Mês: outubro 2009
Diário de SP | Superoito na Mostra
Diário da viagem de Tiago Superoito a São Paulo. Em cerca de 20 dias, ele pretende acompanhar a Mostra de SP e, entre uma sessão e outra, ouvir alguns discos.
Os filmes vão em azul. Os discos e shows em vermelho.

5/11
Os famosos e os duendes da morte | Esmir Filho | 6 | Sei que estou em minoria, mas gostei da estreia de Esmir Filho. A ambição de fazer uma espécie de Paranoid Park para fãs de Mallu Magalhães quase nunca se resolve maravilhosamente bem, mas o diretor banca o risco de retratar (com naturalidade e lirismo) uma geração maltratada e/ou desdenhada pelo cinema brasileiro.
Ninguém sabe dos gatos persas | Bahman Ghobadi | 7 | Apesar de não ter me convencido tanto assim nas tentativas de ficção, trata-se de um ótimo, vibrante doc sobre a música underground de Teerã (acredite: no Irã, bandas de indie rock são caso de polícia) .
A ilha de Bergman | Marie Nyreröd | 6 | Documentário televisivo (com jeitão de Biography Channel), mas Bergman é Bergman.
Brilho de uma paixão | Bright star | Jane Campion | 5.5 | Este conto romântico talvez seja o filme mais solene de Campion. Muito bem realizado (e com um elenco excelente), mas engessado por um formato de filme de época preciosista que não me impressiona (ou comove) em nada.
Lebanon | Samuel Moaz | 7 | Um action movie de guerra que me lembrou em alguns momentos The hurt locker (talvez por retratar experiências muito específicas num combate). Mas não dá para esperar complexidade deste aqui: Moaz não apenas confina os personagens dentro de uma máquina como parece simular, na narrativa, o movimento agressivo, violento de um tanque de guerra. Sem sutilezas, portanto, mas muito preciso naquilo que quer mostrar.
Meu top 5 da Mostra:
1. Polícia, adjetivo 2. Vício frenético 3. A família Wolberg 4. Ervas daninhas 5. 35 doses de rum4/11
Samson & Delilah | Warwick Thornton | 5 | Os aborígines também amam (e se estrepam). Eu não me surpreenderia se recebesse uma indicação ao Oscar de filme estrangeiro. Miserê soft.
Maradona | Emir Kusturica | 5 | Um filme sobre o personagem Maradona, que Diego interpreta razoavelmente bem. Kusturica, de quatro, não consegue mais que se deslumbrar com ele. Daria um curta. A Igreja Maradoniana, no entanto, é um achado.
Todos os outros | Alle anderen | Maren Ade | 7 | Todo filme sobre as oscilações de um caso amoroso tem que soar pelo menos um pouco enervante, e este não é diferente. Sentimentos contraditórios, rompantes de ódio, momentos de felicidade e êxtase… As atores levam a ideia a ferro e fogo e resultado é um drama intenso, que exige cumplicidade do público. Demorei a digerir.
Shirin | Abbas Kiarostami | qualquer nota | Mentira, é 6. Uma experiência inclassificável, mas fiquei com a impressão de ter visto um filme tão enigmático quanto matemático (e por isso frio). O conceito é ótimo: Kiarostami filma rostos de atrizes enquanto elas assistem a um filme inspirado numa fábula persa. Essa ideia, por si só, rende inúmeras discussões sobre cinema, representação, o papel do espectador… Todas elas, aposto, mais envolventes que o filme em si.
3/11
O amor segundo B. Schianberg | Beto Brant | 4.5 | Um filme coerente com o projeto que Brant desenvolve desde Crime delicado: a narrativa se abre ao acaso, às experiências de vida dos atores, a referências de outras obras (a peça Navalha na carne e o filme A concepção) e à sensação de improviso. Mas, ao contrário dos longas anteriores dele, esse aposta tudo numa estrutura muito frágil, que dependeria de atores extraordinários (e, mais que isso, interessantes) para se justificar. Não é o caso.
Soul kitchen | Fatih Akin | 7 | Esta comédia não tem nada de nouvelle cousine, e melhor assim: um Akin bem-humorado vale por dezenas de diretores europeus socialmente engajados. Personagens muito vivos, gags de primeira e um herói adorável: taí a receita de um crowd-pleaser improvável.
Making plans for Lena | Non ma Fille, tu n’iras pas Danser | Christophe Honoré | 5.5 | Nada é estável (ou verdadeiramente confortável) na família de Honoré. O francês tem bom olho para a crise doméstica, mas este drama choroso está mais para Lelouch que para Truffaut. Ajudaria se Lena não fosse uma chata de galochas – e aí não há Antony and the Johnsons que nos convença das fragilidades da protagonista.
2/11
Ontem este blog completou dois anos de vida (curiosamente, num dia de Finados). Parabéns pra ele.
Viajo porque preciso, volto porque te amo | Marcelo Gomes e Karim Aïnouz | 6 | O documentário atropela a ficção, mas também patina em lugares-comuns (a trilha sonora brega, as cenas com prostitutas). Ainda assim, um diário de viagem com trechos muito bonitos.
London River | Rachid Bouchareb | 5 | De novo, o blablabla sobre intolerância, diferenças culturais e solidariedade numa Europa pós-11 de setembro. Brenda Blethyn imitando um jumento é um dos momentos-vergonha-alheia da Mostra.
Alga doce | Tatarak | Andrzej Wajda | 7 | Um drama clássico dentro de um filme moderno. Wajda deixa que a realidade rasgue a ficção de uma forma tão violenta que a tristeza das últimas cenas fica quase insuportável.
I love you Phillip Morris | Glenn Ficarra e John Requa | 5 | Tá na cara: os diretores se impressionaram tanto com a história real do trapaceiro gay que esqueceram de fazer cinema. Tosco, ainda que mais sacana que a média (em 2009 já é permitido fazer piada com AIDS?).
1/11
off-Mostra
500 dias com ela | 500 days of summer | Marc Webb | 5.5 | Tem momentos simpáticos (e é bacana notar que a “moral da história” tem mais a ver com os poderes da autoestima que com a ladainha do amor eterno), mas a love story indie soa como decalque ralo de Nick Hornby.
This is it | Kenny Ortega | 5 | Celebração além-túmulo – um tanto mórbida, portanto. Mas, além de valer como registro, o trabalho de edição é primoroso: Ortega quase me fez acreditar que, pouquíssimo tempo antes de morrer, Michael Jackson se portava como um touro no palco. Poderes do cinema.
31/10
Dente canino | Kynodontas/Dogtooth | Yorgos Lanthimos | 4.5 | A ideia é interessante, mas o modo impassível como Lanthimos trata os personagens (são cobaias de uma encenação) vai fazer você repensar Anticristo.
30/10
O filho do caçador de águias | The eagle hunter’s son | René Bo Hansen | 4.5 | Exotismo pueril. Poderia estar na grade do Discovery Kids.
>> A família Wolberg | La famille Wolberg | Axelle Ropert | 8 | Provoca as emoções de um velho disco arranhado de soul music. Melancolia aveludada. Um dos melhores da Mostra (e, assim que chegam os créditos finais, já dá vontade de rever).
Quase Elvis | Almost Elvis/Karaokekungen | Petra Revenue | 4 | Humor desafinado, premissa bocó.
O fantástico Sr. Raposo | Fantastic Mr. Fox | Wes Anderson | 7 | Anderson pode até não ter encontrado uma forma de se livrar da camisa de força criativa onde está metido (o longa anterior dele já soava redundante), mas é um dos filmes mais fluentes que já dirigiu. Uma animação para crianças de muito bom gosto, digamos assim. E qualquer filme que abre com Heroes and villains merece minha consideração.
29/10
Seguindo em frente | Still walking | Hirokazu Kore-eda | 6 | Com meia hora a menos e sem algumas das frases-de-biscoito-chinês (tipo “os amigos que morrem nunca nos abandonam verdadeiramente”), acho até que o Kore-eda conseguiria ter feito mais que uma delicada crônica familiar. 35 doses de rum é uma homenagem menos óbvia a Ozu.
O solista | The soloist | Joe Wright | 5.5 | Wright tenta dar alguma dignidade ao bromance piegas. Jamie Foxx interpreta um carro alegórico (e muito provavelmente será recompensado pela proeza com uma indicação ao Oscar).
Insolação | Felipe Hirsch e Daniela Thomas | 5 | Hirsch é um dos poucos que me tiram de casa para ir ao teatro, daí o tamanho da decepção. Um cinepoema desapaixonado sobre o amor. Era essa a intenção? Mas ok: sem a tentativa de ficção (que pelamordedeus…), daria um documentário até bem razoável sobre a arquitetura de Brasília. O próximo filme dele será melhor que este.
28/10
Como ser Mr. Kotschie | Mensch Kotschie | Norbert Baumgarten | 5 | O cidadão-alemão-modelo, certinho, polido e bem casado, chega aos 50 anos de idade e esbarra numa crise existencial que… certeza de que não tem o dedo do Alexander Payne nisso aí? Alan Ball?
Singularidades de uma rapariga loura | Manoel de Oliveira | 7 | Um país solto no tempo, a cegueira do amor, uma bela homenagem a Eça de Queiroz. O começo é perfeito, só que… Raramente reclamo disso, mas taí um filme que me incomodou por ser curto demais.
O que resta do tempo | The time that remains | Elia Suleiman | 7.5 | Num tom ainda mais particular que o de Intervenção divina (sem a mesma verve, mas com gags tão ácidas e bizarras quanto), Suleiman olha com perplexidade para a própria história. Encontra uma vida cercada de horror por todos os lados.
Vencer | Vincere | Marco Bellocchio | 6.5 | Um melodrama febril, mas quase soterrado pelo próprio peso (eu não recomendaria uma sessão dupla com A fita branca).
26/10 e 27/10
>> 35 doses de rum | 35 rhums | Claire Denis | 8 | Sensibilidade incomum (e uma trilha sonora de arrepiar).
À procura de Elly | Darbareye Elly | Asghar Farhadi | 5.5 | Melhora um pouco quando um personagem-surpresa entra em cena, mas este thriller iraniano (com um subtexto político, como de praxe) não escapa muito do trivial.
Abraços partidos | Los abrazos rotos | Pedro Almodóvar | 7 | Quase uma sequência de A má educação: acerto de contas com o cinema. Há cenas extraordinárias (como aquela em que o cineasta cego tenta sentir as imagens tocando o monitor da televisão) e momentos em que o diretor parece ter ativado o piloto automático (toda a sequência final, do filme-dentro-do-filme). Ainda assim, Almodóvar vai do melodrama à esculhambação com aquela naturalidade que conhecemos bem.
Tyson | James Toback | 6 | Autorretrato franco (mas dirigido sem a menor inspiração).
Tokyo! | Michel Gondry, Leos Carax e Bong Joon-ho | 5, 7, 6.5 | Carax destoa do tom preciosista, à Amélie Poulain, dos episódios de Gondry e Joon-ho. De qualquer forma, eu não me incomodaria se o filme do Joon-ho tivesse 135 minutos de duração.
Independencia | Raya Martin | 7 | Vida e morte numa floresta impressionista.
>> Vício frenético | Bad lieutenant: port of call New Orleans | Werner Herzog | 8 | Harvey Keitel ainda reina, mas Nicolas Cage sua a camisa (e está tão bem quanto em Despedida em Las Vegas e A outra face). Mas as comparações com o filme de Abel Ferrara são inadequadas: Herzog desloca a trama para New Orleans, lima as crises religiosas, reforça o humor negro (o que são aquelas iguanas psicodélicas?) e vê a América contemporânea pela lente do absurdo. Um outro tempo, um outro filme – e tão poderoso quanto o original.
24/10 e 25/10
Distante nós vamos | Away we go | Sam Mendes | 5 | Mendes tenta se livrar da pompa, mas tudo o que consegue é um road movie fofo e fake. A trilha sonora, que dilui Nick Drake de 1001 maneiras, soa apropriada.
>> Polícia, adjetivo | Politist, adjectiv | Corneliu Porumboiu | 8 | Porumboiu sai à procura das palavras e imagens exatas. O melhor romeno que vi.
Mother | Madeo | Bong Joon-ho | 7 | Outro que sabota elegantemente as regras do “filme policial”. Joon-ho é um talento e a cena final, belíssima. Uma ressalva, no entanto: sei que isto não vai incomodar quase ninguém, mas a estrategia que ele encontra para resolver o mistério central da trama me pareceu uma solução fácil demais.
Sedução | An education | Lone Scherfig | 4.5 | Cumpre rigorosamente as exigências do Oscar: ameno, inofensivo, agradável e, por fim, vazio.
Aconteceu em Woodstock | Taking Woodstock | Ang Lee | 5.5 | O tom sugere uma crônica, mas a aparência é de charge em tom pastel. Raso em absolutamente tudo (e não melhora o livro, que é uma bobagem).
23/10
Ricky | François Ozon | 7.5 | Fantasia (na real).
A mulher do anarquista | Marie Noëlle e Peter Sehr | 3.5 | Uma minissérie escrita por Maria Adelaide Amaral. E dirigida por Jayme Monjardim.
>> Ervas daninhas | Alain Resnais | 8 | É uma heresia escrever apressadamente sobre este filme, mas adianto que o novo Resnais revê o tom afetuoso e elegante de longas como Medos privados em lugares públicos e Amores parisienses, mas, simultanemente, quebra nossas expectativas com uma narrativa livre, enigmática e bem-humorada, que me lembrou alguns filmes dirigidos por ele nos anos 80 (A vida é um romance, Amor à morte). Talvez não seja um grande Resnais (pode ser uma obra de transição, e espero que seja), mas é o filme mais aventureiro dele desde Quero ir pra casa.
A fita branca | Michael Haneke | 6 | Rigoroso e pedante (como esperávamos de Haneke), mas me parece um retrocesso em relação a Caché. O típico “filme de arte” que enche os olhos de jurados de festivais. É um deleite visual, e um drama mais bergmaniano que qualquer Bergman (imagine aí o sueco filmando o roteiro de Dogville). Mas a parábola sobre o nascimento do nazismo soa frágil (já que toda sustentada em relações de causa-efeito e didatismo sociológico) e Haneke insiste em carregar cada cena com um peso de auto-importância que entendo como excessivo. Não é muito a minha praia, mas vai ter gente defendendo com entusiasmo.
Sede de sangue | Park Chan-wook | 6.5 | No humor ou no horror, não tem estribeiras – o que, para um filme de vampiros, vejo como uma qualidade. Mas não sabe quando ou como acabar.
22/10
(…)
21/10
Novidades no amor | The rebound | Bart Freundlich | 4.5 | Nenhuma novidade (mas taí: nunca vi tanta criança vomitando dentro de uma comédia romântica).
Unmap | Volcano Choir | 6.5 | Soa menos como um novo projeto de Bon Iver e mais como uma participação dele num álbum do Collection of Colonies of Bees. Dito isso, o “convidado especial” faz com que prestemos atenção à arte sutil de uma boa banda de pós-rock, do tipo raro que cria atmosferas à serviço de melodias.
20/10
À procura de Eric | Looking for Eric | Ken Loach | 6.5 | Um Loach mais fluente que o de Ventos da liberdade (e menos efêmero que o de Apenas um beijo). Pode ser visto como uma comédia leve, um feelgood movie (e, com uma boa campanha, poderia entrar facilmente na lista dos indicados ao Oscar), mas também como um conto urbano muito coerente com antigas preocupações do cineasta, ainda um working class hero. Faz algumas jogadas ensaiadas (o roteiro de Paul Laverty é golpe baixo), mas não perde a doçura. A interpretação de Steve Evets, o carteiro que “conversa” com o ídolo de futebol, é das melhores do ano.
Quanto dura o amor? | Roberto Moreira | 4 | O filme felizmente dura 83 minutos (na maior parte da sessão, não consegui tirar da cabeça aquela canção do Blur que vai mais ou menos assim: They’re stereotypes/There must be more to life).
O caçador | Chaser/Chugyeogja | Na Hong-jin | 6 | A trama é literatura pulp tratada a ferro e fogo (talvez isso explique as comparações, nem sempre justas, com Park Chan-wook e Bong Joon-ho). Mas o cineasta não tem pulso, pilota no automático – daí a flacidez da narrativa.
19/10
Anticristo | Lars von Trier | 7 | O pesadelo de Trier talvez seja mesmo controlado demais (qualquer delírio de David Lynch soa mais caloroso), mas não consigo desprezar um filme tão obcecado por imagens de culpa, dor e luto. Tenho que ser franco: tirando um ou outro momento mais desajeitado (o diretor trata o gênero horror com tanto estranhamento que o efeito fica até interessante), Trier conseguiu me perturbar com este pesseio na floresta. Um detalhe curioso: quase todas as resenhas que li reclamam do prólogo (slow-motion em p&b aparentemente virou crime), por isso só posso supor que quase ninguém tenha visto O espelho, do Tarkóvski. Vejam. É um dos meus favoritos. E, ainda que não do modo mais óbvio, tem muito a ver com este Anticristo.
Bonfires on the heath | The Clientele | 7.5 | O Clientele é daquelas bandas que não fazem estardalhaço e que, por isso, sempre correm o risco de serem subestimadas. O novo disco deles é quase tão bom quanto Strange geometry (e quem conhece aquele álbum entendeu o peso do meu elogio) e prova que o grupo não vai descansar enquanto não encontrar a canção irretocável, uma criação capaz de cristalizar toda a tradição do pop barroco britânico (repare nos sopros à mariachi, discretos e precisos). A jornada do Clientele é às vezes enervante (e a polidez ainda incomoda), mas quase sempre rende melodias elegantes – e, nos melhores momentos, também emocionantes, como a faixa-título e I know I will see your face.
New moon – Original motion picture soundtrack | Vários | 6 | Daria um ótimo EP, com Thom Yorke (e Hearing damage não é lá extraordinária), Grizzly Bear (Slow life), Bon Iver & St. Vincent (Rosyln) e Death Cab for Cutie (Meet me on the Equinox). Nada muito diferente de um dos CDs do The O.C. (os indies vão aos teens), mas poderia ter sido pior.
2 ou 3 parágrafos | O desinformante!
Encontrei dois filmes dentro deste O desinformante! (5.5/10). O primeiro, uma perda de tempo. O segundo, até surpreendente (para os padrões de Steven Soderbergh).
E dá para dividi-lo pela metade. Na primeira hora, tudo o que vi foi mais um exercício de Mr. Soderbergh em torno do vazio: uma narrativa blasé, “inspirada em caso real”, com um visual retro (às custas de… hum, nada), um protagonista estabanado e uma trilha sonora pitoresca,, que cantarola didaticamente para o público algo como sha-la-la, isto aqui é uma comédia, na-na-na, este filme é uma co-mé-dia. Ainda que eu não tenha notado risadas durante a sessão.
Da segunda metade em diante, o cineasta passa a tratar o personagem principal de outra forma: o homem tem um problema. Ele é um mentiroso compulsivo. Ele tem uma doença séria e, por isso, mete os pés pelas mãos. Soderbergh não só consegue mudar o tom (sem apelar para o dramalhão, e nisso conta com a ajuda de um Matt Damon muito controlado, até inspirado) como abandona o quarto de brinquedos para se envolver com um drama humano. Sem tanto distanciamento. Só para variar. A surpresa é que o projeto acaba se mostrando até ambicioso – não é recreio, mas um desafio sutil para o diretor. Isto é: no fim das contas, as comparações com 11 homens e um segredo acabam não fazendo muito sentido.
Laura | Girls
O vídeo novo do Girls é um passeio no praia. Sol, garotas e diversão. Ou mais ou menos assim. Sabemos que quase todas as canções ensolaradas contêm subtextos sombrios (Brian Wilson não nos deixa esquecer a lição, certo?), e esta aqui também soa um tanto melancólica quando deveria parecer alegre. O diretor se chama Brian Lee Hughes, e ele também compreende tudo isso.
Superoito e a ordem no caos
Tenho a impressão de que meus sonhos contam uma história. Desconfio que, se fosse possível organizá-los em ordem cronológica, como quem forma um quebra-cabeça de milhares de peças, eles narrariam uma saga. Minha saga. As peripécias da minha existência. Com tintas surrealistas. E desfechos quase sempre surpreendentes.
O problema é que não lembro de todos os sonhos. Daí as lacunas entre um capítulo e outro. Espaços em branco. Buracos negros. Crateras que nunca serão preenchidas, coisa e tal (a menos que os cientistas inventem uma forma de escanear nossa consciência em busca de fragmentos de sonhos invisíveis, mas acho difícil).
Gosto quando lembro dos meus sonhos e adoro interpretá-los. Principalmente na hora do jantar. Minha mãe, que é psicóloga, costuma ajudar. Dá boas dicas. Geralmente cita Freud para interpretar as cenas mais abstratas. Duvido que ela acredite em Deus. Mas tenho quase certeza de que minha mãe tem fé em Freud.
Os sonhos recorrentes sempre me espantaram. Ainda me espanto com eles. Nesses casos, suspeito que meu cérebro esteja atuando por conta própria, sem minhas ordens. Um free-lancer. Um microcomputador que aprendeu as delícias do livre-arbítrio. Um CPU fantasma! Há duas semanas sonho com o mesmo tema. Quase todos os dias. Meu subconsciente, de vez em quando, é meio burrinho, coitado: funciona como um LP arranhado.
O sonho de ontem explica todos os outros sonhos recentes, que reprisam uma mesma aflição. Aconteceu assim: eu estava num transatlântico, em alto mar, vestido com uma camisa muito extravagante e improvável (amarela, brilhante, com coqueiros e um laguinho) e sunga preta. O sol queimava minha testa, mas eu me recusava a pular na piscina. Eu preferia ficar sentado numa mesa de rodinhas, sozinho, jogando cartas (quem me conhece sabe que odeio jogar cartas, mas sonhos são sonhos são sonhos). Meu adversário na brincadeira não estava ali. Eu esperava que ele retornasse para que continuássemos a partida.
Havia 10 ou 12 pessoas na piscina. Todas muito contentes. Estávamos de férias, aparentemente.
Meus sonhos sempre começam felizes e terminam tensos, apocalípticos. Aquele não era exceção. Minha mãe, que usava um maiô verde-escuro muitíssimo brega, parecia nervosa quando se aproximou da minha mesa. Ela bebia um drink cor-de-rosa e tinha uma notícia séria para contar. Preferiu falar baixo, talvez para não estragar o dia dos outros passageiros.
– Tiago, seu padrasto está doente – ela disse.
– Como assim? – perguntei. Minha testa ardia.
– Ele machucou os braços. Não pode comandar o navio.
– Mas ele estava comandando o navio? O nosso navio?
– Sim, obviamente. Ele era o comandante do nosso navio.
– Meu Deus.
– Você não acredita em Deus, Tiago.
– Mesmo assim. Meu Deus. Ele era o comandante do navio?
– Sim, sim. E está doente. Não consegue mover os braços. Por isso não pode mais comandar o navio.
– E não existe um copiloto no nosso navio, mãe? Sempre existe um copiloto.
– Não existe um copiloto.
– Piloto automático?
– Não.
– Talvez seria possível… Usar os pés?
– Ele tem cãibra.
– Cãibra?
– Tiago, estamos perdidos. Eu, você e as 60 ou 70 pessoas que estão se divertindo à beça neste navio.
– São 60 pessoas?
Minha mãe me olhou com ar de cansaço. Deixou a toalha na mesa, espalhou as cartas do baralho, abandonou o drink exótico e correu para a piscina. Deu um mergulho. Olhei para o horizonte e vi um clarão atômico. Acordei.
Nos outros sonhos, a situação muda superficialmente: o carro, a motocicleta, a bolsa de valores, o controle de energia elétrica da cidade – tudo no mundo subitamente passou a ser controlado por meu padrasto. Que, infelizmente, estava doente e não poderia nos ajudar naquele momento. Eram sonhos didáticos. Extremamente e estranhamente didáticos. Sonhos até triviais. Bobos mesmo. Sonhos dirigidos por cineastas amadores. Escritos por Paulo Coelho. Com roteiro do Manoel Carlos. Não havia quase nada incompreensível neles. Eles queriam dizer algo muito simples, e diziam em voz alta.
Diziam com poucas linhas: você está amedrontado, Tiago. (Ou algo assim.) Você está desesperado, Tiago. Você não sabe o que fazer da sua vida, Tiago. Você está encrencado, Tiago.
O complicado é que, com o tempo, tento me convencer de que o transatlântico está sob controle. Que tudo vai terminar relativamente bem. Que o ser humano se adapta a tudo. E que meu coração vai seguir em frente! No entanto, quando durmo, sou nocauteado pela realidade. Meus sonhos são mais duros que a minha vida. E eles dizem: Tiago, não se engane. Você não está bem. Não estamos bem. Ninguém está bem. Estamos soltos no oceano. Seu padrasto está doente. E isso não é bom nem vai melhorar. Acorde para dentro do pesadelo, Tiago.
Meus sonhos têm a sofisticação de meninos de sete anos de idade. São estupidamente honestos. Por isso confio neles. Crianças são cruéis. Lá no terreno pantanoso do meu cérebro, sei que não estou bem.
Desde que descobrimos a doença do meu padrasto, eu e minha família tentamos calcular o quanto custaria à nossa sanidade manter esperanças e viver a vida como se existisse algo parecido com luzes no fim do túnel (por enquanto, temos o túnel e o blecaute no túnel). Eu sou o mais racional e radical de todos. Não acredito em quase nada. Creio um pouco em extraterrestres, já que o espaço sideral é extraordinariamente grande e seria tolo não acreditar um pouco neles. E só. Minha mãe acredita em Freud e nos avanços da ciência. Acredita que, apesar de tudo, existe um floco de esperança em tudo. Minha irmã não fala muito.
A tragédia me transformou num sujeito descrente. E prático. Praticamente descrente. Em tudo. Quando um dos meus cachorros foi internado para uma cirurgia na orelha, procurei no Google uma forma de comprar outro cão. Tudo para evitar que minha mãe caísse em depressão profunda. O cachorrinho vai morrer, pensei. Quando os veterinários começaram a adiar a alta do beagle, que se chama Hatty, criei uma teoria da conspiração. “Eu disse, mãe. Não tem jeito. É o que é. Acabou-se o que era doce.” Encontrei um cão adorável num site e mostrei a fotografia para a minha irmã. “O Hatty vai sair dessa, Tiago”, e ela parecia confiante. Duvidei.
Há uma semana, nosso cão voltou para casa. Usa um protetor de orelhas que dá a ele a aparência de um beagle-cosmonauta, mas o acessório futurista não o impede de fazer gracinhas, assediar sexualmente o meu golden retriever e cagar no estofado. Está forte. Está atento. E, mais importante que isso, está vivo.
Hatty, o cão-abajur (também conhecido como cão-parabólica), mordendo a minha cueca. Hoje à tarde.
A doença do meu padrasto (que é um cético) confirmou nossa hipótese de que a vida é uma canoa furada e salve-se-quem-puder. E, para esgotar as metáforas baratas e aquáticas: a onda, quando vem, é um maremoto. Não tivemos tempo para tomar fôlego. Em poucos dias, estávamos afogados em exames médicos, estatísticas, documentários chorosos, artigos científicos que ardem feito picada de abelha, conselhos imprecisos, estimativas assustadoras, estudos de caso pessimistas e uma imagem de futuro que fazíamos questão de encarar como um slide sem foco. Tínhamos medo. Temos medo.
O que devemos fazer? Acreditar em incríveis reviravoltas do destino ou manter os pés no chão? Sofreremos de uma forma ou de outra. Mas qual dessas opções é a estritamente necessária? Existe vida após o diagnóstico?
Não vejo uma resposta consistente para essas questões. Procuro, mas não a encontro. Bons acidentes acontecem. Hoje à tarde, depois de voltar do 210º médico, meu padrasto finalmente trouxe uma boa notícia. Aquilo nos perturbou. Não estávamos prontos. Ficamos até um pouco chocados, na verdade. Minha mãe telefonou para o doutor, que sublinhou a esperança. Esperança. Ela chorou. Eu permaneci estático, sem saber como reagir. “O que aconteceu, mãe?”
Ela estava sem voz.
Depois de um tempo, descobri tudo. O médico disse ter dúvidas sobre o diagnóstico do meu padrasto. A doença poderia ser outra. Poderia não ser tão grave. Os exames talvez indicassem, vá saber, um problema hormonal muito atípico e intenso. Algo raro. Mas existe a probabilidade de que algo raro aconteça, não existe?
– É um bom médico, Tiago. Os pacientes fazem uma fila imensa. E a fila costuma durar anos.
Havia uma esperança. Talvez.
– O que quer dizer essa deficiência de hormônios, mãe?
– Quer dizer que essa queda desativa os neurônios. Por isso ele está perdendo a memória aceleradamente. O médico disse que é um tipo de situação que ele nunca viu. E que outros pacientes costumam perder a consciência de que estão doentes, o que não aconteceu com seu padrasto.
– E isso pode ser bom?
– Pode ser ruim, Tiago. Mas não tão ruim quanto imaginávamos.
– E isso pode ser bom?
– Isso pode ser ótimo.
Minha mãe estava radiante. No fim da tarde, saímos para caminhar. Ela comprou croissants. E salgadinhos e sorvete napolitano. A nossa imagem sombria de futuro era, agora, um slide rabiscado com giz de cera. Meu padrasto voltou a tocar violão. Os cães, que talvez consigam mesmo sentir as boas vibrações, brincaram de pique. O Hatty foi ao meu quarto e roubou minha cueca. Ele não costuma fazer isso. Mas fez.
Por coincidência, terminei há dois dias um livro sobre o acaso, chamado O andar do bêbado. Do físico Leonard Mlodinow. Com Stephen Hawking, ele escreveu Uma nova história do tempo. O autor defende o raciocínio (estudado seriamente por cientistas de todo o mundo) de que nos deixamos enganar por falsas conexões que criamos entre fatos aleatórios. Por exemplo: quando um produtor de Hollywood assina três fracassos de bilheteria, passamos a acreditar que ele é um péssimo executivo – mas nos esquecemos repentinamente dos cinco sucessos incríveis que ele criou, e dos vinte filmes que tiveram performance digna. Julgamos pessoas e eventos a partir de uma lógica que não tem nenhum embasamento científica. E por que somos estúpidos a esse ponto? Simplesmente queremos acreditar que o acaso faz sentido. Isso nos conforta.
É um livro bonito (principalmente porque Mlodinow demonstra uma fé tremenda num mundo governado pelo aleatório). E o engraçado é que – note o acaso puxando as nossas cordinhas! – logo depois li o tocante Extremamente alto e incrivelmente perto, de Jonathan Safran Foer. O protagonista, um órfão de nove anos que perdeu o pai no 11 de setembro, é um fã de… Stephen Hawking!
Bem. Estou desviando do tema. Lá pelas tantas, num emaranhado de pequenas biografias de físicos e filósofos que estudaram probabilidades e estatística, Mlodinow lembra a trajetória de Blaise Pascal. Depois de uma revelação espiritual, o francês escreveu ideias que foram publicadas num livro chamado Pensamentos. Talvez afetado por um transe, ele resolveu calcular os prós e contras de nossos deveres para com Deus (criou, assim, um conceito que ficaria conhecido com esperança matemática).
Pascal propôs o seguinte: existe uma probabilidade de 50% para que Deus exista. E uma de 50% para que não exista. Nesse contexto, devemos ou não devemos levar uma vida pia? Se agirmos piamente e Deus existir, argumentou Pascal, nosso ganho – a felicidade eterna – será infinito. Por outro lado, se Deus não existir, nossa perda, ou retorno negativo, será pequena – os sacrifícios da piedade. Desenvolvendo essa epifania, ele criou um equação matemática que, aqui, não vem ao caso. Eric Rohmer aplicou essa teoria numa obra-prima do cinema, mas que também não vem ao caso.
O que vem ao caso é que, na prática, é impossível negar minha simpatia por Pascal. Quantos são capazes de criar uma equação tão bela? Talvez não faça tanto sentido (acredito que levar uma vida de sacrifícios, sem overdoses ocasionais de chocolate ou sites pornográficos, pode sim representar um retorno bem negativo se a descobrirmos enfim que não existe felicidade eterna). Mas gosto de acreditar naqueles que acreditam numa possibilidade tão poética. Acredito na minha mãe. E hoje ela conseguiu me encher de esperança.
À tarde, cochilei no sofá e sonhei com um balão. Solto no ar. Sem dono. Sem pai ou padrasto ou mãe ou irmã. Mas, mesmo perdido, ele descrevia um voo seguro. E gracioso. Não sei explicar, mas talvez tenha sido um bom sinal.
Logos | Atlas Sound
Quem acompanha obsessivamente a programação dos cinemas sabe o quão importante é topar num novo Tarantino. Ou num James Gray. Ou até numa animação da Pixar. São filmes que, de uma forma ou de outra, nos mostram que estamos certos: apesar dos inúmeros indícios de que estamos jogando boa parte da nossa existência no depósito de lixo das comédias românticas, as exceções nos garantem que sim, nós escolhemos a obsessão correta.
(E aposto: pescar, praticar tiro ao alvo e caçar alces são hobbies que podem se revelar tão frustrantes quanto)
Acontece algo parecido com quem ouve música compulsivamente, e estou aqui como testemunha de que, nesse caso, também é necessário perseverança. A estrada é sinuosa, meu irmão. Não são poucas as decepções que assombram o caminho de quem persegue a batida perfeita. Apesar da alta média de acidentes, a experiência deixa claro que, depois do centésimo lançamento do ano, fica fácil separar os Tarantinos dos Guy Ritchies.
Na música pop (e incluo aí o indie rock), os clichês também nos soterram, tiram nosso fôlego, arruínam nossos dias, nos condenam ao tédio abissal e quase nos convencem de que seria melhor virar o disco das nossas vidas e optar pela pesca, pelo tiro ao alvo ou por caçar alces (nem que por vingança).
Claro, há as exceções. E, como no cinema, elas nos revigoram. Tudo isso parece muito óbvio, mas é uma introdução necessária para explicar por que este disco irregular do Atlas Sound soa tão especial. É que a voz e as ideias de Bradford Cox soam genuínas. Funcionam, por isso, como um tipo de conforto. Depois de duas ou três audições, estamos prontos para enfrentar a Lady Gaga.
Afirmo sem medo de cometer um exagero: Cox é um dos maiores nomes do novo rock americano – um dos poucos que transitam por diferentes nichos sem deixar que essas mutações corrompam sua identidade. No Deerhunter, ele vai do shoegazing ao pós-punk com a naturalidade de quem não conhece as linhas que separariam uma denominação da outra (e, no fim das contas, as fronteiras não existem). Daí que, inevitavelmente (e felizmente), o Atlas Sound soa como uma filial do Deerhunter – por enquanto, Bradford Cox não consegue ser alguém diferente dele mesmo.
Mas tenta. O Atlas Sound foi criado para abrigar toda e qualquer produção de Cox que não coubesse no formato de uma típica “banda de rock”. O primeiro álbum, o ótimo Let the blind lead those who can see but cannot feel (2008), criava climas de pesadelo com elementos de ambient rock e de eletrônica minimalista. Era um álbum que soava coeso, quase claustrofóbico, com versos que pareciam desenrolados num fluxo contínuo de consciência e evocavam imagens de uma infância perdida. Trilha de filme de horror. O novo disco conta uma história diferente.
Com o tempo, o Deerhunter mostrou um interesse cada vez maior por estruturas convencionais de canção pop – e essa guinada, além de ampliar o público do grupo, deu em Microcastle, o melhor disco da banda (e uma névoa de ruídos rosados na linha de Loveless, do My Bloody Valentine). Seria natural esperar do novo disco do Atlas Sound, por isso mesmo, uma pose mais experimental. No entanto, acontece o oposto disso: Logos é o momento mais acessível e sortido de Cox – ainda que seja um projeto assumidamente errático.
Ao contrário da estreia do Atlas Sound, este leva ao pé da letra o formato de um “livro de rascunhos” (e o próprio Cox definiu o projeto como um sketchbook), com um apanhado disforme de canções órfãs que, num ponto de vista otimista, acabam revelando que Cox é um consumidor fominha de lançamentos musicais – um tipo como eu e você.
Logos é um disco mais permeável e indeciso que o anterior – ainda que, curiosamente, acabe soando até mais saboroso. Dá prazer de ouvir (e, muito francamente, é um disco que ouço com mais gosto que o recente do Flaming Lips). Como eu dizia antes, um Bradford Cox em modo despretensioso é o suficiente para nos curar de dezenas de sub-Animal Collective.
O álbum começa como se abandonasse lentamente a estação do disco anterior. The light that failed é um mantra psicodélico com violões, efeitos de eco e vozes repetitivas. A segunda faixa, An orchid, acrescenta uma melodia mais crua e simples a esse formato. Até aí, nada de novo. É na terceira música que o barco é engolido pela primeira onda: Walkabout pode ser encarada como uma versão remix de uma canção do Animal Collective. As marcas da banda são replicadas de forma tão cristalina que notei o parentesco antes mesmo de ter percebido que Panda Bear colaborava na faixa. O disco começa a se deixar transfigurar.
A partir daí, é uma surpresa atrás da outra: Criminals tem um quê de folk rock (ainda que pela lente embaçada de Cox, que vive sempre no mundo da lua), Attic lights soa como um lamento à PJ Harvey e Sheila, a revelação mais chocante do pacote, é uma cantiga de roda quase pueril, ainda que com tema dark (é como se um menino de seis anos jurasse amor eterno a uma menininha. “Vamos ser enterrados juntos para não morrermos sozinhos”, ele diz).
A segunda parte abre com um outro dueto, desta vez com Laetitia Sadier. Com oito minutos, Quick canal convida a vocalista do Stereolab para um transe à krautrock que pouco combina com o resto do disco. Mas o efeito é hipnótico. Depois, Cox volta lânguido em My halo e vai preparando o terreno para o ápice da viagem: Kid klimax parece sintetizar todas as experiências do álbum, bem no meio do caminho entre o pop eletrônico e a fixação psicodélica de Cox. É uma pedra lapidada. Sublime de verdade – e eu ficaria muito feliz se o vocalista decidisse levar o Deerhunter nessa direção.
Depois do clímax, o disco vai esmaecendo até chegar à faixa-título, outra que surpreende pela crueza. Se o álbum anterior do Atlas Sound mostrava o quanto Bradford Cox valorizava uma certa tradição da música pop – os discos “conceituais” -, desta vez ele se desprende das amarras e abre o ateliê para que o fã dê uma espiada. Logos é o retrato de um processo criativo caótico. E que vale por um documentário franco sobre as filmagens de um longa do Tarantino.
Do que estou reclamando mesmo?
Segundo disco do Atlas Sound. 11 faixas, com produção de Bradford Cox. Lançamento Kranky/4AD. 7.5/10
Superoito express (13)
Em diferentes sabores e formatos.
Album | Girls | 8.5 | …Que, se fosse um filme, ganharia um título picareta em português, do estilo ‘Retratos de uma vida’. A estreia do Girls é direta e franca, mas acaba soando muito ambiciosa pelo esco do projeto: trata-se de um intenso álbum de fotografias que, em grande parte, exorciza sentimentos adolescentes (rejeição, frustrações amorosas, insegurança, uma aflição sexual meio destrambelhada e garotas, garotas, garotas). Conhecer a história de Christopher Owens — que forma o duo com JR White — não é necessário para gostar de uma banda que parece resumir o que há de especial em alguns dos nossos ídolos (de Elvis Costello aos primeiros discos do Sonic Youth). Mas saber que Owens passou a infância e boa parte da adolescência adestrado pelos dogmas do culto radical Children of God preenche as lacunas de canções como Lust for life e Hellhole ratrace, que tratam o rock como uma espécie de válvula de escape para as dores do mundo. Pura catarse. E soam verdadeiramente sinceras. Um dos álbuns mais emocionantes do ano, fácil.
Popular songs | Yo La Tengo | 7 | Mais um capítulo da tranquila maturidade do Yo La Tengo. E, se isso soa entediante (em alguns momentos, não há outra forma de definir um estilo que parece mesmo estagnado), é interessante como a banda consegue convencer mesmo quando explora velhos truques. A primeira parte do disco (que vai até a faixa 9) é de uma segurança matadora: como se o trio compusesse novos standards para o lo-fi dos anos 1990 (Nothing to hide é perfeita para quem gostou dos discos mais recentes do Dinosaur Jr). A segunda metade, mais experimental, não soa tão memorável, ainda que mostre uma banda sem freios (e isso, nessa altura, é pra lá de bom).
See mystery lights | YACHT | 7 | A partir do momento em que nos convencemos de que não é um novo disco do LCD Soundsystem, tudo termina bem (e The afterlife é uma delícia).
JJ nº 2 | JJ | 6.5 | Eurotrip exótica que dá água na boca de indie americano. Armadilha pra turista. Mas a paródia de 50 Cent (Ecstasy) é uma graça.
Heartbeat radio | Sondre Lerche | 6 | Um disquinho bonitinho, agradavelzinho, extremamente previsível e limitado (quase um Ron Sexsmith) e… Bonitinho e agradavelzinho.
The blueprint 3 | Jay-Z | 5.5 | Mais um capítulo da entediante maturidade de Jay-Z. Nesta altura, está claro que ele deve dedicar-se a histórias que não são necessariamente dele (como no álbum American gangster, que era jóia) e parar de acreditar que existe interesse no cotidiano de um rapper milionário e ególatra (e sério, quem se importa com a “morte do auto-tune”?). Ainda assim, nem tudo é Big Brother (e o bagaço dos Neptunes e do Timbalandem algum sabor).
Love 2 | Air | 5 | Só não é uma total decepção porque o Air ainda tenta encontrar formas de sabotar uma sonoridade que virou grife cedo demais. Mesmo com toda boa vontade do mundo, porém, não dá para negar que é um dos discos mais fracos da banda (talvez o mais fraco, já que soa como decalque, diluição de estilo). E me espanto quando noto que toda a reputação do duo se sustenta num só álbum (o excelente Moon safari), numa coletânea de singles (Premiers sympthomes) e em alguns momentos da trilha de As virgens suicidas. Os outros quatro discos não sabem para onde ir – este aqui segue a tradição.
Bastardos inglórios
Inglourious basterds, 2009. De Quentin Tarantino. Com Brad Pitt, Mélanie Laurent, Christoph Waltz, Eli Roth, Diane Kruger e Daniel Brühl. 153min. 8.5/10
Filme do Tarantino, pra mim, ainda é um tipo extraordinário de evento. Acordo cedo, faço a barba, uso o perfume caro que fica enfiado entre a penúltima e a última cueca. O francês. Não chego a tentar a camisa social, mas escolho uma blusa bacana.
São felizes as lembranças de cada uma das sessões (a exceção: Cães de aluguel, que vi só em VHS).
Pulp fiction: pela primeira vez, encarei a censura e entrei no cinema assim mesmo, na raça, cara lavada, coragem de piloto de bimotor, 14 anos e o coração metralhando. Orgulhoso de mim mesmo. Assisti ao filme duas vezes no dia de estreia e, à noite, escrevi um roteiro de dez páginas que eu jogaria no lixo mais ou menos 32 horas depois.
Jackie Brown: talvez o período mais aborrecido da minha vida. Eu confinado em salas de aula, confrontando provas e simulados, um tédio sem fim. Havia decidido abandonar o cinema (nem que por um tempo) para ler livros. Abri uma exceção para este aqui. Depois voltei a ler livros. E me apaixonei por soul music.
Kill Bill, vol. 1: quase um homem feito. Vi primeiro numa cópia de serviço vagabunda, em VHS, que revi três vezes já memorizando algumas cenas. Mas entendi que algumas delas eram eternas (a chegada da Noiva em Tóquio, sob um cenário que parece feito de cartolina e celofane) quando vi no cinema. E foi um choque para sempre.
Kill Bill, vol 2: vi primeiro em Portugal, numa viagem de trabalho. Adiei um compromisso, saí do hotel mais cedo, caminhei pela cidade e me enfiei numa sala de multiplex às onze da manhã. Eu estava com tanto sono que vi metade do filme em estado de profundo transe. Só comecei a entender do que se tratava já no Brasil. Um filme de amor, então.
À prova de morte: em DVD, depois no cinema, e eu cético feito um astrofísico. Em vez das cenas de ação, me vi amarrado pelos diálogos – um mundo dentro de um filme – e por um desfecho violentamente doce. Imaginei até que o diretor tivesse crescido mais ou menos da mesma forma como eu cresci. Dialogamos.
E agora estamos aqui novamente. Desta vez, tive que acordar cedo por uma outra razão: a sessão começava às 10h15. Continuo guardando meu melhor perfume entre a penúltima e a última cueca.
(Chego a acreditar que, para mim, os filmes de Tarantino funcionam mais ou menos como pontos de referência. Quando os revejo (e só consigo rever trechos), é como se eu retornasse imediatamente a um ponto específico da minha vida. Não há como evitar.)
E agora Bastardos inglórios. Belo filme. Onde paramos?
Numa análise muito superficial da coisa, noto que a trajetória de Tarantino conta a história de um cinéfilo – talvez desde sempre – que aos poucos aprendeu a dominar a linguagem do cinema e tomá-la para si. Os filmes mais recentes mostram uma segurança no tratamento das imagens que não existia, por exemplo, em Pulp fiction. Ainda assim, existe uma característica que se repete em todos os filmes: um desejo intenso por cinema. Isso é palpável. Esteve sempre lá.
E está neste novo filme. Tarantino vai à briga como quem tenta criar uma obra-prima (e um dos personagens chega a dizer algo do gênero; “acho que fiz minha obra-prima”), com uma determinação quixotesca. E demonstra tanto controle – da técnica, do próprio estilo, das opções formais que escolhe para si – que fica a impressão de uma obra perfeita, até meio fria (como são frios e perfeitos alguns dos filmes do Stanley Kubrick e do Tarkovski), quase sem arestas, construída milimetricamente (o roteiro ficou germinando por uma década, e dá para perceber). Um relógio suíço.
Para quem acompanha o diretor há tanto tempo, mais impressionante será notar como ele vai apurando a química dos filmes anteriores enquanto se desafia a seguir experimentando. A estrutura do longa lembra um pouco a de Sangue negro, já que é toda calculada com sequências longas, diálogos que começam tolos e terminam trágicos – tudo encenado com uma rigidez, uma dureza um tanto teatral. E, impossível deixar escapar, é no mínimo muito ousado como Tarantino usa a gramática quase surrealista de um “mundo de cinema” para interpretar um dos episódios mais conhecidos (talvez o mais conhecido), debatidos, filmados do século 20: a Segunda Guerra Mundial.
É um filme de vingança, como era Kill Bill. Mas, aqui, a vingança é gatilho de uma catarse maior, de um acerto de contas histórico. Tarantino reescreve os livros didáticos não apenas como diversão inconseqüente, mas como uma forma de fazer justiça. O cinema salva o mundo. O cinema reescreve a história. Há algo de poético nisso. E é por isso que, lá perto do desfecho, este filme muito duro (e às vezes pouco fluente, quase arrastado mesmo) vira mais um típico Tarantino: um filme de cinema.
Nada de novo nisto: ele se reinventa para reafirmar uma antiga fé. Só que, agora, de uma forma tranquila, sem tanta aflição. Entendo. E continuo a tratar essa história como se fosse um pouco minha.
Superoito e o dia de visita
Meu primeiro cachorro: um poodle branco, bagunceiro, indomável, adorável, uma peça, um outsider, um James Dean, não assustava ninguém, tropeçava nas próprias patas, gostava de morder pistolas de brinquedo (amarelas e azuis), preferia filé a ração, dava piruetas. Morreu atropelado por um fusca.
O nome dele era Cherri.
Eu, um menino de 10 anos, adorava meu cão. Por dois ou três meses, ele foi um dos meus melhores amigos (não o melhor, que aí seria exagero). Meu confidente. Depois que mataram o bicho, resolvi: em homenagem ao Cherri, Tiago Superoito não teria outro cão.
Era uma promessa tola e sem sentido. Mas, ainda que não de propósito, acabou acontecendo exatamente assim. Cresci trancado em apartamentos. Pelos cães, desenvolvi certa repulsa. Me convenci de que eu era alérgico a pelos. E que gastar uma fortuna com animais de estimação era uma atrocidade politicamente incorreta (aos 17, entrei numas de salvar o planeta).
Quando nos mudamos para uma casa, depois de muito tempo, deus apontou para minha família e pregou uma daquelas peças divertidíssimas que ele, o todo-poderoso, ama de paixão: nos condenou à convivência com dois cães. Santo sarcasmo. Simba, um golden retriever carente e infantilóide. E Hatty, um beagle ranzinza, esnobe e traumatizado por rejeições amorosas (digamos que, na vizinhança, ele era o terror das cadelinhas virgens e indefesas).
Sempre foi fácil lidar com o Simba, um tipo educado e silencioso. Mas, na primeira semana, todos desejávamos que Hatty, o do nome esquisito, morresse atropelado por um fusca. Todos menos minha irmã, que se identificou com malandrinho e o adotou carinhosamente. Um par de jarros.
Nós seis – eu, minha mãe, meu padrasto, minha irmã e os dois cães – vivemos poucas e boas. Nos divertimos. Sofremos. Choramos juntos. Criamos laços. Inventamos sólidos códigos de amizade. Quatro anos depois, veja isto: somos inseparáveis.
Descomplicando a história: Simba e Hatty são dois dos nossos melhores amigos. São chapas. 100% confiáveis. Entraram na família pela porta da frente. Nada quebraria aquela relação pura e honesta de cumplicidade.
Inexperientes no assunto, descobrimos recentemente que cachorros não vivem para sempre. Foi um choque. Um veterinário desalmado violentou a nossa inocência. Jogou a realidade na nossa cara. Quebrou o encanto. “O Simba tem mais uns três anos de vida pela frente, no máximo. O Hatty, nem isso. São velhos. E estão gordos”, disse.
Naquele momento, desejamos que o veterinário fosse atropelado por um fusca.
Há alguns dias, Hatty ficou doente e teve que ser internado para uma cirurgia na orelha. Pensamos que ele morreria. Estava velho e gordo. Mas o médico avisou que, apesar do risco, não seria um tratamento tão delicado. Nosso cão teria que passar duas semanas num hospital de cães. Descobrimos ali que o preço de hospedagem de um beagle superaria o valor gasto por minha irmã em Buenos Aires, onde passou 15 dias num albergue. Sem pensar nos miseráveis do planeta, decidimos torrar a grana. Tudo pelo bem do nosso cão marrento, sujo, feio e insubstituível.
Não quero soar piegas, mas admito que a casa ficou triste sem o Hatty. O Simba caiu numa crise depressiva e, em sinal de protesto, passou a dormir no piso frio do banheiro. Meu padrasto, que não vai nada bem, sentiu-se um pouco mais perto da morte. Minha irmã decorou a casinha do cachorro com celofane. O veterinário aconselhou que a família visitasse o Hatty e, se possível, levasse o Simba junto. “Os cachorros são amigos, não são?”, instigou. Minha mãe agendou o horário.
Marcamos a aventura para um sábado. A família estava precisando disto: uma aventura. E visitar o Hatty num hospital de cachorros seria intenso.
Explico: o Simba nunca havia saído de casa. Era uma Polyanna, quase. Um menino da bolha. Um Kaspar Hauser. Nasceu e cresceu num gramado cheio de árvores e flores e, quando tivemos que nos mudar, ele apenas fez uma viagem (tensa, barulhenta) a um outro gramado cheio de árvores e flores. Mas imaginamos que um encontro com o Hatty seria a cura para uma crise melancólica que se arrasta desde que o beagle foi internado. Secretamente, também acreditávamos que aquele passeio nos ajudaria a superar a crise de uma família despedaçada e perplexa.
Quem diria, ahn: o Hatty, um estorvo, teria a chave para a nossa paz de espírito?
Obviamente, não. Mas gostávamos de nos enganar. Daí que entramos todos no carro. Nos bancos da frente, minha mãe (ao volante) e meu padrasto (que, com lapsos constantes de memória, já esquece alguns trajetos). Logo atrás, minha irmã, o Simba e eu. A viagem duraria cerca de 20 minutos – tempo suficiente para que o Simba fizesse da minha camisa um babadouro. Ele estava tão nervoso (talvez emocionado?) diante de todas aquelas imagens aceleradas exibidas na janela. Era comovente. As árvores, as ruas, as casas, as placas de trânsito, os outros cachorros, os outros carros, as bicicletas, os viadutos, as rodovias, os cruzamentos, nuvens no formato de osso, as corujas e os sacos de lixo. Um mundo novo se abriu para nosso inocente golden retriever.
Quando chegamos no hospital, a cena parecia patética. Não era eu quem guiava o Simba na coleira vermelha, mas nosso cão me lançava de um lado para outro, excitado com aquele novo ambiente. A alegria do cachorro era contagiante. Nos alegramos com ele. E, quando entramos na enfermaria dos cães – que era triste e fedorenta, solitária, uma prisão -, não ficamos incomodados com o fato de que esperaríamos o Hatty num cercadinho inóspito, que fedia a mijo e que mais parecia a jaula de um elefante.
Esperamos. E esperamos. “Trouxe a máquina, Tiago?” “Trouxe, mãe” “O médico avisou que o Hatty tá fraco” “Eu sei, mãe. Seremos fortes” “Sem piadas, Tiago” “Ok, mãe. Faça uma pose, faça”.
Quando abriram a jaula, foi impossível achar graça. Suspiramos de tristeza. Hatty, o cão mais cínico e insensível do mundo agora parecia um ser deplorável, manco e nanico, que só sabia tremer e chorar. O beagle, que sempre rejeitou carinho, agora corria para os braços da minha mãe, que também parecia inconsolável. “O que fizeram com você, Hatty?”, ela suplicava. Com a cabeça protegida por curativos, o cão-múmia parecia verdadeiramente abandonado. Aquilo partiu nossos corações.
(Minto: o coração do Simba parecia pegar fogo. De alegria. De excitação. Para ele, aquele era o primeiro dia do resto de uma vida. Quando Hatty entrou no cercadinho, o amigo latia para uma cadela pincher com a pata quebrada)
Não digo que o sofrimento do nosso cão tenha unido nossa família. Seria bobagem. Nem que tenha acentuado nosso drama. Nada disso. O veterinário garantia que o cachorro seria curado. Confiávamos nele. Aquele passeio, no fim das contas, não teria nenhuma importância prática. Para o Simba, a ausência do Hatty não parecia incomodar muito (ele queria alguma companhia, qualquer companhia).
Enquanto eu tirava fotos da minha mãe e da minha irmã, notei que meu padrasto estava encolhido no canto do cercadinho, observando nossos movimentos como quem busca algum conforto. Por 15 ou 20 minutos, estávamos preocupados com outro assunto que não doenças, tragédias e solidão.
Quando finalmente nos enchemos daquilo, o veterinário avisou que teríamos que sair lentamente do cercadinho. Um de cada vez. Saímos eu e meu padrasto. Ficamos alguns minutos naquela posição estranha: de longe, observávamos minha mãe e minha irmã trancadas numa jaula, agachadas, acariciando um cão moribundo. Trancadas numa jaula. Agachadas! Olhei para meu padrasto e ri. Ele riu de volta. Os cães todos latiam. Rimos alto.
Envergonhada com a cena, minha mãe pediu silêncio. Mas não obecedemos. Não daquela vez. Estávamos bem. Fazia sol. Era um dia lindo. Um sábado. O cão não morreria. E aquela era a nossa ideia de uma grande aventura.