Mês: abril 2009
2 ou 3 parágrafos | Fork in the road
Ok, tio Neil, o que temos para 2009? Um álbum conceitual inspirado num carro ecologicamente correto, movido a biodiesel e eletricidade? Não brinca. Infelizmente, Fork in the road (5/10) não é pegadinha de primeiro de abril — e, convenhamos, nesse caso não soaria mais divertido que o álbum fake do Nine Inch Nails produzido pelo Timbaland. Até tentei me convencer do contrário: abandonei o disquinho no porão do meu iPod até o dia em que ele me atropelou de uma vez só. Difícil desviar de um acidente desses.
Aos que enxergam irregularidade na trajetória de Bob Dylan, bem-vindo ao estranho mundo de Neil Young. Recomendo começar a viagem pela fase oitentista, a começar pelo cintilante Trans, de 1982, e depois saltar para o “espiritual” Chrome dreams II, de 2007. É um processo doloroso, mas necessário para quem tenta entender como mesmo traço instintivo que gerou obras-primas como After the gold rush (1970) e On the beach (1974) pode ser usado para o mal. Fork in the road é um dos álbuns mais espontâneos de Neil: uma road trip por uma América despedaçada, regada a petróleo, a bordo de um carro/musa/sonho, um Lincoln Continental 1959 adaptado para o futuro. E um dos mais descartáveis.
A sonoridade é reminescente de Living with war: riffs secos de garage rock (às vezes hard rock, como na faixa de abertura, When worlds collide, ou blues-rock, na canção-título) que provavelmente foram gravados em duas horas. Apressadamente. Qualquer-nota. Mas inconveniente é como, em vez de destrinchar o tema, o compositor estaciona no acostamento. Prefere remoer uma ladainha repetida em quase todas as faixas. Lamenta o fim da era do rádio, ataca a web e os blogueiros, etc. O disco melhora quando mansinho e introspectivo (casos únicos: Off the road e a otimista Light a candle), mas preconiza perigosamente o rock brando da era Obama: a rebeldia reduzida a uma espécie de fetiche.
Young adult friction | The Pains of Being Pure at Heart
No novo clipe do The Pains of Being Pure at Heart, a banda novaiorquina mais escocesa de todos os tempos abre o diário e revela que… são exatamente como nós! Leem livros, esparramam-se no sofá, leem livros, brincam com um esqueleto falso (ok, não costumo fazer isso), leem livros, tocam instrumentos acabadinhos, leem livros e fazem piadas idiotas que só eles entendem. Ah, os anos 90! Dirigido por Art Boonparn, eis o revival do lo-fi. E em que sebo encontro uma cópia de Suicide, de Émile Durkheim? Hum, parece adorável.
Together through life | Bob Dylan
Together through life conta como o 33º álbum de Bob Dylan. Tudo bem. Um longo, longo caminho. Muita história para contar. Um mundo. Uma vida. Uma saga. Mas alguém precisa saber disso? Melhor seria tomá-lo como parte de um entardecer iniciado em Time out of mind, de 1997. Um quarto disco. E, por um momento, esquecer o resto.
É que nada será como antes, sabe? Depois de gravar dois álbuns revisionistas, com interpretações para antiguidades do folk (os incompreendidos Gone as I been to you, de 1992, e World gone wrong, de 1993), Dylan criaria ele próprio uma sonoridade descolada no tempo, de costas para o pop contemporâneo — a simulação de um passado musical muito distante, anterior ao período em que um jovem Robert Allen Zimmerman traçou as coordenadas de uma das maiores revoluções do rock.
Em algum momento, alguém perderia a vergonha e lançaria a pergunta: é um jogo interessante, mas que sentido isso faz? Há uma hora em que a brincadeira termina?
Existe um clima de frustração em muitas das resenhas de Together through life (aqui não falo das revistas que automaticamente aprovam todas as criações do cantor, mas de uma NME da vida, de uma Spin), e acredito que ele se explique pelo fato de que eu, você e todos nós esperamos incansavelmente pelo retorno de um Bob Dylan que pertence ao nosso passado. Queremos indícios do ídolo rebelde, quase inconsequente, iconoclasta e insolente, que implode festivais de folk com guitarras elétricas e resgata o country em meio ao frenesi psicodélico do final dos anos 60. Mesmo que inconscientemente, temos a esperança que a agonia que ainda existe nos versos do compositor termine por contaminar a música, exploda em acordes transgressores e novamente maltrate nossas expectativas. Mas, ao mesmo tempo, amamos o Dylan que não respeita nossos desejos, não anda nos trilhos, não se adapta em antologias musicais — o poeta ao sabor do vento.
Como conviver com um ídolo que insiste em nos apontar as direções que não queremos seguir? Talvez seja mesmo impossível agarrá-lo. Daí as biografias incompletas, as lendas urbanas, as declarações falsas em entrevistas, as anedotas, as múltiplas personalidades, I’m not there e todas as reentrâncias do mito Dylan, ainda nebuloso, imprevisível até quando parece repetir-se.
Aos 67 anos, Dylan busca um som. Talvez não mais que isso. Por coincidência, dia desses assisti a um documentário sobre o processo de gravação de um disco de Brian Wilson. O maestro tortura os músicos e repete takes obsessivamente até extrair os acordes e o clima já perfeitamente construídos em sua cabeça. É por aí.
Principalmente a partir de Love and theft, Dylan (ou Jack Frost, pseudônimo usado para a produção do álbum), encontraria satisfação na ideia de usar a tecnologia de estúdios para registrar um sentimento sonoro. O tema dos álbuns passaria a ser a própria descoberta de uma sonoridade. Se temos a impressão de ouvir um antigo disco de blues da Chess Records ou da Sun Records, então Dylan cumpriu o objetivo. A produção é parte importante da mensagem.
Together through life leva essas experiências ao limite. A seu modo, é um disquinho impertinente. Ao aceitar o convite do diretor francês Olivier Dahan para compor uma canção a ser incluída no filme My own love song, Dylan inspirou-se para um álbum inteiro. Com domínio da técnica de produção, gravou rapidamente acompanhado da própria banda e com participações de David Hidalgo, do Los Lobos, e Mike Campbell, do Tom Petty and the Heartbreakers. Diretor do próprio filme, Dylan sabe exatamente o álbum que quer: cru como um bootleg, fluente e despretensioso como Nashville skyline, calcado em blues e acordeão: uma coleção de canções de amor que poderiam ter sido gravadas nos anos 50. Ou nos 80. Ou em 2020 (acelere o andamento, inclua distorção e Beyond here lies nothing renderia o primeiro hit digno do Kings of Leon).
Imagino que, com o passar dos anos, a velhice de Dylan será compreendida como o período em que o artista finalmente conseguiu assumir controle integral da própria arte. Em entrevistas, ele confessa a insatisfação com o resultado de gravações que transformaria em clássicos. Não mais. Together through life é um filme de estrada. A dois. E a fotografia granulada não está lá por acaso.
Se os versos parecem ir sempre direto ao assunto (e a parceria com Robert Hunter, do Grateful Dead, já é histórica), eles criam conexões com os três álbuns anteriores ao levar a sério aquilo que o crítico Allan Jones define como um mandamento do blues (que não funciona muito bem quando traduzido para o português): “you might get better, but you will never get well”. São narrativas que não escondem a desilusão (Life is well é uma patada) e a falta que sentem de uma época irrecuperável (O personagem de Life is hard lamenta a solidão, o protagonista de If you ever go to Houston quer de volta as memórias dos antigos bares onde se perdeu, e talvez seja a mesma pessoa que canta Forgetful heart) e a proximidade da morte. “Sinto uma mudança se aproximando. E a quarta parte do dia está quase no fim”, admite, na a obra-prima I feel a change comin’ on.
Que sentido isso faz? Talvez nenhum. Os novos discos de Bob Dylan possivelmente querem nos lembrar que a vida é dura e às vezes segue caminhos incompreensíveis. Os amores passam. A dor não diminui. A saudade arde. E o rock ainda nem nasceu.
Trigésimo terceiro álbum de Bob Dylan. 11 faixas, com produção de Jack Frost. Lançamento Columbia Records. 8.5/10
X-Men origens: Wolverine
X-Men origins: Wolverine, 2009. De Gavin Hood. Com Hugh Jackman. Liev Schreiber e Ryan Reynolds. 110min. 5/10
Se geralmente não me interesso por filmes de super-heróis, por que insisto tanto neles? Seria uma forma de masoquismo?
Existe uma etapa da vida em que simplesmente abandonamos tudo aquilo que não nos agrada? Que aprendemos a passar à margem do que nos deixa insatisfeitos? Que desistimos em definitivo das segundas chances?
Quando esse meu dia chegar, temo pelos filmes de super-heróis.
Por enquanto, eles resistem. É que sou um sujeito curioso. E teimoso. Por isso volto regularmente a procurar um grande filme do gênero como aqueles surfistas que buscam a onda perfeita. Admito (sem achar graça nisso): ainda não o encontrei.
Os que mais me impressionam são aqueles que integram trajetórias de cineastas que me interessariam até se filmassem adaptações de Jane Austen. Tim Burton, por exemplo. Bryan Singer, apesar das pisadas na bola. Guillermo del Toro, e provavelmente vocês já entenderam onde quero chegar.
Sem um bom cineasta disposto a transfigurá-lo, o gênero me aborrece. Nada posso fazer contra isso. Provoca um efeito entediante que é superior à média de fitas de ação e comédias românticas que assisto a cada seis meses (e são muitas). Acompanhar as “histórias de formação” de super-heróis – aquelas narrativas que nos explicam detalhadamente como o sujeito aprendeu a voar, ficar invisível e quebrar vidros com o poder do pensamento – equivale a assistir a uma longa maratona de Gossip girl e Grey’s anatomy. Um inferno, acreditem.
Sei que estou na contramão do mercado, das bilheterias, dos lucros astronômicos de estúdios poderosos e tudo o mais. Posso viver com isso. Hoje em dia, vender um filmeco qualquer como uma “história de formação de super-herói” é meio caminho andado para faturar horrores. Sei. Entendo. Estou por dentro. Não penalizo o público por cair nesse conto vagabundo. Eu, que não sou ingênuo nem nada, estarei sempre na fila para assistir a qualquer ficção-científica sobre a destruição do planeta Terra. Somos todos culpados. E estamos quites nisso, ok?
Eis que…
Qual não foi minha alegria ao descobrir que a Fox Film inaugurou uma nova franquia de “filmes sobre heróis em formação”, e ela começa com Wolverine? Se cair no gosto do público (já estou fazendo figa para que todos se entediem profundamente e se sintam miseráveis, engasguem com pipoca e drops de menta etc), seremos atacados por outros contos sobre as primeiras experiências de tipinhos extraordinários.
Eu sei. Eu deveria desistir deles. Vocês têm razão. Vocês sabem. Mas insisto. E vejam bem: com o mesmo distanciamento que aplico a filmes de Ron Howard e Michael Bay, consigo analisá-los até objetivamente, sem paixão, sem ódio, sem nada. Vejo qualidades. Coço o queixo, pensativo. Desenvolvo hipóteses, desenho diagramas. Analiso. Como quem abre um hamster. Tanto que, em vários momentos, compreendo que tenho direito a desenvolver alergia a filmes eficientes e bem-intencionados, com boas idéias e cineastas esforçados. Consigo. Respeito. Mas não é o caso de Wolverine.
O processo de filmagem do longa de Gavin Hood foi tão acidentado (DVD pirata sem efeitos especiais? E demitiram o jornalista por causa de uma resenhazinha? Pff) que provavelmente tudo o que a Fox quer neste exato momento é que a crítica trate o filme como um produto correto, simpático, que cumpre requisitos e sai-se bem no teste do olhômetro. Um legítimo nota 6. Para mim, é apenas um longa que exibe em cada cena o quão dolorosamente matemático pode ser o processo de confecção de um blockbuster.
Vamos lá, sem inocência: isto aqui é um baita de um mutante gerado em dezenas de reuniões de executivos de estúdio. Hood já declarou que não se interessa nem nunca se interessou por revistas em quadrinhos (isso significa que até eu, antigo leitor de Batman e Chico Bento, poderia ter dirigido o filme!), e a falta de paixão fica bastante clara na tela. O cineasta não leva muito a sério o que está filmando – e, se despretensão conta a favor de fitas autoirônicas do gênero (como Hancock, taí uma de que gostei), parece deslocada num action movie que parece querer ser Batman begins quando crescer. Falta pompa, carece de ambições trágicas, no mínimo.
O próprio Hugh Jackman, também produtor, interferiu no roteiro. Dizem que o filme custou algo em torno de US$ 100 milhões. Imagino que 90% disso tenha sido investido nas cenas de ação, tão mirabolantes e radicalmente tolas quanto as de Velozes e furiosos 4. O restante da produção parece ter sido penalizado por um acabamento de quinta categoria. Os cenários são galpões amarelados, laboratórios subterrâneos, castelos medievais de parque de diversão, objetos gerados em computação gráfica e uma ou outra casinha isolada numa montanha canadense. Movimentar meus olhos diante da tela exigiu esforço.
Encarado como o piloto de um episódio de tevê, o filme parece até (aí vai, Fox!) correto e eficiente. Eu o exibiria no AXN por volta das 20h, antes de uma reprise de Lost. A vantagem, no caso, é que Hood e Jackman fazem o possível para não lambuzar o belo trabalho de Singer no primeiro X-Men. A proposta de ambientar a trama 20 anos antes dos eventos do longa original é boa, já que evita comparações desnecessárias. Toda a narrativa se desenrola antes do dia em que as memórias de Wolverine perdeu a memória. Pode ter sido apenas um sonho ruim, vá saber.
Pelo que lembro, o filme de Singer resumia com bastante precisão a origem de Wolverine. Ou pelo menos o que precisávamos saber sobre ela. Aqui, boa parte das informações parecem subaproveitadas. Por exemplo: quando criança, Wolverine matou acidentalmente o próprio pai. Mais crescido, se viu obrigado a lutar violentamente contra o meio-irmão. Quando encontrou a mulher dos sonhos, ela revelou perigosas segundas intenções. É uma vida de cão ou não é? É Shakespeare, é Bíblia Sagrada ou não é? Hood toma esses traumas e faz deles uma fita de aventura para adolescentes – inofensiva, dente-de-leite.
Outro exemplo: os mutantes que cercam Wolverine (sim, já que este suposto voo solo acaba se revelando mais um filme de mutantes). Quem são eles? O que eles contam? No final da projeção, fiquei perdido entre tantos coadjuvantes que parecem existir apenas para preencher sequências de ação. Mas aí vem a necessidade de apresentar uma galeria de personagens para satisfazer os fãs que, quando não lêem gibis, assistem a episódios de Heroes e reruns de Caminhos do coração. Essa gente.
Aliás, tai outra coisa que me irrita em filmes de super-heróis. Quase todos os argumentos levam em conta os fãs, essa entidade misteriosa. Quem são eles? Não faço idéia. Ao final da sessão, hoje pela manhã, um jornalista usou essa velha cartada para defender o filme:
– Os fãs vão gostar.
– Os fãs dos quadrinhos?, perguntei, intrigado.
– Não. Os fãs dos outros três filmes.
– E os fãs dos quadrinhos?
– Esses talvez não gostem.
– E as fãs do Hugh Jackman?
– Essas vão gostar.
– E os fãs do Gavin Hood?
– Não existe.
Deixei assim. Sempre deixo. É normal. Nunca encontro respostas para esse tipo de pergunta. Repito: quem são os fãs? Como eles decidem se gostam ou não gostam de uma adaptação cinematográfica? Eles se reúnem em congressos ultrasecretos, onde assinam conclusões definitivas? Escrevem declarações e fazem cópias em três vias? Debatem via MSN e Twitter? Onde eles estão? Onde moram? São norte-americanos, na certa, mas de que estado? São sócios de algum clube? Jogam golfe? Falam três idiomas? Formam uma espécie de seita? Sinceramente, ainda não sei. Sempre que alguém justifica o apelo de um filme pelo gosto dos “fãs”, me sinto enganado. Estou certo de que alguns fãs gostarão de Wolverine. E estou certo de que outros sairão do cinema decepcionados. Mas por que deveríamos levar isso em conta quando discutimos um filme?
Wolverine me pareceu um filme capenga e desastrado. Como tantos outros. Há bons atores, Hugh Jackman é um chapa carismático (talvez demais, já que o papel exige uma angústia que ele não sabe de onde tirar) e a trama é curta o suficiente para não cansar. Nada memorável. E sim, claro, nosso angustiado Wolverine passa por uma série de testes para descobrir que a vida é feita de escolhas e que às vezes Freud não explica e que grandes poderes trazem grandes responsabilidades e que…
Os fãs entenderão.
Superoito não mora mais aqui
(O horizonte na janela do meu apartamento: things they are a-changing)
Sair da casa dos pais, dizem, é um rito de passagem. Um daqueles episódios que modelam o futuro. O primeiro capítulo do resto de nossas vidas. Não? Quase seis meses transcorreram desde o dia em que levei meu colchão, minhas roupas e a tevê para o pequeno apartamento onde durmo quase todas as noites. Seis meses – e, apesar de saber perfeitamente que passei por uma espécie de teste importantíssimo, ainda não consigo avaliar minha performance. A estranha impressão é de que tudo, de alguma forma, mudou. Só não entendo exatamente como.
Há algumas perguntas recorrentes, que interrompem meus pesadelos e martelam alfinetes na minha consciência: como me saí nessa prova? Qual foi o resultado? Fui aprovado? Está tudo ok? Mais importante: se me transformei numa pessoa diferente, quem é ela?
Aparentemente (e surpreendentemente), deu certo. Com o devido distanciamento, sou capaz de reconhecer que cumpri algumas etapas corretamente e que, num período reduzido de tempo e aos olhos invisíveis do mundo, eu tenha finalmente me transformado num cidadão adulto e independente. É esta a versão oficial dos fatos: pago todas as minha contas, compro alimentos e produtos de higiene, lido com impostos e taxas, organizo compromissos, cultivo minha vida social e (um pequeno passo para o homem) estou a alguns minutos de virar sócio na videolocadora da quadra.
Falta plantar uma árvore, escrever um livro e ter um filho. Mas são detalhes. E quem lê livros, afinal?
Para mim, ainda parece incrível imaginar que, há um ano, nada disso parecia plausível. Durante minha adolescência, rejeitei conscientemente as expectativas e os hábitos do cidadão comum. Revoltei-me contra adultos metódicos, conformam com rotinas medíocres. Contra indivíduos sorridentes que, felizes com pouco, contentam-se com empregos maçantes. Deixam-se massacrar pela burocraria. E ainda assim casam-se, têm meninos fedorentos e com eles visitam o zoológico. Eu não os compreendia. Eu não me enxergava neles. A idade adulta parecia apenas entediante e aborrecida: uma infinidade de obrigações que não dão em nada. Muito trabalho, nenhuma diversão.
Talvez por isso eu tenha imaginado que viveria até os 25 anos de idade. Seria o suficiente. Aos 26, me vi sem um plano B. Aos 29, olhei no espelho e notei um adolescente desbotado. Era hora de mudar.
Conheço algumas pessoas que também nasceram no final dos anos 70 e, como eu, viveram sem a necessidade ou a angústia de pensar no futuro – até o momento em que o futuro bateu à porta. Possivelmente faça parte de uma doença geracional: uma resistência quase irracional à idéia de abandonar o ninho. Sabemos que algo está errado, mas não queremos saber. Entendemos a necessidade de seguirmos em frente, mas não entendemos por que. E assim vamos: presos à barra da saia de mães superprotetoras, no aparente conforto de um lar que nos oferece segurança e, como contrapartida, poda nossa liberdade e nos cobra obediência a regras infanto-juvenis. Queremos sair de casa. Mas não queremos.
Desde quando me mudei, virei uma espécie de guru para esse tipo de incerteza. Eu, que pensava ter sido o último solteiro da cidade a alugar uma quitinete, me vi cercado por pessoas em crise, cheias de dúvidas. Pessoas que trabalham, recebem salários razoáveis, freqüentam restaurantes bacanas, gastam uma fortuna com o combo do Cinemark mas, ainda assim, não sabem direito se estão aptas ao Grande Passo. Qual o momento certo?
A elas, só tenho a minha versão da experiência – ainda nebulosa. Não sei muito bem o que aconselhar (e, no mais, este não é um blog de autoajuda), mas compreendo esse tipo de cobrança. Para quem está longe do furacão, o drama pode parecer ridículo, insignificante. Tai você, zombando: “eu me mudei aos 12 anos para um cortiço, quando aprendi a conviver com estivadores e estelionatários: quem quer papo com essa gente imatura?” Para quem está metido lá dentro, é como desbravar uma selva sob ameaça de mães inconsoláveis, chantagens sentimentais, insegurança financeira, aluguéis caríssimos, filas de supermercado, IPTU, vizinhos rabugentos e medo de ter abandonado cedo demais os sonhos de juventude.
Eu, que não sou o superman, também sofri essa trama diabólica. Mas saí vivo e forte. Pergunto-me como.
Para variar, não vou me fazer de vítima: foi até fácil, sabe? Como arrancar um dente de leite. Não há entretenimento no processo de lidar com a papelada do aluguel do apartamento, e organizar as contas com alguma eficiência também leva um certo tempo. Mas, com dois ou três meses, nada disso passa a irritar. Quer dizer: a menos que a operadora de tevê a cabo vá à falência e o obrigue a comprar o pacote de uma concorrente acostumada a preços abusivos. Acontece. Mas é uma questão de saber definir uma margem de risco para absolutamente todas as situações do dia-a-dia. E lidar com autocontrole. Troquei os DVDs pelos livros. Cortei viagens. Não fui ao Coachella (ok, não iria mesmo). Há noites em que passo fome. Perdi cinco quilos. E não consigo reclamar de nada disso.
O que mais mudou na minha rotina não tem a ver com dinheiro, mas com relações familiares. Foi o grande baque. A maior ruptura. Talvez a aventura definitiva. Nesse ponto, tudo está diferente, e não tenho condições de prever o desenrolar da história. Quando me perguntam sobre o impacto da mudança, respondo de imediato: ganhei uma outra família. Note a confusão: eu, uma outra pessoa, ganhei uma outra família. Devo marcar terapia?
Se bem que, descubro lentamente, a boa nova tem um quê de maldição. Não é simples acostumar-se a um núcleo familiar renovado, e a primeira sensação é de que aquelas pessoas que você conhece intimamente não vivem mais com você (reparem que é uma sensação ao mesmo tempo óbvia e profunda). Você é uma visita querida, recebida com sorrisos e regalias. Ao mesmo tempo, você não está lá.
Desde que minha mãe passou a me receber com um generoso tapete vermelho (e toneladas de chocolate), não consigo encarar esse cenário sem dar algumas risadas. Parece que trocaram a aquela mulher por um robô adorável, programado para me agradar. E que, reparem a sofisticação da tecnologia, me telefona algumas vezes por semana para massagear meu ego e me perguntar se está tudo bem. O único defeito de fabricação é que, depois de duas ou três horas de visita, a andróide passa a lamentar a ausência do filho. Às vezes se tranca no quarto. Chora silenciosamente enquanto prepara o pudim.
Passei pela fase em que a distância da família parecia o paraíso. Ok, eu sei, tudo mundo vive esse tipo de coisa e eu devia estar escrevendo sobre o novo álbum do Bob Dylan. Mas veja: até meu padrasto, que não é de muita conversa, me recebia com análises demoradas sobre as principais notícias da semana. Minha irmã, que quase me trucidou com uma faca de cozinha quando eu tinha 14 anos de idade, faz convites graciosos para tocarmos violão e cantarmos canções bobinhas que escrevemos juntos quando éramos pequenos. Até meus cachorros parecem especialmente gentis. Eles sentem minha falta e, mais importante, querem demonstrar isso.
Levou quatro, quase cinco meses para que eu sentisse o empurrão. O susto. Depois de um período de intensa felicidade, me descobri afastado da minha família de uma forma que talvez nunca conseguirei entender. O que aconteceu? Quem deu permissão para que cortassem as cordas que me prendiam ao teto do teatro? Cumpro com afinco a rotina de visitas nos fins de semana, telefono e pergunto por novidades. Ainda assim, é como se eu não participasse ativamente de nada. No tempo em que levei para me acostumar com a ausência da minha família, eles se acostumaram com meu desaparecimento. E decidiram continuar vivendo, corajosamente.
É, veja bem, quase uma idéia de morte. Mais ou menos quando encerramos um longo caso amoroso.
Às pessoas perturbadas pela idéia de mudar-se de casa, evito comentar que existe sim uma conseqüência desagradável para essa saga: mesmo quando não se quer notar, você assina um contrato com a solidão. Ela estará lá, de qualquer jeito. Não haverá como evitar. De madrugada, quando todos os ruídos parecem bombas nucleares. Na estrada que nos leva de volta à casa, depois de um domingo em família. Principalmente quando nosso cérebro começar a tecer prognósticos de um futuro que parece assustadoramente indefinido, incompleto. Diante dele, estamos sós. Com os ruídos. Um apartamento vazio. E ninguém mais para nos guiar pela mão.
Pode ser que aí esteja a resposta para a pergunta que nos atormenta: o que vamos ser quando finalmente crescermos? Um pouco mais solitários, possivelmente. Mas com a esperança tranquila de que, um dia, já perfeitamente curados, conseguiremos lidar com esse e outros tipos de aflição. De uma forma adulta. E sem drama.
2 ou 3 (longos) parágrafos | Eu te amo, cara
Encontrar um grande amigo pode ser mais difícil que arrumar uma namorada que não o trate como uma criança irresponsável e desequilibrada de seis anos de idade, não pode? Talvez não (esse tipo de namorada só existe no mundo mágico dos contos de fadas, meu chapa), mas ainda assim imagino os pesadelos de quem sai à procura de um cúmplice para a vida toda. Como não? Ao contrário dos relacionamentos amorosos, o universo das amizades é guiado por gestos confusos e um manual de conduta que parece escrito num idioma incompreensível. Pode ser um pântano. Um campo minado. Ou pior que isso. Os conflitos não acabam nunca: com um melhor amigo, podemos discutir a relação? Fazer juras de confiança eterna? Devemos estipular limites? Vale chantagem emocional? E dar um tempo, para experimentarmos novas experiências de coleguismo, é tolerável? Mais tortuoso é saber quando exatamente a relação deve acabar. No momento em que a química desaparece e ele passa a nos tratar como um… estranho? Teremos permissão para visitar os pais dele quando a amizade azedar?
Taí, então, um filme que lida com nossas ó-tão-sérias dúvidas sobre a existência, os laços de companheirismo, as tensões pré-matrimoniais e tudo mais. Ironias à parte (e minha maior curiosidade é saber como os dois leitores portugueses deste blog interpretam meu humor ginasiano; vergonha alheia, na certa), Eu te amo, cara (7/10) é daquelas comédias sabidas, na esteira de Judd Apatow, perfeitas para o público que prefere ser surpreendido por um Presságio a bater ponto burocraticamente nas sessões de Che e W. Vamos lá, gente, o que é mais importante neste mundo? A saga de um bobalhão transformado em presidente da República ou uma crônica sobre o quão desengonçados podemos nos revelar diante de situações triviais como convidar um candidato a confidente para…hum… comer filés de peixe num restaurante bacana mais tarde?
Nesse ponto sou bastante inocente e pretendo continuar desse jeito: não menosprezo o prazer de assistir a um filme singelo e fluente (mas nada desleixado, já que decididamente descomplicado) como este. Nada extraordinário, mas o cinema “respeitável” dos Estados Unidos ganharia um tanto mais de vivacidade se compusesse cenas dessa forma relaxada, com lacunas de desconforto entre gags e alegre humor autoreferencial (há timing nas piadas com Chocolate a O diabo veste Prada, por exemplo). Impossível desconsiderar a reverência excessiva à cartilha de Apatow – e há o perigo de que esse modelo se transforme em fórmula. Outros poréns: a trilha sonora indie soa gratuita e a premissa lembra muito o mediano Meu melhor amigo (com a diferença de que o longa francês não é engraçado, ha-ha). Mas a corja da Dreamworks me ganhou quando decidiu apostar no talento cômico de Paul Rudd para segurar esta love story para fãs do Rush. É o cara. Numa comédia que, vamos lá!, não é só mais uma.
Superoito express (7)
(Paralelamente: American beauty, Grateful Dead, 1970; Scott 2, Scott Walker, 1968; In the wee small hours, Frank Sinatra, 1955; Dusty in Memphis, Dusty Springfield, 1969; Something else, The Kinks, 1967; para todo o sempre, amém)
[E me perdoem, sei que estou metido numa geléia de discos e isso pode parecer enfadonho e redundante, mas prometo compensar assim que possível com transcrições de parágrafos de livros. Multidão que visita este blog movida pelo amor à literatura, stay tuned]
Dark days/Light years | Super Furry Animals | 7.5 | Está para o rock psicodélico do final dos anos 60 assim como Phantom power estava para o country rock do início dos 70. E com essa comparação superficial digo que: ainda que adote um método consagrado, “clássico” (no caso, o álbum de jam), o charme do álbum está no modo anárquico e inconsequente como corrompe a herança pop. São discos que fazem questão de não andar na linha. E se os melhores momentos do Super Furry Animals são os mais caóticos e surpreendentes (Guerrilla e Rings around the world, sejamos específicos), Dark days/Light years se esforça terrivelmente para encontrar um lugar entre os grandes. Não soa tão espontâneo quanto os anteriores, beira o exaustivo, mas preserva uma velha promessa do grupo: seguir em frente, sempre. Aqui, eles soam relaxados e seguros, e até arriscam uma ode aos Rolling Stones antes de se transformarem numa máquina ritmica inclassificável. Para o SFA, o significado da palavra “jam” é mais amplo do que se imagina – e, que bom, eles aprenderam a brincar feito gente grande.
Swoon | Silversun Pickups | 6 | A imprensa norte-americana adora uma banda independente que executa com competência uma tonelada de clichês do rock comercial, não adora? Só isso explica a badalação em torno do quarteto de Los Angeles, que lançou este segundo disco por um selo chamado Dangerbird e, ainda assim, virou destaque na Rolling Stone. A primeira audição é nada menos que chocante para quem viveu os anos 90: quando não soa simplesmente choroso, Brian Aubert canta exaamente como Billy Corgan, sob guitarras pesadas-mas-não-tanto que poderiam ter sido produzidas por Butch Vig. Para quem resiste bravamente à sensação de que o passado era mais divertido, o álbum até se sustenta pelo entusiasmo e uso consciente de fórmulas do rock que, na soma dos fatores, produz hits perfeitinhos como Growing old is getting old e It’s nice to know you work alone, que talvez arranquem lágrimas dos fãs do Muse e do Placebo. Talvez. E só deles, ok?
Quicken the heart | Maximo Park | 5.5 | Há bandas que não evoluem nunca, e dessas ficaremos apenas com os primeiros, ótimos álbuns. Quem lembra de Our earthly pleasures, o segundo do Maximo Park? Na minha memória é que não ficou. Mas ainda sentimos saudades de A certain trigger (parecia tão simples!), e por isso retornamos aos britânicos com interesse toda vez que eles lançam uma nova canção que deixa a impressão de que pode ser grande até o momento em que… hum, eles estragaram tudo outra vez. Quicken the heart é quase tão frustrante quanto o anterior, e chega num ponto que parece mais dedicado a reproduzir o catálogo do Futureheads que os clássicos do Gang of Four. Alguns momentos dignos (The kids are sick again, A cloud of mystery e Wraithlike) sentem-se muito sozinhos num conjunto flácido, repetitivo, que parece jogar na minha cara como eu deveria ter sido mais bondoso com o novo do Franz Ferdinand. Mas e então, abandonamos o Maximo Park de vez? Eu não. Ainda acredito que, com o humor fino e a aparente esperteza que eles têm, dia desses podem até nos pegar de surpresa. E repito: é um pouco melhor que o disco anterior. Melhor que o anterior, ouviram?
Primary colours | The Horrors | 5 | Meu caso com o Horrors está envenenado. Acabou. Fechou. Perdeu. Sei que há quem os defenda com dentes, unhas e o diabo a quatro. Entendo que este segundo álbum dos britânicos seria minimamente importante apenas por conter a grife de Geoff Barrow (e foi coproduzido pelo escritor Craig Silvey e pelo diretor de clipes Chris Cunningham, um crossover bizarro que deixaria Andy Warhol muito orgulhoso). Mas tudo o que eu (ainda) consigo ouvir é a décima-nona encarnação de Ian Curtis num moedor de carne à Psychocandy. Conciso – taí um adjetivo que será muito usado para descrever um álbum que compõe atmosferas intensas e sofridas e compactas de ruídos e ecos a serviço… do que mesmo? As trovoadas de Three decades me impressionaram, não há nada tão oco quanto os hits do White Lies, mas o restante do álbum vai agonizando lentamente até desaguar no óbvio ululante: influências de eletrônicas largadas numa jam de oito minutos de duração. Entendo. Mas não me assusta.
Bitte orca | Dirty Projectors
Eu deveria me envergonhar da forma como ouço música. Não são raras as ocasiões em que me vejo num rodízio de carnes, devorando canções como fias fatias de alcatra e engolindo todas as guarnições de riffs na mesma garfada. Quando meu estômago relaxa do banquete, está exausto de tanto esforço. Enjoa quando pensa no jantar, solta ruídos grotescos. É quando abandono a mesa, tomo ar, estico as pernas e, se sobrar fôlego, escrevo um texto enfastiado para este blog.
Felizmente, nem sempre acontece assim. Há os discos que permitem uma digestão mais demorada e que, apesar de trair minha natureza (sou um sujeito desagradável de tão ansioso), rendem experiência semelhante a uma longa noite no restaurante mais caro da cidade. Pratos minúsculos servidos em passos lentos, um de cada vez e numa determinada ordem. Ingredientes exóticos degustados com a paciência e o cuidado de quem analisa partículas coloridas no microscópio. Os olhos da cara. Nouvelle cuisine.
Na minha barriga, o álbum novo do Dirty Projectors roda mais como a criação de um chef pedante (e genial) que como a melhor feijoada de fast-food. Não sei por que motivo. Talvez não tenha a ver com o disco, mas com a forma receosa como acabei me aproximando dele — mas admito que, nesse caso, conhecer o procedimento é metade do caminho para entender meu entusiasmo com este estranho e já familiar Bitte orca.
(E, na minha mania de copiar e colar, acabei roubando a impressão de David Byrne sobre a banda de Nova York: “É completamente estranho e, ao mesmo tempo, estranhamente familiar”, ele disse. Ok, concordo, e que ninguém leve este caso ao tribunal de pequenas causas)
Quanto tempo precisamos para lapidar um disco bruto? No caso de Merriweather Post Pavillion, do Animal Collective, o processo levou duas audições — eu já estava adaptado à dieta rigorosa do trio. O do Caetano ficou rodando na minha cabeça feito vinil riscado até encontrar a sintonia correta— três dias. Com o Dirty Projectors, nos enfrentamos por uma semana inteira. É que, no meu caso, este disco funciona como um cartão de visitas, um “prato de entrada”, para uma banda que eu conhecia apenas de raspão (ouvi duas ou três vezes Rise above, o álbum anterior, releitura de canções do Black Flag, e só).
Lembrei imediatamente: meu estômago revirou quando comi ostras frescas pela primeira vez. Ainda revira com pequis e alguns cortes de carne de porco.
Uma rápida pesquisa sobre a trajetória de Dave Longstreth, cabeça do grupo, explica a razão da minha resistência inicial. Desde o início da década, o sujeito se especializou em testar combinações improváveis de temperos para o indie rock, sempre a uma distância segura do mainstream. Inquieto, preparou álbuns conceituais ( The getty adress cobre um dia na vida do músico Don Henley), EPs experimentais, homenagens esdrúxulas (reimaginar um álbum do Black Flag? Por quê? Para quem?) e assustou o underground com uma inesgotável fome criativa que só encontra paralelo em Frank Zappa e Captain Beefheart.
Bitte orca é o primeiro álbum do Dirty Projectors pela pequena grande Domino Records, casa do Animal Collective e do Franz Ferdinand. Pode ser tratado como um bufê ainda extravagante, mas com opções para diabéticos, celíacos e crianças obesas que curtem bife com batata frita.
Isto é: se eu conhecesse o catálogo da banda, provavelmente trataria este álbum como um trabalho acessível, quase pop. Ainda assim, não é doce. Os acordes se desprendem da gaiola na primeira canção e nunca mais encontram o caminho de volta: dão rasantes de psicodelia zappiana (Useful chamber, que lembra um pouco Of Montreal, e Remade horizon), folk (The bride), pop barroco (Fluorescent half-dome, emocionante e teatral como uma boa safra de Rufus Wainwright) e R&B (Stillness is the move). Formam um círculo aberto, um voo lindamente cego.
Por que preencher o miolo do álbum com vozes femininas? Por que os versos abstratos colados a referências simplezinhas de cultura pop? Por que soa tão parecido e tão diferente de um álbum de world music (e, assim, parece companhia perfeita para Vampire Weekend)? Contradições.
Se David Byrne adora, há uma razão para isso. O disco, composto como elevador panorâmico para os delírios e distúrbios de Longstreth, soa como o sonho de um fã do Talking Heads.
O compositor e guru agarra a oportunidade de conquistar um público mais amplo. Abrir uma rede. Consolidar a marca. Vender souvenirs na beira da estrada. Os antigos fãs, aposto, reclamarão dos pratos econômicos e das cadeiras de plástico. Eu não me pediria o dinheiro de volta. Expansivo em apenas nove faixas, Bitte orca promete recompensas para os perseverantes. É esse tipo de álbum. Cada canção se desdobra antes que consigamos classificá-la. Terminamos a noite com a sensação de termos refinado nosso paladar.
Se é de aventura que vive o indie rock, então taí um líder nato. O chef do ano. De cozinha contemporânea. Ou algo fino e ousado do gênero.
Oitavo álbum do Dirty Projectors. Nove faixas, com produção de Dave Longstreth. Lançamento Domino Records. 8.5/10
2 ou 3 parágrafos | Divã e Tony Manero
A sessão-dupla mais insólita do ano começou com uma sala lotada de senhoras aparentemente saídas de uma reunião da Herbalife (Divã, Globo Filmes via teatro para moças, 4/10) e terminou em clima de naufrágio, com velhinhos abismados e desamparados abandonando o barco antes do final do passeio (Tony Manero, Chile barra-pesada via Quinzena dos Realizadores, 4.5/10). Entre eles, mais semelhanças do que eu gostaria de imaginar.
Se existe um muro invisível entre produções “comerciais” e “de arte”, Divã e Tony Manero nos ensinam que essa divisão não é construída apenas pela imprensa ou por departamentos de marketing, mas também pelos filmes que cumprem rigorosamente (e preguiçosamente) requisitos que satisfazem supostas exigências de “fatias de mercado”. Daí que Divã é a comédia agridoce adaptado ao gosto do público de telenovelas, com diálogos inflados por trocadilhos engraçadinhos, uma atriz de carisma inabalável e trilha sonora de Guto Graça Mello (se 90% das criações da Globo Filmes morrerão no inferno, a culpa será principalmente dele – Ana Carolina berrando nos créditos finais equivale a matar/roubar). Já Tony Manero é o diagnóstico da nossa miséria contemporânea, desfocada, suja e invariavelmente feia.
O esquematismo reina lá e cá – e asfixia protagonistas que, nos dois casos, são eixos das narrativas. O homem-sombra de Tony Manero, condenado a agonizar em rede nacional enquanto reproduz passos ensaiados de Hollywood, não parece menos pré-fabricado que a quarentona desencantada com o casamento, que leva a vida como num livro imaginário de autoajuda para mulheres decididas. Saí das duas sessões com a sensação de ter acompanhado as etapas iniciais de um workshop de roteiro – Como Desenhar o Primeiro Esboço de um Personagem que Provavelmente Soará Instigante na Metade do Curso, aula 1.
Zii e zie | Caetano Veloso
Confesso que não li, não leio o blog do Caetano. Não sou de blogs.
Não. Sinceramente, odeio blogs. Não tenho paciência para esse tipo de distração. Sabemos que nove entre dez blogs são redutos de amadores, antros de desocupados que se acostumaram a meter o bedelho em todos os temas, dos mais insignificantes às questões nobres da humanidade. Refúgio de cineastas iniciantes, escritores fracassados, colunistas sem poder de síntese, jornalistas em crise de identidade. O império do eu. O paraíso dos narcisistas. O templo de superficialidade. O Big Brother sem rostinho bonito, biquini cavado ou banho de piscina às onze da manhã.
Ok, mentira. Eu li e leio o blog do Caetano. Eu sou de blogs, vocês sabem. Quem pretendo enganar? (talvez minha mãe, que visita estas páginas duas vezes por ano). Mas reconheço a dificuldade crescente de defender o valor desse tipo de site. No mainstream, digo. Repare: não afirmo que exista algum valor, calma aí. Blogs são, oficialmente, um passatempo. Uma bobagem. Vivemos num mundo em crise, as baleias estão morrendo e as geleiras derretem — não devíamos perder tempo falando nesse assunto.
Ou não? O que mais em incomodou na cobertura da imprensa para o lançamento de Zii e zie não foram as recorrentes comparações entre Caetano e Radiohead, mas o desdém generalizado como tratam os blogs. Nas resenhas positivas, nos explicam que, apesar de ter se excedido num site banal, Caetano fez um bom disco. Nas negativas, comparam o CD ao fluxo de futilidades típico de um blog. Um jornalista aqui da cidade, em entrevista coletiva, ainda tentou provocar a discussão. “O álbum é uma extensão do blog?”, perguntou, inocentemente. “Que água vocês andam tomando aí em Brasília?”, retrucou o blogueiro. Se até o Caetano foge dessa raia, quem poderá nos salvar?
Mas foi assim que aconteceu: no período de criação do álbum, Caetano abriu um blog chamado Obra em progresso, onde escreveu sobre música, cinema, política, talvez gastronomia (não sou leitor fiel, desculpa) e, na crista da interatividade, permitiu que os leitores comentassem livremente e votassem em versões de faixas que seriam selecionadas para o disco. Em shows atípicos, acompanhados do trio enxuto de Cê (álbum de 2006), testou as canções antes de gravá-las. Zii e zie é, portanto, resultado de um longo “ensaio aberto”, testemunhado por uma multidão. Não é um mero “álbum de estúdio”.
O disco não prolonga o blog. Não resulta exclusivamente dele. A história não é assim tão óbvia. Mas me parece empobrecedor excluir a experiência do blog da engrenagem deste álbum. Ou tratá-la como um detalhe sem muita importância. Perdão, Caetano, mas vejo na relação entre disco e blog um dos traços mais inventivos deste projeto. Existe um resgate de intenções que vêm lá dos anos 1980 (o show de Velô estreou antes do lançamento do disco), mas é impossível menosprezar o escopo da nova obra.
É fascinante, por exemplo, identificar nas canções o rastro de ideias que apareceram nos textos do blog. Quem leu o site, mesmo esporadicamente, sabe que Caetano adorou Última parada 174, ficou surpreso com o álbum solo do Marcelo Camelo e comparou Rio a São Paulo de mil e uma maneiras. Conscientemente ou não, são temas que acabam se infiltrando nas canções. A intensidade da colaboração entre Caetano e os leitores está refletida no CD — e só quem acompanhou o blog chegará a esse degrau do álbum. Taí uma verdadeira ousadia — um disco-blog, no sentido mais transgressor do termo. Confessional, mas também polifônico, permeável. Algo que eu nunca tinha visto (mesmo que mínimo, existe um valor nos blogs, não existe?).
Ao contrário de Cê (que era reto e conciso), Zii e zie se abre a uma mundo de paisagens e temas. Não tão musicais (o samba com guitarras secas, ou transambas, é um conceito preservado do início do fim do disco, e soa como um alargamento do anterior), mas principalmente verbais. Apesar de simular a atmosfera de uma madrugada chuvosa no Leblon, os versos flutuam das bordas da favela (Perdeu) à base de Guantánamo, da Casa Branca (Diferentemente) à Portugal (Menina da Ria), e de lá para Lapa. É também um livro de crônicas melancólicas da cidade, a meio caminho entre Carioca, de Chico Buarque, e Canções dentro da noite escura, do Lobão. Breu, solidão e lágrimas. Mas, onde Lobão via fantasmas e saudade, Caetano agoniza para dar de cara na esperança (Lapa é quase um hino feliz para a era FHC/Lula).
As comparações com Cê são todas muito tentadoras (e previsíveis, já que um álbum acaba ecoando o outro), e acredito que o susto provocado por aquele disco – que trazia um senhor como que rejuvenescido, furioso, um esqueleto em brasas – não será repetido. Zii e zie, de certa forma, adapta a história musical de Caetano a esse design minimalista. A cor amarela retorna à trilha de Tieta, A base de Guantánamo dá sequência a Haiti e Tarado ni você acena para experimentalismos (e acaba rendendo uma perfeita síntese do livro O paraíso é bem bacana, de André Sant’Anna). Nada mais tropicalista que o jogo com contrastes e extremos, que vibra em todo canto (Rio/São Paulo, samba/rock, favela/Leblon, Clementina de Jesus/Pedro Sá).
E há versos que me constrangem, mas talvez eles deveriam mesmo estar ali. “O homem é o próprio lobão do homem”, em Lobão tem razão; “drogas, tou fora, tá foda”, na barra-pesada Falso Leblon; o desabafo breve e vazio de A base de Guantánamo. Microblogs.
Para ficarmos no bate-bola com Cê, Perdeu (“o sol se pôs depois nasceu e nada aconteceu”) é uma canção que me parece mais comovente que qualquer uma do álbum anterior (talvez esbarre em Minhas lágrimas, ainda não sei). Como um todo, o novo parece difuso, ainda em progresso. Em italiano, Zii e zie significa “tios e tias”. Como Caetano explica, é assim que nos sentimos no Rio de Janeiro, diante das crianças do sinal de trânsito. Talvez a diferença esteja nisso. Cê era o homem. Em Zii e zie, o homem força a porta, abre a janela. E, aventureiro, escreve um blog.
Disco de Caetano Veloso. 13 faixas, com produção de Pedro Sá e Moreno Veloso. Lançamento Universal Music. 7.5/10
Shot in the back of the head | Moby
O novo clipe do Moby, dirigido por David Lynch, parece um cruzamento dos primeiros curtas do cineasta (adequados também para exibição em instalações de artes plásticas) com as experiências que desenvolve para a internet (uma técnica quase primitiva, monocromática; o choque provocado pelos traços mais simples). Nem preciso dizer que é o melhor vídeo do Moby em séculos, preciso? (E a música, sombria toda vida, até me convenceu). Mas recomendo casar as imagens de Lynch com qualquer faixa de Amnesiac, do Radiohead. Aí começa a fazer algum sentido.
W.
W., 2008. De Oliver Stone. Com Josh Brolin, Richard Dreyfuss, Jeffrey Wright e James Cromwell. 129min. 4/10
Na engrenagem deste blog, existe uma lei intocável. Não sei se vocês se deram conta disso (provavelmente sim, já que são pessoas inteligentes, mas fizemos o possível para manter esse procedimento em segredo), ela funciona da seguinte forma: TODOS, absolutamente todos os comentários sobre filmes e discos, ricos em informações superficiais, devem servir tão somente como pretextos para um turbilhão de parágrafos sobre a vida doméstica e a mente perturbada do autor e proprietário do blog: um sujeito sem méritos, trancado numa vidinha mediana.
E isso não é novidade, certo? E aí está a graça de escrever um blog, não? E tudo isso é muito divertido, né? É, é, é. Mas talvez vocês não imaginem o trabalho que dá cumprir esse mandamento, andar na linha, não cair na tentação de escrever um texto seco e preciso, sem gracinhas ou sarcasmo, sem piadinhas infelizes nem lembranças adocicadas. Ou diálogos com a minha avó. Ou conselhos do meu padrasto. É complicado. É dureza. Não recomendo. Eu deveria receber algum tipo de pagamento por isso.
Sem ironia. Repito: sem ironia! Manter este blog provoca um curto-circuito no meu cérebro que se manifesta toda vez em que tento criar conexões em tempo real entre um filme de ação e os parques de diversão da minha infância, entre uma comédia romântica e meus relacionamentos amorosos fracassados, entre tramas sobre pais ausentes e o meu próprio pai ausente. Nem sempre é automático. Só que estou domesticado. Reconheço que eu deveria tratar esse transtorno e me concentrar em livros do Philip Roth e discos do Tim Buckley. Mas não sou o tipo de sujeito que sai por aí quebrando leis.
Nem quero. Exemplo: enquanto assistia a esta cinebiografia pavorosamente entediante sobre George W. Bush, eu só conseguia pensar na minha curtíssima experiência política. Aos oito, nove anos de idade, me candidatei a vice-representante de classe e perdi feio. Um desastre. Mas o que permaneceu na minha memória não foi a derrota, e sim o processo dolorido que cercou a eleição. Acreditem: meninos de uma escola particular cravada no subúrbio do Rio de Janeiro podem encenar intrigas, maracutaias e jogos de poder tão palpitantes quanto os preparativos para a invasão ao Iraque. Como posso saber? Ora, o Oliver Stone me mostrou.
No caso, as lembranças me ajudaram a suportar o martírio que é W., um filmezinho ambicioso que, com a desculpa de compor o perfil austero de um homem importante, fica parecendo uma charge sem piada. O Bush de Josh Brolin é, apesar do esforço do ator (e nenhum ator vence Oliver Stone, entendam isso de uma vez por todas), uma caricatura: o adolescente beberrão e irresponsável que ouviu o chamado de deus e se transformou num político beberrão e irresponsável. Mas onde está a verve de um diretor que costumava interpretar a história dos Estados Unidos por uma lente provocativa? Nunca me imaginei sentindo saudades de JFK, mas cá estou eu, beiçudo, carente de teorias da conspiração. Se a maturidade de Stone equivale a World Trade Center e W., serei o primeiro a cobrar o retorno do moleque inconsequente. Onde assino?
A sorte do cineasta é que um “retrato sóbrio” do governo Bush é, por si só, patético. Não adianta prender o riso, nem transformar Bush-pai numa figura adorável: mesmo quando transcreve diálogos que provavelmente ocorreram (e soam tão maçantes quanto aquilo que imaginamos como os discursos preparados para reuniões na Casa Branca), o filme se livra da sombra de uma farsa. É “cinema de câmara”, descreveu Stone. Com um tema desses e personagens tão esdrúxulos (o que é o Colin Powell sem culhões?), eu preferiria punch de rock de arena.
(Mas ok, compreendo, nem sempre se tem o que se quer, este é o filme que Oliver Stone quis fazer e, nessa perspectiva, o resultado demonstra uma fase mais serena, uma tentativa de soar maduro, uma aproximação do discurso realista-jornalístico-friorento de um Steven Soderbergh e, claro, sempre haverá alguém pronto a valorizar a nobreza de um sussurro contra o esporro de um riff barulhento. Esse alguém não será eu.)
Voltando ao leite derramado da minha infância, o circo da administração Bush não difere muito da campanha entre alunos do meu colégio. Lembro que a classe devia escolher uma entre três chapas. O problema é que não havia uma terceira candidatura. Quando a professora pediu para que os petizes se manifestassem (“precisamos de mais um. Mais um. Um só, gente, por favor”), começamos a ler gibis e desenhar nas cadeiras e filosofar sobre a morte da bezerra. Isso até o momento em que um amigo meu chamado Rodrigo, ambição em pessoa, levantou o braço magrelo e sugeriu o próprio nome.
Ouvi duas ou três risadinhas (dos dois ou três estudantes que prestavam atenção a alguma coisa naquele momento), e só então me dei conta de que eu era o único amigo do novo candidato. No dia seguinte, minha fotografia estampava panfletos em preto-e-branco, distribuídos na cantina, na quadra esportiva, nos bebedouros e no corredor principal. Para vice, Tiago Superoito.
Tímido feito um poste, passei a pentear meu cabelo para o lado esquerdo, na esperança de escapar das gozações de quem sensatamente tratava a política como coisa de fresco. Não consegui. As garotas me viam como uma ratazana de 1,70m (elas tinham medo, muito medo) e os meninos populares me cortavam do time de basquete. Foram semanas desesperadoras, que terminaram com um final feliz: o nerd viciado em videogame e o nerd daltônico obcecado por livros de astronomia (meu amigo Rodrigo, esse) perderam para o garoto mais velho e desajustado, excelente atacante e o único da sala com mais de três fios de cabelo debaixo dos braços. Um estúpido. Um W. Bush.
O que aconteceu durante todo o ano poderia ser descrito mais ou menos um resumo do governo norte-americano pré-Obama: omissões desagradáveis, estratégias ineptas (adoro essa palavra) e uma guerra sem sentido. O representante de classe, grandalhão e desajeitado, exigiu dividir as aulas de Educação Física com outra turma que não “aquele bando de débeis mentais”. Resultado: ele foi suspenso e a classe inteira foi obrigada a encenar uma peça sobre a ditadura militar, “para aprender o que é bom pra tosse”. Rodrigo, que não sabia perder, apurava cada atitude tosca do governante, um playboy incapaz de gerenciar o próprio umbigo.
Deu no que deu: nos atormentaram, e muito cedo, com as consequências de um voto errado. Aposto que, se tivesse optado por filmar minha escola, Oliver Stone poderia até ter levado a Palma de Ouro em Cannes. Entre les murs meets Nixon. Não sinto saudades.
Actor out of work | St. Vincent
No clipe de Actor out of work, Annie Clark submete um grupo de atores desempregados a uma sabatina impiedosa. Dirigido por Ian Kibbey e Corey Creasey (conhecidos como Terri Timely), o vídeo fica na fronteira entre a tragédia e o humor negro. É uma adaptação literal dos versos da música, sim. Mas, além disso, captura o clima de tensão que paira sobre o novo álbum de St. Vincent, que (se tudo der certo) fará tanto sucesso quanto The reminder, da Feist. Vamos torcer. (E se você ainda está passando currículos por aí, pule o clipe. Por favor).
Pessoas feitas de palavras
“Já estamos entendendo errado as pessoas antes mesmo de encontrá-las, enquanto ainda estamos prevendo o que vai acontecer; entendemos errado enquanto estamos diante delas; e depois vamos para casa e contamos a alguém sobre o encontro, e de novo entendemos tudo errado. Uma vez que a mesma coisa acontece com os outros em relação a nós, tudo vira uma ilusão desnorteante, destituída de qualquer percepção, uma espantosa farsa de incompreensões. E, com tudo isso, o que é que vamos fazer a respeito dessa questão profundamente significativa que são as outras pessoas, que se veem drenadas de toda a significação que julgamos ser a delas e adquirem, em vez disso, um significado burlesco, o que vamos fazer se estamos tão mal equipados para distinguir os movimentos interiores e os propósitos invisíveis uns dos outros? Será que todo o mundo devia trancar a porta de casa e ficar quieto, isolado, como fazem os escritores solitários, em uma cela a prova de som, invocando as pessoas por meio de palavras e depois sugerindo que essas pessoas feitas de palavras estão mais próximas das coisas reais do que as pessoas reais que deturpamos todos os dias com a nossa ignorância? Persiste o fato de que entender direito as pessoas não é uma coisa própria da vida, nem um pouco. Viver é entender as pessoas errado, entendê-las errado, errado e errado, para depois, reconsiderando tudo cuidadosamente, entender mais uma vez as pessoas errado. É assim que sabemos que continuamos vivos: estando errados. Talvez a melhor coisa fosse esquecer se estamos certos ou errados a respeito das pessoas e simplesmente ir vivendo do jeito que der. Mas se você é capaz de fazer isso… bem, boa sorte.”
Pastoral americana. 1997. Página 48. Philip Roth. Para, como de hábito, me mostrar que sou um nada.
Superoito express (6)
Rock de mulherzona (e de mulherzinha, às vezes).
Actor | St. Vincent | 7.5 | É a hora e a vez de Annie Clark. Não é? Deveria. Depois da festa que se fez para Marry me (uma estreia promissora e tudo, mas que ainda soa irregular e enjoativa – pelo menos aqui em casa), até meu golden retriever estava se perguntando sobre a estratégia que ela usaria para não desaparecer completamente (e nunca ser encontrada). A boa notícia, então: Actor é um segundo álbum que, sem abandonar os traços mais firmes do disco anterior, encontra a clareza de intenções que Clark procurava. É um ciclo de sombrias canções de ninar, em que arranjos de cordas barrocos (à Van Dyke Parks, Jon Brion) convivem com riffs violentos de guitarra e uma eletrônica mecânica, dura (Marrow é o melhor exemplo desse contraste). Ainda lembra um pouco Fiona Apple e Björk, mas taí: as semelhanças não incomodam muito. Clark começa a pavimentar um caminho particular dentro da tradição do rock sinfônico elegante, com versos manchados por hematomas (“Pinte o buraco negro com mais preto”, ela ordena, em The strangers) e um desejo de provocar terremotos sentimentais que, apesar de aplacado depois da quinta ou sexta faixa, emociona mais que qualquer álbum do Polyphonic Spree, banda que ela costumava integrar. A resposta que eu, você e meu golden retriever queríamos está no título da décima faixa: Just the same but brand new. Exato.
My maudlin career | Camera Obscura | 6.5 | Espero que sua inteligência me perdoe, caro leitor. Mas minha relação com este quarto álbum do Camera Obscura é abalada por um conflito (muito mais típico do que você imagina) entre instinto e razão. Lá na sexta faixa, me peguei num daqueles momentos de iluminação pseudofilosófica: quando é mesmo que devemos descartar um disco por não preencher nossos requisitos racionais, por frustrar nosso caro padrão de qualidade, por não cumprir as exigências da fria lista de exigências de seres obcecados por música pop? Racionalmente falando, My maudlin career é uma negação. Os escoceses repetem pela quarta (!) vez uma fórmula mofada de pop rock retrô, com acenos e beijinhos para os grupos vocais femininos dos anos 60 e o remake de um universo paralelo de romantismo e fofura onde até o Belle and Sebastian parou de tirar férias. Mas o instinto pede a palavra por uns minutos e… por favor! São poucas as bandas que defendem um refrão twee com tanta franqueza, e os fãs de Juno certamente tratarão este disco como uma intensa trilha sonora para páginas borradas de diários escritos a canetinha colorida, lembranças melancólicas da pré-adolescência e saudade melosa daquela ingenuidade antiga que foi embora num transatlântico branco e nunca mandou uma carta sequer. “Eu sou exatamente como você”, canta Tracyanne Campbell. Eu??? Eu não, violão. Racionalmente falando, claro.
Still night, still light | Au Revoir Simone | 6 | As nova-iorquinas do Au Revoir Simone podem não ter tirado a sorte de uma Annie Clark, mas o álbum que segue o bem-recebido The bird of music também flagra uma banda pronta a reconhecer fragilidades e ressaltar pontos fortes. Ufa. Elas passaram a entender, por exemplo, que os remixes dançantes sempre soaram mais relevantes que o shoegazing embaçado que entorpece o disco anterior, sonolento (agora posso assumir sem culpas: escutei duas, três vezes no máximo). Quase todas as novas faixas são remixes pré-fabricados, com longas introduções de eletrônica e versos que se repetem em ladainhas sofridas de mulheres à beira de ataque cardíaco. “Estou mudando. Espero que você venha comigo. Não sou forte sem você”, admitem em Shadows, que cabe num desfecho de Grey’s anatomy. Prefiro a chanson The last one, tão delicada que quase caiu do meu iPod e quebrou. Still night, certo.
(a)spera | Mirah | 5 | A decepção da semana. Foi mal, Pitchfork. Sorry, cinturão indie (e vocês ainda não me convenceram de que o novo do Yeah Yeah Yeahs é uma maravilha deslumbrante por soar como os anos 80; procurem um argumento mais confiável, ok?). Tentei me perder na floresta mágica de Mirah Yom Tov Zeitlyn, mas tudo o que encontrei foi uma confraria de elfos serelepes e migalhas de pão deixadas por Joanna Newsom e Björk (aliás, se Björk começar a cobrar direitos autorais das clones, salvará a Islândia da falência econômica). Também há lugares-comuns no indie rock bem-intencionado, minha gente. Por que não? (a)spera (e note o título modorrento) começa como uma ode à sensibilidade de Nick Drake, com versos místicos e eletrônica sutil. Em Generosity, Mirah avisa que está cansada de tanto desprezo, o amor às vezes é um porre e por isso não gastará mais energia. Um coro de machos reclama: “Queremos mais. Nós queremos mais”. O desejo é, infelizmente, uma ordem: Education tenta uma teoria acadêmica para relacionamentos amorosos, The forest tem guitarras abafadas à Nick Cave, While we have the sun cria pânico nos que temem as consequências do aquecimento global e The river se estica em insuportáveis sete minutos de folk transcendental. O ápice do transe, pelo menos para o público brasileiro, é Country of the future. Repare o título. E se eu disser que Mirah tenta um sambinha bem fajuto inspirada pela atmosfera gostosa do carnival? Armadilha pra turista.