Mês: março 2009
Che
Che: part one, 2008. De Steven Soderbergh. Com Benicio del Toro, Demián Bichir, Santiago Cabrera, Rodrigo Santoro e Catalina Sandino Moreno. 129min. 6/10
Cheguei ao desfecho de Che com a impressão de ter visto uma reconsituição técnica (e nada mais) para uma tema cujo lado subjetivo, emotivo, foi subestimado. É um filme sobre como Che Guevara contribuiu para a Revolução Cubana. E não sobre quem é o homem, ou o guerrilheiro, ou o mito, ou o pop star. Ou a estampa da camiseta.
Eu esperava um pouco por isso, acostumado que estou ao cinema de Steven Soderbergh. Filmes como como Onze homens e um segredo e de Traffic já demonstravam esse fascínio do diretor por reconstituir, etapa por etapa, friamente, mecanicamente, o funcionamento das coisas. Um golpe no cassino, o mercado das drogas (ou do petróleo, em Syriana, que produziu), os procedimentos de uma guerrilha, a forma como a mulher comum confrontou o “sistema”. Ele transforma tudo num esquema, numa maquete, num organograma.
É o cinema-infográfico.
E daí? Reconheço o esforço de Soderbergh. Ele me parece um cineasta comprometido com um olhar. Che é, para o que propõe, competente. Digno (e não apenas pelos diálogos em espanhol). Um filme de ação, no sentido puro do termo. Que admiro (pela ambição, talvez), ainda que de uma forma estritamente racional.
O Che de Benicio del Toro diz muito sobre o nosso tempo. É um idealista politicamente incorreto. Entendo o conceito. Até concordo com ele (e é corajosa a forma supostamente ‘jornalística’ como Soderbergh tenta vender o herói anti-imperialista para um público norte-americano esperançoso com a vitória do Obama). Mas está metido num cinema que parece observar seres humanos como pequenas peças de uma engrenagem (política, social, sabe-se lá). Não seria um paradoxo?
É uma forma de olhar o mundo. Me rendo. Se eu me afastar consideravelmente do que sinto pelo filme, encontrarei muitas qualidades. A forma como Benicio del Toro se deixa perder no personagem (e reparem como não há nenhum momento-Oscar, o ator está integrado ao elenco e ao ambiente). O detalhismo obsessivo da reconstituição de época nas cenas em preto-e-branco (um documentário fake). A secura das cenas de violência, que tentam escapar a todo custo da banalização das situações (este não é um filme de Hollywood, grita o diretor, é um documento histórico).
Bem. Eu não acredito que pessoas entrem em blogs banais feito o meu em busca de bulas de remédio. Por isso, desculpem-me o tom impressionista da coisa: apesar de cumprir perfeitamente uma série de requisitos formais (que às vezes não dão em nada, há!), o Che de Soderbergh está longe, muito longe de chegar à alma do personagem. É, no máximo, pele e suor.
(Aí você argumenta, com toda a razão: talvez o filme não queira chegar à alma do personagem)
O que me desconcerta (para o bem) é como Soderbergh me parece bastante honesto na defesa dessa aparência de precisão. O cinema da exposição de fatos, digamos. Guevara é descrito como um líder virulento, violento, cruel (já que tortura os “traidores”), sedutor e íntegro. O formato da narrativa beneficia a composição de um personagem contraditório. O filme encara este Che-simbólico sem tomar partido. Não interessa julgar o personagem, mas tentar compreender um método, um pensamento.
Dividido entre o corpo de Che e suas ideias, o filme parte-se em dois: as cenas coloridas acompanham o movimento do personagem; os flashes em preto-e-branco parecem listar frases de efeito associadas ao guerrilheiro. “Um verdadeiro revolucionário deve estar onde precisam dele”, “no capitalismo, vivemos numa jaula invisível”, “a qualidade mais importante de um revolucionário é o amor: à humanidade, à justiça e à verdade”, etc.
É um formato que combina com a mania de organização (de imagens, signos) típica de Soderbergh (em Traffic, a trama latina era filmada num amarelo estourado, enquanto a norte-americana vinha por um filtro azulado meio friorento). Mas essa mesma organização excessiva penaliza os personagens (que parecem fantoches; tente descrever em duas linhas algum coadjuvante) e as situações (tudo arrumadinho, clean demais).
Um aluno aplicado, mas mal tenho curiosidade de assistir à segunda parte (dizem que é uma espécie de A paixão de Che, tomara que não).
Então vá ver Che, é um bom filme; mas não me convide para repetir a dose. Ontem estava admirando a estante da sala e percebi que nunca comprei um DVD do cineasta, unzinho sequer. Agora finalmente entendo o porquê.
Simplesmente feliz
Happy-go-lucky, 2008. De Mike Leigh. Com Sally Hawkins, Alexis Zegerman, Eddie Marsan e Samuel Roukin. 118min. 7/10
Se eu trabalhasse numa livraria e fosse surpreendido por uma cliente como Poppy, a serelepe heroína de Simplesmente feliz, provavelmente agiria como o balconista das primeiras cenas do filme: lançaria um olhar entediado e desejaria silenciosamente que ela evaporasse na atmosfera.
Os aspectos irritantes desta professora de primário, vestida como uma Cyndi Lauper britânica em dia de promoção, deveriam soar agradáveis. Não deveriam? O senso de humor, a leveza com que encara a vida, a simpatia à toda prova. O chato (para mim, e para o balconista, talvez para uma grande parte dos espectadores) é que essas são qualidades demonstradas em excesso, exibidas em fast-forward. Poppy é feliz demais.
Quando entra na livraria, ela vai logo à seção de livros infantis. Para curar-se de ressacas, cria máscaras de papelão para as criancinhas do colégio. No clima tenso de uma aula de flamenco coordenada por uma professora maníaca, solta risadas. E isso nos incomoda. Nós, os melancólicos de plantão. Nós, os pessimistas. Nós, os que compraram binóculos para assistir ao apocalipse.
Mike Leigh sabe disso. E sabe melhor do que nós. Numa entrevista recente, ele admite a intenção de compor uma personagem que, de tão otimista, provasse estranheza. Numa primeira impressão, Poppy é o arco-íris extravagante de neon que estraga nosso dia. A intenção do cineasta que, lentamente, nos aproximemos dela. E, aos poucos, entendamos a forma como ela vive. E (quem sabe?) elogiar a coragem da atitude.
Comigo funcionou. Depois dos primeiros 40 ou 50 minutos de projeção, os tiques de Poppy passaram a soar – se não apaixonantes – menos ingênuos do que eu imaginava. A graça do filme está aí – e é bastante sutil: a cada sequência, Leigh adiciona elementos ao perfil da protagonista, até torná-la plausível. Até dá-la razão para ser do jeito que é. Sorte que ele dialoga com uma atriz como Sally Hawkins, pronta a encarar a personagem por inteiro. É uma interpretação tão detalhista quanto a direção de Leigh.
Como em Naked e Segredos e mentiras, o diretor vê o ato de desenhar os personagens como a espinha da narrativa. O filme é nada mais que a rotina de Poppy. Por isso a dificuldade de colocá-lo no papel. Quem sairá de casa para assistir a um filme sobre uma mulher tão comum, que trabalha, vai a festas, namora, conversa com a melhor amiga e aprende a dirigir? Ainda assim, seria a forma mais honesta de descrevê-lo.
Não que Leigh defenda radicalmente essa opção. O filme precisa de certas muletas para manter-se de pé, e a mais frágil delas narra o óbvio contraste entre Poppy e um professor de direção severo e paranoico, a um espirro do colapso nervoso. A situação-limite nos ajuda a compreender o esforço exigido pela decisão de encarar o mundo por uma lente rósea. Mas me parece esquemática dentro de uma narrativa tão (cuidadosamente) solta. Eu preferiria simplesmente seguir Poppy enquanto ela dá aulas – e aí o filme sairia uma espécie de de Entre os muros da escola com os tons cômicos de um seriado de 30 minutos produzido pela BBC 2.
Apesar dessas e outras facilidades meio manjadas (Leigh volta e meia imprime um quê melodramático às rotinas de pessoas comuns, vide Agora ou nunca), o cineasta deixa que a narrativa ganhe um tom de “filme de verão” bastante adequado à personagem. Um tom consciente, não tão instintivo quanto daria a entender – mas quem disse que Poppy é feliz por acidente?
Living thing | Peter Bjorn and John
O terceiro álbum do trio Peter Bjorn and John, aquele do hit Young folks, chama-se Writer’s block. Mas é o novo, Living thing, que merecia o título. Um disco de crise. Provavelmente provocado por um bloqueio criativo daqueles que arrancam pedaço.
As angústias de astros pop sempre nos parecerá risível. Deve ser tããããão triste passar madrugadas autografando cadernetas cor-de-rosa de menininhas emocionadas, né mesmo? O que dizer do momento em que uma multidão de fãs canta o refrão que você compôs enquanto cortava as unhas do pé? Um martírio.
Ainda assim, eu não queria estar no lugar de Peter Morén, Björn Yttling e John Eriksson. Não. Uma coisa é fazer sucesso planetário às custas de videclipes grandiloquentes, hits produzidos por Kanye West e poses autoirônicas em revistas de fofocas. Outra é estourar nas paradas com uma canção que destoa de quase tudo o que você já gravou.
Bingo.
Quem ouviu Writer’s block do início ao fim (cerca de 40% dos fãs de Young folks, aposto) entende a situação: é um oceano de melancolia shoegazer com algumas ilhotas pop. A partir daí, a banda tinha a opção de faturar em cima do hit e compor mais 12 canções para levarmos no assobio. Ou de seguir em frente (e é o que fazem).
O álbum seguinte, Seaside rock, era o típico projeto experimental criado para adiar as pressões do fã-clube: influências literárias disparadas num idioma árido, lembranças de infância narradas como sonhos desfocados. Nada fofo. De certa forma, a introdução perfeita para Living thing.
Que é um álbum que manipula elementos do pop e do rock, não duvide. Mas decididamente novo, pelo menos para os padrões do grupo. Se você reparar, Writer’s block já indicava essa inquietação. Cada faixa, apesar da névoa de romantismo demodé, abria uma nova possibilidade sonora (e é possível dizer que, sem essa fome de renovação, eles nunca teriam conseguido criar algo tão familiar e ao mesmo tempo tão alienígena quanto Young folks).
Ao arrancar da banda as próprias barras de sustentação, Living thing vai ainda mais longe: troca a doçura adolescente pelos ritmos duros de base percussiva que passa feito um trator por canções às vezes até rancorosas, mas que não perdem um senso de humor fino, sarcástico e autodepreciativo. “Sou um Picasso do período azul, pendurado na parede, no meio de um hall em Barcelona, tentando imaginar como descer dali. Esta solidão está me deprimindo”, cantam, em Blue period Picasso.
“As coisas não estão funcionando como deveriam, mas pelo menos estão funcionando”, confessam, na honesta-de-doer Stay this way.
É uma mutação que já podia ser identificada no DNA dos primeiros singles do disco, Lay it down e Nothing to worry about. São canções quase mecânicas, dançantes, compactas e poderosas, que aproximam mais de um hit antigo da Björk (Army of me, vai) do que das manhas agradáveis que esperamos de uma típica banda sueca. Tudo mudou, eles avisam.
E avisam didaticamente na faixa-título, The feeling (que abre com o minimalismo à krautrock, com palmas robóticas e ruídos esparsos). “É fácil fazer com que as coisas acabem. Por favor, prepare-se para uma mudança.”
Há algo no ar poluído desse álbum urbano, superpovoado (por referências, traumas, crises sentimentais), ruidoso. A faixa seguinte, It don’t move me, nos leva para o dance rock saltitante do New Order, fase Republic. Mas os versos estão mais para Joy Division: “Os livros e revistas não me emocionam mais. Leve-os para longe.” Já Join the past, logo em seguida, tem um refrão que soa como uma atualização para The river, de Brian Eno. É o início da brincadeira.
Que, mais adiante, passa por uma espécie de afropop (Living thing) e por algumas daquelas canções de amor agoniadíssimas que só eles sabem compôr (I want you!, Stay this way e Last night). Antes, I’m losing my mind soa como uma versão em marcha lenta para She drives me crazy, do Fine Young Cannibals.
É frequente a sensação de que a banda tateia no breu, experimenta referências para descartá-las em seguida. Que não sabe o que fazer com a própria insatisfação. Talvez por isso o disco se aproxime menos da ruptura de um Kid A (consciente, sólida) que da aventura torta de um 13, do Blur (mais escorregadio, ainda fascinante).
Mas o título não nos engana: Peter Bjorn and John deram luz a um organismo vivo. E ele está à solta.
Quinto álbum de Peter Bjorn and John. 12 faixas. Lançamento Wichita/Almost Gold Recordings. 8/10
2 ou 3 parágrafos | O visitante
Eu estava pronto para descartar O visitante (6/10) quando fui contrariado por um elemento-surpresa: raro é o filme capaz de ressaltar com tanta convicção a bondade dos personagens. Thomas McCarthy volta a câmera para a generosidade – e o faz delicadamente, sobriamente, sem soar como um menino inocente e choroso de dois anos de idade.
É um traço que, para mim, compensa a inconsistência do projeto. Apesar de simpático e tudo, é um filme inconsistente. O cineasta é daqueles que ficam em cima do muro: filma economicamente, mas sem flertar com o minimalismo; controla a dose sentimental da narrativa, mas vive apelando para golpes baratos (há forma mais simples de tratar das tensões pós-11 de setembro que trancar dois estrangeiros e um americano dentro de um apartamento em Nova York?). Na falta de um estilo, McCarthy adota a estratégia-padrão do cinema independente norte-americano: é clean e nada mais.
Mas, acima do diretor, acima do filme que ele dirige, acima das mensagens de solidariedade (batidíssimas), há os personagens e os atores que os interpretam. Daí o mérito de Richard Jenkins, que, se excluirmos dois momentos-Oscar (o clímax e o desfecho), compõe um tipo complexo, já que tão sisudo e introspectivo quanto frágil, íntegro e, por isso, adorável. Não merecia a estatueta (Mickey Rourke, né), mas justifica a existência do filme.
No one does it like you | Department of Eagles
MTV? Nada. VH1? Pfff. Dirigido por Patrick Daughters e por Marcel Dzama, o novo (e fantástico) clipe do Department of Eagles foi lançado numa programação especial do Museu de Arte Moderna de Nova York. Lugar mais apropriado, impossível. E faz por merecer. Com tons surrealistas, e uma riqueza de detalhes que você não perceberá no YouTube, o vídeo transforma os pesadelos das guerras num musical perverso, à Tim Burton. E a música supera pelo menos umas cinco do álbum novo do Grizzly Bear.
Bromst | Dan Deacon
Quinze minutos do novo álbum de Dan Deacon e a sensação é dolorida: você acordou com 40 graus de febre, uma enxaqueca que parece perfurar as pupilas, pontadas no peito, dormência na coluna. No espelho do banheiro, descobre novos fios de cabelo branco enquanto repara que a cortina do banheiro não gruda mais na parede e o último tubo de pasta de dente foi adotado como lar pelas formigas. A chuva da madrugada ensopou a sala de estar e o pacote de pão guardado na geladeira, bem, o que você queria?, está mofado. O relógio encontra-se atrasado em trinta minutos. E isso significa o seguinte: você perdeu o compromisso do dia e não há como recuperá-lo. Começamos mal. Terrivelmente mal. E a tendência, meu amigo, é que as coisas piorem.
Mas aí vem uma voz miúda, ingênua de tão otimista, e te conforta. “Calma, tudo vai dar certo.” Você, estúpido, não acredita nela.
Bromst é um ótimo disco: inventivo, inquieto, cheio de tentáculos, um polvo elétrico. Aviso, porém, que a experiência não é mais tranquilas. Agora mesmo, decidi ouvi-lo em volume altíssimo, no som do carro, no longo caminho que separa a casa da minha mãe do meu apartamento. Tive que tomar dois comprimidos de Tylenol. Não é moleza. Não é exatamente agradável. Entendo perfeitamente aqueles que, na primeira overdose de ruídos, jogam a toalha e vão fazer algo mais saudável da vida.
O mesmo vale para o show do sujeito. É pegar ou largar. Os primeiros minutos são tão agressivos e caóticos, tão what-the-fuck, tão “mas que porra barulhenta é essa?”, que funcionam perfeitamente como um mecanismo de triagem de público. Os que ficam estão preparados para o que der e vier. Serão recompensados com uma performance verdadeiramente espontânea, vibrante, única (top 5 do Tim Festival do ano passado).
No palco (ou melhor: junto ao público, já que Deacon não é de formalidades), o DJ/compositor/provocador de Nova York chuta a fronteira que separa os artistas da plateia. Entenda como uma espécie de cartão de visitas: Deacon se apresenta, na lata, como “um de nós”. É um fã/consumidor/produtor de música adaptado ao ritmo frenético de uma geração que recorta, cola, dobra e recicla, não necessariamente nessa ordem. E que adora aparecer.
Nos discos, Deacon é o anfitrião de uma festa nonstop, mas que nunca existiria de verdade (você imagina passar uma noite inteira ouvindo o noise-furadeira do rapaz? Eu não). O álbum anterior, Spiderman of the rings, foi cultuado por pouca gente até porque, aposto, não foram muitos os que se aventuraram a abraçar um objeto tão pontiagudo. Que machuca. Que arranha os pobrezinhos dos nossos ouvidos sensíveis. Eis a ironia da coisa: Deacon assimila radicalmente a velocidade do nosso mundo; mas, para assimilarmos o som de Deacon, precisamos de algum tempo.
Paciência.
É que Deacon não está aí para padrões, fórmulas de gênero – não dá nem para afirmar que ele mescla isso com aquilo. É um som, em grande parte, aleatório, descontrolado, improvável. Spiderman of the rings parecia uma trilha de videogame e, ao mesmo tempo, uma demo de hardcore. Impossível classificar (é mais fácil, por exemplo, tentar apontar referências de uma banda barulhenta como Crystal Antlers, que pelo menos segue uma lógica interna, leia ali embaixo). Em Bromst, ele tenta um tom mais melodioso e algumas estruturas mais convencionais de canção (o que rende faixas até comoventes como a abertura Build voice), mas ainda não segura as rédeas da música. É a beleza do disco.
Que soa naturalmente atual. Quando Deacon arrisca uma atmosfera psicodélica à Animal Collective (como em Snookered), não temos o direito de imaginar o músico ao redor de uma fogueira, acompanhado dos amigos doidões. Nossa imagem de Deacon é e sempre será a do geek gorducho mixando arquivos de mp3 num quarto bagunçado. Daria para escrever alguns parágrafos sobre a forma como ele nos faz repensar o conceito (tolo) de autenticidade que associamos a certas bandas de rock. Sobre simulacro, pós-modernidade, etc. Mas não gastarei meu tempo: Bromst é um álbum que nos tortura até o momento em tentamos entender um método muito particular de mastigação de elementos do rock e do pop. Leva algumas semanas, mas é um esforço que compensa.
A dor de cabeça não passa, mas fica até parecendo que o estranho futuro do indie rock é este, o sol raiou, nos cegou e finalmente chegamos lá. Só uma impressão. Que passa. Mas que disco.
Álbum de Dan Deacon. 11 faixas, com produção de Dan Deacon. Carpark Records. 8.5/10
BÔNUS TRACKS
Tentacles | Crystal Antlers | 7.5 | Como clímax para o EP lançado em 2008, a estreia do sexteto californiano é um balde de gelo: os fãs certamente não esperavam (ou aprovariam) um álbum de esqueleto tão melodioso e acessível (exposto em faixas como Andrew). Na maior parte do tempo, soa como um You & me, do Walkmen, gravado na garagem de um fusca. Quanto mais tempo se investe no disco, porém, mais essa primeira impressão se mostra simplesmente preconceituosa. Não há nada errado quando uma banda tão virulenta tenta se apropriar de convenções do rock para colocá-las numa outra perspectiva – eu vejo como um esforço dos mais interessantes (e era o que me agradava nos primeiros álbuns do White Stripes). Jonny Bell vai rasgando os refrãos como quem enfrenta uma sessão de karaokê às duas da manhã. Mas quem rouba a cena é Victor Rodriguez, no órgão (a faixa de encerramento, com um quê de prog rock, vai do ambient à psicodelia). A lisergia do The Doors encontra a inconsequência noise do No Age – e tente imaginar por alguns segundos o quanto isso não é exatamente previsível.
Gran Torino
Gran Torino, 2008. De Clint Eastwood. Com Clint Eastwood, Bee Vang e Christopher Carley. 116min. 8.5/10
Depois de ter me frustrado razoavelmente com A troca (os textos sobre o filme me animam bastante, entretanto), eu estava um tanto cético em relação a Gran Torino. Tudo o que li parecia genérico demais. Uma síntese da carreira de Clint Eastwood? Um acerto de contas com Dirty Harry? Preferi cautela.
Na última cena, minhas expectativas pessimistas foram abatidas a golpes de picareta. Não é um velho filme de Clint Easwtood. E não é um filme sobre o velho Clint Easwtood. Talvez seja um filme de velho, no melhor sentido. Revela uma sábia simplicidade, como em Manoel de Oliveira. E precisão, como em Sidney Lumet.
O próprio Eastwood enruga a película, no papel de um homem velho. Walt Kowalski não fala, rosna. Os personagens secundários são desenhados com poucos traços. Se aproximam da caricatura, como um cenário desfocado por onde o herói transita. Quase uma paisagem. Um filme de golpes curtos, movimentos econômicos, substantivos sem adjetivos.
Li muitos elogios sobre as variações de humor da narrativa de A troca. Gran Torino me parece o oposto disso: compacto, exato e, por isso, impressionante. Nada sobra. Cada sequência tem um sentido muito específico dentro do filme. Podemos nos incomodar, por exemplo, com o retrato unidimensional da família de Walt – uma corja de interesseiros. Mas sabemos que Clint quis o filme exatamente daquela forma. Não há dúvidas.
Daí a clareza como o cineasta vai criando os pontos de contato com Os imperdoáveis (na estrutura à western), com Cartas de Iwo Jima (num discurso multiculural e pacifista, bastante explícito), com Sobre meninos e lobos (na reflexão sobre a cultura da violência), com Um mundo perfeito (na relação entre o velho e o menino).
Entendo quem trata o filme como uma espécie de resumo da obra. Mas o que me parece surpreendente é como as experiências acumuladas por Clint passam por um processo de refinamento. É como um compositor que vai reduzindo os excessos de uma canção. Um poeta que vai descobrindo a beleza do verso curto.
E é por isso, ou talvez seja por isso, que Gran Torino periga ser incompreendido. Por isso não é tratado como aposta para o Oscar. Por isso fica na surdina. Não dá para encará-lo como qualquer filme. O espectador deve fazer algum esforço (e quem quer fazer esforço numa sala de cinema?) para vê-lo da forma como é.
E este é um filme que, até nas imperfeições, não se esconde.
Radiohead em São Paulo
Assim que ouvi Ok computer pela primeira vez, acredito que por volta de agosto de 1997, tomei um susto tão grande que decidi dividir a experiência com meu padrasto. Fã de Kraftwerk e de Pink Floyd (cresci ouvindo sinos em volume máximo), provavelmente ele entenderia aquilo tudo melhor que eu. Lembro até hoje a reação desejeitada daquele homem grisalho, já turrão e (às vezes terrivelmente) cético: depois de um longo período de silêncio, o Mr. Sisudez se deu por satisfeito lá pela quinta ou sexta faixa. “É impressionante”, ele observou, quase cientificamente. “Se eu tivesse a sua idade, ouviria sem cansar.”
Ficamos nisso. Acredito que, depois daquela impressão animadora, meu padrasto nunca voltou a um disco do Radiohead. Como se, incapaz de acompanhar o galope de uma geração por ele desconhecida, preferisse manter distância das estranhas (e talvez maravilhosas) novidades cultuadas por meninos de 14 anos de idade. Como se dissesse: “ok, Tiago, agora você sabe o que sinto quando ouço The dark side of the moon.”
Duvido que me padrasto tenha assistido aos trechos do show de sábado em São Paulo, exibido na tevê por assinatura. Não o interessa. Posso dizer sem margem de erro: foi retrato de uma geração. A minha geração.
Provavelmente ele teria gostado do que vi (que, para mim, não vale menos que 10/10). A sensibilidade musical do meu padrasto, apesar de excessivamente seletiva (cinco ou seis bandas são o suficiente para mapear toda uma existência), foi moldada por um rock inventivo e atmosférico, ambicioso e monumental. Anos antes de Ok computer, mostrei a ele Nevermind e tudo o que recebi em troco foi um “tsc, o ser humano é um projeto que não deu certo”.
O show do Radiohead é ambicioso e monumental como eram os álbuns de rock progressivo dos anos 70. Mas também é catártico, emotivo e atormentado como o pós-punk do final daquela década. Há como identificar essa mão-dupla de referências em cada um dos álbuns da banda. Em Ok computer. Em Kid A (ainda que rarefeita). Em In rainbows (ainda que coberta por um bafo quente de soul music). Mas, no palco, essa equação se faz visível, reluzente, pulsando diante dos nossos olhos (deslumbrados, talvez cansados, talvez incomodados ou frustrados, mas hipnotizados).
É nosso reflexo. A imagem de quem viveu os anos 90 e seguiu se transformando até chegar aqui, no final da primeira década do século 21. Radiohead é, de certa forma, nossa história (minha e dos outros que o adotaram como trilha sonora para a adolescência). E, de outra forma, a história muito precisa de um período de transformações fundamentais para a música pop. Intencionalmente ou não, os ingleses refletiram o furor grunge (no hit Creep), a desilusão do fim de século (em Ok computer) e a fragmentação do pop via web (Kid A foi o primeiro grande filho do Napster) até antecipar a morte da indústria fonográfica (em In rainbows, distribuído de graça, independente de verdade).
A discografia do Radiohead pode sim ser encarada como um tratado para um mundo em transe. Você ouve Ok computer, por exemplo, e entende a crise econômica. Sério.
No palco, a banda tenta resumir essa ópera sem soar didática ou acomodada (a liberdade de criação é a bandeira que eles continuam levantando). Trata-se de um desafio e tanto. Dois dias antes, assisti a um show do Iron Maiden e tudo o que os velhos metaleiros conseguem (dignamente, para os padrões do metal; nada contra) é enfileirar canções conhecidas da forma mais plana possível, com um ou outro cenário engraçadinho – o que 90% das bandas praticam desde os anos 60. O show do Radiohead vai bastante além desse formato-padrão. É um espetáculo mais intrincado.
Assisti ao show com uma amiga que não conhecia nada além de In rainbows. No final da apresentação, virei-me para ela e disse: “Você acabou de ouvir tudo o que precisa saber sobre a banda. Isto é Radiohead.” Pouco depois, ouvi reclamações de fãs que queriam ter cantarolado hits de The bends. Mas faria algum sentido? A jornada do Radiohead não tem volta. Entendi muito bem que Creep, escondida lá no terceiro bis, era uma faixa bônus que, apesar de agradar aos fãs (e foi uma apoteose), destoa bastante da fase em que a banda se encontra.
A banda se jogou tão decididamente na própria aventura que muitos dos fãs ficaram pelo caminho. Natural. Conheço que deteste Kid A. Também sei dos que desprezam hits como High and dry. O show abraçou essas duas facetas, mas resgatadas a partir dos climas quase transcendentais de In rainbows (a iluminação é, por si só, obra-prima: engolida por tubos de luz, a banda toca literalmente dentro de um arco-íris). Uma banda na trilha do sublime.
Mais que isso: uma banda madura. Quem dera se toda maturidade soasse assim. O rigor técnico aliado à interpretação emotiva, a pompa de superprodução afinada à elegância do conceito (até as cores do telão, em meios-tons, impressionavam pelo detalhismo, pela finesse). Os sets que mudam a cada concerto, mas são sempre executados de forma impecável. Improvisos calculados, mas que soam vivos, doídos, frágeis. Thom Yorke é o Kurt Cobain que cresceu, entendeu os mecanismos da música pop e venceu o monstro sem desligar-se da angústia (e viver neste mundo continua difícil, com ou sem maturidade). Hoje, não há band leader que o supere.
O show de São Paulo oscilou do folk mais cru (a emocionante Faust arp, com dois violões e ponto final) à eletrônica mais cerebral (a geleira chamada Idioteque) – e cobriu uma série de etapas intermediárias entre um extremo e outro. As canções menos virulentas acabaram se destacando – com momentos arrasadores como Karma police, Fake plastic trees, Exit music (for a film) e Pyramid song -, interrompidas vez ou outra por espasmos de ruído (Bodysnatchers, The national anthem). Síntese do show e da carreira da banda, Paranoid android foi reconstituída com fidelidade absoluta – e agarrada pelo público, que fez coro, prolongou os versos, não quis soltar. Sete minutos que passaram como sete segundos.
No total, ficamos perplexos por cerca de 2h20. Pareceu pouco. Eu ficaria ali, de pé, apertado pela multidão, talvez de cabeça para baixo, por mais quatro horas (ouvir Lucky e Climbing up the walls assim, no susto, é de provocar parada respiratória). O golpe de misericórdia veio no final do segundo bis, com uma versão acelerada para Everything in its right place: as luzes vomitavam os versos da canção mais surrealista da banda, enquanto Thom Yorke ia desaparecendo lentamente.
Sabemos tudo o que precisamos saber sobre o Radiohead. O resto é mistério.
Em tempo 1: O mundo não acabou, mas a saída da Chácara do Jockey parecia uma cena de Fim dos tempos. Uma massa de gente, empurrada sabe-se lá para onde. “Parece até Eu sou a lenda“, uma amiga comentou. Nesse exato momento, por uma coincidência absurda, quase tropeçamos adivinha em quem? Alice Braga! Bastante simpática, aliás.
Em tempo 2: Os shows de abertura foram prejudicados pelo volume do som (que, no Radiohead, estava excelente). Los Hermanos fez um retorno correto (7/10), privilegiando lados B e faixas do Bloco do eu sozinho. O público estava tão animado que a banda soou mais alegre que de costume (e Rodrigo Amarante, mesmo aparentemente rouco, deu até pulinhos). O Kraftwerk (6/10) penou para se adaptar à arena, com um telão que mal ocupava metade do espaço destinado ao palco do Radiohead. O show é excelente, um dos melhores que vi na minha vida, mas se dá melhor em espaços menores, com som alto. Foi um aperitivo.
Em tempo 3: Depois de duas horas e meia tentando pegar um táxi (quase apelei para a estratégia de deitar no asfalto e me fazer de cadáver), vi a cor de um sanduíche de frango às 3h da matina. Acordei às 7h para pegar o voo e cá estou eu, um zumbi em pessoa. Morto mas feliz.
Paranoid android | Radiohead
Um guitarrista de uma banda de rock de Brasília, que entrevistei ontem, disse tudo o que precisamos saber sobre os shows do Radiohead no Brasil. Ele não é fã dos ingleses (aposto que prefere Primal Scream ou My Bloody Valentine), mas, quando perguntei se havia comprado ingresso, respondeu até com alguma irritação: “Óbvio, é uma das maiores bandas do século 20.”
Quem discorda? Impossível menosprezar uma apresentação do Radiohead. Não dá. É crime. Para o fã de música, de qualquer música, trata-se de um evento obrigatório (minto: para os fãs que estacionaram nos anos 80, recomendo o revival de Iron Maiden). Temos que usar traje esporte fino?
Numa rodada de entrevistas com músicos de Brasília – da geração que hoje tem 30, 35 anos -, foi impressionante notar como a banda é admirada até por quem nunca se interessou verdadeiramente por eles. Mais que influência musical, deixam uma lição de integridade que, por si só, justifica o culto. Quem mais conseguiu praticar tão radicalmente, e por tanto tempo, o sonho da liberdade de criação?
Teorizar sobre rebeldia é uma coisa – outra é lançar um single como Paranoid android (acompanhado deste clipezinho estranho aí, de Magnus Carlsson), sem refrão e quase sem nexo, para abrir os trabalhos de um álbuns violentamente machucado pelas tensões do fim de milênio.
Para mim, ainda parece um absurdo. Só de saber que eles vão tocar essa música, essa anomalia, essa obra-prima, daqui a alguns dias, ali na minha frente, dá frio na barriga. É como se o mundo estivesse para acabar. Se eu sobreviver, juro que tento uma explicação.
Now we can see | The Thermals
The Thermals é uma das bandas de rock mais objetivas que conheço. Não admitem papo furado. O álbum anterior, The blood, the body, the machine, de 2006, era uma fábula apocalíptica de punk rock ambientada numa América fascista, contaminada pelo fanatismo religioso. Isso tudo, em cores fortes; e, ainda assim, o disco durava 35 minutos.
Não sei se vocês lembram, mas American idiot, do Green Day, dura 57 minutos e soa tão assustador quanto um episódio de Smallville.
O disco novo, Now we can see, tem 34 minutos. E é um álbum com a ambição de falar sobre a morte. “Canções sobre quando estávamos vivos”, explicou o vocalista, Hutch Harris. As faixas se chamam When I died, We were sick, How we fade, You dissolve, etc.
Mas é impossível esperar uma sinfonia do tamanho de Funeral, do Arcade Fire, já que o trio parece incapaz de atos de grandiloquência. Por mim, tudo bem. O que eles provam, bem didaticamente, é que grandes temas podem caber em pequenas embalagens – sem prejuízo de impacto.
E é um belo disco – um que eu daria de presente para meu primo de 15 anos, se ele fosse fã de Green Day e NxFx. O Thermals revela muito sobre a preguiça de quem prega a decadência da face mais melodiosa do punk rock. O gênero que rende atrocidades à Fresno e NxZero é tratado pela banda como um brinquedo novo. Talvez por isso essas canções me façam voltar à adolescência – era isso que eu sentia diante daquelas bandinhas todas.
Now we can see é um álbum mais aberto e acessível que o anterior – o conceito não é tão rígido, e não há uma narrativa interligando as canções. Para a banda, a opção representa um perigo – sem idiossincrasias, eles poderiam muito bem se perder entre tantos grupos do gênero. Mas aí está o pulo do gato: faixas como When I died e Liquid in, liquid out se sairiam muito bem nas rádios, e ainda assim soam cruéis, perversas – uma espécie de morbidez adolescente em tom maior.
Dentro de um formato estreito (e econômico por excelência), o Thermals avança com passos curtos, mas firmes. At the bottom of the sea, a faixa mais longa do disco, tem uma força dramática capaz de sustentar o disco inteiro. Já You dissolve inclui notas de piano às guitarras, sem soar apelativo.
Será que estamos diante da gestação de uma banda pop? Pode ser. Eu não me incomodaria. Mas note a ironia: o disco mais convidativo do grupo é também o mais filosófico, e o primeiro lançado pelo selo Kill Rock Stars. De Elliott Smith e Sleater-Kinney, lembram? Pois o Thermals faz justiça a essa tradição.
Quarto álbum do The Thermals. 11 faixas, com produção de John Congleton. Kill Rock Stars. 7/10
The Spirit – O filme
The Spirit, 2008. De Frank Miller. Com Gabriel Macht, Jaime King, Eva Mendes, Samuel L. Jackson e Scarlett Johansson. 108min. 4/10
No blog de The Spirit – O filme, Frank Miller trata Will Eisner com Mentor (assim, com maiúscula). “Eisner quis criar algo novo, inteligente e exploratório. Foi isso que ele fez. É isso que estou fazendo”, escreveu, sobre a adaptação da HQ.
Comparações desse tipo dão a entender que existiu, no mínimo, um entrosamento de ideiais entre os estilos de Eisner, que morreu em 2005, e os traços de Miller, autor de Sin City, 300, Batman: ano um. Mas existiu mesmo? E em que sentido? (Algum fã pode me ajudar?)
Não conheço tão bem os dois ídolos das graphic novels. Estou de gaiato no navio, perdão. Porém, se houve esse tipo de comunhão, esta tradução de Spirit parece perdê-la completamente de vista. Até onde sei, Eisner é o arquiteto das metrópoles, cujos personagens (bastante vivos) convivem num ambiente de prédios, chuva e concreto – e, não raramente, são devorados pelos perímetro urbano. Já Miller me parece obcecado por conflitos chapados, dramas físicos, pela violência bestial que explode no mundo. Um me impressiona por uma elegância melancólica, discreta; o outro é um bruto.
The Spirit – O filme força o encontro entre Miller e Eisner. Não li a série original, mas existe uma tensão permanente em cena que deve interessar aos fãs dos escritores. E também um descompasso estranho, que faz do filme uma peça incompleta, fria, um projeto que não deu certo.
Admito que assistir à sessão foi uma experiência desagradável. Não provocada por excessos visuais e ambição desmedida (como acontece com Watchmen) ou pelo clima de matinê aguada (caso de Quarteto fantástico, digamos). Miller prefere o meio-termo – e como neva em Central City! Mas acredito que por não parecer uma homenagem fluente ou minimamente intrigante – para quem não leu a graphic novel, como eu, deixa até a sensação de que o gibi é uma enganação.
Não dá para ser injusto e reclamar da ausência de Robert Rodriguez (não imagino qual teria sido a extensão do trabalho de Miller em Sin City), mas fica muito visível o desconforto de Miller com o cinema. Sem intimidade com o meio, ele se cerca de efeitos visuais e adota uma encenação noir chapada (olha o estilo duro do sujeito aí), com muitos trechos monocromáticos e detalhes de animação – um formato que se aproxima demais de Sin City e, ao mesmo tempo, maltrata os personagens, tratados como caricaturas.
É uma transcrição bastante seca, desarranjada, quase um borrão. Nas primeiras cenas, Miller até consegue compor a atmosfera típica de Eisner (o herói morto-vivo declara amor à cidade decadente), mas não dá conta de tirar do papel quase nenhum conflito entre os personagens – e os vilões extravagantes, que deveriam provocar risos (ou sabotar a trama, sabe-se lá), provocam o efeito de uma ingênua comédia pastelão. Todo o miolo da narrativa é confuso, frouxo – a cada cena, dá para imaginar o mico que os atores pagaram diante da tela verde.
Vão dizer que Sin City já era mecânico assim. Não era. O mundo artificial de Rodriguez jogava o tempo todo com elementos do cinema e dos quadrinhos. O quanto de gibi tem o cinema noir? O quanto de noir tem o gibi de Miller? Eram essas as perguntas. The Spirit trata o experimento de Miller como uma fórmula, mas se contenta em construir um filme-gibi – falta vontade de cinema, mas antes disso, o diretor simplesmente não parece saber o que fazer com as câmeras, os atores, o texto e os efeitos.
Fiquei com um pouquinho de saudades de Zack Snyder, admito. E isso não está certo.
2 ou 3 parágrafos | Sua resposta vale um bilhão
Apesar de adotar uma estrutura semelhante ao livro de Vikas Swarup – a cada pergunta do game show, um novo causo é narrado pelo personagem principal -, Quem quer ser um milionário? é uma adaptação absolutamente infiel às tramas do original. O que é bom, por um lado (o filme dialoga com o livro, acrescenta algumas ideias); e um tanto incômodo (mas compreensível), por outro.
O complicado de engolir é a forma como o roteirista Simon Beaufoy deleta quase tudo o que existe de grotesco ou perverso no livro. O narrativa perturba por adotar um tom de fábula adolescente para empilhar contos que oscilam entre o pitoresco e o brutal (num dos primeiros capítulos, para ficarmos com um exemplo, um padre curra um menino depois de cheirar uma carreira de cocaína – e isso é só o começo). Em alguns trechos, lembra a franqueza de O rei de Havana, de Pedro Juan Gutierrez. Troque Havana por Mumbai e cá estamos.
Ok, não é tão visceral. No livro (7/10), há muitos dos truquezinhos apelativos que encontramos no filme (e o capítulo final, com surpresas melodramáticas à rodo, é de provocar vergonha alheia). Mas Swarup me parece mais digno do despudor de Bollywood – e da tradição indiana de contar histórias, lendas, fábulas – que o próprio filme de Boyle. E aí esbarramos numa curiosidade até engraçada: a figura do narrador, adaptado a um ambiente de violência a ponto de tratá-lo com bom humor, lembra bastante Cidade de Deus – o livro de Paulo Lins.
Superoito express (4)
The hazards of love | The Decemberists | 6.5 | O segundo álbum do Decemberists por uma grande gravadora é um daqueles projetos tão ambiciosos quanto falhos, mas que impressionam pelo escopo (e a Capitol Records não está sendo corajosa nem nada: em tempo de Viva la vida, deve haver um público pronto a abraçar esses complexos de épico). Colin Meloy, a dois passos de assumir o trono de Billy Corgan, narra uma fábula de amores proibidos, seres da floresta e tragédias violentas. Começa como uma homenagem ao folk britânico dos anos 60, termina com riffs à Led Zeppelin. Estranhamente, a banda nunca parece à altura do formato à ópera-rock que adota: no nicho, fica mais para Ben Folds Five e My Chemical Romance (criativo, mas inofensivo) que para uma jornada à Fiery Furnaces.
The law of the playground | The Boy Least Likely To | 6.5 | A calda açucarada de fofura pode provocar enjoo, mas o recheio é menos gorduroso do que dá a entender: o segundo álbum do duo britânico não repete a receita da estreia (resumindo: a banda saiu da garagem e conseguiu pagar por um bom estúdio), tem melodias que não apodrecem na terceira audição (algumas delas, como Whiskers, ganham sabor com o passar do tempo) e reforça a identidade do grupo, que compõe hinos delicados para velhos adolescentes. Tem senso de humor, apesar da polidez.
Two | Miss Kittin and The Hacker | 6 | Enquanto o Yeah Yeah Yeahs descobre o electro-rock, o segundo disco de Miss Kittin com The Hacker tenta livrar-se desesperadamente do rótulo. Não é tão fácil quanto parece. Ao contrário dos hits esqueléticos e safadinhos de First album, eles agora optam por climas mais pesados, com uma eletrônica que sufoca em vez de chocar (as duas primeiras faixas, The womb e 1000 dreams, passam dos cinco minutos; só a terceira, Pppo, decola). Um retorno bastante digno, ainda que pouco memorável – e a cover de Suspicious minds, do Elvis, parece deslocada, uma armadilha fácil demais.
Fantasies | Metric | 5 | Se a carreira solo de Emily Haines soa confessional o suficiente para fazer com que nos esqueçamos das referências óbvias (Fiona Apple + Cat Power), não posso fazer o mesmo sobre o Metric: não consigo encontrar nada na banda além de uma superfície sonora bastante fina, previsível e às vezes reluzente. Haines afirmou à imprensa que tirou férias em Buenos Aires para compor as novas canções: e daí o álbum abre com uma faixa que copia escancaradamente os trejeitos de Kim Deal (Help, I’m alive). Ou seja: ou eles querem apenas compor canções aptas para qualquer top 20, ou não sabem converter teoria em prática.
Superoito on the dancefloor
Eu não nasci para ser DJ. Talvez tenha nascido para escrever bulas de remédio, mas não para ser DJ. Por isso, na madrugada de sábado, eu mal conseguia encarar a pista lotada. “O que estou fazendo aqui?”, eu me perguntava. Fiquei olhando para o chão, envergonhado.
Não são poucos os momentos da minha vida em que me sinto uma farsa. Quando me convidam para participar de debates (sobre qualquer assunto; jornalistas supostamente entendem até sobre astrofísica), me pego tenso a desviar de perguntas que outras pessoas saberiam responder com mais propriedade. Quando me chamam para dar palestras em universidades, sempre imagino que não sou o mais adequado à tarefa. Que até posso parecer um tantinho interessante, que até posso contribuir em algumas discussões – mas muito pouco, quase nada.
Quase sempre me incomodo por acreditar que as pessoas me veem demais, em todo canto. Que eu escrevo em demasia. Que eu escrevo sem revisar. Que eu invento de opinar sobre tudo. E que eu deveria pensar três vezes antes de abrir a boca.
Por isso (mas não só por isso) admiro tanto minha namorada – ela não tem medo. Sem ela, eu provavelmente estaria congelado nas minhas incertezas. Sem ela eu não seria DJ.
E ser DJ, acreditem, é assustador. Percebi isso sexta-feira. Antes havíamos tocado em festas pequenas, para pessoas conhecidas, sem as formalidades do metiê (elas existem). Naquela noite, o assunto parecia sério. Meu nome no flyer, amigos na expectativa, pista repleta de rostos desconhecidos. Passamos a semana selecionando músicas, organizando e deletando set lists, bolando combinações e conceitos. Um trabalho.
Nos três dias anteriores à performance, a pergunta mais frequente era também a que parecia mais trivial: com que música abrir? Eu estava uma pilha. Pensava no perfil do público, no estilo dos outros DJs que estariam na festa e naquilo que esperavam de nós. O que teríamos de ser? O que eles queriam? Minha namorada parecia mais tranquila. Eu a invejava.
Na noite de sexta, meu nervosismo a contaminou. O período de concentração foi especialmente tenso. Inúmeros CDs eram gravados e regravados. Aos poucos, possibilidades de combinação começavam a aparecer. Também as divergências: eu queria Phoenix, ela não concordava tanto com isso; ela queria abrir com Velvet Underground, eu me preocupava com a possibilidade de esfriar a pista. Uma negociação infernal.
Nossa ideia era alternar faixas muito novas com outras mais conhecidas. Até como uma forma de demonstraramos nossa insatisfação (ou pelo menos a minha insatisfação, já que reclamo excessivamente de quase tudo) com DJs que só tocam hits de cinco anos atrás. Nesse ponto, concordamos. E em dois ou três outros: tocaríamos Paper planes, da M.I.A., We are your friends, do Justice, Steady as she goes, do Raconteurs, Omen, do Prodigy, e Zero, do Yeah Yeah Yeahs. Essas estavam fechadas.
Pouco antes de chegarmos à festa, começamos a nos incomodar com a falta de hits em nosso set. Daí saquei uma proposta apelativa: “vamos colocar Juicebox, do Strokes, logo no início. Aí a coisa pega.” Batemos o martelo – até o momento em que um outro DJ decidiu sacar Strokes para esquentar a pista. Pânico.
Um bom DJ entende que a vida não pode ser excessivamente planejada: nem sempre será possível atacar com a canção preferida. Minha namorada sabe disso; eu, por outro lado, sou o mané que tenta domar o acaso.
Quando subimos no palco, eu estava verde. Ela conseguia até dançar, de tão confortável com a situação. Abrimos com Steady as she goes e, daí em diante, a sensação foi a de entrar num daqueles brinquedos velozes de parque de diversão.
A cada passagem de música, o clima de suspense aumentava: chegaremos vivos até o fim do set? Grudar uma música na outra exigia alguma técnica – não é, definitivamente, tão simples quanto parece. Erramos duas ou três passagens, que provocaram solavancos nas caixas de som. Confundimos CDs. Quando inventei de incluir Phoenix na mistura, não encontrei o botão que aumentava o volume. Silêncio na pista. Um tantinho de constrangimento. Mas a montanha-russa já estava no loop seguinte.
O tempo de apresentação – 1h30 – não foi o suficiente para colocarmos em prática nem metade do que ensaiamos. Mas o resultado pareceu positivo. A pista encheu e continuou cheia. O set ficou variado (ainda que os momentos de maior entusiasmo da noite tenham vindo com Beautiful stranger, da Madonna, e o remix do Daft Punk para Take me out, do Franz Ferdinand), mas, quando tudo terminou, fiquei com a nítida impressão de que eu, Tiago, não havia sido responsável por nada daquilo. Imaginei até que minha namorada teria feito todo o trabalho sozinha, enquanto eu agonizava num quase coma.
No dia seguinte, tentei reconstituir as cenas, a pista, as expressões das pessoas, talvez para tentar entender o que elas sentiam, o que elas queriam, o que elas pensavam. Qual teria sido a nota da nossa atuação? Quanto valeu o show? Fizemos bonito ou passamos aperto? Não cheguei a uma resposta. Impossível. Talvez o drama dos DJs (se é que existe um) passe por aí: a excitação da pista cheia não é tudo, e não há quem avalie precisamente a performance.
Só que existe uma recompensa nessa história. Quando você escolhe a música certa no momento certo, e ouve um gritinho estridente de aprovação (daqueles que atingem frequências que só os cães conseguem assimilar), aí o dia está ganho. E o mês. Talvez a vida. Mas só para DJs inexperientes feito eu. É que, aposto, os que nasceram para isso não se deslumbram com essa estranha rotina.