Mês: outubro 2008
The morning after
Tudo o que quero é escrever um texto que não me decepcione na manhã seguinte.
Drops de FicBrasília
* O Festival Internacional de Cinema de Brasília (FicBrasília) chega ao décimo ano com uma edição que traz a Brasília alguns filmes importantes das mostras do Rio e de São Paulo – muitos deles com distribuição garantida no Brasil. Pode parecer pouco, mas não é.
* Por aqui veremos Ballast, de Lance Hammer, Liverpool, de Lisandro Alonso, Acne, de Federico Veiroj, O canto dos pássaros, de Albert Serra, Cinzas do passado – Redux, de Wong Kar-wai, Um conto de Natal, de Arnaud Desplechin, Derek, de Isaac Julien, Filth and wisdom, da Madonna, A fronteira da alvorada, de Philippe Garrel, Sob controle, de Jennifer Lynch.
* Mais: Leonera, de Pablo Trapero, Night and day, de Hong Sang-soo, Ninho vazio, de Daniel Burman, Nucingen Haus, de Raoul Ruiz, La rabia, de Albertina Carri, O silêncio de Lorna, de Jean-Pierre e Luc Dardenne, Sinédoque, Nova York, de Charlie Kaufman, Terra vermelha, de Marco Bechis, The wackness, de Jonathan Levine, Youth without youth, de Francis Ford Coppola.
* E os brasileiros que concorrem ao Prêmio Itamaraty: Se nada mais der certo, de José Eduardo Belmonte, Feliz Natal, de Selton Mello, A festa da menina morta, de Matheus Nachtergaele, Juventude, de Domingos Oliveira.
* Tem também uma retrospectiva dedicada a Paulo José e uma seleção de japoneses (entre eles, Sad vacation, de Shinji Aoyama, e Glória ao cineasta, de Takeshi Kitano).
* Isto é: entre os 130 filmes, há filmes. Se essa programação enxuta não chega a destacar o festival no cenário nacional, ela tem uma importância tremenda para os cinéfilos da cidade – eles terão a vantagem de assistir aos longas sem as filas quilométricas de São Paulo, por exemplo (e cá estou eu tentando ver o lado positivo das coisas), e com ingressos a R$ 12.
* Pois bem: o FicBrasília começou ontem com uma sessão de “traje passeio completo” apresentada por Maria Paula e Murilo Grossi, com homenagem a Paulo José e um curta-metragem de animação (Pajerama, de Leonardo Cadaval).
* O Academia Hall, uma sala de espetáculos de quase três mil lugares, ficou lotada para a pré-estréia de Vicky Cristina Barcelona, de Woody Allen. Na sessão, pairou um climão de festa de cidade do interior, com crianças correndo pelos corredores, falatório incessante do público, gente sentada no chão e uma cortina que não parava fechada.
* Um sucesso, podemos dizer.
* No coquetel, serviram salgadinho frio, cerveja e fanta laranja. Os sushis evaporaram em cinco minutos. Ninguém reconhecia as celebridades locais que posavam para os flashes. Mas pelo menos foi autêntico: Brasília é, como sabemos, uma grande cidade pequena.
* Foi uma sessão, como nas salas de multiplex, tomada por casais. Homens engravatados e mulheres de longo. O filme? Elas adoraram secretamente; os namorados morreram de raiva. Vale um parágrafo só dele.
* Vicky Cristina Barcelona | Woody Allen | **
Acompanhado de um narrador/guia turístico onipresente e quase entediado, nosso cético favorito viaja à Espanha para filmar o prazer (como tudo na vida, segundo ele, um mero sentimento passageiro a ser aproveitado antes que o tempo nos leve). É, de verdade, o filme mais saboroso de Allen desde Match point, mas o tom libertário desta crônica de viagem não chega a provocar arrepios – é amenizado pela frieza como o cineasta organiza as peças da narrativa: os personagens são cartas marcadas (todos os espanhóis da trama são ou alegremente instintivos ou pirados) e as paisagens (e os belos planos de rostos de mulheres) acabam esculpidas com a beleza fácil dos panfletos publicitários. De qualquer forma, me agrada a forma com que o cineasta segue vendendo um olhar de mundo muito duro (e particular) como divertimento.
Pensamento positivo
Minha namorada diz que sou a Clarah Averbuck de bermudas.
Estou tentando tomar isso como um elogio.
O neto pródigo
Enquanto procuro um imóvel para chamar de meu, estou hospedado no apartamento da minha avó. Devo passar uns dois meses por aqui, com todas as mordomias a que um neto tem direito.
O que seria uma experiência fantástica – se eu tivesse nove anos de idade.
O apartamento é o mesmo em que morei quando vim do Rio de Janeiro para Brasília, no início da adolescência. Meu quarto está quase igual ao que era. Os móveis, tudo. Só fiz questão de dar um sumiço no quadro com o desenho do burro lilás, que ficava pendurado próximo à porta. Quero deixar claro, talvez para mim mesmo, que finalmente cresci.
Mas às vezes desconfio disso. E minha avó, simpática e dedicada como todas as avós, está sempre pronta a me convencer de que ainda tenho sim, claro, como não?, nove anos de idade. Por aqui sou um neto e netos aparentemente nunca crescem.
Hoje tomei um susto quando ela empurrou a porta do meu quarto às sete horas da manhã com uma jarra de suco de laranja na mão. A avó, coitada, setenta e tantos anos, coluna envergada, se equilibrando com a jarra enquanto o netinho dorminhoco se espreguiçava todo torto, suado, babando, quase pelado e desejeitado aos gemidos de ‘não, não, tá cedo, me deixa dormir, tô de férias, ahn, não, poxa’.
O episódio de sitcom não estava no meu script, por isso senti vergonha. Um desjejum no mínimo cômico para um cidadão que saiu de casa em busca de independência, pronto para aceitar os riscos e as vantagens da idade adulta, um super-herói urbano. No que deu? Acabei aqui, no meu antigo quarto, com uma jarra de suco de laranja preparada especialmente para mim. Não é engraçado?
Para mim, é mais que isso: é um salto na máquina do tempo. Num dos quartos, minha avó mantém uma espécie de museu de família, com fotos antigas e objetos que, daqui a alguns poucos anos, valerão uma fortuna. Perdi quase uma hora redescobrindo todos aqueles penduricalhos, aquelas imagens de uma época que me parece cada vez mais distante. Eu aos dois anos de idade, fazendo careta para a lente. Eu com meus primos na escada do zoológico, fazendo careta. Eu vestido de palhaço num concurso de fantasia, fazendo careta. Eu na minha primeira comunhão, fazendo careta (uma prova de que nunca levei nada a sério).
Enjoei das minhas poses infantis e, exausto, tombei na máquina de costura quase centenária. Derrubei cinco ursos de pelúcia que provavelmente teriam idade para integrar a comissão que elege o melhor filme estrangeiro no Oscar. É um apartamento habitado pelo passado, pensei. Há fantasmas em todo canto. As crianças que estavam em mim, na minha irmã, nos meus primos. Meu avô (que morreu), meu tio (que morreu), todos os carnavais (que morreram).
Quando saio, minha avó de telenovela, de telefilme americano, de anúncio de margarina, de cartão-postal pede para que Deus me guarde e me acompanhe. Avisa para que eu tome cuidado com os carros e que vista um agasalho se fizer frio. Agradeço a preocupação com o sorriso encabulado dos meninos que se incomodam quando os pais os buscam no colégio. Quem diria: igualzinho a quando eu tinha nove anos de idade.
Enquanto isso em Dubai
O bom de Dubai é que aqui não tem deputado, não tem senador, não tem nada disso. Só tem o sheik, e o sheik manda em tudo. Mas ele só manda coisa boa. Só coisa boa pro povo. O Brasil devia fazer igual.
Ainda não entendo como minha avó, uma velhinha tão sensata (dia desses ela confessou ser contra a pena de morte!), consegue gostar tanto da Hebe Camargo.
Cardinology | Ryan Adams & The Cardinals
Pode ser que eu esteja mesmo na contramão do bom senso – mas, ao contrário dos que festejam o Ryan Adams comedido, comportado e despretensioso da fase iniciada com Easy tiger (2007), estou com os que sentem falta da época em que o rapaz lançava três discos por ano (entre eles, um álbum duplo) e, com o ego infladíssimo, mandava os detratores catar coquinhos.
É o preço que se paga por trabalhar demais.
Hoje dizem que Ryan é um homem pleno, na idade da sensatez. O atestado mais redondinho deste período é Cardinology, um disco gravado sob medida para quem sempre detestou Ryan Adams. Seqüência cartesiana para Easy tiger, trata-se de um álbum de classic rock sóbrio e esforçado, quase tímido, sem o senso de humor que arejou delírios como Gold (ode monumental a Rolling Stones e Neil Young) e Rock ‘n’ roll (uma espécie de paródia do hard rock radiofônico).
Há quem diga que está entre os melhores de Ryan. Por aqui, a sensação é de que dilui o melhor de Ryan num sanduíche para consumo acelerado. As quatro primeiras faixas reduzem a carreira do compositor aos elementos básicos: Born into a light é a homenagem a Grateful Dead, Go easy nos lembra das influências de country rock, Fix it é a baladona de arena com um quê de U2 e Coldplay e Magick prova que Ryan não desistiu de brincar com referências de garage rock. Tudo muito simples, didático, a+b=c.
Apesar do comodismo quase irritante (e, para quem conhece a carreira do moço, impossível ouvir o álbum sem levantar suspeitas de auto-ironia), Cardinology é sim fluente e agradável, um disco que se escuta de uma vez só com prazer – sem gorduras, sem excessos, como se o produtor da Sheryl Crow tivesse podado um conjunto de 150 canções gravadas pelo músico entre 2007 e 2008. Faixas como Natural ghost e Cobwebs poderiam estar num álbum do Whiskeytown, a antiga (e excepecional) banda do cantor.
Mesmo nos dias mais preguiçosos, Ryan nunca nos decepciona: é um operário do refrão fácil, que sabe se divertir com símbolos da história do pop. Mas, com todos os elogios que anda recebendo da crítica, a tendência é que Cardinology faça com que ele se esparrame ainda mais na condição de um talentoso compositor de soft rock para quarentões. Algo que faz bem – mas é tudo?
Décimo álbum de Ryan Adams. 12 faixas, com produção de Tom Schick. Lost Highway. **
Voltamos a apresentar
Depois de uma temporada em São Paulo, a cidade das filas e dos engarrafamentos, retornar a Brasília numa manhã de segunda-feira deixa a impressão de que a vida numa maquete pode sim, em alguns momentos, a depender do referencial, ser até bastante tranqüila. Quase agradável.
Por exemplo: aqui também estamos todos tostando sob um sol apocalíptico, mas somos convidados a refletir sobre o calor enquanto cruzamos o Eixão amplo, vazio, habitável. Podemos tecer teses, filosofar em silêncio, prever cenários, arriscar estatísticas. O calor, o aquecimento global, o inchaço urbano, o colapso de todas as estruturas.
Em São Paulo, nem há clima para isso. No máximo, corremos para o espaço refrigerado mais próximo enquanto desviamos da multidão, fulos da vida. Nada muito romântico. Na capital levamos o dia-a-dia de uma outra forma, tomamos fôlego – e ainda não entendo por que os grandes intelectuais do Brasil saem da USP e não da UnB.
Passei o dia em meio às caixas de papelão que contêm toda a minha vida minúscula, consumista e, por fim, insignificante. Os CDs, os livros e os DVDs – tudo o que tenho, basicamente. No meu novo quarto, ordenei meus objetos de uma forma desleixada, desapegada, acelerada, talvez na tentativa de fugir da experiência da mudança, tratá-la como bobagem. Não funcionou. Da janela do prédio, tudo o que ouvi foi o ruído de algumas criancinhas que jogavam queimada no playground. Um silêncio. Um silêncio quase infernal.
Brasília às vezes cobra respostas, atiça o desespero. Fica parada com a mão no queixo, silenciosamente à espera de uma crise existencial qualquer. A minha: a idéia de mudar de casa, um movimento que parecia tão simples, provocou uma tarde de tristeza, de saudade. Não estou de manha, já que encarei o processo com dignidade, sem chiliques. Longe da minha família, com quem vivi durante 29 anos, me senti condenado à condição de eterno visitante – e, sublinhem o ridículo da situação, por enquanto estou hospedado no apartamento que conheço há 17 anos. Aposto que, mesmo quando eu me enclausurar numa quitinete, ainda pensarei assim: serei um mero convidado, fora do ninho.
Mas, com o tempo, quem não se acostuma? Com um pouco de barulho nas ruas, provavelmente eu nem estaria preocupado com isso. Só que estou em Brasília – e isso às vezes faz toda a diferença.
Diário de SP | Últimos dias
1 | Se a dor de cabeça, o sono e a dor de dente não me derrubarem antes do parágrafo final, aí vai o último post da minha viagem a São Paulo. Torçam para que eu sobreviva.
2 | O fim de semana foi todo dedicado ao Tim Festival – e, acreditem, fiz um bom negócio. Não me arrependo de ter fritado meus neurônios ao sol no show ao ar livre do Sonny Rollins. Não me arrependo de ter trocado Waltz with Bashir por MGMT e… ok, me arrependo profundamente de ter investido os olhos da minha cara no ingresso para o Kanye West. Os cambistas vendiam bilhetes a R$ 20, sabiam disso? Tudo bem que o cinema-360-graus do rapper valia um pouco menos que isso, mas ainda assim. Admito que perdi, playboy.
3 | E alguém me ajude se eu esquecer os momentos mais importantes.
4 | Sonny Rollins | Tim Festival, sábado | ****
Uma performance, em todos os aspectos, infernal. Assistir a um monumento do jazz sob o sol de satã (meio-dia no Parque do Ibirapuera, quer mais?) pode não ser a experiência mais indicada para um fim de semana saudável – e eu ainda sinto uma pontada em minha testa quando fecho os olhos -, mas Rollins hipnotizou roqueiros, madames, criancinhas, ciclistas e poodles com duas horas no paraíso. Goste ou não de jazz – o importante aqui não é isso, mas aquele homem e o que ele é capaz de fazer.
5 | The National | Tim Festival, sábado | ****
Se Sonny Rollins está acima do bem e do mal (e eu me sinto pequeno, muito pequeno diante do sujeito), então o The National fez o melhor show do Tim Festival. Uma banda de verdade – como uma excelente equipe de futebol cujos talentos individuais não ofuscam a performance em conjunto – que preenche o palco com as interpretações mais explosivas para canções intimistas (até Slow show virou uma apoteose). O vocalista Matt Berninger tem a agonia de Thom York e a simpatia de um cantor de banda de bar, daquelas iniciantes. Todas as comparações com o Interpol caíram por terra – para azar do Interpol.
6 | Dan Deacon | Tim Festival, sexta | ***
Não foi um show para o público, mas com o público. Com uma sonoridade à rolo-compressor, mais agressiva que qualquer banda de thrash metal, o DJ se meteu em meio ao público e organizou até um tresloucado concurso de dança. No final da performance – um soco curto, poderoso -, era só chegar perto para apertar as mãos do mestre de cerimônias mais pé-no-chão do festival. Ele é um de nós – só que com uma bizarra, e irresistivel, idéia de diversão. A grande surpresa do Tim Festival.
7 | Gogol Bordello | Tim Festival, sexta | ***
É circense, é exaustivo e sim, soa como uma piada de uma nota só. Mas, valorizado por um show de curta duração, o punk cigano mostrou a que veio: nenhum outro show estremeceu com tanta intensidade a arena do festival.
8 | Junior Boys | Tim Festival, sexta | **
Para derreter o gelo, soul music. Mas, em pouco mais de trinta minutos, o que poderia ter sido um fogoso caso de amor se revelou um flerte não tão fatal.
9 | Klaxons | Tim Festival, quinta | **
Mais rock, menos rave – no palco, o Klaxons livra-se de alguns estigmas para se afirmar como mais uma banda britânica pós-Libertines. É uma boa troca? Talvez não. Acontece que, com versões diretas e eficientes para canções de influência psicodélica, a banda fez um show mais diversificado (e divertido) que o do Arctic Monkeys. O oposto do MGMT.
10 | DJ Yoda | Tim Festival, sexta | **
DJ de mash-ups que mescla canções e vídeos, Yoda ama hip hop e Super Mario Bros. Ao contrário de Kanye West, o parque temático dá certo.
11 | Neon Neon | Tim Festival, quinta | **
Pop com conceito. “Este é um show sobre a vida de John DeLorean”, avisaram. Eu estava entre os que desejaram apenas um show do Super Furry Animals.
12 | Cérebro Eletrônico | Tim Festival, sabado | **
Psicodelia em formato pocket, meio desligada (o baixo não funcionou em boa parte do show) – e com letras às vezes tão, tão engraçadinhas.
13 | DJ Switch | Tim Festival, sexta | *
Tun-tun-tun-tun-tis-tun-tun.
14 | MGMT | Tim Festival, sábado | *
O lado assustador do rock psicodélico: jams que não chegam a lugar algum, confusão conceitual disfarçada de “versatilidade” e clima lisérgico a qualquer custo. Os três hits destoam tanto do restante do show que poderiam ter sido escritos pelo Timbaland. Fiquei com a mesma impressão quando assisti ao Kings of Leon: uma banda imatura com o suporte luxuoso de uma grande gravadora – nada mais.
15 | Já a Mostra… Fui relapso, é verdade, mas taí o fim da história.
16 | Se nada mais der certo | José Eduardo Belmonte | ***
O desfecho da “tetralogia da crise” é o filme em que Belmonte finalmente consolida um olhar escancaradamente emotivo e melancólico que, nos longas anteriores, me parecia um tanto juvenil (tenho que revê-los, principalmente Meu mundo em perigo). Podemos escrever muito sobre o filme, mas adianto que o cineasta conseguiu, como poucos, decifrar a sensação de estranheza de quem tenta se adaptar ao cotidiano de uma grande cidade (e, especificamente, taí um retrato visceral de São Paulo, nada agradável) e, com coragem, filmar a decadência da classe média brasileira na forma de um thriller de roubo (e, ainda que o clímax não funcione com tanto impacto, o importante é o que corre à margem da trama).
17 | Deixe ela entrar | Tomas Alfredson | ***
O início da adolescência é um filme de horror.
18 | E por hoje chega. Até.
Diário de SP | Tim Festival (e a Mostra continua)
1 | Fui e voltei. E agora as coisas ficam realmente corridas por aqui.
2 | Kanye West | Tim Festival | *
A decepção do ano? Talvez seja muito forte usar este termo – decepção -, mas não quando falamos de um dos rappers menos acomodados em atividade. O que ficou claro na performance (meio robótica) que terminou agorinha aqui em São Paulo foi que, acima de tudo, Kanye é um ótimo produtor. E o que vimos foi um show de produtor – um espetáculo estranho, e estranhamente esquelético.
Incômodo, também. E por alguns motivos: abandonado no palco, Kanye dividiu a cena com um telão que mais parecia descanso de tela de computador (definição do Diego, não minha), alguns efeitos pirotécnicos, um eficiente (mas limitado) jogo de luzes e a participação especial de um dinossauro de borracha.
Ficou parecendo pouco, muito pouco, perto do que o rapper tem de melhor: as canções como as ouvimos em discos como Late registration e Graduation. A obra do produtor paira acima das interpretações, dos clipes e, finalmente, do show, um parque temático sem grandes vôos criativos (Kanye deveria assistir urgentemente ao Kraftwerk para tomar umas aulinhas de audiovisual).
Se existe um conceito, ele encontra-se numa espécie de milkshake açucarado de Eu sou a lenda com Tron. Cavaleiro solitário, Kanye dialoga com uma tela de computador, é entretido por uns balões de pisca-pisca (em Flashing lights, o melhor momento do show) e evoca Daft Punk para o clímax desta ficção-científica oitentista que, apesar de toda a grandiosidade do projeto, parece ter sido concebida num galpão de Roger Corman – e, se há um charme na performance de Kanye, ele está nesse espírito camp, mesmo que involuntário. Mas não chega a brilhar no escuro.
3 | E a Mostra continua. Quer dizer: aos trancos.
4 | 24 city | Jia Zhang-ke | **
Se Inútil já deixava a impressão de que Zhang-ke começava a transformar um certo olhar para as transformações da China em um método (e em quase um tique), 24 city reforça a suspeita de que o cineasta começa a simplificar alguns dos temas preferidos – mesmo quando tenta aprofundar a confusão entre documentário e ficção. No papel, é excelente a idéia de compor um mosaico de depoimentos ao redor de uma complexo de fábricas que será transformado em um moderno centro residencial e comercial. Na prática, o processo chega a soar modorrento, e exige um grande esforço para todos os envolvidos (principalmente para o espectador) – com exceção das cenas que unem uma entrevista e outra, que deixam a marca do lirismo típico de Zhang-ke. Ainda assim, quase uma decepção.
5 | A erva do rato | Julio Bressane | **
O Bressane mais direto e (quem diria) divertido em muitos, muitos anos. A fotografia cuidadosamente impecável de Walter Carvalho, porém, parece destoar de um conto doentio (inspirado em Machado de Assis) que flerta a todo momento com o grotesco.
Diário de SP | Na Mostra (5)
1 | E os monitores da Mostra, que só conseguem assistir a curtos pedaços de cada filme? “Vejo o iniciozinho. Ou o finalzinho. Nunca dá pra ver tudo”, um deles comentou. O mais pitoresco é que, ainda assim, eles arriscam recomendações. “O começo de Sonata de Tóquio é uma coisa”, avisou a do cabelo encaracolado. No que eu me intrometi: “É que você não viu o fim.”
2 | Mas o mais divertido, de longe-longe, são as legendas de filmes portugueses. Em bom português de Portugal, cabrão.
3 | Pronto: conheci o Michel e o Bruno, reecontrei o Diego e o Chico, acenei duas vezes pro Filipe e uma pro irmão dele, o Guilherme. Vi de longe algumas pessoas que acredito ser quem penso que são, mas ainda não tenho certeza. De qualquer forma, tutti buona gente.
4 | Aliás, o que mais tem na Mostra é filme sobre família. O Grande Tema. Principalmente sobre aquela que todos nós amamos tanto: a máfia, que outra?
5 | Hoje os filmes são todos dignos de consideração (o dia mais proveitoso da Mostra, antes tarde que nunca), mas os comentários são de classe econômica – que está tarde e não sou de ferro.
6 | Aquele querido mês de agosto | Miguel Gomes | ****
Um musical. Uma história de amor. Um retrato para um lugar. Uma gozação. Um hit brega. Um longa-metragem de baixo orçamento. Um ensaio metalingüístico. Um making of. Uma comédia popular. E um maravilhoso documentário sobre coisa alguma.
7 | Horas de verão | Olivier Assayas | ***
Depois de dar a volta ao mundo, Assayas convida os globetrotter de filmes como Boarding gate e Clean para um encontro de família. O planeta continua confuso, as fronteiras permanecem borradas, mas o que está em jogo aqui é o rastro das raízes. Hoje, o que fazemos com nossas origens? É possível simplesmente deletá-las? Elas sobrevivem de alguma forma? A resposta é um lamento discreto, uma crônica em tom menor que – e basta olhar com atenção – está à altura dos ótimos filmes recentes do cineasta.
8 | Depois da escola | Antonio Campos | ***
Antes que alguém aponte semelhanças com a juvenília de Gus Van Sant, Antonio Campos encena abertamente esta tragédia estudantil num cinema pós-Elefante (e numa América pós-Columbine). Faz isso bem. Apesar de alguns excessos típicos de primeiros filmes (o quase fetiche dos planos lentos, por exemplo), esta é uma estréia que chuta a porta – e consegue sintonizar com extrema sensibilidade alguns dos dramas de uma geração que parece ainda mais nova e misteriosa que a retratada nos longas de Van Sant. O cineasta compreende a agonia do adolescente que deixa a câmera ligada para capturar imagens verdadeiras – e, enquanto o acompanha, compõe um thriller nada ingênuo.
9 | Sob controle | Jennifer Lynch | **
É tudo o que se espera de um filme dirigido pela filha do homem: um trem-fantasma tenso e perverso, com um quê de cinema noir e outro de fitas de horror. A boa lição aprendida por Jennifer: não fazer concessões, e deixar que a loucura dos personagens devore a trama. Os 15 minutos finais são um teste para os nervos – o restante do filme é um freak show doentio. A América podre da família Lynch como a conhecemos.
10 | Pelo menos para mim, amanhã começa o Tim Festival. A Mostra ficará em segundo plano. Prometo atualizar o blog assim que possível. Não que vocês se importem terrivelmente com isso, certo?
Diário de SP | Na Mostra (4)
1 | Momento cinema-cabeça: eu também não entendi a cabeleira do Wim Wenders.
2 | E o maior mistério da Mostra pra mim, até agora, é conseguir identificar as pessoas que conheço pela internet, e até freqüentam este site às vezes. Sou péssimo pra isso. A distância que separa uma fotografia de Orkut da vida real é, para mim, uns setecentos quilômetros. Aposto que essa turma toda deve me achar um baita de um mal-educado, um carioca metido a besta, um cinéfilo forasteiro de araque – mas nem é isso, nem é timidez, juro: eu só não os reconheço, gente.
3 | O que move essa multidão a entrar em duas longas filas (a do ingresso e a da sessão), brigar por uma boa poltrona e enfrentar produções desconhecidas que muitas vezes só contribuem para a enxaqueca do dia seguinte? A resposta está no tópico abaixo.
4 | Sonata de Tóquio | Kiyoshi Kurosawa | ****
Meu filme favorito da Mostra até agora periga ser incompreendido pelo menos de duas formas: alguns o tratarão como um ensaio sociológico disfarçado de melodrama (à Linha de passe), outros encontrarão mais um painel excessivo para os males do mundo (à Babel). Mas nenhuma dessas comparações há de se sustentar durante toda a projeção. Expert em fitas de horror, Kurosawa empresta a um drama doméstico a atmosfera de um história de fantasmas – e, com absoluta delicadeza, enxerga com uma lente delirante (levada ao limite na meia hora final) a crise das relações familiares. É, por isso, um filme incomparável que se dá ao luxo de parecer bastante simples (já que lida com eventos do cotidiano). Isso sem contar a aula que é assistir a um filme com planos construídos com tamanha leveza e precisão. A cena final já é a mais emocionante do ano.
5 | E chega, posso voltar para casa.
6 | Queime depois de ler | Joel e Ethan Coen | **
Entre as pequenas comédias dos Coen, é uma das mais divertidas – a sucessão de boas piadas rendeu a sessão mais festiva da Mostra, e eu recomendaria o filme apenas pela cena em que George Clooney tem um ataque de paranóia em plena luz do dia, num parquinho. Mas, passado o impacto do reconhecimento de um estilo, o passeio pela Coenlândia acaba parecendo seguro demais – e lembrar de Onde os fracos não têm vez será prejudicial à saúde do espectador.
7 | Adoração | Atom Egoyan | *
Egoyan pode até não se cansar de fazer filmes sobre o ato de narrar histórias (um processo, ele alerta, distorce a verdade dos fatos), mas, pelo menos pra mim, já deu.
8 | Julgamento | Leonel Vieira | *
Um Ação entre amigos português com um clímax mui oportuno que enterra o filme a sete palmos.
9 | O clone volta para casa | Kanji Nakajima | w/o
Foi o Wim Wenders quem escolheu. O que não significa muito (ele também selecionou A sereia do Mississipi, do Truffaut), mas não pesa contra uma ficção-científica sobre clonagem que vampiriza Tarvoksvi e ganharia peso se exibido numa projeção digital menos vagabunda. Mas é tudo o que posso falar sobre ele, já que, cansado e faminto, abandonei a sessão com 60 minutos de filme.
Diário de SP | Na Mostra (3)
1 | Não, eu não vi a cópia restaurada de O poderoso chefão (mas vi o estande armado dentro do Cinesesc para divulgar o novíssimo box de DVDs da trilogia).
2 | Sim, três dias e para mim já deu. Desconfio cada vez mais de que não nasci para isso.
3 | Entre um filme e outro, vivi uma cena de crueldade à Haneke. Na superlotada praça de alimentação, fiquei uns quinze minutos de pé à espera de um lugar vago. Quando encontrei um, uma mulher de mais ou menos quarenta anos pediu que eu cedesse a mesa a ela: “Por favor, por favor, tenho filho pequeno”. Cedi. Quando notei, o “filho pequeno” tinha uns 12 anos de idade. E, enquanto eu esperava de pé mais uns quinze minutos, a empanada esfriando e o suco esquentando, ela fez de conta que nunca tinha me visto na vida.
4 | Isto é São Paulo?
5 | O casamento de Rachel | Jonathan Demme | ***
Um belo filme, objeto estranhíssimo no cinema norte-americano que se vê por aí, que possivelmente acabará subestimado na correria da Mostra. Demme se equilibra entre os dramas (e as fórmulas) de uma típica fita indie sobre barracos de família e um olhar quase documental, capaz de acrescentar à narrativa uma série de elementos que não dependem da trama principal (a trilha sonora, por exemplo, é um show à parte). Mais determinado a explorar a atmosfera alegre/triste de uma típica reunião de família que em compor um mosaico de subtramas à Altman (ainda que faça isso bem), o filme não se rende a nenhuma solução fácil – nem para o público de multiplex, nem para os cinéfilos da Mostra.
6 | Todo mundo tem problemas sexuais | Domingos Oliveira | ***
Eis o filme que, ao contrário de Juventude, Domingos Oliveira não ousa inscrever em competições de festivais. Já que isto é um blog e nada mais que um blog, posso cometer a grosseria de afirmar que é este aqui o meu preferido, de longe, entre as duas novidades do cineasta? Se Juventude carrega a carga pesada de ter que afirmar (ou sublinhar) uma estética, Todo mundo tem problemas sexuais é a bagunça, a arruaça. Adaptação teatral com tique nervoso, o filme comete uma série de “crimes” que não seriam perdoados pelo juri oficial: se inspira em um texto repleto de chulices, assume abertamente a origem teatral e, mais que isso, confunde a encenação cinematográfica com uma espécie de making of da peça (intercala cenas de ensaios, leituras do texto, performances etc). Livre e solto, é uma zorra que experimenta radicalmente com o popular e que, por isso (e também pelo visual tosco, mas essa é uma outra discussão), será tratado como um passatempo, um playground de um grande diretor. Para mim, é o Oliveira mais jovial em muitos anos.
7 | Juventude | Domingos Oliveira | **
Seria ainda mais comovente se fosse apenas um documentário sobre o encontro dos três atores em uma mansão, num fim de semana. Algumas soluções da trama parecem truncadas – ainda que Oliveira defenda com muita convicção um cinema em que o texto se faz soberano (e sorte a nossa que, até aqui, são ótimos textos).
8 | Chove em nosso amor | Ingmar Bergman | **
O amor, os mistérios ao redor dele, um cineasta em formação e um narrador intrometido.
9 | La buena vida | Andrés Wood | *
Atendendo aos pedidos dos críticos incomodados com a pobreza fashion, taí um Linha de passe para a classe média: mas aqui é o cinema que parece miserável.
Diário de SP | Na Mostra (2)
1 | Por enquanto, quase um marasmo.
2 | E, sem brincadeira, se Gomorra e Il divo representam um renascimento do cinema italiano, fico com o morto.
3 | A vida moderna | Raymond Depardon | **
Um documentário que estampa em cada plano o amor do cineasta pelo tema (a vida rural na França) e os personagens (agricultores praticamente em extinção) – mas é um universo tão específico, e retratado de forma às vezes de forma tão casual, que talvez só comova com tamanha intensidade o próprio Depardon. É, acima de tudo, o registro de um reencontro – na narração em off, o diretor avisa que costuma retornar àquela região regularmente -, de uma certa luz que bate no outono e, não tão sutilmente, das rápidas transformações no cotidiano do campo. O melhor está nos créditos finais: lá, Depardon apenas filma os rostos e gestos dessa gente, antes que o tempo a leve.
4 | Música na noite | Ingmar Bergman | **
Um Bergman romântico, melodramático, às vezes siderado (uma das primeiras cenas é um transe surrealista), antes do furacão (e de Monika e o desejo). As legendas eletrônicas desencontradas transformaram parte da sessão num enigma.
5 | Il divo | Paolo Sorrentino | **
A cinebiografia do primeiro-ministro italiano Giulio Andreotti, que sobreviveu aos piores terremotos políticos, é uma charge com taquicardia. Para desenhar o perfil de um homem indecifrável, e as relações do todo-poderoso com a máfia, Sorrentino usa recursos de fitas de gângster, de comédias de humor negro e, em alguns momentos mais histéricos, parece mais infuenciado por Guy Ritchie que por Francis Ford Coppola. A interpretação de Toni Servillo é daquelas que não esqueceremos facilmente – ainda que o roteiro se contente em manipular um protagonista-boneco (é o homem solitário, experiente, meticuloso, frio, invariavelmente sarcástico). A sátira, que começa poderosa, vai perdendo o fôlego até cansar e, finalmente, abraçar o vazio.
6 | Gomorra | Matteo Garrone | *
Se este é o “novo cinema italiano”, então estamos na frente: de Cidade de Deus a Tropa de Elite, já nos mostramos craques em empacotar nossa crise social em formatos de cinema de gênero. O filme-mosaico de Garrone denuncia a máfia do sul da Itália como quem pega emprestado o molde de thrillers norte-americanos como Syriana e Traffic – as histórias entrelaçadas formam um painel ambicioso, “importante”, de um tema perigoso (o autor do livro que inspirou a trama foi ameaçado de morte) e digno de manchetes no noticiário. Mas, além de não acrescentar nada a um modelo de narrativa bastante desgastado, o cineasta trata personagens como elementos para a defesa de uma tese que, no fim das contas, peca pela pobreza dos argumentos. No caso, prefira o produto brasileiro.
Diário de SP | Na Mostra
1 | Chove em São Paulo.
2 | O público da Mostra de São Paulo renderia um post muito engraçadinho (principalmente a galera que, na fila de um filme dos Dardenne, faz graça com narrativas lentas de planos longos e cenas intermináveis etc), mas não vou escrevê-lo. Deixa quieto.
3 | Concordo com quem diz que a Mostra está um tanto capenga (foi uma dificuldade montar uma programação que não incluísse aqueles filmes que vemos para preencher buracos entre um horário e outro). Mas discordo dos que, contrários aos cinéfilos enlouquecidos por novidades (que cinéfilo não é?), saem por aí resmungando que só vão ver “Bergman e Berlin Alexanderplatz“. Aposto que, em seis meses, a Versátil lança tudo isso em DVD.
4 | Agora sou eu quem está resmungando, há! Vamos aos filmes, então (com comentários curtos e desimportantes, como era de se esperar, não dá para tirar muitas conclusões sensatas em meio a esta correria).
5 | A fronteira da alvorada | Philippe Garrel | ***
Tão próximo e tão distante de Amantes constantes, é um filme bem menos grandioso, mas igualmente fantasmagórico, doente de amor. A metade final, quase um filme de horror, é tudo o que eu não esperaria de um longa que começa no confinamento de um romance como outro qualquer. Fico com a impressão de que Garrel queria exatamente isto: dar à narrativa a aparência de uma onda mansa que quebra e se transforma em outra onda mansa, que leva os personagens de um caso amoroso a outro até finalmente se desfazer na areia. E é um século 21 em preto-e-branco, habitado por casais que trocam cartas e tomado pela suspeita de que 1968 ainda não terminou.
6 | Liverpool | Lisandro Alonso | **
Para mim, não foi um caso de “ame ou odeie”. Bateu simpatia, pode ser? Se o argumento de que Lisandro Alonso (cuja obra, até agora, eu desconhecia) despreza o componente humano em prol de paisagens e objetos já me parecia meio frágil, ele se esfarelou no ar após a sessão. É apenas uma longa caminhada em silêncio ao lado de um homem, não mais, filmada com alguns maneirismos que incomodam o cinéfilo e um detalhismo obsessivo que irritará o restante do público. Talvez a culpa tenha sido do meu estado de espírito durante a sessão, mas não consegui ver nada de ordinário ou de falso nas imagens de Alonso – na verdade, comprei um pacote econômico para a aventura, sem me livrar de alguma desconfiança, mas sem rejeitar o ritmo do diretor.
7 | O silêncio de Lorna | Jean Pierre e Luc Dardenne | **
Curioso (e até engraçado) que tenha vencido o prêmio de melhor roteiro em Cannes: é o primeiro filme em que os Dardenne abusam de artifícios de texto para conduzir os personagens dentro da trama. Quase sem ar (e sem câmeras coladas na nuca), a narrativa não acompanha a protagonista (como faz Alonso em Liverpool), mas a empurra – e, nesse sentido, é um longa que se mostra ainda mais decepcionante para quem, como eu, viu Rosetta há apenas algumas semanas. As discussões morais aparecem de forma explícita, quase emburrecedora, e o que sobrevive a essa fase mais “acessível” (no pior uso da palavra) dos cineastas é o retrato ainda bastante carinhoso de uma mulher em perigo – e, sim, o olhar muito atento para uma Europa de fugitivos, em profunda crise de identidade.
8 | Tulpan | Sergei Dvortsevoy | **
O vencedor da mostra Un certain regard, em Cannes, nos convida para entrar numa comunidade nômade do Cazaquistão. Como em Mutum, o espectador é que deve se adaptar lentamente a uma realidade que não conhece – é um filme que cresce muito quando se atém à observação dos hábitos dos personagens (e eles também não são tratados como um catálogo de fotografias exóticas, mas como uma família que poderia existir em qualquer outro canto do planeta). Mas, nos momentos mais extravagantes, fica parecendo um cruzamento insuportável de Kusturica com Discovery Channel.
9 | Terra vermelha | Marco Bechis | *
O estudo das relações entre índios e brancos no Brasil é urgente e forte – o filme, nem tanto. Se o diretor parece muito à vontade diante dos índios (e não lembro de outro longa de ficção que retrate com essa liberdade as comunidades indígenas brasileiras no tempo presente), não sabe o que fazer com os brancos – são meras caricaturas. O impasse entre um lado e outro do conflito é exposto da forma mais professoral possível – em diálogos que soam como discursos, em excesso de situações-limite que impedem uma aproximação do público com os personagens, tratados mais como símbolos para uma crise social que como seres humanos. É o típico filme-denúncia que, se exibido no Festival de Brasília, ganharia todos os prêmios.
10 | Vou indo.