Dia: abril 17, 2009
Zii e zie | Caetano Veloso
Confesso que não li, não leio o blog do Caetano. Não sou de blogs.
Não. Sinceramente, odeio blogs. Não tenho paciência para esse tipo de distração. Sabemos que nove entre dez blogs são redutos de amadores, antros de desocupados que se acostumaram a meter o bedelho em todos os temas, dos mais insignificantes às questões nobres da humanidade. Refúgio de cineastas iniciantes, escritores fracassados, colunistas sem poder de síntese, jornalistas em crise de identidade. O império do eu. O paraíso dos narcisistas. O templo de superficialidade. O Big Brother sem rostinho bonito, biquini cavado ou banho de piscina às onze da manhã.
Ok, mentira. Eu li e leio o blog do Caetano. Eu sou de blogs, vocês sabem. Quem pretendo enganar? (talvez minha mãe, que visita estas páginas duas vezes por ano). Mas reconheço a dificuldade crescente de defender o valor desse tipo de site. No mainstream, digo. Repare: não afirmo que exista algum valor, calma aí. Blogs são, oficialmente, um passatempo. Uma bobagem. Vivemos num mundo em crise, as baleias estão morrendo e as geleiras derretem — não devíamos perder tempo falando nesse assunto.
Ou não? O que mais em incomodou na cobertura da imprensa para o lançamento de Zii e zie não foram as recorrentes comparações entre Caetano e Radiohead, mas o desdém generalizado como tratam os blogs. Nas resenhas positivas, nos explicam que, apesar de ter se excedido num site banal, Caetano fez um bom disco. Nas negativas, comparam o CD ao fluxo de futilidades típico de um blog. Um jornalista aqui da cidade, em entrevista coletiva, ainda tentou provocar a discussão. “O álbum é uma extensão do blog?”, perguntou, inocentemente. “Que água vocês andam tomando aí em Brasília?”, retrucou o blogueiro. Se até o Caetano foge dessa raia, quem poderá nos salvar?
Mas foi assim que aconteceu: no período de criação do álbum, Caetano abriu um blog chamado Obra em progresso, onde escreveu sobre música, cinema, política, talvez gastronomia (não sou leitor fiel, desculpa) e, na crista da interatividade, permitiu que os leitores comentassem livremente e votassem em versões de faixas que seriam selecionadas para o disco. Em shows atípicos, acompanhados do trio enxuto de Cê (álbum de 2006), testou as canções antes de gravá-las. Zii e zie é, portanto, resultado de um longo “ensaio aberto”, testemunhado por uma multidão. Não é um mero “álbum de estúdio”.
O disco não prolonga o blog. Não resulta exclusivamente dele. A história não é assim tão óbvia. Mas me parece empobrecedor excluir a experiência do blog da engrenagem deste álbum. Ou tratá-la como um detalhe sem muita importância. Perdão, Caetano, mas vejo na relação entre disco e blog um dos traços mais inventivos deste projeto. Existe um resgate de intenções que vêm lá dos anos 1980 (o show de Velô estreou antes do lançamento do disco), mas é impossível menosprezar o escopo da nova obra.
É fascinante, por exemplo, identificar nas canções o rastro de ideias que apareceram nos textos do blog. Quem leu o site, mesmo esporadicamente, sabe que Caetano adorou Última parada 174, ficou surpreso com o álbum solo do Marcelo Camelo e comparou Rio a São Paulo de mil e uma maneiras. Conscientemente ou não, são temas que acabam se infiltrando nas canções. A intensidade da colaboração entre Caetano e os leitores está refletida no CD — e só quem acompanhou o blog chegará a esse degrau do álbum. Taí uma verdadeira ousadia — um disco-blog, no sentido mais transgressor do termo. Confessional, mas também polifônico, permeável. Algo que eu nunca tinha visto (mesmo que mínimo, existe um valor nos blogs, não existe?).
Ao contrário de Cê (que era reto e conciso), Zii e zie se abre a uma mundo de paisagens e temas. Não tão musicais (o samba com guitarras secas, ou transambas, é um conceito preservado do início do fim do disco, e soa como um alargamento do anterior), mas principalmente verbais. Apesar de simular a atmosfera de uma madrugada chuvosa no Leblon, os versos flutuam das bordas da favela (Perdeu) à base de Guantánamo, da Casa Branca (Diferentemente) à Portugal (Menina da Ria), e de lá para Lapa. É também um livro de crônicas melancólicas da cidade, a meio caminho entre Carioca, de Chico Buarque, e Canções dentro da noite escura, do Lobão. Breu, solidão e lágrimas. Mas, onde Lobão via fantasmas e saudade, Caetano agoniza para dar de cara na esperança (Lapa é quase um hino feliz para a era FHC/Lula).
As comparações com Cê são todas muito tentadoras (e previsíveis, já que um álbum acaba ecoando o outro), e acredito que o susto provocado por aquele disco – que trazia um senhor como que rejuvenescido, furioso, um esqueleto em brasas – não será repetido. Zii e zie, de certa forma, adapta a história musical de Caetano a esse design minimalista. A cor amarela retorna à trilha de Tieta, A base de Guantánamo dá sequência a Haiti e Tarado ni você acena para experimentalismos (e acaba rendendo uma perfeita síntese do livro O paraíso é bem bacana, de André Sant’Anna). Nada mais tropicalista que o jogo com contrastes e extremos, que vibra em todo canto (Rio/São Paulo, samba/rock, favela/Leblon, Clementina de Jesus/Pedro Sá).
E há versos que me constrangem, mas talvez eles deveriam mesmo estar ali. “O homem é o próprio lobão do homem”, em Lobão tem razão; “drogas, tou fora, tá foda”, na barra-pesada Falso Leblon; o desabafo breve e vazio de A base de Guantánamo. Microblogs.
Para ficarmos no bate-bola com Cê, Perdeu (“o sol se pôs depois nasceu e nada aconteceu”) é uma canção que me parece mais comovente que qualquer uma do álbum anterior (talvez esbarre em Minhas lágrimas, ainda não sei). Como um todo, o novo parece difuso, ainda em progresso. Em italiano, Zii e zie significa “tios e tias”. Como Caetano explica, é assim que nos sentimos no Rio de Janeiro, diante das crianças do sinal de trânsito. Talvez a diferença esteja nisso. Cê era o homem. Em Zii e zie, o homem força a porta, abre a janela. E, aventureiro, escreve um blog.
Disco de Caetano Veloso. 13 faixas, com produção de Pedro Sá e Moreno Veloso. Lançamento Universal Music. 7.5/10