Mês: dezembro 2008
Merriweather Post Pavilion | Animal Collective
Pára tudo. Sério isso? Verdade? O melhor álbum de 2009? Mas jáááááááááá?
Não estou exagerando (se bem que, ok!, esse tipo de entusiasmo é sempre um perigo). Panda Bear, o mais paparicado do trio, já afirmou que trata-se de “álbum mais bem gravado” da banda. É pouco.
Se os discos anteriores eram maravilhas psicodélicas (continuo ouvindo Feels três vezes ao dia), o novo tem o peso e a relevância de uma tardia carta de intenções, de um resumo de carreira e, simultaneamente, de um largo (e, ao mesmo tempo, coerente) passo a frente. O Animal Collective fecha o foco para enxergar longe. E isso é ouro, meus amigos.
Mesmo quem tem asco do trio (conheço uns três) deveria pensar três vezes diante de um disco com… uma capa que deixa a gente zonzo, meu deus!
Sem gozações ou complicações: é, por qualquer ângulo, de qualquer perspectiva, da cabeça aos pés, o maior álbum da banda. E tenho dito. Se eu fosse você, o aceitaria como um estranho (e duradouro) presente de Natal.
Sei que este cedezinho não deveria ter me surpreendido desta forma. Disco após disco, o Animal Collective estilhaça a própria cartilha. Contra o rótulo de “freak folk”, trocaram os violões por um trator de ruídos duros (tente ouvir Strawberry jam em volume máximo sem dar entrada na ala de emergência do hospital). Contra a simplificação de quem os associam apenas ao espírito criativo das crianças, espelharam as responsabilidades da vida adulta em versos cada vez menos inocentes. Nesse caminho torto, Merriweather deveria parecer uma outra curva acentuada. Deveria.
Mas o que espanta aqui é o rigor como eles conseguem agregar, dentro de uma mesma atmosfera, muitas das experiências que apareceram nos discos anteriores – e ainda assim soar renovados, já que acentuam as estruturas de dance music como forte sustentação para o álbum.
Desde os primeiros discos (e com mais clareza em Person pitch, de Panda Bear), o Animal Collective está mais próximo da eletrônica que do rock. Mesmo quando picotava e colava acordes de violão. Em Merriweather, esse estilo chega a um estado de graça.
Está tudo aqui, em versões que parecem até definitivas. Na primeira faixa, In the flowers, Avey Tare identifica nos movimentos de um dançarino uma experiência mística (“Se eu pudesse abandonar meu corpo por apenas uma noite”, deseja o narrador). A melodia, lentamente, vai do ambient ao caos. Eis que papai Panda Bear, mais caseiro que nunca, irrompe na linda My girls, com uma síntese para os mantras domésticos de Person pitch: “Não me preocupo com bens materiais. Tudo o que quero é um lar para minhas meninas”, repete, repete, e repete.
Tão cedo, o principal tema do álbum está na mesa: contra a rotina mecânica de um mundo sem alma, a banda encontra refúgio no transe espiritual (ou lisérgico), no conforto do lar e na formação de uma comunidade de amigos. De certa forma, eles continuam a atualizar uma antiga filosofia hippie. Mas o interessante no Animal Collective (e neste disco em especial) é como, nessa fuga, ele constrói e habita um novo espaço musical.
Daí em diante, o álbum segue numa espiral de êxtase e desconforto. “Você também está assustado?”, eles desafiam, no corinho de Also frightened. Em Daily routine, Panda Bear lista atividades do cotidiano. E a delicada No more running parece um aceno distante para No surprises, do Radiohead: e um bilhete de despedida para um planeta sem eixo.
Tão agoniado e às vezes tão suave, como eles conseguem?
E esqueci de Bluish, a canção mais acessível que eles já gravaram? E Brothersport, a canção-testamento, e com ecos de tropicália? De tão rico em camadas e intenções, Merriweather Post Pavilion (o título vem de um tradicional palco ao ar livre em Columbia onde, nos anos 70, imperava o clima de jams comunitárias) exige diferentes interpretações – e aposto que haverá muita gente disposta ao desafio. Por aqui, e por enquanto, soa como uma verdadeira, sincera adaptação da psicodelia dos anos 60 aos ares confusos do século 21.
Nada pouco para um simples álbum de rock. 2009, desculpa aí, acabou de acabar.
Oitavo álbum do Animal Collective. 11 faixas, com produção de Ben Allen. Domino Records. 9/10
PS: Amanhã viajo para passar o ano novo no Rio de Janeiro. Enquanto dou uns mergulhos, o blog fica parado até semana que vem. Vocês nem vão sentir falta que eu sei. Desejo pra vocês, e pra mim também, um 2009 de boas vibrações. E que (façam figa!) eu consiga comprar uma estante pra sala ainda no primeiro semestre. Até!
Get guilty | A.C. Newman
Imagino que, nesta altura, Carl Newman não queira mais nada da vida. Comandar uma superbanda elogiadíssima como o New Pornographers, trocar idéias com a Neko Case, ser eleito o novo rei do power pop, casar-se com a diretora de marketing da Matador Records… O que está faltando? Plantar uma árvore?
Ok, brincadeirinha. O dia-a-dia de um homem bem-sucedido de 40 anos deve reservar (ou pelo menos deveria) angústias mais complexas que a decisão de vender o carro para financiar um apartamento.
Ainda assim, o novo álbum solo de Newman não deixa transparecer esse suposto dark side of the living-room. Se compararmos ao anterior, o entristecido The slow wonder, este sugere serenidade, paz de espírito, um tantinho de saudade dos bons tempos (quem não sente?) e o clima de um passeio no parque com o labrador.
Ou, para os mais cruéis, trata-se de um daqueles álbuns adoráveis-porém-desimportantes que chamam de ‘exercício de estilo’. Mas seria muita maldade com um dos tiozinhos mais simpáticos do indie rock.
Cada vez mais, Newman encurta as distâncias entre a carreira solo e o repertório do New Pornographers. Se o tom introspectivo de Challengers, do Pornographers, parecia uma seqüência do primeiro disco solo de Newman, Get guilty é, pelo menos em grande parte, um retorno ao power pop soltinho de Twin cinema. Cada faixa ganha um refrão gordo, um coro alegre e os versos absurdos (e abstratos) que o compositor escreve até dormindo. Tudo extremamente agradável.
E, quando faz o que sabe, Newman até aperfeiçoa a própria técnica, como na genial Submarines of Stockholm.
A diferença está nas (poucas) faixas que tentam um tipo de sentimentalismo confessional, meio sem jeito (mas convincente), um auto-retrato que rende declarações de amor como All of my days and all of my days off, composta para a digníssima esposa. Que é uma canção bonita, da forma como as baladas mais aguadas de Paul McCartney são bonitas.
“Agora te entrego todos os meus dias, e todos os meus dias de folga”, o gentleman promete, como uma espécie de compromisso apaixonado de casamento. É uma canção infinitamente fofa. E, mesmo que Newman não queira, também um tanto assustadora.
Uma vida mais ou menos ordinária, enfim.
Segundo álbum de A.C. Newman. 12 faixas, com produção de Phil Palazzolo. Matador Records. 6.5/10
Put the lights on the tree | Sufjan Stevens
Religiosamente, Sufjan Stevens mima os fãs com um mini-álbum de Natal. São disquinhos brincalhões, despretensiosos e, às vezes, tão indigestos quanto rabanada congelada. Não é o caso de Songs for Christmas vol. 8, que traz surpresas como a excelente Christmas in the room, um enfeite frágil e luminoso que merecia ter entrado num álbum “de verdade” do rapaz.
Infelizmente não existe ainda um videoclipe da música (a minha preferida deste fim de ano). No lugar dele, taí então Put the lights on the tree, de 2006 . Tudo como desculpa para que eu deseje um (er, que vergonha) Natal muito feliz a vocês quatro. Vocês merecem. Vocês são o máximo. E mandem um beijo pra vó. Por mim, ok?
Noble beast | Andrew Bird
Antes de se transformar num artesão do indie rock, o violinista Andrew Bird gravou três álbuns de influência jazzística, inspirados na sonoridade das big bands. Nós conhecemos os artistas que caminham do popular em direção ao erudito. Andrew fez o percurso contrário.
Ele se apaixonou pelo pop (por Radiohead e Jeff Buckley, num primeiro momento) e, em seguida, o pesquisou com a dedicação de um aluno aplicado. Os álbuns gravados a partir de The swimming hour (2001) registram essa descoberta, essa labuta, e soam um pouco como objetos de estudo.
The mysterious production of eggs (2005) e Armchair apocrypha (2007) tratam (com distanciamento) do rock barroco. Noble beast analisa o folk – e, às vezes na mesma faixa, encontra as conexões prováveis e improváveis entre Nick Drake, Radiohead e o Beck de Mutations.
Andrew não define uma hierarquia clara entre referências do passado e do presente, o que faz deste álbum uma delícia para o obcecado por música pop: Masterswarm, por exemplo, evoca tanto as melodias escorregadias de In rainbows quanto as orquestrações tristes de Five leaves left. A abertura, Oh no, começa toda pomposa, à Van Dyke Parks – mas acaba soando como uma homenagem aos arranjos econômicos do Shins.
E não dá para subestimar as letras rebuscadíssimas, que mesclam poesia hippie, expressões esnobes (que caíram em desuso) e delírios de ficção-científica. Em Not a robot, but a ghost, os versos de Andrew parecem brincar com os acordes. Uma ingênua zoeira eletrônica faz pano de fundo para a confissão de um robô (ou seria um fantasma?) que conhece decifra o código para terminar a guerra.
Andrew demorou mais de sete meses para lançar Noble beast. É mesmo um álbum de detalhes, de notas delicadas e etéreas, de letras precisas (provavelmente reescritas à exaustão), e que dedica atenção absoluta à atmosfera que costura as canções bucólicas, dedilhadas ao violão.
Se existe um grande problema é que, com 14 faixas, o modelo acaba se repetindo cedo demais. Mas, se existe uma grande qualidade, e que faz deste o melhor disco do compositor, ela está no modo como Andrew passou a se sentir confortável dentro desse pop cerebral, esse pop-maquete, esse pop de recortar e colar e estudar e recriar.
Ele constrói lindas canções a partir da criação dos outros. E, se você decidir enxergar beleza nessa brincadeira, Noble beast deixará de soar óbvio e começará a parecer um tantinho sublime.
Oitavo álbum de Andrew Bird. 14 faixas, com produção de Andrew Bird. Lançamento Fat Possum. 7/10
Crepúsculo
Twilight, 2008. De Catherine Hardwicke. Com Kristen Stewart, Robert Pattinson, Billy Burke e Ashley Greene. 122min. 4/10
Britney Spears, emocore, Lindsay Lohan, porntape, twitter, Gossip Girl: deve ser muito, muito complicado ter 15 anos de idade em 2008.
Daí que entendo perfeitamente por que tanta menininha está caída por Crepúsculo – o livro, o filme, a trilha sonora (tem Paramore!) e a marca de perfume. A protagonista, Bella, também se sente deslocada neste mundo cruel que a subestima, emburrece e, mais importante, não a compreende.
E válvulas de escape para a frustração adolescente sempre adotaram táticas mais ou menos sujas, né? Álbuns de heavy metal, livros de Stephen King, super-heróis atormentados e vampiros, sempre, muitos, sedentos, irresistíveis, os outsiders por excelência.
Três marcos da minha estranha juventude: Cláudia Ohana com dentes afiados e olheiras profundas, Winona Ryder toda lânguida em Drácula de Bram Stoker e Garotos perdidos.
Por isso sei do apelo de Crepúsculo. Já estive lá. Que garotinha inocente nunca desejou se apaixonar terrivelmente por um vampiro topetudo, obviamente metrossexual, empapado em pó-de-arroz e com aquela aparência blasé de me-sinto-bem-mais-velho-que-vocês? Que garotinho inocente nunca torceu para acordar com o visual de um integrante de banda de rock gótico?
É tudo tão simples! Perdoo o descontrole da menina da poltrona ao lado, que, durante a sessão do filme, não parava de elogiar para as amigas a suposta beleza incomparável e hipnótica de um ator que parece atado a uma máscara de pierrot.
A tendência é que, em dez anos, Crepúsculo seja encarado por esse público como uma lembrança tola. Já que, como filme de horror ou como filme de amor (e quase toda história de vampiros tem um pouco dos dois elementos), trata-se de um brinquedinho medíocre. Desculpa aí, meninada, mas o negócio aqui é de arrepiar o cérebro.
Até tentei encontrar alguma graça neste Romeu e Julieta from hell, mas essa tal de Catherine Hardwicke é osso duríssimo de roer. Se Aos treze era uma estocada de grosseria, aqui ela consegue conceber as cenas de suspense mais desengonçadas e toscas da temporada, sempre recorrendo a um fumacê medonho para evocar tensão. E há as florestas sombrias. Sempre as florestas, sempre sombrias.
Isto aqui pode ser encarado como tipo bastante inofensivo de filme B. Mas o complicado mesmo, pelo menos para mim, foi suportar a companhia da personagem principal, uma heroína entediada e aborrecida, encantada por um morto-vivo tão expressivo quanto uma lápide. Eles se merecem.
Mas ok, tá certo, esta nunca foi uma fase fácil da vida.
20 melhores filmes de 2008 (Parte II)
Antes de encerrar de vez esta saga (como se alguém estivesse muito preocupado com isso, tsc), aí vai uma rápida lista de filmes que viraram meu 2008 do avesso mas que, por não terem sido lançados no circuito de exibição, foram excluídos do top 20. São eles, os cinco (ou seis) outsiders:
1. Sonata de Tóquio – Kiyoshi Kurosawa 2. Aquele querido mês de agosto – Miguel Gomes 3. Diário dos mortos – George A. Romero 4. Boarding gate e Horas de verão – Olivier Assayas 5. Deixe ela entrar – Tomas AlfredsonTalvez vocês sintam falta de um filme chamado A espiã nesta lista de 20 favoritos. Ele entraria muito facilmente neste top caso não tivesse sido incluído, por descuido meu (e propaganda enganosa dos distribuidores), na seleção do ano passado. Espero que algo parecido não aconteça com o sexto colocado da nova lista. Se acontecer, minhas desculpas antecipadas.
10. A fronteira da alvorada – Philippe Garrel
O cinema de Garrel não é narrado no pretérito perfeito: são poemas sobre a forma como ele, o passado, atormenta o tempo presente. Daí que, apesar das diferenças superficiais, A fronteira da alvorada conversa de igual para igual com Amantes constantes – dois filmes que borram fronteiras entre o antigo e o novo, o sonho e a realidade. Juntos, são um mundo de ilusões em preto-e-branco.
9. Wall-E – Andrew Stanton
Na primeira metade, um filme mudo da era digital. Na segunda, uma ficção-científica apocalíptica com verve crítica herdada de um Stanley Kubrick (talvez filtrado pelo sentimentalismo de Spielberg, mas nada preocupante). Entre um pólo e outro, um herói solitário que talvez não encontraremos nos filmes mais recentes de Hayao Miyazaki. O último romântico. Em uma animação que guardarei para mostrar aos meus netos.
8. Leonera – Pablo Trapero
O novo de Pablo Trapero talvez não provoque reações tão imediatas quanto os primeiros colocados desta lista, mas é um filme tão maleável às incertezas e aos mistérios da vida que talvez seria melhor admirá-lo por uma luz diferente. Neste pequeno filme, Trapero retrata uma situação pouco conhecida (a vida das presidiárias grávidas) sem esconder todas as questões morais envolvidas num certo ambiente. Há os que cineastas que preferem defender uma posição: Trapero filma a dúvida, o dilema incontornável, a contradição.
7. Paranoid Park – Gus Van Sant
Antes de voar alto na bolsa de apostas de Hollywood para o Oscar 2009, Van Sant filmou um conto de juventude que não teria chance alguma de disputar estatuetas. Azar da Academia. Paranoid Park talvez o filme mais positivamente juvenil do cineasta, já que aberto para a descoberta de experiências audiovisuais (o clipe, a videoarte, o cine-poema, o thriller) e para o imprevisível – aliás, onde mais encontraríamos um bate-papo imaginário entre Elliott Smith e Dostoiévski?
6. A bela Junie – Christophe Honoré
O lado B de Canções de amor também é uma ciranda amorosa, mas narrada como uma canção de Nick Drake. Em tons de azul, tomado por sentimentos barrocos, inspirado numa antiga história de amores cruzados (transposta para os corredores de um colégio francês do século 21), feito para a televisão, é o filme em que Honoré finalmente nos convence de que prestar reverências explícitas a François Truffaut nem sempre pode ser considerado um pecado – neste caso, o próprio Truffaut teria se orgulhado de provocar esse tipo de frio na espinha.
5. A questão humana – Nicolas Klotz
Muito mais que um ensaio provocativo sobre as relações entre os métodos nazistas e os padrões de relacionamento numa grande corporação (ainda que elas existam, argumenta o filme), é uma reflexão tão corajosa sobre as tragédias e traumas do século 21 – e, como em Garrel, sobre um passado que não nos abandona, não nos deixa em paz – que o tamanho das intenções de Klotz superam as eventuais quedas de ritmo da narrativa. E existe ator mais completo que Mathieu Amalric? Um passo para trás, Paul Thomas Anderson.
4. Sweeney Todd: o barbeiro demoníaco da rua Fleet – Tim Burton
Ou: um filme de Tim Burton e Stephen Sondheim, tamanha a qualidade da colaboração entre cineasta e compositor. Burton não se contenta com uma adaptação – ele praticamente se deixa engolir pelo anti-herói da Broadway, e o que nasce desse estranho cruzamento é um filme tão auto-referencial (há cicatrizes de Batman e Ed Wood) quanto estranho, talvez até por soar excessivamente agressivo, dentro do repertório do diretor. A seqüência final é a mais cruel do ano – e trata-se de uma superprodução.
3. Antes que o diabo saiba que você está morto – Sidney Lumet
Falando em crueldade… O retorno de Lumet ao mundo dos cineastas vivos é uma tragédia levada às últimas, terríveis conseqüências. Uma trama que poderia ter rendido um thriller esquemático (mais um filme sobre assalto frustrado?) é tratada pelo cineasta como uma questão de vida ou morte. Philip Seymour Hoffman e Ethan Hawke, excepcionais, entram no jogo com a entrega que o projeto exige. O resultado não poupa ninguém – e, se alguém procurava algo do gênero, taí um filme que machuca de verdade.
2. Onde os fracos não têm vez – Ethan e Joel Coen
Talvez um ano seja muito pouco para convencer os detratores dos irmãos Coen de que Onde os fracos não têm vez é, além de um belíssimo faroeste moderno, uma senhora encenação da cultura da violência nos Estados Unidos (e aí, meu irmão, favoritismo no Oscar e Queime depois de ler não facilitam a vida de ninguém). O que talvez decepcione quem abriu uma exceção para este filme é que ele não nega (pelo contrário, confirma) uma série de temas e obsessões que podem ser encontrados em longas como Fargo e Barton Fink. Mas, ao adaptar rigorosamente o livro de Cormac McCarthy, os Coen se viram obrigados a limar os tiques de um estilo que já começava a dar pinta de cansaço. Nunca soaram tão econômicos, concisos. Um detalhe. Mas obras-primas são feitas de detalhes.
1. Não estou lá – Todd Haynes
De tanto escrever sobre I’m not there, acho que lembro mais dos textos estabanados que escrevi (e das minhas defesas em voz altíssima) que do filme em si. Outro dia peguei um trecho na tevê, e percebi que talvez – talvez – eu não teria passado por uma sessão de hipnose. É o grande filme de Todd Haynes (e, quando falamos no diretor de A salvo, não estamos falando de qualquer um), e – mais impressionante que isso – um que consegue vencer o desafio quase impossível de travar um diálogo com a obra de Bob Dylan e deixar que o espírito dessa obra contamine a narrativa. Veja só: ainda há muito o que escrever sobre I’m not there.
*
Agora é a hora em que vocês comentam sobre seus filmes favoritos do ano e ficamos quites. Ok?
20 melhores filmes de 2008 (Parte I)
…E eu reclamando da dificuldade de montar uma lista de melhores álbuns do ano.
No fim de uma escalação complicadíssima, nada menos que 15 ótimos concorrentes ficaram no banco, a ver navios, excluídos (infelizmente) desta lista de melhores filmes de 2008. Não me peçam para fazer isso de novo (pelo menos não até o fim do ano que vem, por favor).
Primeiro, as regras da partida: só entram no top aqueles que estrearam no circuito de exibição brasileiro durante o ano. Isso significa que muitos dos meus favoritos da Mostra de São Paulo e do Festival Internacional de Cinema de Brasília (FicBrasília) ficaram de fora. Os outsiders ganham uma listinha à parte, que vocês lêem amanhã (não se pode ter tudo de uma vez só, ok?).
Antes dos melhores (e antes que eu finalmente concorde com a idéia de que esse tipo de balaio de gatos é mesmo uma sandice), fiquemos com a raspa da panela. Os cinco piores de 2008:
1. Um crime americano – Tommy O’Haver 2. Max Payne – John Moore 3. Antes de partir – Rob Reiner 4. Noites de tormenta – George C. Wolfe 5. A guerra dos Rocha – Jorge Fernando(Se bem que Espartalhões consegue ser mais insuportável que todos esses, mas prefiro não lembrar). Sem mais:
20. A última amante – Catherine Breillat
Catherine Breillat e Asia Argento numa bela lição sobre como sabotar as convenções de um romance de época. Pena que muitos críticos tenham preferido discutir a ausência de cenas de sexo explícito numa fase supostamente recatada da cineasta. É um filme ousado, que olha para a frente – mas não da forma escandalosa como esperávamos.
19. Nome próprio – Murilo Salles
Talvez com mais erros que acertos, Murilo Salles abre o diário desesperado (e desengonçado) de Clarah Averbuck como quem salta do precipício: a disposição de explorar um ambiente que desconhece faz do longa uma rara investigação sobre os mistérios da juventude. Como Averbuck, é um filme-impasse, à procura de uma identidade.
18. Shortbus – John Cameron Mitchell
Com esta comédia romântica de sexo explícito, Mitchell criou um Annie Hall para os inferninhos. A provocação pode parecer superficial, mas o que se esconde sob o choque é uma galeria de personagens que lidam com a paixão de forma mais calorosa, alegre e plausível que todas as castas encarnações de Meg Ryan.
17. Hellboy II: O exército dourado – Guillermo del Toro
Funciona menos como uma seqüência de Hellboy e mais como uma continuação para as obsessões de Guillermo del Toro, o cineasta que amava os monstros. Uma doce história de amor, uma coleção de brinquedos coloridos, um épico para fãs de RPG – e, por fim, o melhor filme de super-herói do ano.
16. Canções de amor – Christophe Honoré
Como uma canção pop que não se entrega de imediato, o musical de Honoré só me conquistou numa segunda audição. Aí me rendi à beleza escondida numa peça aparentemente trivial – algo exatamente igual às minhas primeiras experiências com Belle and Sebastian. E tem a leveza de um assobio.
15. Sangue negro – Paul Thomas Anderson
Ainda que eu não seja o maior defensor do épico de Anderson (ops: prefiro as questões existenciais do protagonista de Embriagado de amor), também fui soterrado pela impressionante ambição de um filme que encena Os Conflitos da América com a crueza e a clareza de um diagnóstico médico. Eu não veria novamente. Não é que acabei vendo?
14. Senhores do crime – David Cronenberg
De um filme de Cronenberg, melhor não esperar por um relato realista das tramóias da máfia russa. Sem estribeiras, o cineasta toma o factóide para compor um conto de fadas em torno de loucas disputas de poder. Brinde: uma inacreditável, hilariante seqüência de pancadaria num banheiro público.
13. 4 meses, 3 semanas e 2 dias – Cristian Mungiu
A história recente da Romênia pela janela lateral: a partir de um drama universal, e sempre grudado nas personagens, o cineasta permite que o espectador identifique uma atmosfera de constante opressão. Um ensaio até bem simples sobre o pânico, mas intenso e assustador.
12. Encarnação do demônio – José Mojica Marins
Solto novamente nas ruas, Zé do Caixão encontra um país estranho, brutalizado, sob o domínio do mal. Importante notar que o cinema de Mojica também mudou: auto-referencial e com um sorriso de gozação, ele só ganha ao tratar o personagem como um símbolo, uma grife da cultura pop brasileira. O clímax não poderia ter sido filmado em outro lugar que não num parque de diversão.
11. O nevoeiro – Frank Darabont
M. Night Shyamalan viu o fim dos tempos, mas Frank Darabont notou o apocalipse da civilização por uma lente ainda mais cruel. Um pequeno filme B com os ruídos e a fúria de uma tragédia grega. E, claro, um desfecho que ainda tenho medo de enfrentar no meu pior pesadelo. O horror.
Marley e eu
Marley & me, 2008. De David Frankel. Com Owen Wilson, Jennifer Aniston, Eric Dane e Kathleen Turner. 110min. 5/10
Marley e eu conta a história de um jornalista que escreve um livro sobre um cachorro e fica milionário.
Tá, minto, não é tão interessante assim: Marley e eu, o filme-do-Natal, conta a história de um jornalista que adota um labrador, tem filhos, muda de emprego e compra uma casa nova. E aí labrador… bem, não vou estragar a surpresa.
Não é sempre que encontramos uma produção ao mesmo tempo extremamente comercial e tão disposta a narrar as banalidades do cotidiano. Não li o livro, mas existe algo atípico num lançamento hollywoodiano conduzido por um cachorro burro e desengonçado, quase igual aos outros – sem traços humanos, sem superpoderes, sem frescurinhas de desenho animado.
Talvez essa mudança de perspectiva explique – pelo menos em parte, vá saber – o sucesso do livro autobiográfico de John Grogan. “O importante é narrar suas experiências, sua vida”, aconselha o chefe de redação, numa cena do filme. Na maior parte dos 13 anos de convívio com Marley, John escreve uma coluna de jornal sobre situações do dia-a-dia. O filme tenta recuperar essa atmosfera de crônica, de conversa informal.
Mas, para uma narrativa tão próxima dos personagens, soa como uma grosseria a forma como ela descreve o ambiente familiar dos Grogan. Parece conto de fadas. Taí um casal que não discute nem quando divide a cama para assistir a programas de tevê. Nas conversas, se expressam como crianças pequenas. E são jornalistas razoavelmente respeitados! O personagem mais plausível da trama é o próprio Marley, que pelo menos suja as patas quando sai para o jardim.
O que o roteiro de Don Roos (O oposto do sexo) e Scott Frank (Minority report) faz é sugerir imagens tão conservadoras quanto os desejos dos personagens – que se contentam com uma vida à comercial de margarina (ou, no caso, à mershandising de ração). A meia hora final, uma patada de sentimentalismo, é quase insuportável. Até eu, que trato o meu labrador como se fosse meu primo, não me deixei levar pela chantagem.
“Quanto mais conheço o homem, mais eu gosto do meu cão”, cantava Ataulfo Alves. Neste filme aqui, o cão parece mais vivo que os homens.
Melhores de 2008 | A lista da Pitchfork
E até que, no fim das contas, não foi uma surpreeeeesa. A Pitchfork entendeu que 2008 foi mesmo o ano do Fleet Foxes (e não me pergunte como isso aconteceu!) e presenteou a banda de Seattle com o primeiro lugar da lista de 50 melhores discos do ano. Os moleques devem estar se sentindo, como diria minha vó, feito pinto no lixo.
E nenhum susto entre os 10 mais. Quer dizer: TV on the Radio em sexto lugar é brincadeirinha, não?
1. Sun giant EP/Fleet Foxes – Fleet Foxes 2. Third – Portishead 3. Nouns – No Age 4. In ghost colours – Cut Copy 5. Microcastle/Weird era cont. – Deerhunter 6. Dear science – TV on the Radio 7. Vampire Weekend – Vampire Weekend 8. Saturdays=Youth – M83 9. Hercules and Love Affair – Hercules and Love Affair 10. Uproot – DJ/RuptureE tudo bem, tudo bem: eu vou ouvir com mais cuidado o álbum do M83.
Madagascar 2
Madagascar: escape 2 Africa, 2008. De Eric Darnell e Tom McGrath. Vozes de Ben Stiller, Chris Rock, David Schwimmer e Sacha Baron Cohen. 89min. 4/10
No ano de Wall-E, Madagascar 2 atraiu 800 mil espectadores brasileiros aos cinemas em um período de três dias. Foi a maior abertura do ano. Maior que a de Batman – O cavaleiro das trevas. Até agora, a arrecadação já bateu a casa dos R$ 7,5 milhões. Quase 60 vezes mais que a bilheteria de High school musical 3.
Um fenômeno. Que não consigo compreender.
Talvez isso sirva para aquecer o enésimo debate sobre o descompasso que existe entre o gosto da crítica (que desprezou o primeiro filme da série, fraquinho) e as preferências do público que lota salas de multiplex. Mas isso é bobagem perto do entusiasmo que este filme anda provocando.
Numa sessão lotada, eu testemunhei o caso de delírio coletivo. Na poltrona ao lado, um marmanjo de uns 45 anos chorava de rir. Na poltrona da frente, uma mamãe sensível caiu no choro diante do encontro entre o leão-pai e o leão-filho em plena África.
E eu me perguntando: será que é comigo?
Que existe uma crise criativa no ramo da animação de grandes estúdios, isso nem discuto. A Pixar é uma exceção num cenário de idéias requentadas e submissão burra a novidades tecnológicas. O formato digital acabou padronizando o gênero, que deixou de surpreender o espectador.Comédias como Shrek pareciam mais atrevidas que o X-Tudo servido por Hollywood. Já Madagascar 2, na tentativa de correr atrás do prejuízo, acaba muito semelhante a desenhos da Disney como O rei leão e Tarzan, com aquelas mensagens conservadoras sobre ritos de passagem, ciclos da vida e laços familiares.
Mas isso sou eu. Uma multidão, pelo visto, está satisfeita com o lanche em conserva.
Dizem que é superior ao primeiro, mas não consigo nem comparar direito. São filmes com objetivos diferentes. O anterior era galhofeiro, um besteirol desvairado (nem por isso esperto, porém) onde cabia até uma rave de animais (havia uma referência a ecstasy que chocou papais mais preocupados). Este agora tenta seguir um riscado mais tradicional, mais “família”, com uma narrativa que depende da adaptação do protagonista – o leão – às regras do ambiente onde deveria pertencer.
Se as animações da Dreamworks seguiam um caminho cômico, de nonsense e gozação, Madagascar 2 se rende ao padrão Disney de sentimentalismo tacanho (que volta e meia tira a força das produções da Pixar), da necessidade de passar uma liçãozinha de moral como antídoto para os momentos irresponsáveis da trama.
No fim das contas, não é melhor nem pior – uma outra forma de mediocridade, apenas isso.
Prospekt’s march | Coldplay
A crise tá pegando, então vá por mim: o EP do Coldplay é o presente de Natal de que você não precisa. Quase um par de meias.
Chris Martin – nessa altura uma espécie de herói romântico do pop de estação FM – comentou que este CDzinho de oito faixas ajudaria o fã a compreender integralmente o conceito do álbum Viva la vida or Death and all his friends. Como se fosse complexo.
Por aí, nas lojas, está saindo a R$ 19.
É um assalto. Faça as contas: das oito faixas do compacto, três derivam diretamente de canções que já conhecemos. Life in technicolor II adiciona vocais (dispensáveis) à instrumental que abre o álbum, Lovers in Japan é um remix quase invisível e Lost+ vem com a inexplicável participação de Jay-Z, que obviamente presta homenagens a Biggie e Tupac.
E há uma que não chega aos trinta segundos de duração. Só nisso já descartamos metade do mimo de Martin.
O que nos sobra não é tão ordinário, ainda que não adicione novos elementos – nem tons, já que Martin adora usar metáforas de cores – ao disco produzido por Brian Eno. Glass of water adota a típica de hits como Yellow (versos dóceis, refrão cheio de guitarras) e Rainy day, mais interessante, brinca de eletrônica (com um refrão que emula Lou Reed). As acústicas Prospekt’s march/Poppyfields e Now my feet won’t touch the ground são sobras de estúdio. Lados B. Sensíveis, delicadas e tal, mas duvido que passariam pelo crivo de Brian Eno.
O perigoso de lançamentos assim, pobres de tudo, é que o público tende a atentar para detalhes que talvez passariam despercebidos em outra ocasião. Por exemplo: o preciosismo do Coldplay se encontra mais na embalagem das canções (a produção está longe de valer só R$ 1,99, e os títulos são sensacionais de tão emo) e do CD (o encarte é caprichado) que no processo de composição. De tão desarranjados, os versos de Life in technicolor II soam como fluxos de consciência. E essa fixação pela frase ‘agora meus pés não vão tocar o chão’, hem?
Se existe um conceito forte em Viva la vida, não será desta vez que ele virá à tona. Talvez seria melhor perguntar ao Brian Eno. Ou, como fazemos com o presente pouco memorável, guardar este par de meias no fundo do armário.
EP do Coldplay. Oito faixas, com produção de Markus Dravs, Brian Eno e Rik Simpson. Lançamento EMI. 3/10
Lar doce obra
Talvez vocês não saibam um detalhe sobre meu apartamento: ele fica num canteiro de obras.
E haja obra. A três quadras estão construindo um shopping center. Um terreno em formato de retângulo é perfurado, entortado e implodido diariamente por máquinas pesadas. Parece que montaram uma mini-cidade lá dentro só para abrigar os pedreiros. Sem brincadeira. É gente.
Aqui do lado, no terreno que dá para a janela da sala, começaram a erguer um prédio residencial. Minha paisagem matinal é um rastro de barro com marcas de trator. O som dos pássaros é abafado pelo zunido fino do metal contra as pedras. Ontem saí da garagem e quase bati o carro num caminhão de cimento. “Olha pra frente!”, reclamaram. Eu pedi desculpas. Percebo que, por aqui, o intruso sou eu.
A rua estreita que dá acesso ao meu lar-doce-lar está enfeitada de faixas brancas e amarelas, que anunciam o imóvel “inacreditável”, “imperdível”, a “pechincha” da semana. Não são para o meu bolso. Nada é para o meu bolso. Com a crise financeira, então, perigo trocar meus rins por um jogo de toalhas de banho. Acontece que toda a minha vizinhança está à venda. Tenho a sensação de que habito um bairro que ainda não nasceu. A pré-história de um perímetro urbano.
Mas não estou me fazendo de vítima. Não. Não. Pelo contrário. Vocês não entenderam. Pode parecer incrível, uma tolice, mas estou achando é bom. Tudo aqui me agrada. Me sinto em casa. Acredito que nasci para isso – para viver num canteiro de obras.
Me integro ao ambiente com naturalidade: pela manhã, simplesmente não me incomodo com o barulho. Isso quando não percebo barulho algum. Ele não existe. É como se eu vivesse no meio do mato, ao lado de uma cachoeira, entre as montanhas, com as vacas e os cabritos. Um silêncio. Pensei até que essa sensação era coisa da minha imaginação – ‘a obra comendo tudo e você não ouve nada, Tiago?’ -, mas aí decidi enfiar minha cabeça no vão da janela e ainda assim necas. Uma paz. Os tratores mais aprazíveis do Distrito Federal.
Talvez seja um mecanismo de defesa do meu cérebro. Perdi a audição para obras. Perdi o mau humor para obras. As obras me afagam, sou amigo delas – é a vida se contorcendo, que delícia! E de imaginar que, nos últimos meses em que morei com minha família, eu acordava todos os dias às sete da manhã inconformado com um vizinho que derrubava paredes de madrugada. Era um inferno. É tudo psicológico, já dizia minha mãe. É tudo uma questão de referencial, já dizia meu professor de Física.
Deve ser. Referencial. Ao passar da condição de filho-da-mamãe para a de filho-sem-mamãe, algo bastante sério parece ter mudado na minha vida. E de uma forma tão veloz que ainda me assusta (e por isso eu talvez tente não pensar muito nisso).
Agora freqüento o supermercado semanalmente, troco lâmpadas, arrumo minha cama, levo o lixo para fora, lavo a louça, coordeno instalação de persianas, penduro a cortina do banheiro (que cai no chão logo em seguida – sou um desajeitado), faço meu café da manhã, compro meu suco de laranja e meu mate leão, pago as contas e só não reclamo do barulho do vizinho porque até agora ninguém pisou no meu calo. Mas inventem de pisar!
Apesar da soma de todas as atividades que nada tinham a ver com a minha rotina confortável, me sinto bem fazendo tudo isso. Como explicar? Hoje recebi a conta de luz com um sorrisão. ‘Como sou econômico!’, imaginei, todo orgulhoso. Bobagem? Isso se chama construção de identidade, meu amigo. A partir de hoje, eu, Tiago, sou oficialmente um sujeito econômico. Quem diz isso não sou eu, mas a Companhia Energética de Brasília (CEB).
Confiem nela.
O único problema que enfrentei até agora – e que diz muito respeito também sobre a minha identidade, o meu eu essencial ou seja lá que raios isso signifique – tem a ver com meu senso de decoração. Que é nulo. Isso foi uma decepção. Estou arrasado.
Até semana passada eu me considerava um homem de bom gosto, mais ou menos elegante, daqueles que nunca precisariam da ajuda constrangedora da equipe do Queer Eye for the Straight Guy. Mas aí entregaram a mesa da cozinha (branca, com estofado cinza), que não combinou nada com o sofá amarelo – que, por sua vez, destoou da poltrona marrom e da mesinha de madeira escura.
Mas o estopim da minha revolta foi a maldita persiana. Quando tive que escolher a cor, não hesitei: disse cinza, e fez-se o cinza. Ontem pela manhã, meu apartamento acordou com a aparência de um consultório de dentista.
Caí numa crise braba e besta: por que me deixaram escolher a cor da persiana? Ninguém olha mais por mim neste mundo? Onde está minha mãe? Onde está minha professora do jardim de infância? Onde está a Anistia Internacional? Onde está deus nessas horas fundamentais da vida? Depois comecei a me acostumar com a minha falta de tato para organização de objetos coloridos. Sou um desastre. Mas também um sujeito econômico, enfim. Não sei o que conta mais, sinceramente. Acho que fiquei no empate.
É que, por aqui, as coisas caminham numa sucessão de tentativas. Muitas delas equivocadas. Estou aprendendo comigo mesmo, e isso é lindo e terrível. Outro dia comprei lâmpadas (e quem compra lâmpadas sabe o quanto elas são caras) só para perceber que não era exatamente o produto que eu procurava. Tive que trocar a cortina do banheiro, já que não cabia no espaço do chuveiro. Essas e outras gafes que acompanham um novato no mundo dos habitantes de apês de um quarto – essa estranha fauna de pessoas que saem muito cedo e chegam muito tarde.
Daí que não me incomodo com as obras. Não mais. Contanto que continuem construindo, estarei bem. Não ficarei só. Já que eu mesmo, um tanto tosco, um homem sem acabamento, ainda não me sinto nada pronto.
Clipe: Blind | Hercules and Love Affair
Blind, do Hercules and Love Affair, ganhou a votação da Pitchfork de melhores músicas de 2008. Eu prefiro todos os outros nove colocados do top 10 (tem Machine gun, do Portishead, caramba). A idéia deve ser nos lembrar que Tim Goldsworthy (também produtor do disco do Cut/Copy) continua a imperar na preferência dos indies que curtem dance music. Ok, tá jóia.
E o clipezinho é bem mais-ou-menos, não? Parece até coisa do Cranberries.
20 melhores álbuns de 2008 (Parte II)
Antes de continuarmos, preciso lembrar de alguns ótimos disquinhos que ficaram (infelizmente!) de fora da minha lista dos 20 melhores. Sabe como é: nem sempre cabe mais um. Para vocês terem uma idéia de como a disputa foi acirrada, o último colocado (Offend Maggie, do Deerhoof) é um dos discos que continuo ouvindo insistentemente a cada trinta minutos.
Então, façam o favor de perdoar a ausência do Nick Cave, do Why?, do Los Campesinos, do Destroyer, do Atlas Sound, do Stephen Malkmus, do Fucked Up, do Of Montreal (deus! até eles!), do Bonnie ‘Prince’ Billy e de uma galera que quase-quase entrou na seleção que vocês terminam de ler agora.
E, antes que eu esqueça, aí vão os cinco melhores álbuns brasileiros do ano (ao contrário do que já aconteceu em outros anos, nenhum deles entraria no top 20 final. Páreo duro, filho).
1. Terceiro mundo festivo – Wado 2. Artista igual pedreiro – Macaco Bong 3. Donkey – CSS 4. Sou/Nós – Marcelo Camelo 5. Uma tarde na fruteira – Júpiter MaçãDe volta à programação normal…
10. In ghost colours – Cut/ Copy
Hercules and Love Affair? Entraria numa lista de 30 melhores do ano. Mas, na missão de adicionar sabores pop à dance music, ninguém acertou tanto quanto Dan Whitford. Mais que copiar e recortar referências, Dan toma as lembranças de canções baratas como plataforma para uma colagem sentimental que pode ser guardada na sua estante ao lado de Discovery, do Daft Punk, e It’s never been like that, do Phoenix.
9. Vampire Weekend – Vampire Weekend
O álbum de rock mais importante de 2008 (nem bem saiu da fábrica, já influenciava uma dúzia de novíssimas bandas) está longe da perfeição. Acontece. No papel, eles praticamente lideraram um movimento de indie rock global (e engomadinho, e irônico, e lo-fi etc). Na prática, trata-se da estréia mais econômica desde Is this it, do Strokes. As canções não são assim tão inesquecíveis quanto gostaríamos de ter encontrado – mas nem sempre se pode ter tudo, certo?
8. For Emma, forever ago – Bon Iver
Para um álbum de canções gravadas aos suspiros – como bilhetes de amor largados no matagal -, ainda espanta o alcance atingido por For Emma, forever ago. O sinal de fumaça de Bon Iver foi visto até na abertura do show do The National. O que ele tem? Sem os dotes vocais de Jeff Buckley ou as referências sessentistas de Elliott Smith, Iver ainda assim parece lapidar arranjos com navalhadas. Cada canção soa como a última chance – e, se a música pop depende desse tipo de sinceridade visceral, então taí: encontramos um trovador confiável para seguir.
7. Microcastle – Deerhunter
Bradford Cox não descansou em 2008: lançou um belo álbum de ambient (no projeto Atlas Sound) e passou a levar a sério o potencial pop do Deerhunter. Talvez nenhum fã da banda tenha esperado de Cox um álbum tão ruidoso e delicado (e, como se não bastasse, acessível) quanto Loveless, do My Bloody Valentine. Microcastle se aproxima disso – e, deitado numa nuvem de distorção, apresenta um band leader agoniado, com talento para habitar a história do rock e se apropriar de referências que mais o interessam. A aparência do próximo disco? Não me pergunte.
6. Get awkward – Be Your Own Pet
Uma história de perdedores: depois de lançar um álbum de punk rock deliciosamente juvenil, a petizada do Be Your Own Pet disse adeus ao mundo pop. O que fazer? Resta a esperança de que ninguém deixe a velocidade das coisas devorar este grande disco: contra a megalomania que reina no pop rock, a gangue encenou o entusiasmo – e a crueldade – adolescente em canções que ainda soam como crônicas escritas no calor do momento. E viveu intensamente a alegria de fazer parte de uma banda de rock. Um estrondo – enquanto durou.
5. Jim – Jamie Lidell
Muito já foi dito sobre os superestimados: bons álbuns que arrastam silenciosamente para as brechas de listas de melhores do ano e, quando nos damos conta, dominam as redações de dez entre dez revistas especializadas. Mas e os subestimados? Os discos que, vítimas de espancamento precoce, desaparecem na multidão de vítimas de comentários apressados. Sem o verniz experimental que se esperava dele, o novo álbum de Jamie Lidell foi tratado como uma descartável (e excessivamente polida) homenagem a ídolos do passado. Ouça novamente: no trabalho pop menos complexado do ano, Lidell faz uma ode sincera, mas não inocente, às canções perfeitinhas (hoje veiculadas em comerciais de margarina) que o ensinaram a amar a soul music. Captar a atmosfera dessas lembranças, eis o desafio. Só isso. E chega de dogmas.
4. Stay positive – The Hold Steady
A crônica dos meninos e meninas da América chega ao capítulo em que os amigos de adolescência, agora crescidos, decidem construir algo durante o verão. Não é tão simples: nesta seqüência sombria para a longa (e fascinante) série de filmes do Hold Steady, a morte ronda os protagonistas, que tropeçam em cadáveres na floresta (One for the cutters), se estapeiam (Slapped actress) ou se envolvem em casos de amor atormentados (Lord, I’m discouraged). A influência de Bruce Springsteen aos poucos é substituída por outra: John Cassavetes é o padrinho de um álbum de fúria literária – cinema indie norte-americano, como nos bons tempos.
3. Nouns – No Age
É pegar ou abandonar: a estréia do No Age (lançado na esteira de uma ótima compilação de EPs) talvez termine o ano como o álbum menos disposto à unanimidade. Nenhum, porém, foi tão incisivo. Largados num vendaval de ruídos que aponta tanto para o Sonic Youth dos anos 80 quanto para os primeiros álbuns do grunge, Randy Randall e Dean Allen Spunt viram do avesso a imagem reluzente de Los Angeles e apresentam uma cena que desloca o indie rock para um ambiente mais perigoso que as trilhas sonoras de seriados de tevê. Passado o susto, trata-se um álbum de canções construídas em mínimos detalhes – talvez o detalhe mais impressionante desta viagem insólita.
2. Brighter than creation’s dark – Drive-By Truckers
Vejam bem, não há nada de extraordinário aqui: um épico do country rock (se lançado em 1972, teria sido um baita álbum duplo) gravado por uma banda em processo de reconstrução, que ainda acredita num formato tido como “fora de moda”. Enquanto Wilco e My Morning Jacket buscam uma atualização via soft rock, o Drive-By Truckers preferiu gravar o clássico perdido do alt-country dos anos 90. Previsível que ninguém tenha dado tanta atenção ao disco (que, canção a canção, é mais robusto que qualquer Department of Eagles, por exemplo), mas Peterson Hood e Mike Cooley querem compor para um outro tempo, para outra América – de imaginação, de cinema. Não é à toa que o disco termine nos bastidores de um filme de John Ford. Uma imagem de dignidade para um álbum de pulso firme e alma lavada.
1. Dear science – TV on the Radio
Uma banda que tenta tudo (e sempre!) não deveria conseguir metade do que o TV on the Radio consegue. Mas cá estão eles, numa nova sessão de testes de um inesgotável laboratório pop. Depois de Return to cookie mountain, quem apostaria numa nova surpresa? Dear science é ainda melhor: o momento em que a fusão de afro-punk e rock progressivo (e o que mais?) atinge um impressionante ponto de fervura, muito perto daquilo que chamaríamos de pop. Só que ainda não: entre Ok computer e Billie Jean, o TV on the Radio tritura referências com um olhar curioso – e hiperativo – que, em última análise, diz muito sobre a forma ansiosa e descontrolada como passamos a consumir música. Para um álbum que se assume como uma carta à ciência – em defesa dos instintos, da irracionalidade -, nada soaria mais apropriado que uma intensa confusão. Dear science é esse maremoto.
*
Agora, até para não criar um climão de constrangimento, vocês poderiam revelar seus favoritos aí na caixa de comentários. Pode ser? Obrigado.
20 melhores álbuns de 2008 (Parte I)
Você já conhece a da New Musical Express, a da Rolling Stone, a da Spin e a da Uncut. Agora vamos ao que interessa, certo? Depois de um trabalho infernal para separar o joio do trigo, eleger favoritos, descartar fortes candidatos e (mais importante!) não trair a sagrada opinião desimportante do sujeito metidão aqui, consegui chegar a um consenso comigo mesmo e concluir esta incrível, imperdível, completa, integral e íntegra lista de 20 melhores álbuns de 2008.
Aos que também esperavam por um top de melhores músicas, desculpe decepcioná-los: este foi um ano tão bacana para esta velha e desacreditada forma de arte (o álbum!) que preferi me concentrar neles. Claro (e vocês estão certos), há belíssimas músicas empacotadas em discos que não têm nada de mais (exemplo: Hollow man, do R.E.M.), mas deixo esse trabalho para pessoas mais pacientes e qualificadas.
Antes de estourar o champanhe, pense aí comigo: quantos bons álbuns você ouviu em 2008? Eu selecionei uns 40, 50. Chegar aos 20 foi um processo infernal, acredite.
Se os álbuns são os zumbis da música pop, 2008 foi digno de filme de George A. Romero. Eles retornaram aflitos por sangue. Você também decretou a morte dos monstrengos? Então, meu amigo, não apague as luzes.
Taí a contagem regressiva, doa a quem doer. Amanhã tem mais.
20. Offend Maggie – Deerhoof
Sintonizado nos riffs secos do hard rock setentista (e um novo guitarrista), o Deerhoof embarca numa descompromissada fase de crescimento. Depois de um álbum de digestão acelerada, quse pop (o ótimo Friend opportunity), Offend Maggie é a tarde descansada e longa em que os adultos ensaiam na garagem.
19. London zoo – The Bug
Com um exercício de paranóia que só encontra paralelo nas sombras de Pre-millenium tension, de Tricky, Kevin Martin cria um álbum de dance music (fragmentado, a navegar entre tantas referências musicais) a partir das possibilidades do reggae – uma boa desculpa para transformar a pista num pesadelo.
18. Modern guilt – Beck
Ao lado do parceiro/editor Danger Mouse, Beck Hansen encontra o foco perdido na fase que seguiu Sea change (2002). Curiosamente, é o momento mais desiludido do nosso herói desde então – e a crise, para nosso desespero, não pode mais ser solucionada com o remendo de um coração partido. Hey, o que você vai fazer?
17. Visiter – Dodos
Tem a aparência do making of de uma obra-prima: despreocupados com a necessidade de afirmar uma identidade ou de forjar um conceito, o duo Dodos segue em várias direções num álbum que impressiona pela falta de vergonha na cara: tantas idéias, tantos acordes e lindas melodias. Aos quatro ventos.
16. You & me – The Walkmen
Um álbum de Frank Sinatra remixado pelo My Bloody Valentine? Estamos perto da sensação de doce desespero que o Walkmen encontra neste que, se não conta como o melhor trabalho de uma carreira irregular, merece ser lembrado pela coragem de bancar o tom excessivo de um drama romântico. Com a alma (e a garganta) rasgando.
15. Tha Carter III – Lil Wayne
Em um ano sem grandes eventos bancados pela (caduca) indústria fonográfica, um rapper desbocado e debochado provou que um verso hilariante às vezes vale mais que as pretensões épicas. E, vamos lá!, esta é uma superprodução com noção do próprio ridículo: tudo o que falta aos álbuns do Metallica, do Guns n’ Roses e do Coldplay.
14. At Mount Zoomer – Wolf Parade
Entenda como um tiro no pé: depois de se desdobrar em uma série de projetos paralelos (meu preferido: Sunset Rubdown), os canadenses evitam uma reunião festiva, se metem num pântano criativo e saem de lá com uma atualização do rock progressivo dos anos 70 que soa como um pedregulho. Susto.
13. Shapeshifters – Invincible
Das rodovias cinzentas de Detroit, Ilana Weaver narra o apocalipse do mundo capitalista. A trilha sonora para a crise econômica também é o álbum de hip hop mais provocativo do ano. À margem das paradas de sucesso (que preferem Lil Wayne), a rapper nos lembra que política e melodia podem se entender.
12. Third – Portishead
Um álbum com porte de acerto de contas: depois de uma pausa de dez anos, o Portishead cobra o direito de fazer arte para o século 21 – e não apenas de ostentar a condição de um símbolo soberano do trip hop. Por isso mesmo, é um álbum arriscado, às vezes frustrante, que tateia novos caminhos a partir de um conceito simples: o eixo da banda está na voz de Beth Gibbons. O resto é aventura.
11. Fleet Foxes – Fleet Foxes
Uma banda de rapazes que gostam de cantar: a definição da Sub Pop para uma maiores revelações de 2008 é tão modesta quanto verdadeira. Combustível do som aéreo do Fleet Foxes, o canto (e o convite para que cantemos juntos) é o elemento que explica o espírito grande de um pequeno álbum indie. Adoça o novo folk rock sem perder a força bucólica essencial do gênero.