Mês: dezembro 2011
mixtape | Dezembro, verão cinzento
A mixtape de dezembro é diferente das coletâneas mais recentes que você encontrou neste blog. As outras vinham em, digamos, technicolor. Esta foi filmada em p&b. Branco e preto. Branco + preto. Um pouco cinzenta, e emocionante all the way.
A mixtape tá tão boa que faz por merecer um adjetivo afrescalhado: é linda, linda, linda demais (pronto, parei com os adjetivos afrescalhados).
Sinceramente, é uma pena que muitos dos três leitores deste blog estejam, neste momento, na praia, torrando ao sol, entornando hidratante nas costas das respectivas namoradas. É uma pena porque esta aqui não é tão-somente a melhor mixtape do ano – estamos falando na melhor mixtape da história deste blog. Sério, gente. Sério de verdade.
Também: é uma das mixtapes mais simples, combinando canções folksy com eletrônica, num tom constante de fragilidade, delicadeza. Melodias por um fio, com estouros ocasionais de entusiasmo. As músicas são todas excelentes, e seria lamentável se você esperasse 2012 começar para conferir essas joias. Faça um favor a si mesmo e ouça esta mixtape antes do ano-novo.
Aqui dentro desta coleção de arquivos em MP3 você encontra Field Music (foto acima), Megafaun, Radiohead (sim!), Run DMT, Julia Holter (voltaremos a ela), Kendrick Lamar, James Blake (sim!), Bill Callahan, Oneohtrix Point Never e The Weeknd (sorry, haters!). Muita melancolia (pra quem é de melancolia), muita sutileza (pra quem é de sutileza). Mas sem cair em chororô, porque isso não é coisa que você encontra neste blog.
Antes que eu esqueça: voltamos a ter a incrível opção tecnológica de ouvir a mixtape aqui mesmo, enquanto você lê o blog! (A lista de faixas está ali na caixa de comentários)
No mais, desejo a você um bom 2012. Até logo (comentários na velha e boa caixa serão recebidos com muito apreço, como de hábito).
Faça o download da mixtape de dezembro (o link já tá funcionando novamente).
Ou ouça aqui:
Vídeos do VodPod não estão mais disponíveis.
cine | Compramos um zoológico
Alguns meses depois da morte da esposa, Benjamin Mee resolveu mudar de rotina: o americano abandonou a carreira de repórter e comprou um zoológico, onde passou a viver com os dois filhos. O lar da bicharada de forma foi reativado de forma tão admirável que o pai viúvo se tornou um herói local. Quando perguntavam a ele sobre a razão de ter se metido num ramo profissional tão exótico, o homem respondia sempre do mesmo jeito: “Por que não?”.
Talvez as pessoas tenham feito essa pergunta tantas vezes que Benjamin decidiu escrever um livro sobre a experiência. A autobiografia inspira este Compramos um Zoológico.
Admiro a bravura do jornalista. Mas desconfio que o livro me irritaria. Se o filme de Cameron Crowe foi minimamente fiel às intenções de Benjamin, aquelas páginas podem ser usadas como slides em palestras de motivação para funcionários em crise. “Seja como Benjamin: proativo, corajoso, gente que faz”.
Não sei se o livro é uma obra de autoajuda (não li, não quero ler). O filme o é. E sem culpa, sem vergonha, com uma vibe tão alegremente cafona quanto a de Comer Rezar Amar. A diferença é que Cameron Crowe sempre foi um sujeito alegremente cafona. Também sinceramente alegre, otimista e jovial – qualidades que o apartam dos muitos ghostwriters que produzem livros sobre como se tornar um bom gerente ou como agir quando alguém mexe no nosso queijo.
Reconheço com facilidade Cameron Crowe nos filmes que ele dirige. As trilhas musicais sugerem um fã quarentão de música pop tentando forçar amizade com os mais novinhos (reúne canções dos anos setenta combinadas a uma ou duas novidades elogiadas pela revista Rolling Stone), as tramas são sentimentais e afetuosas (mas nunca impessoais, já que Crowe parece ser, de verdade, um cara sentimental e afetuoso), os personagens nos lembram pessoas que conhecemos (são tipos sentimentais e afetuosos, mais ou menos como Crowe deve ser) e, nessas narrativas de bom coração, cinismo é palavra feia, vetada.
Qualquer um dos filmes de Crowe (talvez à exceção de Vanilla Sky, que era um remake) cabe nesse padrão de dramaturgia/temperamento, que Compramos um zoológico segue com muita naturalidade. Mas me pergunto se, a esta altura, e talvez por ter visto todos os longas do diretor, Crowe não estaria simplesmente procurando desculpas para fazer os filmes que sempre fez.
Talvez sim. Compramos um Zoológico é, simultaneamente, um filme-de-Crowe e um filme-autoajuda – e me impressiona como podemos dividi-lo em duas partes, que podem ser analisadas separadamente. O filme-de-Crowe se mostra gentil, sempre digno e correto; já o filme-autoajuda é chantagista e manjado, um veículo pobretão para astros que não querem se esforçar muito (Matt Damon e Scarlett Johansson). O filme-de-Crowe é o tiozinho que se emociona com Bon Iver e Neil Young, que preza (honestamente) os valores familiares e que acredita num amor ingênuo, primaveril. O filme-autoajuda, em contrapartida, é uma armação de marketing programada para nos ensinar o que já sabemos – e patrocinada pela Apple.
Acontece que, se Crowe está em Compramos um Zoológico (e são muitos os pontos de contato entre este filme e Jerry Maguire e Quase Famosos), Compramos um Zoológico mostra que a sensibilidade do diretor, quando associada a tramas aborrecidas como esta, serve de papel-de-presente fino para embrulhar objetos banais. Deixei a sessão de Compramos um Zoológico certo de que reencontrei o sujeito boa-praça de sempre; mas o homem, dessa vez, não tinha quase nada de inteligente a dizer.
(We Bought a Zoo, EUA, 2001) De Cameron Crowe. Com Matt Damon, Scarlett Johansson e Thomas Haden Church. 124min. C+
cine | Gato de Botas
O primeiro Shrek é o melhor da série. Estou quase certo, vejam só, de que ele mereceria uma boa cotação neste blog (B+, digamos). Mas recomendo que, nesse caso, você não confie muito em mim: sempre fui uma mãe para as comédias que satirizam filmes conhecidos e, quando vi aquele desenho, eu tinha 21 anos. Em 2001, este blogueiro dizia/escrevia coisas que hoje me envergonham.
As três sequências de Shrek são bobagens bobíssimas, certo? A segunda era um pouquinho engraçada. As outras duas, nem isso. Não lembro delas, e duvido que muita gente lembre. Mas tenho vagas lembranças sobre aquele primeiro Shrek. Na época, num texto que escrevi (um post cheio de adjetivos, como quase tudo o que eu escrevia naquela época), o qualifiquei como “empolgante”, “vívido”, “alegre” etc. O que ficou na minha memória foi mais ou menos isso: uma animação rancorosa/recalcada, sim (é um fuck-off pra Disney, resumindo), porém cheia de joie de vivre; graça, entusiasmo.
É tudo o que (também resumindo) este Gato de Botas não tem. Possivelmente o filme será acolhido com carinho por críticos que rejeitam o humor despeitado de Shrek. Gato de Botas passa, nesse aspecto, à margem da franquia onde nasceu. Em parte, o faz por razões comerciais: existe toda uma impressão de desgaste associada à série. Mas a alternativa dos produtores (entre eles, Guillermo del Toro) me parece inócua: criar uma fita de aventura levemente cômica e com algo surreal (um dos personagens é um ovo falante!), com sotaque espanhol, que poderia ser descrita como, ai-ai, uma versão animada e em 3D para, sono, A Lenda do Zorro. Um cineasta mais sacana, um Robert Rodriguez, teria tratado os personagens e as situações de uma forma mais apaixonada. Mas Guillermo del Toro não é Robert Rodriguez. E Robert Rodriguez não está aqui.
(Puss in Boots, EUA, 2011) De Chris Miller. Com vozes de Antonio Banderas, Salma Hayek e Zach Galifianakis. 90min. C
[michel laub]
1.
O diagnóstico do Alzheimer é feito em várias etapas. Primeiro é uma consulta simples, o médico pergunta sobre os lapsos de memória do paciente, se ele fuma e bebe, se toma remédios, se teve alguma doença grave e fez algum tratamento ou cirurgia nos últimos anos. O médico ouve os batimentos cardíacos, mede a pressão, pede exames clínicos de orientação e linguagem, e em seguida uma tomografia, e também uma ressonância magnética, e também uma dosagem de hormônios da tireoide, e também de cálcio e fósforo e vitamina B, e também recomenda o PET Scan e o SPECT, uma série de procedimentos para excluir outras causas para os lapsos, como o estresse, a demência, a arteriosclerose, a depressão e o tumor.
24.
Primeiro o meu pai deixou o assunto o mais próximo possível de uma rotina doméstica, e tenho até a impressão de que ele se empenhou para que a minha mãe continuasse lidando com isso como se nada houvesse acontecido, um esforço para continuar reproduzindo diante dela as manias costumeiras, e cada vez que eu telefonava ela dizia que ele continuava do mesmo jeito, os resmungos, a louça e as calças, o programa de rádio de manhã. Era como se ela e eu nos convencêssemos de que meu pai ainda era o mesmo, uma espécie de licença renovada a cada telefonema. Passou a ser comum ele repetir a pergunta que fez dois minutos antes, e dar dinheiro em excesso à faxineira ou ao porteiro, e mudar de humor no meio de uma conversa, mas parecia ainda estar longe a tarde de inverno em que ele surpreenderia a minha mãe, um gesto nunca antes visto, uma palavra que em quarenta anos de casamento ela nunca tinha ouvido da boca dele, uma novidade que anuncia uma sequência ainda mais acelerada de mudanças, meu pai perdendo um pouco do que qualquer um de nós reconheceria como algo único dele, e uma manhã ele acorda sem saber o nome de uma cidade, e na outra se um animal voa ou nada ou se arrasta, e numa terceira a marca do próprio carro e como se usa o acelerador e o freio, e de repente ele não sabe há quantos anos está casado com a minha mãe, e nessa tarde de inverno tomando chá e distraída com o relógio de parede que marca cinco horas ela percebe que ele não faz ideia de quem é e do que está fazendo ali.
[trechos do livro Diário da Queda, de Michel Laub]
cine | O palhaço
Na revisão deste O Palhaço, finalmente entendi por que o filme me desagradou tanto: o terceiro ato, quando o personagem de Selton deixa o circo e sai pro mundo real, é de uma preguiça lamentável. Filmado sem muita imaginação, com uma pressa danada (e me parece uma das partes mais importantes da trama), esse trecho me incomoda mais que: 1. a overdose sentimental das últimas três ou quatro sequências; 2. a trilha sonora geleia-geral, cheia de firulas transnacionais pra impressionar fã de Gogol Bordello e Kusturica e 3. o spray sanitizante que o cineasta usa pra validar/filtrar aquilo que entende por “cinema popular”, com uma encenação aconchegante, bonita, inofensiva, afetuosa, lírica, sempre confirmando o nosso sagrado bom gosto audiovisual – um filme-irmão de 2 Filhos de Francisco, O Auto da Compadecida e de Segue o Seco, da Marisa Monte, portanto, pra ser exibido no Circo Voador depois de um show do Los Hermanos. Durante a projeção, acabei me identificando com o herói de Selton (que está muito bem no papel, aliás; acho até que dá pra escrever um belo texto relacionando a trajetória do ator com a composição deste personagem): um tipo sempre muito melancólico, desconfortável, querendo sair de cena e ir pra outro lugar.
(Brasil, 2011). De Selton Mello. Com Selton Mello, Paulo José, Giselle Motta e Teuda Bara. 109min. C
top 10 | Os livros de 2011
Depois dos rankings de Melhores Filmes, Piores Filmes e Melhores Discos de 2011, encerro a minha retrospectiva com uma lista de 10 bons livros que li durante o ano.
Para não bagunçar os critérios, só entram no top aqueles que foram publicados pela primeira vez no Brasil em 2011. Essa regra exclui, por exemplo, um punhado de romances antigos do Philip Roth, seminários de Freud e Moby Dick.
Mas ele, o manual do jogo, não torna inelegíveis os livros novos do Roth (Nêmesis), do DeLillo (Ponto Ômega) e do Piglia (Alvo Noturno), além de um punhado de outros (Um Dia, argh) que não entram no ranking porque não entram. Paciência.
Por coincidência, quase todos os que estão nesta saíram pela Companhia das Letras. Não foi de propósito, gente: nada tenho contra as outras editoras; e, no mais, não estou ganhando cachê pra publicar este post.
10 Ilustrado | Miguel Syjuco
Este thriller sobre um misterioso assassinato em Manhattan (a vítima: um escritor filipino de sucesso internacional, mas rejeitado pelos próprios compatriotas) pode ser lido como uma sátira cruel sobre um país caótico, onde a criação artística se tornou uma aventura. Felizmente, soa menos como world music, mais como rock psicodélico.
9 Escuta Só | Listen to This | Alex Ross
Este livro de ensaios seria apenas uma espécie de coletânea de sobras do monumental O Resto é Ruído, publicado aqui em 2009. Surpreendente é notar que, com a gravata afrouxada, Ross escreve ainda melhor: rigor histórico à parte, o que ele compõe são belas crônicas de fé no poder de sobrevivência da música – erudita ou não.
8 Silenciosa Algazarra | Ana Maria Machado
Uma coleção de pensatas ainda mais despretensiosa que o greatest hits de Alex Ross, mas que pode comover quem, como eu, não vê sentido algum nas políticas públicas de incentivo à leitura. Um livro simples, inconformado e potente, escrito numa prosa direta, que não quer nunca nos iludir.
7 O Romancista Ingênuo e o Sentimental | The Naive and the Sentimental Novelist | Orhan Pamuk
Este ano, chegou ao país um bom livro do Nobel turco, O Museu da Inocência. Mas ainda prefiro esta coletânea de palestras sobre romances literários. O poder de deslumbramento dessas “aulas” pouco ortodoxas – lições sobre o mistério das grandes obras – equivale ao dos melhores romances que Pamuk criou.
6 Cinefilia | Antoine de Baecque
Havia o perigo de que Cinefilia se saísse uma espécie de livro didático sobre a cinefilia francesa moderna – nascida ainda na pré-história da nouvelle vague -, mas não há nada singelo na ambição de Beacque: o francês quer aproximar o leitor de uma história ainda cercada mais por mitos que por homens. Daria um ótimo filme.
5 Zeitoun | Dave Eggers
O melhor livro de Eggers é, quem diria, uma reportagem literária sobre um sobrevivente do furacão Katrina. A secura como descreve sofrimento do personagem evita, a todo custo, o sentimentalismo oportunista que geralmente acompanha a reconstituição jornalística de atos heroicos. O escritor cresceu.
4 Os Filhos da Viúva | The Widow’s Children | Paula Fox
Escrito em 1976, esta é uma das obras-primas de Paula Fox que foram descobertas talvez tarde demais (nos Estados Unidos, os livros adultos da escritora saíram de catálogo em 1992), mas que não perderam o viço. A habilidade como alterna os pontos de vista dos personagens – abomináveis, adoráveis – nos deixa sem ar.
3 Diário da Queda | Michel Laub
Para quem não conhecia os anteriores de Laub (meu caso), este Diário da Queda chegou como uma senhora surpresa: o escritor tem a coragem de enfrentar grandes temas – o holocausto e Alzheimer, para ficarmos nos maiores deles – com o tom catártico de quem divide segredos muito pessoais com o leitor.
2 Liberdade | Freedom | Jonathan Franzen
Não sei se Franzen encontrou tudo o que procurava neste “grande romance americano” – um Tolstói para os subúrbios da era Bush! Uma Paula Fox em cinemascope! Um Paul Thomas Anderson das letras! -, mas é emocionante assistir às peripécias de um autor que usa o talento (não é pouco) à serviço de ambições tão amplas.
1 Meus Prêmios | Meine Preise | Thomas Bernhard
Por falar em ambições épicas… Meus Prêmios, este livrinho póstumo de Bernhard (que o austríaco escrevia pouco antes de morrer, em 1989), tem apenas 112 páginas, com nove artigos sobre (vocês adivinharam) os prêmios recebidos pelo escritor. E é isso. Só isso. Mas o que parece uma curiosidade tolinha na biografia do autor logo se impõe como uma obra atualíssima: isso porque as pessoas seguem premiando e as premiações literárias são, e sempre serão, jogos patéticos de vaidade – que, ao fim e ao cabo, nos ensinam um tanto sobre o comportamento humano. Bernhard é dos poucos escritores que conseguem me fazer rir de raiva. Meus Prêmios é, dito isso, um livro muito engraçado – e, ao mesmo tempo, revoltante.
top 100 | Os filmes da minha vida (12)
Neste episódio natalino, o ranking dos 100 filmes que iluminaram minha vidinha apresenta dois longas-metragens apetitosos, para nutrir a sua ceia.
Feliz Natal e até logo mais.
078 | Fargo | Joel e Ethan Coen | 1996
Vi este Coen no cinema, numa época em que eu queria escrever como Rubem Fonseca e dirigir filmes tão geniais quanto Pulp Fiction. Desde então, mudei muito (não sei se pra melhor), mas o desfecho de Fargo ainda segue em alta no meu ranking secreto das cenas mais bonitas do mundo. Eu teria que revê-lo para saber se ainda se sustenta como o meu favorito entre os filmes dos cineastas, mas isso é desimportante: hoje, lembro muito dos personagens e pouco das reviravoltas da trama (o que talvez explique sobre a força do filme).
077 | Feitiço do Tempo | Groundhog Day | Harold Ramis | 1993
Revi esta comédia tantas vezes que, ironicamente, às vezes a impressão era de que eu estava preso num Dia da Marmota cinematográfico (“vivi” o filme repetidamente, ainda que, a cada revisão, sempre descobrindo alguma novidade nele). Por um longo período da minha vida, a identificação com o herói de Bill Murray era total: eu me sentia um sujeito incapaz de crescer e aprender, mesmo quando cometia os mesmos erros duas, três, cinco vezes. Depois, quando parei de me incomodar com esse espelho, consegui notar o que existe de engenhoso no filme – não o truque de roteiro, mas a transformação sutil de um personagem.
♪ | Echoes of Silence | The Weeknd
Conhecemos Abel Tesfaye (aka The Weeknd) há apenas nove meses. Felizmente, não se sabe ainda muito sobre ele: imagino que, quando o canadense começar a aparecer nos clipes da Beyoncé e a tomar sol em iates, vamos sentir falta da época em que ainda conseguia dissolver a própria identidade dentro de canções misteriosas, cheias de segredos e armadilhas, talvez não exatamente autobiográficas (nem totalmente inventadas) – um homem na fumaça da ficção.
O noir Echoes of Silence é o último capítulo de uma trilogia de discos que começou com House of Balloons (em março) e seguiu com Thursday (numa quinta-feira de agosto). Como acontece no desfecho de qualquer série, este também pode provocar alguma melancolia nos “leitores” que acompanhavam a história desde o começo. Soa, a um só tempo, como o resumo (de uma aventura) e uma despedida. Tem muito da agonia bonita de um O Poderoso Chefão – Parte 3 – e um pouco das redundâncias tediosas de um Matrix Revolutions. Não é o grande disco que esperávamos de Abel – tampouco o pior.
House of Balloons, o primeiro ato, tinha as músicas mais sedutoras, as cenas de maior impacto, a ação, o drama e as surpresas. Thursday – uma espécie de after-party daquele disco – vinha num movimento um pouco mais arrastado, agônico, se alastrando lentamente como o remix dub de um álbum comercial de R&B. Echoes of Silence reprisa elementos dessas duas encenações, mas inclui um tema ao repertório de Abel: as consequências da fama.
Lavar a roupa suja do showbusiness se tornou um clichê na música pop, mas, no caso do The Weeknd, o clima de ressaca/decadência combina perfeitamente com a atmosfera dos discos anteriores, que viam a vida noturna de uma cidade grande (Montreal, digamos) como um teatro de vampiros, um enorme reality show em que pessoas comuns, solitárias, criavam identidades alternativas para conseguir afeto, sexo, drogas. A noite, para Abel, é um palco.
Mais do que os álbuns anteriores, Echoes of Silence estreita a distância entre Abel e os personagens que vagam nas canções do The Weeknd. Talvez por isso ele me pareça o disco mais inseguro da trilogia: em muitas das músicas, o que se ouve são os “posts” desesperados de um ídolo em ascensão, cheio de incertezas sobre o showbusiness e a ideia de sucesso. “Não cheguei ao topo, mas sinto como se estivesse lá. Me sinto bem”, avisa, em The Fall. Mas, em seguida, comete um ato falho: “Não tenho medo da queda. Já senti o chão antes.”
O medo a gente compreende. Mas queda? Quem falou em queda?
O brinde natalino do Weeknd chega num momento em que Abel dá tapinhas nas próprias costas enquanto lê as listas de melhores discos do ano, acompanha a ótima repercussão de Take Care (álbum de Drake em que participou), e produz remixes para Lady Gaga e Florence and the Machine. Nesse contexto, Echoes of Silence provoca a impressão inevitável de que Abel começa a se preocupar com o expediente da firma da indústria musical. Não acredito, no entanto, que o disco deva ser lido como mero diarinho, como espelho límpido pro artista.
Isso porque Abel segue criando tipos fantasmagóricos para compor as canções. Segue mesclando autobiografia e ficção. Não é sempre que usa a primeira pessoa para narrar as tramas – e, mesmo quando o faz, parece consciente do talento para storyteller. Em XO/The Host, por exemplo, ele volta ao cenário de The Morning para acompanhar a noitada incrível/terrível de uma mulher. O narrador, um mefisto vestido em couro, é aquele que oferece o caminho da perdição a essas almas perdidas/penadas.
Criar fantasias como alívio para um cotidiano insuportável é um tema que aparece na maior parte dessas nove faixas: está em Outside (sobre um casal que se tranca dentro de um quarto, Palmeiras Selvagens style), em Next (cuja protagonista flerta com o narrador só porque ele é o “próximo da fila”), em Initiation (sobre a primeira vez… com o ecstasy) e na faixa-título, a mais tocante do repertório de Abel. “Sei que você sente dor enquanto fazemos amor. Mas, se você está fingindo, vou fingir também”, propõe o ladie’s man patético de Outside.
A prosa segue atormentada, sem alívios. Nada se resolve (a fantasia logo e sempre desmorona). Nenhum romance se sustenta, e a noite segue implacável. Pena que, ao contrário do que acontecia em House of Balloons e Thursday, o cansaço dos personagens agora “vaza” para as melodias e para a produção de Illangelo (o “diretor de fotografia” de Abel), que não parece se sentir desafiado a criar imagens à altura do script do compositor. A faixa de abertura, uma versão de Dirty Diana (lado B de um Michael Jackson fase Bad) é Weeknd as usual: guitarras machonas de hard rock versus batidão-zumbi. Não chega a assustar.
No mais, falta imaginação ao disco: as nuances de House of Balloons, minimizadas em Thursday, são trocadas por uma palheta de cinzas-chapados, repetitivos, que não fazem muito além de reafirmar os traços sombrios das faixas mais conhecidas do The Weeknd (Wicked Games, principalmente, e sempre ela). Para quem ouve, é como voltar pela segunda vez à cena de um crime.
Ao menos, Abel cria uma bela cena de encerramento. A faixa-título, mais um conto sobre amor masoquista, fecha com um dos raros momentos de sinceridade de um narrador cínico, degenerado. À mulher que decepcionou, o homem faz um pedido sussurrado: “Não abandone a minha vidinha.” E a cortina desce, silenciosamente.
Terceiro disco do The Weeknd. Nove faixas, com produção de Illangelo, Clams Casino e DropxLife. XO Records. Baixe aqui: http://the-weeknd.com. 69
top 10 | Os filmes de 2011
Depois dos rankings de Melhores Discos e de Piores Filmes do ano, chegamos às listas dos meus filmes preferidos de 2011. São duas. A primeira contém 10 filmes recentes que ainda não estrearam no Brasil. E a segunda, já tradicional, reúne os longas que foram lançados no nosso (lamentável) circuito de exibição.
Geralmente, em fins de ano, faço um top 20 dos meus filmes prediletos. Mas, em 2011, preferi me limitar a um top 10. Por isso, vocês não vão encontrar na lista alguns filmes de que gosto muito, como Melancolia, Cisne Negro, O Céu sobre os Ombros, Lola e Passe Livre. Digamos que eles tenham escapado por pouco.
Como sempre, a lista dos filmes que não estrearam é mais interessante do que a lista dos que estrearam. Vamos a elas.
Os 10 que não estrearam no Brasil
1 Oki’s Movie, da Hong Sang-soo
2 Mildred Pierce, de Todd Haynes
3 Drive, de Nicolas Winding Refn
4 The Day He Arrives, de Hong Sang-soo
5 Fausto, de Alexander Sokurov
6 Habemus Papam, de Nanni Moretti
7 Histórias da Insônia, de Jonas Mekas
8 George Harrison: Living in the Material World, de Martin Scorsese
9 Irmãs Jamais, de Marco Bellocchio
10 Era uma vez na Anatólia, de Nuri Bilge Ceylan
E os 10 que estrearam
10 Missão Madrinha de Casamento | Bridesmaids | Paul Feig
A melhor comédia do ano é a que tem os melhores personagens: hoje, quando lembro no filme, não me apego a cenas específicas (ainda que ele tenha pelo menos três gags hilariantes), mas numa protagonista que poderia existir, e me cativar, independentemente da trama. Se Hollywood deixasse, eu a acompanharia em mais duas, três sequências. Coproduzido por Judd Apatow.
9 A Pele que Habito | La Piel que Habito | Pedro Almodóvar
Talvez a provocação mais desagradável do repertório de Almodóvar, este monster movie nos atormenta com um punhado de cenas terríveis – todas elas, no entanto, ocorrem na imaginação do espectador. Às vezes é como se o cineasta criasse duas obras simultâneas: o melodrama polpudo de sempre e uma pensata bizarra sobre o poder de sugestão do cinema. O próprio filme é um espelho de dupla face.
8 Adeus, Primeiro Amor | Un Amour de Jeunesse | Mia Hansen-Love
Um conto trivial de adolescência (menina encontra menino, menino a abandona; e, anos depois, retorna), filmado com sensibilidade extraordinária. Hansen-Love não quer distância dos personagens. Como nos melhores romances romances literários, compõe tipos complexos e, ao mesmo tempo, muito comuns – que nos deixam com a boa ilusão de decidir, por eles próprios, os rumos da trama. Rohmer curtiria.
7 Bravura Indômita | True Grit | Joel e Ethan Coen
O western dos irmãos Coen está entre os melhores da dupla: mais um exemplo de adaptação literária que cria a impressão de dividir a autoria com os autores dos livros. Foi assim em Onde os Fracos não Têm Vez, muito atento aos espaços vazios da prosa de Cormac McCarthy. E é assim num longa que se movimenta como um conto de fadas lascado, cheio de poeira e afeto, à altura de Charles Portis.
6 O Garoto da Bicicleta | Le Gamin au Vélo | Luc e Jean-Pierre Dardenne
O cinema dos Dardenne costuma ser analisado pelo viés da ação, do movimento. Mas ainda vejo O Garoto da Bicicleta como um filme em que as cores cumprem um papel fundamental, num jogo de vermelhos, amarelos e azuis que cria um contraste forte com a condição do personagem principal, abandonado pelos adultos. E aí não custa usarmos o velho adjetivo que cabe à dupla: precisão.
5 Singularidades de uma Rapariga Loura | Manoel de Oliveira
Um Manoel de Oliveira que, como em Sempre Bela (o meu preferido entre os exibidos no Brasil em 2010) só parece pequeno: o que impressiona, novamente, é como um plano fixo tem o poder de abrir um mundo de significados. O que seria apenas uma adaptação suave de um conto de Eça de Queirós se mostra muito mais que isso: a moça na janela, reparem, não é só uma moça na janela.
4 Um Lugar Qualquer | Somewhere | Sofia Coppola
Se alguém resolvesse reunir os primeiros três filmes de Sofia Coppola numa antologia precoce, Somewhere seria um epílogo muito apropriado: ele depura (e explica, não sem algumas redundâncias) o olhar da cineasta; se livrando, por isso, de todos os acessórios (daí a impressão de que nada acontece na trama). Nesse processo, Sofia se desnuda como nunca antes. O meu preferido da diretora.
3 Isto não é um Filme | In Film Nist | Jafar Panahi e Mojtaba Mirtahmasb
Aparentemente, é o único filme que Jafar Panahi poderia ter feito nas condições a que estava submetido (em prisão domiciliar, condenado por se opor ao governo iraniano). Seria ingênuo, no entanto, tratar o longa como um manifesto ingênuo: com o amigo Motjaba Mirtahmasb, Jafar cria um filme livre, com narrativas sobrepostas e autoria compartilhada. O mais contundente dos protestos, portanto.
2 Cópia Fiel | Copie Conforme | Abbas Kiarostami
Um filme com tantas conotações que, mesmo depois de ter lido muito sobre ele, ainda não sei se sou capaz de entender tudo o que Kiarostami quer dizer. Admirável, acima de tudo, é como esse enigma tem uma aparência agradável: uma love story em belos cenários que vai sutilmente se contorcendo, se sabotando, aos olhos do espectador. Por fim, temos um ator e uma atriz, em movimento.
1 Tio Boonmee, que Pode Recordar suas Vidas Passadas | Apichatpong Weerasethakul
Já escrevi tanto sobre este filme – e ele aparecia no topo da lista dos meus favoritos entre os que não estrearam em 2010 – que corro o risco de ficar me repetindo. Mas, resumindo tudo, o que mais admiro em Tio Boonmee é o poder que ele tem de me deixar maravilhado (e aflito, mesmo numa segunda revisão) diante de personagens comuns e de situações cotidianas. Uma câmera em permanente estado de êxtase – e com a fé infantil de quem acredta em fantasmas.
cine | Histórias cruzadas
O título em português, sob medida para qualquer filme escrito por Guillermo Arriaga, me preparou para o 2h30 de agonia. Amigos me alertaram que seria uma espécie de Conduzindo Miss Daisy para leitoras de Martha Medeiros. Mas — minhas expectativas estavam bem baixas, percebam — até que The Help não me parece o mais oportunista dos dramas-pra-Oscar. É apenas mais um melodrama bem intencionado, em cores suaves e com muita coisa acontecendo, inspirado em best seller e dirigido por um-qualquer, que dilui um tema “importante” (no caso, as relações de ódio/amor entre as patroas brancas e as empregadas domésticas negras, no Mississippi abertamente racista do início dos anos 60) numa narrativa de fotonovela, palatável para o fã-clube de, digamos, Brothers and Sisters. Me lembrou outro filme “feminino” de época que se deixa anular pela própria caretice, O Sorriso de Mona Lisa. O elenco principal é muito competente e oscarizável, moças guerreiras segurando as pontas de um roteiro cheio de tipos estereotipados que, subitamente, como que por milagre, às vezes se redimem. E (ufa) nem são muitas as histórias que se cruzam.
(The Help, EUA/Índia/Emirados Árabes, 2011) De Tate Taylor. Com Viola Davis, Emma Stone, Octavia Spencer e Bryce Dallas Howard. 146min. C
cine | Adeus, primeiro amor
Numa das cenas, uma adolescente (estudante de arquitetura) lê em voz alta, para a classe, um texto que compara casas a obras de arte. A arte, diz o livro, é uma expressão individual, que não tem o dever de agradar, que pode não servir para coisa alguma — por isso, geralmente incomoda as pessoas. Enquanto que uma casa, em oposição, é desenhada para confortar e cumprir as expectativas do consumidor. A arte é livre; a casa, projetada para satisfazer.
Não que essa cena resuma o filme (ele trata de uma série de outros assuntos) — mas é como se, nesses minutos em que se dirige ao espectador, Mia Hansen-Love riscasse uma linha de giz entre o cinema que ela admira (arte) e os filmes utilitaristas. Este Adeus, Primeiro Amor não é uma “cinecasa”.
E aqui não estou falando num cinema “de arte” com imagens e sons forçosamente poéticos, que tentam a todo custo — de um jeito deprimente — sensibilizar o espectador (para Mia, isso não é arte; é outra coisa). Mas de um cinema que vai rejeitando naturalmente artifícios já muito manjados, mais ou menos da mesma forma como um bom escritor desvia (também sem esforço) da frase banal, vazia, apelativa.
Mia já fez outros filme assim particulares (O Pai dos Meus Filhos) — quando dirige, hoje ela sabe muito bem o que não quer. Só uma diretora já muito segura das próprias intenções deixaria a câmera flutuar em torno da personagem principal — uma adolescente que não consegue se livrar das lembranças do primeiro amor — como se ela, a lente, não guiasse a narrativa. A sensação é de que o filme chega sempre depois da protagonista, se surpreendendo por uma história de vida cujo roteiro se escreve no decorrer da ação.
O naturalismo de Mia é uma ilusão muito bem construída (repare em como as cenas de idílio, no começo do filme, são sutilmente mais iluminadas e inocentes que o restante do longa), que está sempre permitindo aos personagens algumas liberdades importantes: a contradição (às vezes parecem imaturos, às vezes maduros demais; por vezes comuns, por vezes especiais), as incertezas, o direito de cometer grandes erros (e, depois, talvez de consertá-los) e de, no mais, não saber se tomou a decisão correta. Na poltrona, nós os acompanhamos sem saber pra onde eles vão — na segunda metade do filme, admito que eu estava tão aflito quanto eles.
Não parece ser um filme sobre arte. Mas é com personagens vivos que este filmezinho se manifesta a respeito de todo um cinema meio morto.
(Un Amour de Jeunesse, França/Alemanha, 2011) De Mia Hansen-Love. Com Lola Créton, Sebastian Urzendowsky e Magne-Havard Brekke. 110min. A
top 100 | Os filmes da minha vida (11)
Na onda de retrospectivas de fim de ano, já postei as minhas listas de Melhores Discos de 2011 e de Piores Filmes de 2011. Mas vou interromper essa série natalina para voltar, só por um breve momento, ao ranking dos 100 filmes que abalaram a minha vida.
Como vocês sabem, esta é uma lista muito pessoal, que não trata dos melhores filmes que vi, nem dos mais importantes, mas daqueles que se impuseram de alguma forma no, arram, mapa da minha existência. Um top 100 cheio de idiossincrasias, portanto. Voltemos a ele.
080 | Gremlins 2 – A Nova Geração | Joe Dante | 1990
Foi difícil encontrar uma palavra para definir a sessão de cinema em que vi Gremlins 2, mas lá vai: festiva. Porque, no fim das contas, éramos crianças e estávamos em festa. Lembro que o filme teve que ser interrompido porque uma menina de oito-nove anos teve uma crise de risos (outra interrupção memorável durante uma sessão: a versão-do-diretor de O Exorcista, alguns anos mais tarde). Não lembro quase nada do filme, a não ser da sensação de que havia algo venenoso no chantilly que Joe Dante nos oferecia. Para meninos de 11 anos, era o tipo mais empolgante de entretenimento (arruaceiro, hilariante & sarcástico, mais ou menos como os colegas de classe que nós admirávamos naquela época): e lembro que lamentei muito quando o longa não foi indicado ao Oscar. Mundo, injusto mundo.
079 | Audition | Ôdishon | Takashi Miike | 1999
Meu primeiro Takashi Miike foi, claro, um choque. Não só isso, no entanto. Descobri com sangue nos olhos – filme a filme; pra minha sorte, o dono da locadora de DVDs importados era fã do japonês – um diretor que fazia cinema com a voracidade de cinéfilo ansioso (ou de um menino hiperativo, que compra o ingresso para a montanha-russa enquanto ainda está na fila pro trem-fantasma). Já vi um punhado de filmes do diretor, que não se cansa de me surpreender, mas Audition segue firme no topo da minha lista de favoritos: um meta-horror pós-Psicose que me perturba menos por aquilo que ele tem a comentar sobre as fitas de gênero (e são comentários fortes, do melodrama ao terror de tortura) e mais por tudo o que Miike diz sobre o quão misterioso é o comportamento humano. Um choque, enfim.
cine | Attack the block
Um assessor de marketing esperto venderia essa sci-fi britânica como a fita de aventura spielberguiana que Spike Lee dirigiria. O filme tem um plano curioso: encenar uma trama bem tipica sobre invasão alienígena na mais mundana das locações (um bloco de apartamentos de classe média baixa, no sul de Londres). A garotada do gueto conversa muito sobre cultura pop, fuma maconha, rouba moças indefesas e enfrenta monstros peludos com dentições em azul fluorescente. Neat.
Mais importante: os personagens habitam uma espécie de mundo paralelo, à margem da Inglaterra “oficial”. Daí que essa batalha entre humanos e aliens não será televisionada, não terá relevância no contexto geral do país, e fará heróis de alcance apenas local. O filme dá aos bairros pobres o direito de criar toda uma mitologia que será ignorada pelas classes média/alta. Não deixa de ser um filmezinho político (ainda que todo esse comentário social apareça num tom didático, como se o espectador não tivesse como chegar a todas essas conclusões sozinho).
Mas vamos esquecer de Spike Lee, por um momento: Attack the Block também quer ser uma fita de gênero eficiente, em movimento nonstop (a ação transcorre numa madrugada), e nesse aspecto não acredito que seja muito bem sucedida. As cenas de ação são pouco imaginativas (à exceção do clímax, uma espécie de videoclipe reluzente de hip-hop), e todas as referências a longas parecidos (como Extermínio 2) me deixaram com saudade daqueles outros filmes.
O desfecho é bonito (beleza spielberguiana, aliás), mas esses personagens – e esse mundo paralelo, bem observado – mereciam um filme melhorzinho.
(UK/França, 2011) De Joe Cornish. Com John Boyega, Jodie Whittaker e Alex Esmail. 88min. C+
top 10 | Os piores filmes de 2011
Depois do ranking de Melhores Discos de 2011, aqui seguimos com a minha exaustiva (mas não muito) retrospectiva do ano. Se tudo der certo, o top dos melhores filmes vai ficar pronto semana que vem. Enquanto isso não acontece, vocês ficam com a temível, aflitiva, arrepiante… a lista dos piores filmes de 2011.
Geralmente não tenho paciência para relembrar os filmes que me deixaram com vontade de trocar a cinefilia por outro hobby qualquer (jardinagem, por exemplo). Mas vi tanta coisa ruim durante o ano que fiquei verdadeiramente enfezadinho e resolvi partir para a vingança. Não me culpem – também sou humano.
Funcionou assim: entre os filmes que foram lançados nos cinemas brasileiros durante o ano, reuni todos aqueles que me irritaram (cerca de 80) e cheguei, depois de um processo penoso de seleção, aos 10+1 unlucky ones.
Os títulos que sobreviveram ao mata-mata (vaso ruim, como diria minha vó, não quebra) formam um ranking até bem diversificado, com comédias românticas made in Brasil, caça-níqueis sobre sexo sem amor, heróis esverdeados (a cor da náusea), um castor de pelúcia e (pobre dele) Nicolas Cage.
A ideia não é escrever sobre os filmes superestimados que embrulham meu estômago (O Discurso do Rei), nem sobre os que me frustraram porque eu esperava muito deles (Inquietos), nem sobre aqueles que não dão conta de ambições celestiais (Árvore da Vida), mas apenas sobre os piores-piores-de-verdade, que ocupam as últimas posições na minha lista dos cerca de 230 filmes vistos deste janeiro deste ano.
Recomendo, por isso, que vocês não vejam estes filmes (este post é um serviço de utilidade pública). Ou que vejam por conta e risco. Ou que vejam pra dar umas risadas.
Antes, as menções horrorosas (em ordem alfabética; e não vejam estes também, por favor): Bruna Surfistinha, Burlesque, A Chave de Sarah, Cilada.com, Desenrola, A Garota da Capa Vermelha, Mamonas pra Sempre, O Turista.
10 Amizade Colorida | Friends with Benefits | Will Gluck
Sexo sem Compromisso | No Strings Attached | Ivan Reitman
Nosso ranking começa com duas comédias românticas sobre as coisas estranhas que acontecem quando as pessoas fazem sexo sem amor com um parceiro fixo (resposta: elas acabam se apaixonando). Os filmes não são exatamente idênticos – um tem Natalie Portman, o outro Mila Kunis -, mas não consigo me decidir sobre qual seria o menos sexy. Sexo sem compromisso tem Ashton Kutcher (nunca convincente no papel de Ashton Kutcher). E Amizade colorida tenta vender tantos produtos que saí do cinema com o desejo imenso de dar uma passadinha num free shop, antes de embarcar pra um planeta onde não fazem comédias, nem fitas românticas, nem mershandising da Apple, nem sexo sem amor com parceiros fixos.
9 Eu Queria Ter a Sua Vida | The Change-Up | David Dobkin
Em 2011, não foi apenas Se Beber, Não Case 2 que tentou desesperadamente ser Se Beber, Não Case. Algumas comédias chegaram perto (Quero Matar Meu Chefe). Outras chegaram perto demais, capotaram e explodiram: é o caso de Eu Queria ter a sua Vida, um filme-de-machos que troca a fórmula ressaca + camaradagem + confusões pela equação (menos divertida, diga aí) família + caganeira + confusões. A sequência inicial, que termina com um close no ânus de um bebê, redefine o humor americano, e em poucos minutos – é tão grotesca que tem um quê de vanguarda, a ser admirada num futuro mais ou menos distante por espectadores mais, digamos, radicais. Para o público brasileiro, deixou uma lição dura: Se Eu Fosse Você 2, no fim das contas, não é o pior filme sobre gente desinteressante trocando de corpos.
8 Reféns | Trespass | Joel Schumacher
Esta variação mambembe de Horas de Desespero foi exibida tão rapidamente nos cinemas americanos que talvez nem possa ser tratada como o maior fracasso das carreiras de Joel Schumacher, Nicolas Cage e Nicole Kidman. Mas vamos fazer de conta que é sim, porque todos os envolvidos colaboraram para o colapso de um filme que desaba logo nos primeiros 10 minutos de projeção. A trama tem um quê de comédia nonsense (e Nic Cage, com o look de um vendedor de produtos da Herbalife, é o único a entender tudo isso muito bem): bandidos atrapalhados assaltam a casa de um pai de família camicase. Mas Schumacher trata essa trama como uma atualização de Shakespeare: o clímax é tão pirotécnico quanto as cenas de ação de Transformers, e as revoravoltas do roteiro provocam gargalhadas de sarcasmo na plateia. Todos, principalmente o público, conseguem sentir o quão terrível deve ser ficar preso numa casa, na companhia de pessoas estúpidas.
7 O Besouro Verde | The Green Hornet | Michel Gondry
Michel Gondry fez videoclipes bacanas, não fez? Fez sim. E dirigiu aquele filme do Charlie Kaufman, não dirigiu? Dirigiu sim. Mas nada disso – nem os clipes, nem os filmes, nem os comerciais de tevê – nos preparou para o humor dolorosamente infantil deste O Besouro Verde, uma fitinha de super-heróis que agoniza em verde-musgo, implorando ao espectador que a tratemos como um episódio vagabundo de seriado de tevê (e aqui começa, neste ranking, a seleção de longas que quase me mataram de tédio em 2011). O carisma do herói é nulo (mesmo quando ele se transforma num herói supostamente carismático) e os efeitos 3D só servem para obscurecer as cenas de ação ineptas. Mas a melhor piada fica pro fim: as invencionices visuais de Gondry só aparecem na sequência de créditos de encerramento (boa sequência, aliás). E Seth Rogen… Ele fez aquele filme bacana, não fez?
6 Os 3 | Nando Olival
Os 3 é um filme sensual e atrevido para adolescentes de 14 anos de idade. Isso significa que: 1. quase não tem sexo ou atrevimento, e que 2. os personagens se comportam como adolescentes de 14 anos de idade. Nando Olival, o diretor, tem experiência no mercado publicitário. Talvez por isso tenha planejado o filme para atingir um determinado segmento do público – ainda que esse segmento talvez prefira ver filmes sensuais que mostrem um pouco mais de sensualidade e atrevimento. Os personagens, jovens e bonitos, são publicitários recém-formados que se submetem a uma experiência de uma agência publicitária: fazem da própria rotina um reality show. O longa, porém, não sabe (ou não quer) manusear essas camadas de metalinguagem: lá pelas tantas, não fica muito claro se o cineasta quer vender uma ideia de juventude, um filme supostamente sensual, uma história de amor a três ou uma coleção de roupas transadas. Talvez tudo isso, a um preço baratinho.
5 Qualquer Gato Vira-Lata | Tomas Portella
O pior filme brasileiro do ano transfere para os cinemas toda a ginga e malemolência daqueles espetáculos teatrais que, encenados para servir de vitrine para atores famosos de tevê, nos deixam com muito medo de voltar ao teatro. Ainda não consigo ver nada minimamente plausível ou interessante (muito menos engraçado) num personagem como o de Malvino Salvador: um professor boa-praça que usa argumentos da biologia para explicar aos alunos sobre padrões de relacionamentos amorosos (hem?). Num Rio de Janeiro em que os únicos modelos de masculinidade disponíveis para uma mulher solteira são o machista bem intencionado (Malvino) e o machista cafajeste (Dudu Azevedo),a personagem de Cléo Pires obviamente se sente muito confusa e perdida. Só que ela demora tempo demais (98 minutos!) para notar que o príncipe encantado não é o malandro sarado imaturo bronco semi-alfabetizado. Tempo demais, mulher.
4 Sucker Punch – Mundo Surreal | Zack Snyder
Sucker Punch seria, em tese, o Clube da Luta de Zack Snyder – o filme comercial subversivo sobre temas subversivos, com uma lição importante sobre o sistema cruel onde vivemos. O problema é que não é nada disso. O que se ouve na tela é o som de grandes ambições caindo por terra. Ou: um caso a ser usado por executivos de grandes estúdios para exemplificar o perigo que é dar carta branca a cineastas fora de controle. Não sei o que me deixou mais irritado: o drama teen sobre loucura, com um quê de Garota, Interrompida, as cenas de ação no esquema videogame-over-the-top (com um mashup cansativo de blockbusters de fantasia) ou a revelação final, que tenta nos surpreender com um golpe brutal, radical (sinto dores até agora), nos nossos neurônios. Muita areia pseudofilosófica pro caminhaozinho do cineasta.
3 Lanterna Verde | Green Lantern | Martin Campbell
Não sou fã de quadrinhos (há muito-muito tempo, doei toda a minha coleção do Batman para uma biblioteca pública). Talvez por isso eu tenha me esforçado tanto para encontrar as diferenças entre as adaptações de HQ que chegaram aos cinemas em 2011. À exceção de Thor, um tantinho desembestada, as outras não me pareceram tão vibrantes quanto um episódio qualquer de Smallville. Mesmo dentro esse contexto desanimador, no entanto, Lanterna Verde se destaca: se gibi fosse, eu provavelmente o devolveria na banca de revistas, antes de chegar à terceira página. O prólogo é a rave multicolorida e abstrata que deve passar na cabeça de nerds em coma: uma mitologia erguida a fórceps, e com todos os personagens exóticos/patéticos que sobraram na sala de montagem da série Jornada nas Estrelas. O restante do filme, ufa, renega uma parte dessa estética kitsch purpirinada para se transformar, deus!, no típico action movie engraçadinho e inofensivo que Ryan Reynolds se amarra em fazer. Só não abandonei o cinema, juro, porque estava chovendo.
2 Um Novo Despertar | The Beaver | Jodie Foster
Vamos falar sobre humor involuntário? Um Novo Despertar, um drama intimista (!) sobre a amizade entre um homem deprimido e um fantoche de castor, me fez rir enquanto eu lia a premissa no jornal. Mel Gibson contracenando com um bichinho fofo para crianças? Imperdível. No quesito “vergonha alheia”, o filme supera expectativas: de um lado, temos a performance (profundamente séria) de Gibson; de outro, a direção (profundamente séria) de Jodie Foster, que faz questão de tomar cada uma das cenas como chances valiosas para emocionar o espectador, matando-o lentamente com musiquinhas doces na trilha sonora, personagens que balbuciam palavras bonitas e um roteiro tomado por lições supostamente tocantes sobre perseverança e superação. De qualquer forma, contém a cena mais arriscada do ano: um embate físico entre Gibson e, sim, o castor de brinquedo. Profundamente engraçada, claro.
1 Cowboys & Aliens | Jon Favreau
O ponto de partida desta superprodução (produzida por Steven Spielberg, quem mais?) é promissor: e se combinássemos dois gêneros populares – o faroeste e a ficção científica – para criar um combo pós-moderno de entretenimento? A trama também tem algo de interessante, já que promete contorcer a mitologia de um western típico (desta vez, com caubóis, índios e ETs). Então percebam: eu estava até esperançoso quando comprei ingresso para ver este filme. O que encontrei na tela, pro meu azar, foi uma terra desolada, pobre, governada por um cineasta sem pulso (e aí ficou claro que Homem de Ferro era um filme de Robert Downey Jr, não de Jon Favreau) e habitada por uma equipe que parece ansiosa para encerrar as filmagens e voltar para casa. Não estou exagerando: foram raras as vezes em que experimentei a sensação de mofar numa sala de projeção, diante de imagens menos atraentes que o carpete vermelho do cinema (recentemente, só aconteceu algo parecido com Matrix Revolutions). Um filme com duas ou três ideias (que talvez justifiquem resenhas elogiosas, vá saber), mas sem força vital. Não houve sessão mais deprimente em 2011.
♪ | Undun | The Roots
Undun, meu pai diria, é um álbum conceitual: como numa narrativa cinematográfica, essas 14 faixas compõem uma trama. Juntas, contam a história de um homem comum, Redford Stevens, que se tornou criminoso e morreu em circunstâncias relativamente banais. No início do disco, o herói fala do além-túmulo: com distanciamento à la American Beauty (o filme de Sam Mendes, não o disco do Grateful Dead), ele contempla os momentos mais importantes de uma existência sem muitos momentos importantes.
Não é um filme muito original. Já vimos esse drama. Mas ainda não havíamos ouvido um disco como este. O mais curioso, no caso, seria descobrir como a banda conseguiu transformar em música os pensamentos e o temperamento do personagem. Porque isto é um álbum, não um audiobook.
O disco me frustra porque percebo nele um descompasso entre o tema central (ambicioso) e uma sonoridade pop apenas eficiente, até um pouco previsível, interpretada de forma correta, mas que não me oferece muitos desafios. Quem não presta atenção às letras pode ficar com a impressão de que ouve apenas mais um álbum do The Roots (um pouco mais introspectivo que os recentes, e só). Sempre defendo os discos que tentam criar um mundo para si, desenhar uma narrativa particular; mas este aqui me parece daqueles casos em que o conceito supera (e muito) a realização.
E a maior prova dessa deficiência está no desfecho do álbum, que cria uma mini-sinfonia ao redor de uma faixa do Sufjan Stevens (Redford). É como se a banda tomasse uma medida desesperada para encontrar a atmosfera melancólica que o som do restante do álbum só consegue sugerir muito sutilmente. E percebam que não estou falando especificamente nos versos – esses explicitam a todo momento o tema do disco.
O roteiro tem lá alguma complexidade (é um fluxo de consciência de 38 minutos de duração), algumas músicas soam desencantadas (ainda que agradáveis, sempre), as canções sobrevivem quando apartadas do conceito, mas sinto falta da figura de um cineasta (de um grande compositor?) capaz de transformar essa trama muito típica num filme/disco singular.
Décimo primeiro disco do The Roots. 14 faixas, com produção de Richard Nichols e The Roots. Def Jam. 62