nashville. O álbum capta um momento de experimentação, quando eles tentavam, já fora da fazendinha do “country alternativo” e combinar certas referências de soul music, country, jazz, gospel e lounge. A aventura modificou a banda quase por completo. Compreensível: se eu ainda não me recuperei da porrada de Up with People – que é uma obra-prima -, imagino que essas e outras invenções tenham sequelado a banda.

No disco seguinte, o Lambchop definiu um modelo sonoro que, hoje em dia, provoca preguiça até na própria gravadora. A Merge Records descreve esse modus operandi da seguinte forma: “como nos discos anteriores, muitas das canções de Mr. M são emolduradas por cordas exuberantes, e existe uma camada contida de distorção e dissonância; o centro da música ainda está no movimento cíclico da guitarra de Kurt Wagner e o coaxar suave e caloroso de sua voz.” Não deixa de ser um resumo fiel do disco, mas que parece apontar para palavras como estagnação e comodismo. É isso? O mesmo disco, mais uma vez?

Acho que sim e que não. Sim porque, vamos ser honestos, só consigo ouvir em Mr. M (e no anterior, Ohio) o lentíssimo polimento de um estilo que talvez esteja precisando mesmo de uma chacoalhada. Mas não, porque este parece ser o disco que Kurt Wagner sempre quis gravar: um álbum que soa como um dia comum, um elogio en passant ao cotidiano; moroso porque, entre outras coisas, a vida às vezes é assim mesmo. E não é de hoje que o Lambchop tenta sonorizar situações comezinhas (nem por isso pouco tristes, melancólicas, tocantes), geralmente observando a rotina do casamento, das relações de amizade e da família. Esse olhar ainda tem seu encanto.

Quem chega pela primeira vez à banda pode se convencer de que é um projeto tedioso: as canções são quase sempre longas e parecidas umas com as outras, com sutilezas que exigem muitas audições e insights literários que talvez não despertem paixões em muita gente. O humor da faixa 2B2, uma canção absolutamente realista sobre a vida a dois, é discreto demais para chamar a atenção. E as instrumentais Gar e Betty’s Overture são lindas e perfeitas como peças de porcelana: cheias de detalhes que devem ser admirados à distância. No mais, o disco faz anotações sobre a vida adulta por um viés que não tem absolutamente nada de juvenil. Não é fácil, não é fofo, não coloca ninguém pra dançar, não fica borbulhando ideias.

É um som quase ambiente, que faz ainda mais sentido numa dessas manhãs serenas de domingo, quando o que nos resta é uma sucessão de pequenos eventos banais. O mesmo domingo. Kurt Wagner ainda é capaz de olhar para essa paisagem silenciosa (que pode ser bonita ou terrível, ou as duas coisas) e encontrar aí um mistério, e uma razão para compor.

Décimo primeiro disco do Lambchop. 11 faixas, com produção da própria banda. Lançamento Merge Records. B

♪ | Patience (After Sebald) | The Caretaker

Postado em Atualizado em

No livro Os anéis de Saturno, de 1995, o escritor alemão W.G Sebald narra as lembranças de um homem que está internado em um hospital, imóvel, preso a uma cama. A condição física do personagem determina o tom do texto: enquanto relata a caminhada que fez em East Anglia, na região leste da Inglaterra, o narrador oscila entre a tentativa de engaiolar memórias e o desalento provocado pela degradação do próprio corpo. A viagem mental do protagonista se torna, por isso, uma história de escapismo — e, por fim, uma ilusão trágica.

O cineasta Grant Gee, de documentários como Meeting People is Easy (do Radiohead) e Joy Division, entendeu que não seria possível acenar para esse romance de uma maneira direta — a trama, afinal, nada mais é do que um delírio. Ainda não vi o filme, mas a trilha sonora do doc Patience (After Sebald) indica, ao menos, que ele saiu à procura de sons que comunicassem algo sobre o estranho fluxo de pensamentos do narrador/escritor – o longa remonta o trajeto que o próprio Sebald fez e, em seguida, recriou no livro. Nada mais coerente, portanto, que convidar Leyland Kirby para compor a música do filme — no The Caretaker, o músico também tenta sonorizar processos cerebrais, recriando com samplers, ruídos, ecos e outros efeitos desconcertantes o jeito desconexo como a nossa mente engatilha as lembranças.

Uma das referências principais do Caretaker é a cena de baile do filme O Iluminado — que resume a atmosfera de nostalgia fantasmagórica que encontramos em discos como An Empty Bliss Beyond this World, um dos meus preferidos do ano passado. Mas ninguém que o conhece acharia absurdo se Kirby confesasse que o livro de Sebald também o influenciou. A música do compositor parece, ela própria, existir num estado em as sensações se tornam confusas, como cartas embaralhadas. Uma faixa do Caretaker pode provocar, a um só tempo, a impressão de ser profundamente melancólica, delicada e assustadora. É o que acontece quando estamos sonhando: perdemos o controle da atividade mental.

A trilha de Patience, escrita antes de An Empty Bliss, simula esse transe sentimental de uma forma muito direta, até (digamos) óbvia, e talvez por isso não me perturbe tanto quanto o álbum anterior do Caretaker. Praticamente todas as faixas são formadas por duas camadas: samplers melodiosos de piano (Schubert, 1927) sobrepostos a uma neblina de distorção, que soa como o ruído enervante de uma rádio fora de sintonia. Está descrita, nesse puzzle sonoro, a agonia do narrador, que vai catar as boas memórias no fundo de uma espécie de lodo existencial. Como costuma acontecer, os títulos das faixas de Kirby nos guiam como lanternas: uma delas atende por (brr) In the Deep and Dark Hours of the Night.

O disco não provoca o espanto de An Empty Bliss Beyond this World, que criava um jogo impressionante de repetições e surpresas dentro de cada faixa. Mas talvez devamos nos contentar com o fato (formidável) de que, aqui, Kirby preferiu simplesmente estudar o livro de Sebald. E, como se arrematasse apenas um trabalho encomendado, ele nos transporta novamente a um ambiente abstrato, insólito, indescritível, lindo e horrível, que a arte tem o poder de alcançar.

Disco do The Caretaker. 12 faixas, com produção de Leyland Kirby. Lançamento History Always Favours the Winners. B+

cine | Sherlock Holmes: o jogo de sombras

Postado em Atualizado em

Esta continuação de Jogos, Trapaças e Sherlock Holmes é um parque temático para meninos em descontrole hormonal. Com decoração retrô, cinco montanhas-russas, show pirotécnico, performance de stand-up comedy e funcionários fantasiados com figurinos pesadões de época, este espetáculo de imagem&ruído talvez resuma o cinema-maçaranduba de Guy Ritchie, um cineasta que usa qualquer projeto como desculpa para filmar os mais eletrizantes anúncios de energético.

O diretor facilita, dessa forma, o trabalho de qualquer crítico de cinema. Já que, para escrever sobre Sherlock Holmes: O Jogo de Sombras, não é necessário conhecer (ou pesquisar) nadica sobre a obra de Arthur Conan Doyle. Até porque o próprio Ritchie não parece ter a conhecimento algum sobre o personagem que está adaptando: como acontecia no episódio anterior, o detetive é transformado num típico veículo para o Robert Downey Jr pós-Homem de Ferro — um action hero bronco, sarcástico, de maus modos, espírito keithrichardiano e que parece sempre estar fazendo graça de tudo (nos melhores momentos, do próprio filme). Tudo o que havia de particular (e de elegante; mas Ritchie não conhece essa palavra, for sure) no tipão inventado por Doyle é massacrado em mil pedacinhos fumegantes.

Existe um público com sangue nos olhos por esse Hopi Hari audiovisual, é claro. Na sessão em que vi o filme, as pessoas aparentemente conseguiram acompanhar uma trama de mistério (?) que me pareceu quase incompreensível — ela se movimenta como um jato em queda, soltando placas de metal, pegando fogo e fazendo muito barulho. Quando o filme puxa o freio, o faz para Ritchie demonstrar aquilo que ele chama de estilo: sequências supostamente bonitas, que alternam cenas em câmera lentíssima com flashes acelerados. Eu, que não me dou muito bem com montanha-russa, admito que fiquei um pouco enjoado.

(Sherlock Holmes: A Game of Shadows, EUA, 2011) De Guy Ritchie. Com Robert Downey Jr, Jude Law e Jared Harris. D+

♪ | Tramp | Sharon Van Etten

Postado em Atualizado em

Se você quiser, Tramp pode ser um disco muito simples.

Ele conta a seguinte história: num período de 14 meses, Sharon Van Etten viveu em Nova York sem residência fixa. Era obrigada, a todo momento, a fazer malas e se mudar para a casa de um ou outro conhecido. O alento da compositora era estúdio caseiro de Aaron Dessner, guitarrista do The National, onde ela gravou algumas canções — lá, se sentiu em casa. Às vezes, amigos como Matt Barrick (Walkmen), Zach Condon (Beirut) e Julianna Barwick acabavam aparecendo.

Nada extraordinário nisso. Músicos gravam. Músicos têm amigos. Músicos, principalmente os independentes, às vezes não têm onde morar.

Mas o contexto do disco, que está muito bem resumido neste texto de divulgação da gravadora Jagjaguwar, não me parece desimportante: o álbum pode ganhar uma série de conotações quando descobrimos que foi gravado nos raros momentos estáveis de um período que, para Sharon, foi de total instabilidade.

Ainda que essa história-de-bastidor não esclareça muitos dos mistérios das canções (e são daquelas músicas que se tornam mais profundas a cada audição), ela talvez explique por que consegue soar, ao mesmo tempo, convidativo e extremamente tenso. A gravação, dirigida por Dessner, é controlada, tranquila; mas as canções estão sempre explodindo em aflição.

Sem querer interpretar o disco além da medida (mas já superinterpretando, me perdoem): desconfio que, para Sharon, o estúdio de Dessner tenha funcionado como um espaço neutro, seguro, para a contemplação das próprias incertezas — um lugar onde ela organizava as impressões do dia-a-dia, como quem revisa os textos de um diário, pouco antes de dormir. Tramp medita sobre o ritmo de uma vida em fluxo, mas não soa simplesmente desamarrado. É, ao contrário, um disco muito forte de afirmação, sobre procurar um lugar no mundo, sobre mudar e crescer.

Esse processo pode ser especialmente complicado, perceba, se você é uma compositora que tenta se fazer notar em meio a uma multidão de cantoras hipersensíveis e supervalentes. Sharon sai perdendo por não ter nenhum truque extravagante à mão (e, perto de Zola Jesus, ela é a mais conservadora das songwriters), e escrever canções que poderiam ser facilmente creditadas ao repertório de uma Feist (nos momentos de maior aspereza, principalmente do disco mais recente). É por isso que Tramp também pode ser um álbum muito difícil: é preciso alguma paciência para notar o que há de particular no temperamento e na arte de Sharon.

E é quando se consegue essa aproximação que o efeito do disco se torna irresistível. Música a música, com um kit de lentes mais generoso do que os equipamentos usados nos dois discos anteriores, é como se Sharon estivesse criando curtas-metragens para representar determinadas situações/sensações — sequências densas, sem muitos encantos imediatos, que vão se abrindo aos nossos ouvidos a cada reprise. Não há minuto perdido, e poucas são as cenas que se repetem. É até emocionante como ela salta de uma canção mais irritadiça (Serpents) para uma balada escrita quase como uma canção de ninar, com sílabas alongadas e coro angelical (Kevin’s). Neste álbum, está claro que ela teve direito ao corte final.

Pelo menos duas canções me parecem eternas, e já estão muito bem acomodadas na minha lista de melhores do ano: a primeira, Give Out, transforma as impressões de êxodo, que a cantora conhece bem, numa love song das mais tocantes (No refrão, ela canta: “você é a razão por que eu vou mudar de cidade/ou por que não vou partir”); a outra, I’m Wrong, começa com uma linha árida de guitarra, que vai ganhando ecos e os efeitos de um jingle natalino .“É ruim acreditar em todas as canções que você canta”, ela repete, e repete, até se deixar soterrar pelo torvelinho de melodia.

E é nesses momentos que, se você quiser, Tramp pode ser o disco mais bonito do mundo.

Terceiro disco de Sharon Van Etten. 12 faixas, com produção de Aaron Dessner. Lançamento Jagjaguwar Records. A

cine | Precisamos falar sobre Kevin

Postado em Atualizado em

Imagino que, com os temas que aparecem nesta adaptação do livro de Lionel Shriver, seria possível pautar uma edição especial de um programa de tevê à la Oprah Winfrey. O título não é desonesto: o filme trata de assuntos importantes, urgentes, e sobre eles precisamos falar. Exemplo: o que fazer quando o seu filho não gosta de você? Ou: como lidar com as consequências da violência juvenil? Mais: até que ponto os pais são responsáveis pelos erros dos filhos? E: existiria algo inato no comportamento de crianças más?

Uau. Eu passaria uma tarde inteira conversando sobre cada um desses tópicos. Mas não sei se seria muito palpitante falar sobre o filme em si. Certamente, nesse caso, uma das questões em discussão seria, ahn, a forma como a diretora Lynne Ramsay cria uma narrativa entrecortada, que se deixa influenciar pelo estado mental confuso da personagem principal. Ou conversaríamos sobre o detalhismo da cineasta, que presta atenção aos detalhes das cenas (são muitos os closes, e eles provocam certa aflição), ao uso de cores (vermelho sobre vermelho, em repeat) e à composição ultradelicada da trilha sonora (que vai nos asfixiando sem que percebamos). São efeitos que compõem um drama potente — pelo menos nos primeiros 10 minutos de projeção.

Depois, lá pelo 15º minutos de filme, quando a trama vai se tornando clara ao público, notamos que os argumentos de Ramsay são fáceis demais. E argumentos simplórios, ainda que úteis a especiais de tevê, invalidam debates sérios sobre qualquer assunto. O defeito do filme, a meu ver, está na composição do personagem de Kevin — um menino-problema diabólico, sem nenhum traço de bondade. A atuação de Tilda Swinton é admirável — e talvez, por isso, estamos sempre torcendo por ela. A personagem que ela interpreta, a mãe atazanada pelo filho indesejado, carrega toda a culpa do mundo. Mas o filme não deixa margem para que duvidemos do caráter do garoto. Numa das cenas, ele joga videogame com a fúria de quem pisoteia um gatinho.

Sob a tutela de um Aronofsky, esse conflito entre mãe assustada e filho psicopata talvez rendesse um filme menos sisudo, mais kitsch e vibrante (resumindo: um Cisne Negro). Em Precisamos Falar sobre Kevin, o tom é sempre o de uma palestra relevante, um artigo solene para acompanhar as breaking news: uma diretora competente usa uma série de recursos audiovisuais interessantes à serviço de personagens aplainados, planejados em excesso, que podem ser catalogados e, por isso, convertidos em temas para consumo rápido (em jornais/revistas semanais?). Não há mistério que resista a tanta simplificação.

(E notem que escrevi o post inteiro sem fazer referência a Elefante — me parabenizem na saída, ok?).

(We Need to Talk About Kevin, Reino Unido/EUA, 2011) De Lynne Ramsay. Com Tlda Swinton, John C. Reilly e Ezra Miller. 112min. C

top 100 | Os filmes da minha vida (14)

Postado em Atualizado em

Cá estamos com mais um capítulo da saga heroica dos 100 filmes da minha vida. Desta vez, sem muito papo: são dois longas que, por coincidência, vi pela primeira vez na mesma época. E que não revejo há mais de 20 anos. Boa sorte com eles, então.

074 | Até o Fim do Mundo | Until the End of the World | Wim Wenders | 1991

Não sei se acontece com todo muito que gosta de cinema, mas eu vivi sim, admito, a fase dos longas-metragens muito longos. Aconteceu por volta dos meus 11 anos, quando bateu uma fissura inexplicável por fitas duplas de VHS – lembro de alugado, de uma vez só, os três capítulos da série O Poderoso Chefão. Nesse período, assisti a este exagero exageradíssimo de Wim Wenders – um dos épicos mais delirantes (e desembestados, mas essa é outra história) de que tenho conhecimento. Coppola era um ídolo. Mas foi diante deste road movie apocalíptico – como que escrito durante um transe provocado por overdose de livros do Philip K. Dick – passei a admirar os cineastas que se permitiam filmar sem prudência, pateticamente além da conta. A fase dos longas de mil páginas, no entanto, não durou muito: hoje, não sei se teria paciência de cair nessa estrada novamente.

073 | Fome Animal | Braindead | Peter Jackson | 1992

Nenhum filme de Peter Jackson me entusiasmou tanto quanto esta comédia de terror – que, creio eu, fica ainda mais interessante quando vista imediatamente depois de qualquer episódio da série O Senhor dos Anéis. Já em 1992, o diretor parecia entender muito bem como usar efeitos visuais para definir o tom da narrativa. No caso, o excesso grosseiro de gore transforma cada cena num cartoon adolescente – surpreendendo, a cada virada de página, quem acredita ter finalmente identificado os limites do filme. Para um menino de 12 anos, fã de Evil Dead 2, era o tipo de obra-prima que os adultos obviamente jamais entenderiam. Desde então, Jackson dirigiu alguns filmes de aventura – mas ainda nos deve um outro filme assim tão aventureiro.

♪ | Baby | Tribes

Postado em Atualizado em

A estreia do Tribes é, digamos, um grande álbum de rock para quem ainda se importa com grandes álbuns de rock. Não é uma plateia pequena: as multidões que se entusiasmaram com os mais recentes do Foo Fighters e de Florence + the Machine possivelmente vão receber este superdisco com muito carinho. Isso porque o objetivo deste quarteto de Camden, Londres, é deixar marcas numa calçada da fama que inclui ídolos como Oasis, Strokes, Libertines e Pixies. “Belas referências”, diria o coordenador do departamento de Recursos Humanos da gravadora Island, que os contratou em meio ao oba-oba anual do semanário New Musical Express. A banda, se tudo der certo, vai se mostrar competentíssima na dying art de vender discos: em Baby, posso detectar cinco singles fortes, sendo que um deles vampiriza muito alegremente uma das canções mais conhecidas do Pixies, Where is my Mind?

Voltemos a 1988, então. Surfer Rosa, o primeiro LP do Pixies, talvez não seja um dos mais bizarros dos anos 1980 — mas é, e deixe-me escolher uma palavra precisa, rascante. Até chegarmos à faixa de número cinco, Gigantic, o álbum deixa a impressão de ter sido produzido durante um colapso nervoso de Frank Black (naquela época, ainda Black Francis). Nesse contexto, Where is my Mind? oferece um certo alívio: uma canção enlouquecedora, mas maquinada num formato pop. O contraste provocado pela simples disposição daquela faixa entre duas estranhezas (River Euphrates e Cactus) era uma das graças do disco — que, obviamente, não é extraordinário apenas por causa desse detalhe.

Dito isso, bate um desânimo quando percebo a forma tolinha como o Tribes se apropria de uma faixa que, muito possivelmente, eles admiram tanto: We were Children, além de não provocar nenhuma tensão dentro do disco, é apenas um single eficiente entre 10 outros. Os Pixies são tratados — e não pela primeira vez — como uma daquelas estampas bacanas que se gruda na mochila para impressionar quem entende mais de música que você. A faixa resume o que noto como o maior problema do disco: as referências (e inclua aí David Bowie, The Killers, Babyshambles, Arctic Monkeys, Girls) são tratadas como zonas de conforto (já testadas e aprovadas pelos jornalistas que vão elogiar o disco) — e, para não incomodar ninguém, despidas da força, das particularidades originais. É um remake que “funciona”.

Não sei ainda o que é o som do Tribes, e talvez nem eles saibam. Para a NME, o choque de “suavidade e agressividade”, de “glam e grunge”, é uma característica a ser elogiada. Nos meus ouvidos, soa simplesmente como um caso de identidade indefinida: um disco nem tão suave, nem tão agressivo — mas estagnado num meio-termo economicamente viável (o tema do disco é: o desespero de uma gravadora europeia em tempo de crise econômica) —, nem isso, nem aquilo. Talvez tudo ao mesmo tempo. Eclético, digamos. Cheio de (repito) faixas imediatamente adoráveis (Sappho, por exemplo: que single para festinhas de rock! E Bad Apple soa tão dócil), mas que se instala num feixe oportunista e mecânico do rock inglês que me entedia profundamente.

Vai entrar em listas de melhores do ano? Acho que sim. E, depois, os chapas da banda vão desafrouxar gravatas e comemorar no happy hour da firma. Well done.

Primeiro disco do Tribes. 11 faixas, com produção de Mike Crossey. Lançamento Island Records. C

♪ | Greater Lakes | Bears

Postado em

A pequena gravadora Misra Records está muito orgulhosa com o terceiro disco do Bears. A satisfação é tamanha que, no site oficial, avisa que Greater Lakes talvez seja o MELHOR álbum de todo o catálogo do selo (que inclui um punhado de bandas não muito conhecidas, além do Shearwater e do Wooden Wand). Admito que não está sendo fácil, meus amigos, resistir a essa alegria toda em torno de um disquinho tão simpático. Principalmente quando olho a foto de divulgação da banda, que é esta aqui.

Mas este é um blog sério (será?) e, por isso, não posso esconder a impressão de que — apesar da linda ilustração da capa — este disco mostra uma banda que ainda está, como dizer sem soar ofensivo?, engatinhando, naquela fase ainda ingênua em que jovens artistas começam a descobrir um fio de personalidade que, talvez, num futuro distante-ou-próximo-nunca-se-sabe, vai resultar naquilo que chamamos de estilo. O milagre ainda não aconteceu, irmãos. Mas este disco nos dá razões para acreditar que talvez aconteça.

Por enquanto, os heróis dos chapas Craig Ramsey e Charlie McArthur, do Cleveland, aparecem todos na superfície das canções. Há duas ou três faixas em que o vocalista parece imitar Elliott Smith em torno de uma melodia coloridinha à la The Shins. Se fosse um pouco menos valente na escolha de timbres e na disposição de riffs amenos de guitarra, seria até fácil confundir este disco com o mais recente do Nada Surf. Felizmente, não me parece tão coisa-alguma assim.

Greater Lakes é um álbum gentil e com uma forte inclinação ao power pop, feito para uma certa plateia ultrasensível que talvez nem exista mais — no mais, quem quer ser chamado de twee em 2012? Uma das músicas atende por Perfect Girl, e é algo animado que o Jonas Brothers gravaria. Os sintetizadores estão sempre apitando notas graciosas.

Duas músicas, apesar de tudo, me deixaram cheio de expectativas pelos próximos álbuns do duo. A primeira (e melhor) é Don’t Wait — que, toda conduzida por teclados baratos, soa como um remix de Elliott Smith para estações de rádio AM e trilhas de motel. A outra, I Can’t Make Things Right, resume o romantismo adolescente do grupo de uma forma tão meiga e aparentemente sincera que… Talvez a gravadora esteja certa, anyway.

Terceiro disco do Bears. 11 faixas, com produção da própria banda. Lançamento Misra Records. C+

cine | As Aventuras de Tintim

Postado em

Explicar um pouco sobre como descobri os quadrinhos de Tintim talvez nos ajude a entender por que me decepcionei com esta adaptação de Steven Spielberg.

Vai se rápido, prometo.

Comecei a ler os livros do Hergé aos 12-13 anos, numa época em que eu ainda tentava me adaptar (sem sucesso) a uma adolescência solitária numa cidade nova, Brasília. Era uma fase de descontentamento e insatisfação — uma puberdade, por isso, muito típica. Eu não conseguia me identificar, talvez por me achar absolutamente especial, com nada que era muito popular. As HQs da Marvel e da DC, por exemplo, me pareciam todas aborrecidas.

Era com esse espírito very snobbish, de rebeldezinho sem causa que, na biblioteca da Cultura Inglesa, eu virava as páginas das edições britânicas daqueles livrões bonitos de capa dura. O que me atraía nas histórias de Tintim era o que eu não encontrava num gibi do, digamos, Capitão América: Hergé me parecia menos preocupado em descrever cenas de ação e mais em transmitir o deslumbre da descoberta, a ânsia pela aventura, o contato de um garoto incomum (porque nosso herói, no caso, compensava com inteligência o que faltava em tônus muscular) com ambientes desconhecidos. Tintim não era um investigador de polícia, não era um super-herói, não era um justiceiro — mas um jornalista movido pela curiosidade, apenas isso.

Não tenho motivo algum para duvidar que Steven Spielberg também viveu uma relação próxima com o personagem, ainda que, provavelmente, muito diferente daquela que eu criei. Diz-se que ele foi apresentado à ficção de Hergé ainda em 1981, quando um crítico de cinema comparou as criações do Belga ao enredo de Os Caçadores da Arca Perdida. Spielberg notou semelhanças entre Tintim e Indiana Jones e, a partir daí, com aval de Hergé (que era fã do diretor), começou a desenvolver um projeto que só ficou pronto muito tempo depois, quando o diretor percebeu que a técnica de “performance capture” (filmes da animação que simulam a atuação de um elenco) seria uma forma possível de recriar no cinema as particularidades dos livros originais. O longa é produzido por Peter Jackson, outro cineasta que, sabemos, tem uma relação muito afetuosa e séria com os filmes de entretenimento.

O que (em tese) seria um projeto acima de suspeitas, engenhoso, impecável e tudo o mais — também pessoal, na mesma medida em que Avatar (que também só foi feito quando o desenvolvimento da tecnologia digital permitiu) o era — me parece, no entanto, um filme cuidadoso em excesso, que faz uma série de concessões burocráticas para vender um personagem atípico a um público típico.

É, apesar disso (e deixe-me tirar esse elefante da sala), uma aventura correta. Aposto que muitos dos detratores de Cavalo de Guerra — o outro Spielberg da temporada, mais derramado e kitsch — vão encontrar o passatempo spielberguiano que procuravam: um action movie “para toda a família”, ágil, passável, tecnicamente irrepreensível (dá pra notar cada fio de cabelo dos personagens, deus!), com dois ou três momentos “de perder o fôlego”, que refaz graciosamente o que já foi refeito tantas vezes: é um, como o próprio diretor comentou, “Indiana Jones for kids”. Se eu trabalhasse num instituto de medição de qualidade de filmes comerciais, avaliaria este aqui como “satisfatório”.

O Tintim que eu conhecia, no entanto, não está presente. Spielberg, acho até que por estar tão próximo do personagem, se esquece de que é preciso apresentá-lo de uma forma sedutora ao público. O rapazinho me parece, em muitos momentos, um herói qualquer, às voltas com uma trama qualquer, enfrentando um vilão qualquer: o diretor faz referências a filmes como Tubarão e Jurassic Park, mas acredito que este filme foi programado para fãs de Piratas do Caribe. O verniz “antiquado” não consegue esconder que o roteiro (coescrito por Edgar Wright, cadê você?) é uma escalada mecânica de action sequences, sem todas aquelas estranhezas e nerdices charmosas que me faziam chegar mais cedo nas aulas de inglês.

Ou, em resumo: é um Hergé para muitos, mas talvez não para mim.

(The Adventures of Tintin, EUA, 2011) De Steven Spielberg. Com Jamie Bell, Andy Serkis e Daniel Craig. 107min. C+

♪ | The Stars are Indifferent to Astronomy | Nada Surf

Postado em

Os nomes das músicas deste sexto disco do Nada Surf são tão adoráveis que a gente até torce para que as melodias, em algum momento, nos arrebatem. Não acontece — mas, em tese, um álbum com faixas chamadas Jules and Jim, Teenage Dreams e Let the Fight do the Fighting teria que ser algo estratosférico. O que só aumenta, infelizmente, o potencial de frustração de um disco que esgota todas as suas possibilidades nos primeiros dois minutos, usando os outros 36 para ficar reprisando preguiçosamente, mecanicamente, tudo o que sabemos sobre a banda. O modelo sonoro que eles ainda usam, catando migalhas de um certo indie rock anódino dos anos 90 (isto é: imitadores de Weezer indo pra galera) impede qualquer aventura: os arranjos e os versos não me parecem apenas simples, mas precários. O vocalista Matthew Caws, suponho (mas posso ter interpretado tudo errado), escreveu essas músicas para simular o impacto deslumbrante que o pop rock mais tatibitate pode provocar na sensibilidade de uma criança. O halo, talvez por isso, é de falsa ingenuidade — doce nostalgia, coisa e tal. O chato é que percebo muita fórmula e pouco encantamento nessas lembranças. “Sempre sinto estar esperando por alguma coisa”, ele diz. Sem querer ser inconveniente, mas… Isso está óbvio, meu velho.

Sexto disco do Nada Surf. 10 faixas, com produção da própria banda. Barsuk Records/City Slang. C

cine | O espião que sabia demais

Postado em Atualizado em

Recomendo que, antes de entrar no cinema, o caro leitor precavido deste blog leia a sinopse completa deste filme — e por sinopse completa eu digo: o início, o fim e o meio da trama. Melhor ainda seria procurar um exemplar do livro de John le Carré que deu origem a este longa-metragem. Pode parecer um conselho estúpido — e, acredite, detesto os estraga-surpresas —, mas, no caso, ele faz muito sentido, acredite: quem se preocupar demais com o fio desta narrativa vai acabar subestimando as bordas deste filme — e é o que ele tem de melhor.

Isto é: a elegância críptica, esfumaçada, a kind of dark blue, como Tomas Alfredson (do estupendo Deixe Ela Entrar) entra nos lares dos agentes de Carré. Os personagens, velhos especialistas em arapongagem internacional, parecem encarnar o estágio em que o serviço de inteligência britânico se encontrava no início dos anos 70 (era, digamos, um móvel pomposo e antigo e imponente, mas largado no canto da sala). O cineasta impõe uma postura distanciada que dá ao filme um ar bolorento, pesado, e transmite uma sensação de agonia, de Guerra Fria, até para aqueles que (como eu) se perdem na trama.

O roteiro, para nossa sorte, mantém graciosamente o tipo de diálogo que encontraríamos num bom livro britânico. “I am seriously underfucked”, diz a senhora gorducha, tentando se engraçar com o herói da trama. Um protagonista que, aliás, parece caminhar pelo filme como uma alma penada, sem demonstrar muito espanto com as reviravoltas descobertas (sempre suavemente) enquanto tenta identificar o traidor que, lá do topo do serviço secreto inglês, vaza informações para os soviéticos. Alfredson conduz essa caça com paciência infinita, indo e vindo no tempo sempre que necessário, e criando lacunas enervantes nos momentos da narrativa que (se este fosse um filme de Sherlock Holmes) nos explicariam didaticamente algo importante sobre esta bloody mess.

Em resumo: o filme (perdoe o trocadilho terrível) não me deixou entrar. Mas, lá de fora, ele me pareceu admirável. Alfredson está no comando, com firmeza, sabotando a paleta de cores, o ritmo e o temperamento de um filme-de-produtor (um dos produtores, note a responsa, é o próprio Carré). E é sempre bonito quando um bom cineasta nos mostra que, às vezes, esse tipo de coisa acontece.

(Tinker Tailor Soldier Spy, 2011) De Tomas Alfredson. Com Gary Oldman, Colin Firth e Tom Hardy. B+

top 100 | Os filmes da minha vida (13)

Postado em

Ainda que ninguém tenha organizado marchas ou atos de protesto ou (quem sabe) churrascos contra a interrupção deste ranking, ele está de volta, cheio de amor pra dar, com mais dois filmes pra lá de astonishing, pra ver (de preferência) antes de morrer.

Deu preguiça de postar a lista dos longas que apareceram aqui em edições anteriores, mas prometo que vou estar cumprindo esta demanda no próximo experiente. Até mais.

076 | O Pântano | La Ciénaga | Lucrecia Martel | 2001

O cotidiano desta família de classe média na cidadezinha de Salta, na Argentina, tem incríveis semelhanças com algumas cenas da minha infância suburbana no Rio de Janeiro, quando também ficávamos todos estirados à beira da piscina suja enquanto as crianças quase sofriam terríveis acidentes domésticos. O Pântano, obviamente, não é só isso. É, antes, o ponto de vista de uma cineasta capaz de, com alguns movimentos de câmera, enquadrar a crônica familiar numa espécie de moldura surrealista – o que complica, lindamente, qualquer interpretação sociológica do filme.

075 | O Fim de um Longo Dia | The Long Day Closes | Terence Davies | 1992

Um filme sobre lembranças de infância que (só pra não fugir do tom ultrapessoal do parágrafo acima) diz muito a respeito da minha adolescência, que também foi tomada por um fog de solidão (num cenário mais ensolarado, no entanto). O cinema era a minha companhia, às vezes minha única companhia, daí que acredito compreender o que passa no imaginário do personagem principal, Bud. Quando assisti ao filme pela primeira vez, numa fita VHS, não consegui perceber o que havia de encantador nele. Mas, sem que eu me esforçasse, ele foi ficando na minha memória, se instalando feito um halo – até se tornar um retrato borrado do meu passado.