Mês: novembro 2011
Mixtape! | Novembro, noite e dia
Nem estou acreditando, meus amigos: a mixtape de novembro sobreviveu à temporada silenciosa/sangrenta do blog e está aqui, inteirinha, entre nós. E ela é imprevisível, é incrível, é uma guerreira.
E é (tcharam!) diferente das outras.
Talvez vocês não lembrem, mas a coletânea de outubro era (reparem a ambição do blogueiro) uma trilha sonora pra um filme que não foi feito. A deste mês é mais, digamos, convencional: um apanhado de músicas que alegraram meu curto recesso por tempo determinado. 10 faixas, e só.
Tá, não é só isso: também é mais uma das minhas mixtapes lynchianas. É!
Porque, quando reuni todas as músicas, percebi que elas formariam dois EPs – um mais rebolandinho, puxado pro pop/hip-hop, e outro mais guitarrístico. Decidi, então, unir costurar as duas faces da moeda num CD que começa de um jeito (noturno), termina de outro (diurno) e nos surpreende com um solavanco estranho lá na metade. Vocês viram Estrada perdida? É um pouco assim.
Curto muito essa mixtape, de verdade – e acho que vocês deviam fazer o download das musiquinhas em MP3 para ouvi-las nos headphones enquanto caminham no parque. Por isso, desta vez não existe a opção de ouvir o disco aqui no site, em altíssima tecnologia e baixíssima fidelidade. Back to basics, certo?
Dentro do arquivo compactado vocês encontram, nesta ordem, Katy B, Childish Gambino, Thundercat, Drake (que está na foto do post), Beach Boys, Atlas Sound, Los Campesinos, Dum Dum Girls, Charlotte Gainsbourg e Real Estate. A lista de músicas está na caixa de comentários.
Por falar em comentários, não vou ficar pressionando ninguém a escrever opiniões gentis (ou não) sobre a mixtape. Todos estamos muito ocupados com as nossas vidinhas complicadas, né mesmo?
(Tô brincando: tentem comentar qualquer coisinha, ok? Abraço)
Façam o download da mixtape de novembro.
cine | Terraferma
O italiano Emanuele Crialese me surpreendeu com Respiro — que é uma masterclass sobre filmar com leveza —, mas foi descendo a montanha com filmes maiores, mais “importantes”, mas que se curvam aos pés dos Grandes Temas. Nos dois casos, a pauta é o drama da migração na Europa.
O anterior, Novo mundo, nos distraía com firulas fellinianas — quando penso nele, tudo o que lembro é de legumes gigantes e de gente boiando numa enorme piscina de leite. Em Terraferma, que competiu em Veneza, nem isso: o que resta é um cineasta bem intencionado, “engajado”, que apela a um sentimentalismo grosseiro para mostrar o sofrimento de africanos que chegam de barco a uma ilha turística perto da Sicília.
Há cenas de beleza gritante, BONITAS (tudo em maiúsculas), com água e barcos. E há sequências que forçam a barra para nos comover. Numa delas, um homem louro enxota com um remo os negros que tentam se salvar de um afogamento. Imagino os produtores do filme usando essas imagens para convencer a Academia de Hollywood a selecionar o longa, que representa a Itália na disputa do Oscar.
Crialese adota o ponto de vista de um rapaz inocente (talvez ingênuo demais), que vive na região e talvez não tenha ainda refletido sobre a truculência como os imigrantes são tratados ali. No filme, africanos são mostrados por um filtro exótico, quando não simplesmente pueril (são anjos caídos numa terra cruel). Talvez o personagem os veja assim. Ou talvez o filme seja tão infantil quanto esse herói.
Eu queria acreditar que o garoto não é apenas um veículo para os comentários sociais (óbvios, óbvios) do diretor. Será que não? Aos 20 minutos de projeção, minha vontade era de mandar um SMS para o Crialese com o seguinte texto: “sim, eu conheço o problema e sim, concordo que a situação não é fácil; você tem o direito, portanto, a não ser assim tão didático na próxima vez.”
(Itália/França, 2011). De Emanuele Crialese. Com Filippo Pucillo, Donatella Finocchiaro e Beppe Fiorello. 88min. C
cine | Sleeping Beauty
O filme de estreia da australiana Julia Leigh, que foi selecionado para a competição de Cannes, tem cenas que nos seduzem pela beleza das imagens — os enquadramentos são simétricos, “clean” o bastante para deixar a impressão de que alguém fez uma faxina incrível no set pouco antes do começo das filmagens —, mas nos chocam (ou tentam nos chocar) tão logo percebemos o horror das situações. Num resumo bem superficial, é como se um cineasta iniciante, ainda deslumbrado com os próprios ídolos, convidasse o fotógrafo de Sofia Coppola para filmar um roteiro de Michael Haneke.
Por falar em Sofia, uma das sequências remete quase que literalmente à atmosfera de Encontros e Desencontros: num quarto chique de hotel (e aí, sim, claro, estamos falando num ambiente impessoal e higienizado), a personagem principal aparece deitada na cama, de forma que a silhueta do corpo desenha uma espécie de moldura humana para o cenário urbano que brilha na janela. É um plano bonito, que sugere várias metáforas sobre dezenas de questões, mas cadê Julia Leigh?
Já a primeira cena, em tons de cinza e branco, se adaptaria bem a um dos primeiros filmes de Haneke: a lente não pisca enquanto essa mulher se submete a um exame médico, e tem um tubo transparente enfiado goela abaixo. A câmera não sente nada, talvez por se tornar cúmplice do estado de espírito da protagonista: elas (a câmera e a personagem) suportam desapaixonadamente um martírio non-stop.
Mas, como estamos dentro de um conto de fadas (nenhum cineasta escolhe o título A bela adormecida em vão), o purgatório de Lucy (Emily Browning) vai ganhando tons surreais: da metade da trama em diante, é como se essa princesa linda, branca e oh-tão-inocente tivesse tomado o caminho errado e, em vez de chegar em casa, batesse a porta da mansão de De Olhos Bem Fechados. Quando ela se submete a um serviço bizarro de prostituição para homens idosos — desacordada, ela recebe clientes na cama para encontros “sem penetração” — o delírio parece se sobrepor à realidade.
O inferno é que essa viagem-floresta-adentro, além de nunca se libertar de duas ou três referências de fácil identificação (que se tornam sufocantes, pra dizer o mínimo), tem como destino os lugares-comuns de uma conhecida deprelândia cinematográfica, já desgastada em festivais. Entendo: é mesmo complicado viver num mundo em que as relações humanas se tornaram mecânicas e vazias, mas, dois dias depois de ter visto o filme, ainda me pergunto o que Julia Leigh teria a comentar sobre esse assunto.
(Austrália, 2011, 104min) Escrito e dirigido por Julia Leigh. Com Emily Browning, Rachael Blake e Ewen Leslie. C
♪ | On a Mission | Katy B
Eis um disco que sabe ativar aquela propriedade alucinógena da música pop: o poder de provocar o entusiasmo infantil que sentíamos ao ganhar um brinquedo novo. Porque é assim que Kathleen Brien (a inglesinha Katy B, 22 anos) se movimenta nesta lojinha colorida: abrindo e fechando embalagens, trocando acessórios sonoros como quem experimenta marcas de perfumes num free shop. A futilidade pode parecer gritante (e já vejo gente lavando a mão com álcool gel para digitar pedradas contra o CDzinho). É e não é: em novembro de 2012, On a Mission possivelmente terá sido superado por meia dúzia de outros discos pop tão eficientes, reluzentes, divertidos e bem produzidos quanto. Só que existe algo libertário na alegria como Katy vai flanando por subgêneros que geralmente são tratados com pedantismo por uma elite de entendidos (e dá pra listar um punhado deles, do dubstep ao drum ‘n’ bass e o diabo a quatro). Nesse vale-tudo, o disco me lembra as farras do Basement Jaxx, que davam a volta ao mundo da dance music sem a intenção de chegar a um lugar específico. Katy não é tão arrojada (no mais, esse é um disco de estreia que soa como tal). Mas tampouco dá sinal de burrice (exemplo: a letra de Easy Please Me, um bom argumento para mulheres que curtem bad boys, mas não querem namorar presidiários). No mais, ela está numa missão. Acompanhemos.
Primeiro disco de Katy B. 12 faixas, com produção de Benga, Geeneus e Zinc. Lançamento Columbia Records. 78
cine | Pina
Ah, cá estamos de volta ao incrível mundo dos documentários europeus em 3D! Ou quase isso (calma que explico).
Quando lançou Pina (B), Wim Wenders falou à imprensa que era antigo (muito antigo: duas décadas!) o projeto de filmar as coregrafias de Pina Bausch. Mas que só descobriu como levá-lo a cabo quando a tecnologia 3D digital apareceu no mercado. Este é, portanto, um documentário concebido para ser visto em tela grande, com óculos especiais. Imagino que, se exibido no Cinemark aqui de Brasília, possivelmente faria algum sucesso dividindo sessões com Premonição 5 – outro filme que perderia força se exibido sem efeitos tridimensionais.
Essa breve introdução se faz necessária porque, infelizmente (pois é), não vi Pina em 3D. O que traz (perdoe o trocadilho) uma outra dimensão a este post: sem o bônus visual (ao que parece, perfeitamente adequado ao tema do filme, ressaltando o movimento dos corpos dos bailarinos), o que temos é apenas um doc muito vistoso, mas sem o fator deslumbramento que nos distrairia de algumas escolhas (não tão deslumbrantes) de Wenders.
Outro obstáculo que talvez tenha minado minhas expectativas: assisti a este filme logo depois de George Harrison: Living in the Material World. A comparação entre os dois longas, aliás, se mostrou mais cruel do que eu temia. Porque, enquanto Scorsese se aproxima do personagem-celebridade como quem não quer nada (mas quer tudo), Wenders usa todo tipo de firula cênica para iluminar, maquiar e nutrir o perfil de Bausch – e o faz como que para compensar a ausência de um ponto de vista musculoso para o legado da alemã.
Pode parecer – e parte da crítica europeia repetiu essa ladainha infeliz – que o cineasta se esconde para deixar que Pina apareça. Só que não, não dá para comprar essa ideia, já que as escolhas narrativas do filme (as entrevistas etéreas com os bailarinos, as cenas à la cartão-postal filmadas em paisagens lindíssimas, as ‘licenças poéticas’) são, obviamente, quase todas de Wenders. Será que o 3D salva tudo isso?
Perguntinha retórica, é claro. Se esse é o projeto mais bem sucedido do diretor desde Buena Vista Social Club (e graças a Pina, a autora das coreografias muito inventivas que dominam o longa), não chega a resolver um bloqueio antigo: aquele Wenders dos anos 1970-80, que aparecia com muita propriedade nos filmes que fazia, segue meio sumido.
♪ | Take Care | Drake
A Rede Social, de David Fincher, é o filme que passa na minha cabeça quando ouço o segundo disco de Aubrey Drake Graham, Take Care.
Eles não tratam, obviamente, do mesmo tema: o canadense, pra nossa infelicidade, não escreve músicas sobre cutucadas&retuitadas. Mas acredito que ele poderia estar (numa outra dimensão?) ali perdido entre os geeks extraordinários de Harvard: vestido num moletom surrado, crescendo e enriquecendo solitariamente diante de um Macbook Air.
Por mais que se queira tratar Drake como apenas mais uma celebridade do R&B, existe algo incomum (e novo) nesse cantor de 25 anos – traços de temperamento que talvez não serão percebidos de imediato por quem trata a música pop comercial americana como um conjunto de fórmulas necessariamente burras e datadas. É que, como os personagens de A Rede Social, Drake não se surpreende com nada: e até o dinheiro (e estamos falando de muito dinheiro) se tornou um valor subjetivo demais para livrá-lo do desencanto. É como se ele tivesse nascido exatamente após o fim de uma festa.
Take Care segue, sim, uma série de convenções do gênero. Não é um disco arredio, de forma alguma. Tem um punhado de convidados especiais, que possivelmente trocaram arquivos de mp3 via e-mail, e recorre a um repertório de tramas (sobre fama, mulheres, telefonemas constrangedores e a amizade dos bróder) que já nos parece corriqueiro. Mas, análise superficial por análise superficial, A Rede Social também pode ser visto como um filme de gênero: um teen movie universitário dos anos 80 com, digamos, diálogos mais velozes e uma subtrama à la fita de tribunal. Ou não?
Quando convidou Trent Reznor (do Nine Inch Nails) para compor a trilha de A Rede Social, David Fincher avisou a ele que a música teria um papel essencial no projeto: ela apontaria para uma camada discreta de sentidos que não estava tão visível no roteiro. No que Reznor, atento à conotação soturna do texto, escreveu as harmonias cinzentas que não encontramos numa comédia de John Hughes. Pois a qualidade dessa colaboração é semelhante à que se nota entre Drake e os produtores/compositores Noah “40” Shebib e The Weeknd.
Enquanto Shebib alarga os espaços vazios das faixas (Over my dead body, que abre o disco, até assusta pela falta de ornamentos: parece uma versão demo), o The Weeknd (o apadrinhado mais famoso do cantor) divide com Drake a mise-en-scene noturna das mixtapes House of Balloons e Thursday. Essas plataformas sonoras acaba por reforçar, mesmo indiretamente, o que existe de mais instável nos versos de Drake. E, apesar de o cantor insistir que está tudo bem, este não é um disco tranquilo.
A sensação de que o melhor sempre já passou (e já havia passado antes mesmo do disco de estreia, Thank me later, cuja faixa principal atendia por Over), e de que não há mais sonho possível (who will survive in América?, perguntaria Kanye West), vaza sem que ele perceba. Num álbum supostamente confessional (o espírito de blogueiro pós-chute-na-bunda afasta o Drake das ‘mentiras sinceras’ do The Weeknd), há muito a ser lido nas entrelinhas. “No fim das contas, somos só eu, eu mesmo e meus milhões”, ele diz, em Headlines. Uma conclusão que Mark Zuckerberg possivelmente curtiria.
É nesses momentos de tensão forma/conteúdo que Take Care nos lembra como a música pop (a melhor música pop) pode soar, ao mesmo tempo, oportunista e oportuna, superficial e profundamente contemporânea. A colaboração entre Rihanna, Jamie xx e Gil Scott-Heron (na faixa-título) talvez resuma todos os belos curtos-circuitos do disco: um hit cheio de ranhuras, um dubstep farofento que parece oscilar entre o conforto absoluto e uma leve sensação de que alguém entrou no estúdio e, aos 45 do segundo tempo, subverteu o mix. “Vou tomar conta de você”, diz o refrão. Soa um pouquinho irônico.
Entre R. Kelly e James Blake (e mais para a egotrip de My Beautiful Dark Twisted Fantasy que para as dores de cotovelo de 808’s and Heartbreak), Drake conseguiu criar um disco megacorporativo e ultracomercial, mais confiante e ainda mais pragmático que o anterior. Não há como abandonar, no entanto, uma persona cheia de conflitos e incertezas, que garante ao álbum uma corzinha triste e bem atual; um blue-metálico, apesar dos holofotes quentes e dos efeitos especiais: “Parece que me importo, mas só diante das câmeras”, Drake confessa. E, na real, alguém se importa?
Segundo disco de Drake. 18 faixas, com produção de Noah “40” Shebib e outros. Lançamento Universal Music. 82
Os filmes da minha vida (8)
Er… Boa noite?
Depois de uma temporada de (sejamos dramáticos) absoluto desencanto com este blog, este redator aflito volta ao ringue para mais um capítulo da incrível, implacável saga dos 100 filmes que… estiveram lá.
Para refrescar as vossas memórias, explico as regras do campeonato: 1. este é um ranking subjetivo, particular, cheio de idiossincrasias, que não reúne os melhores filmes nem os mais importantes/influentes, mas aqueles que acabaram pontuando a minha vida (pro bem e pro mal); 2. a ideia é postar um capítulo por semana, mas (como vocês perceberam) isso nem sempre será possível; 3. Se os amigos leitores quiserem colaborar com links para download dos filmes, a caixa de comentários está aqui pra isso.
Nos próximos dias, vou tentar retormar as atividades deste blog, espantando os ácaros do meu teclado e, quem sabe, escrevendo algo digno de algum respeito. Sei não (estou usando apenas 10% da minha capacidade intelectual, acreditem), mas vejamos.
086 | Não amarás | Krótki film o milosci | Krzysztof Kieslowski | 1988
Os filmes de Kieslowski foram tão importantes para a minha adolescência quanto os episódios de Os Simpsons e os discos do Nirvana (lembro de, no auge da minha rebeldia, ter matado uma aula de inglês para ver A liberdade é azul no cinema), mas, olhando para trás, sinceramente não sei se foi proveitoso ter crescido no período em que o polonês virou astro em festivais internacionais. Na época, não entendi metade dos longas que ele dirigiu (A dupla vida de Véronique ainda me parece um enigma), e acredito que a maior parte tenha sido feita para um público não tão imaturo quanto eu era nos anos 1990. Uma exceção: minha ingenuidade fez de Não amarás uma experiência audiovisual ainda mais inquietante. E o diretor, de algum modo, explicava a forma como eu, um garoto muito tímido, via o cinema: um caso de amor platônico através de janelas indiscretas.
085 | A mosca | The fly | David Cronenberg | 1986
Durante a pré-adolescência, minha fixação por filmes de horror era provocada por slasher movies: Freddy Krueger, Jason – todos os outros maníacos com sérias necessidades especiais – eram meus heróis, talvez porque os mocinhos oficiais não me inspirassem muitos sentimentos além do tédio. Ainda que meu estômago fosse bem resistente, eu não estava pronto para A mosca, que me apresentou um tipo de horror muito mais medonho, mais desagradável – e intenso, já que sem a aparência de uma brincadeira para meninos malcriados. Revi recentemente e ele (ufa) seguiu provocando o bom e velho mal estar, com cenas de degeneração física e psicológica que explicitam boa parte do projeto de cinema de Cronenberg. A partir dele, o cineasta entraria na lista dos meus diretores favoritos, onde permanece firme e forte.
cine | George Harrison: Living in the Material World
Já quase na metade deste documentário dirigido por Martin Scorsese, acabei lembrando da revolta de uma espectadora que saiu bufando de uma sessão de Shine a light. “Mas é só um show!”, era o que ela dizia. Pois bem, caro leitor: talvez você encontre alguém esbravejando algo parecido contra este Living in the material world (A). “Mas é só um documentário musical!” (e já consigo imaginar a cena).
É que este filme sobre o beatle George vem com mais um argumento a favor da hipótese (in progress) de que os documentários de Scorsese são mais traiçoeiros – e difíceis, digamos – que as ficções do cineasta. Talvez porque pareçam simplérrimos, tão ou mais didáticos que aquele típico perfilzão jornalístico em que a gente tropeça de vez em quando nos canais de tevê a cabo. Living in the material world, aliás, estreou na HBO americana.
O acabamento do longa é de uma discrição, de uma polidez quase irritantes (adjetivos que também servem aos docs musicais The last waltz e No direction home). Mas se cercar das convenções (muito envelhecidas) de um gênero talvez faça parte de um jogo mais sutil, já que essas narrativas cristalinas estão sempre mirando personagens “embaçados”, complexos, que não se deixam enquadrar.
Daí que, mesmo quando convida uma dúzia de diretores de fotografia para captar os melhores ângulos de uma apresentação dos Stones (em Shine a light), é como Scorsese soubesse que uma química invisível não será captada pelas lentes (no caso, a faísca que provoca a performance mágica de Jagger e Richards).
No retrato de George Harrison, esse olhar bem sóbrio (posso dizer que também pragmático, posso?) faz ainda mais sentido: já que, como um dos entrevistados conta ao diretor, o próprio músico tentava criar no “mundo material” um ambiente tão sublime quanto aquele que imaginava existir no “mundo espiritual”. E não é esse clique-de-ilusão que se dá quando um documentário tão terreno se deixa contagiar por um homem cheio de mistérios?
(E também cheio de contradições: cercado de amigos, mas com fama de recluso; praticante de meditação e corridas de carros; apaixonado tanto pelo pop comercial quanto pela tradição musical-mística dos indianos; respeitoso em relação a assuntos da fé, mas um dos maiores fãs do humor iconoclasta do Monty Python etc)
A imagem que remete mais diretamente a esses paradoxos é o jardim de Harrison, o “paraíso particular” criado pelo compositor. Não é por acaso que o filme abre e fecha em meio a flores. É biografia direta, informativa (e frontal até nos momentos de comoção, porque as colagens visuais que acompanham um Here comes the sun, por exemplo, têm função de catarse mesmo), é só um documentário musical. Só que também transcendental – de uma forma que talvez nem o próprio George Harrison seria capaz de explicar.
[paula fox]
Desmond curvou a cabeça. Clara se perguntou se ele iria escorregar da cadeira para o chão, desmaiar no tapete. Ele mal parecia estar vivo, curvado na cadeira, o rosto escondido, as mãos de dedos grossos pousadas nas coxas. Ela nunca o tinha visto tão bêbado, tão passado, em nenhum dos restaurantes e quartos de hotel em que o encontrara ao longo dos anos. Mas a mãe, afora uns poucos apartes musicais sobre a incrível “confusão mental” dele, não prestava muita atenção a Desmond. Talvez fosse aquilo o que ela chamava de “ser melhor” com ele. Assim tinha dito a Clara por volta de um ano antes numa conversa telefônica. Oh, ela estava ficando melhor, dissera, mais sensata do que jamais tinha sido com Ed e suas bebidas, aprendendo a deixar os homens em paz. “Você não pode salvar um bêbado da bebida”, ela havia dito, “você não pode salvar ninguém de coisa alguma.”
Clara supunha que não se podia salvar quem quer que fosse, não em quartos de hotel, lugares que não pertenciam a ninguém, lugares de interrupção, de imunidade diante da vida comum, onde o espírito se abate, fica desolado, gélido, mas a carne se inflama, incandescente, excitada pelo odor da licenciosidade que parece emanar da cama, do banheiro, do travesseiro de qualquer um, do abrigo espúrio de todo mundo.
Trecho do livro Os filhos da viúva, de Paula Fox
Mixtape! | Finest worksongs
Este blog passa por um período complicado, vocês devem ter percebido. Não sei muito bem o que fazer dele. Deve ser uma crise passageira – talvez este blogueiro esteja passando por uma fase de cansaço, não é um período muito tranquilo na vida do sujeito. Todo post que tento escrever me parece uma bobagem. A única medida a ser tomada neste momento, creio eu, é ter paciência.
Estive pensando que seria melhor se este blog voltasse a ser um pouco o que era no início: um sitezinho muito pessoal, pros amigos. Uma espécie de caderno de notas, e nada além disso. Vamos ver o que acontece.
Ouvi muitos CDs, mas acho até que perdi um pouco o ritmo das resenhas – talvez eu escreva um post juntando todos eles, mas ainda não sei como ou quando. Um desses discos que ouvi foi a coletânea do REM. É um álbum duplo, muito longo, muito bom, mas que me deixa um pouco com preguiça. Além disso, senti falta, no repertório, de algumas das minhas canções preferidas da banda.
Quando eles anunciaram a separação, há alguns meses, não me abalei muito. Mas, depois que li algumas entrevistas com a banda e ouvi a coletânea, comecei a sentir falta deles. Acho que sempre foi um dos meus grupos prediletos (os acompanho desde os 10-11 anos de idade), ainda que eu tenha tentado me convencer do contrário quando ouvia os discos mais recentes que eles lançaram.
Hoje, na véspera de viajar novamente para São Paulo (onde vou passar um fim de semana), resolvi preparar uma mixtape muito improvisada (e não tão exaustiva) para ouvir no aeroporto, com 12 faixas que me conectam ao REM, que me deixam com saudade do quarteto. O plano é simples, e é esse – as minhas Finest worksongs: uma viagem pessoal ao vasto-vasto mundo do REM.
Como costuma acontecer nessas minhas coletâneas domésticas, o CDzinho talvez diga mais sobre mim do que sobre as músicas que foram reunidas. Dei preferência aos discos de que mais gosto, e ignorei outros tantos. A ideia não é mapear coisa alguma – e, para quem quiser conhecer um pouco mais sobre o grupo, sugiro o disco duplo que eles acabaram de lançar.
Por se tratar de uma banda grande, que lança discos por uma gravadora poderosa, sugiro que os interessados no mix não esperem para fazer o download. A lista de músicas está na caixa de comentários.
Prometo voltar logo mais com o top de Filmes da Minha Vida e outras atrações (só não me pergunte o que).
Faça o download da mixtape aqui.
[michael stipe]
Se vocês tinham quase certeza de que a turnê de 2008 seria a última da banda, então sabiam que Collapse into now seria o último disco?
Bem, agora finalmente podemos falar sobre o tema do disco e sobre o que estava acontecendo. Teve um crítico de música que disse: “Sinto falta de alguma coisa neste disco, mas não sei o que é”, e ele estava falando sobre temas. Acho que ele estava dizendo, consciente ou inconscientemente, que os discos do R.E.M. sempre têm um tema – fogo e água; sexo em Monster, e eles são óbvios. Mas o tema daquele disco não tinha ficado claro imediatamente para ele. Eu sempre penso que sou incrivelmente óbvio, e não sou (risos). Para mim, tematicamente aquele era a despedida mais grandiosa, e a mais óbvia.
Olhando para o disco agora, você está acenando adeus na capa.
Estou dando adeus, sim. Mas nós estamos na capa! O R.E.M. nunca havia aparecido na capa de um disco. E tem a canção All the best…
O desfecho de Blue, que se conecta a Discoverer, fecha um círculo que nos leva de volta a começo do disco.
Sim, e faz referência a Fables of the reconstruction. É aquela história cíclica: o fim é o começo, o começo é o fim. Discoverer é uma canção autobiográfica sobre as minhas experiências em Nova York aos 19 anos de idade. E fecha com Patti Smith, que foi onde tudo começou. Espero que tenha deixado a impressão de uma despedida muito bonita, o disco.
Entrevista de Michael Stipe ao Salon.com. Íntegra aqui.
Os filmes da minha vida (7)
Após um intervalo angustiante (para mim, é claro), voltamos a acompanhar o bonde dos 100 filmes que, por um ou outro motivo, marcaram a vida deste blogueiro (ligeiramente) saudosista.
Mais duas belezinhas para a sua mesa de cabeceira, portanto. Só agora me dei conta da coincidência que existe entre os longas-metragens deste capítulo: um fala sobre o início de um amor; o outro, sobre o fim.
088 | A primeira noite de um homem | The graduate | Mike Nichols | 1967
Não é um filme que eu veria novamente – porque, quando o vi pela primeira vez, aos 17, me parecei muitíssimo familiar. Era como se eu tivesse assistido àquelas imagens desde pequeno, picotadas e reordenadas em outros filmes, em seriados, em anúncios de tevê. Mas, além da naturalidade como filma um tema que me deixava hipnotizado naquela época (a adolescência, o tema preferido de 90% dos adolescentes), lembro principalmente de um filme que corria na tela com uma leveza graciosa; tão adorável que, após a última cena, voltei o DVD para sentir um pouco daquela alegria novamente. Mas eu era um garoto na época; minha opinião sobre o que vi, portanto, não é lá muito confiável.
087 | Nós não envelheceremos juntos | Nous ne vieillirons pas ensemble | Maurice Pialat | 1972
Um filme que vi há pouco tempo, num período complicado de separação, e que veio a mim não como um espelho – apesar de ser um longa sobre um caso de amor degenerado, condenado -, mas como a imagem de sujeito velho, muito experiente, que precisava me dizer algumas palavrinhas cruéis sobre a forma como as pessoas às vezes se relacionam. A secura da trama me perturbou por algum tempo, tanto que acabei cancelando a ideia de uma revisão. As atuações me impressionam sempre que lembro delas. Hoje, depois do turbilhão, talvez eu veja um filme diferente daquele que vi: menos sobre a minha vida, mais sobre algo que diz respeito a mais gente, talvez a muitos de nós.
mostraSP | Dias 11 a 14
Aqui termina o meu diário da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Infelizmente (ou felizmente, dependendo do seu ponto de vista), são curtos os parágrafos sobre os últimos filmes que vi no festival. Tenho muito a dizer sobre cada um deles, mas pouco tempo. No mais, começo a achar que os posts desta série provocam certo cansaço até no leitor mais dedicado deste blog.
Portanto, rapidinho: as cotações ainda vão da letra D (de desagradável, digamos), à letra A+ (de absolutamente mágico, digamos). Além dos filmes que estão neste post, ainda assisti à cópia restaurada de Despair (1978), de Fassbinder, e à cópia encardida de Meu amigo Ivan Lapshin (1986), de Aleksei German. Não escreverei sobre esses filmes porque me sinto pequeno/burro perto deles. Logo após os comentários vocês encontram a meu top 10 da Mostra.
Fausto | Faust | Alexander Sokurov | A | Na primeira hora de projeção, a lenda de Fausto é narrada com a agilidade de uma aventura medieval. Parece o filme mais direto de Sokurov. Mas, ao enevoar progressivamente a trama, o cineasta nos mergulha no pesadelo do personagem – e, para quem não estiver disposto às comparações com a obra de Goethe, o filme pode ser visto simplesmente como uma caminhada para a perdição (por trilhas cada vez mais estreitas e difíceis), na companhia de um diabo cínico e encenada dentro de algums das imagens mais delirantes, mais impressionantes, que o cineasta já compôs. Mais ou menos como acontecia com o Tarantino de Bastardos inglórios, Sokurov cria o filme com a intenção quase declarada de compor uma obra-prima. Não acredito que chegue a tanto, mas não dá para acusar o diretor de negar fogo diante de ambições tão gigantescas. Resultado da odisseia: um filme acessível como nenhum outro do cineasta – e misterioso, estranho como qualquer um que já dirigiu. Escolha corajosa do júri de Veneza.
Caverna dos sonhos esquecidos | Cave of forgotten dreams | Werner Herzog | B | Um bom doc do History Channel, que cresce quando Herzog se livra das amarras do formato e divaga sobre as origens da arte. A exibição em 3D, adequada ao tema do longa, transformou o filme numa das atrações principais da Mostra de SP. Mas não é para tanto: ele não me parece singular ou forte, por exemplo, como um Homem-urso.
Um mundo misterioso | Un mundo misterioso | Rodrigo Moreno | B | Nada importante acontece, quase sempre graciosamente. Mais bem humorado e menos frustrante que O guardião, o anterior do cineasta.
Tudo pelo poder | The ides of march | George Clooney | B | Um conto político à americana: ágil, fun, um tanto simplório (e o título em português poderia ser Tudo por uma boa reviravolta de roteiro), but it works, it does. No elenco, todos os homens de Steven Soderbergh.
O dominador | Cho-neung-nyeok-ja | Kim Min-suk | B | Um super-herói boa-praça, um supervilão estressadíssimo, Coreia scores again.
Os contos da noite | Les contes de la nuit | Michel Ocelot | C+ | Animação com estilo (e Ocelot, tal como Sokurov, é dono de uma ilha visual absolutamente particular), mas o tom professoral/pedante da narrativa me afastou um pouco da brincadeira. E o gosto pelo exotismo, raso desse jeito, me parece uma boa intenção apenas superficial.
Projeto Nim | Project Nim | James Marsh | C+ | O diretor de O equilibrista acompanha a dura vida de um chimpanzé (submetido a pesquisas científicas e, por fim, abandonado) num doc cujo tema interessa mais que o formato: domesticado, quadradíssimo.
Periferic | Bogdan George Apetri | C | Um romeno especialmente romeno, sob medida para festivais de cinema. Na trama, tragédia pouca é bobagem.
Kaidan horror classics | Ayashiki bungo kaidan | Hirokazu Kore-eda, Masayuki Ochiai, Shinya Tsukamoto e Lee Sang | C | Combo televisivo (produzido pela NHK) cheio de limitações. O episódio do Kore-eda é o único que se salva.
País do desejo | Paulo Caldas | D | Momento vergonha-alheia da Mostra. Que diálogos são esses, Brasil?
Os 3 | Nando Olival | D | Cinema publicitário sem culpa (e sem rumo, sem graça, sem brio, sem razão de ser). Felizmente, dura apenas 80 minutos.
Desapego | Detachment | Tony Kaye | D | Um drama sobre o cotidiano em escolas públicas americanas que tenta chocar, tenta emocionar, mas só consegue ser tosco e infantil. Kaye, diretor de American history X, grita ao espectador lições que já conhecemos. Duas opções: encarar o filme como um Entre os muros da escola from hell. Ou abandonar a sala após a cena em que estudantes matam um gatinho a marteladas.
Top 10: Meus favoritos da Mostra de São Paulo
01. Isto não é um filme, de Mojtaba Mirtahmasb e Jafar Panahi
02. The day he arrives, de Hong Sang-soo
03. Fausto, de Alexander Sokurov
04. Histórias da insônia, de Jonas Mekas
05. Habemus papam, de Nanni Moretti
06. O garoto da bicicleta, de Jean-Pierre e Luc Dardenne
07. Irmãs jamais, de Marco Bellocchio
08. Era uma vez na Anatólia, de Nuri Bilge Ceylan
09. Girimunho, de Clarissa Campolina e Helvecio Marins Jr
10. Las acacias, de Pablo Giorgelli
Mixtape! | Outubro, o filme
A mixtape de outubro é a trilha sonora de um filme que eu não vi, que você não viu, que ninguém no mundo teve o prazer de ver – até porque ele não existe.
Se você lê o meu blog, sabe que outubro foi um mês em que escrevi muito sobre filmes e pouco sobre discos (ainda que eu tenha ouvido muitos discos, mas isso é conversa para outros posts). Por isso, resolvi criar uma mixtape que soasse como uma trilha de cinema. Sim, isso mesmo.
A compilação que vocês encontram a seguir (e espero sinceramente que vocês a ouçam porque, modéstia à parte, é a melhor de todos os tempos) reúne músicas de alguns dos meus filmes favoritos, faixas instrumentais, trechos de diálogos e, é claro (já que estamos falando de uma mixtape mensal mais ou menos igual às outras), faixas de discos recentes.
A trilha de um filmezinho imaginário, digamos.
Dedico este disquinho aos meus colegas de Mostra de São Paulo: Chico, Felipe (o Lahm), Michel, Diego, à minha namorada (Alê, e ela sabe que todas as mixtapes são um pouco pra ela), ao Leon Cakoff (que se foi neste mês) e a quem gosta dos filmes Drive, Mal dos trópicos, A viagem de Chihiro, Super-8, O poderoso chefão – Parte 2 e Os Goonies.
Difícil listar todas as músicas (e os artistas) que aparecem aqui (a lista de músicas está na caixa de comentários), mas tem Feist, Justice, James Blake, Radiohead (remixado por Jamie XX), The Caribbean, Jens Lekman, Desire e um monte de gente. São 16 faixas, mas que passam rapidinho (o CD dura 39 minutos; nem dói nem nada, garanto). E tem músicas das trilhas de Mal dos trópicos e de A viagem de Chihiro, atenção!
Como de costume, ele é embalado em dois formatos: você pode fazer o download do CD ou ouvi-lo aqui no site. Seria bacana se, após a audição, você deixasse um comentário sobre o disquinho. Mas, se o leitor for tímido, eu o compreenderei. Este é um mimo para cinéfilos e nós somos assim mesmo, uns bichos-do-mato.
Boa sessão.
Faça o download da mixtape de outubro.
Ou ouça logo aqui:
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