Mês: dezembro 2007
Kanye West: ‘Can’t tell me nothing’
O ano está acabando e, perdido na minha mania de fazer listinhas pra tudo, deixei os videoclipes a ver navios (como poderia ter esquecido deles, ahn?). Como nem eu nem você temos paciência para mais um top 10, sejamos breves.
A real: não foi um grande ano para o videoclipe. Para os bravos defensores do formato, rever o que de melhor apareceu em 2007 pode se tornaruma experiência meio tortuosa, já que será preciso forçar muito a barra para encontrar instantes de brilhantismo em clipes como, digamos, Atlas, do Battles, ou Earth intruders, da Björk (e nem vou colocar o link deles aqui, procurem por conta e risco).
Mas, como sempre, houve recompensa para a perseverança dos fiéis. Depois de ficar em dúvida entre os climas lynchianos de What a girl to do, do Bat for Lashes, e as “poses por segundo” de Top ranking, do Blonde Redhead (e, claro, há o óbvio D.A.N.C.E., do Justice), foi até fácil escolher o favorito. Nesta versão-paródia para Can’t tell me nothing, dirigida por Michael Blieden, o comediante Zach Galifianakis e o senhor-tempo-ruim Will Oldham transferem um rap sobre poder, fama e dinheiro para um ambiente, digamos, prosaico. Divirtam-se, e feliz ano novo!
Cinco álbuns para um ano novo
Se descontarmos o prometido retorno do Portishead e os novos álbuns do Breeders e Franz Ferdinand, 2008 por enquanto promete ser um ano com um calendário de lançamentos bem menos espalhafatoso que o de 2007. Muitos dos discos que serão lançados entre janeiro e fevereiro já estão na rede, e fiz o test drive com alguns deles para tentar descobrir em que pé estaremos. O resultado, já aviso, está longe do espetacular.
Made in the dark, Hot Chip
É uma das principais novidades do primeiro semestre, e… Já pode ser considerada uma pequena decepção – pelo simples fato de que, a essa altura, todo mundo está esperando do Hot Chip, no mínimo, um grande disco. O que eles praticam aqui é o exercício seguro de atirar para todos os lados, com pelo menos três variações para o hit Over and over (uma delas é Shake a fist) e até algumas baladas soul. O disco começa com percussão afro e zumbidos à música indiana, um Chemical Brothers sem calorias. Fica melhor quando investe naquilo que a banda sabe fazer muito bem: eletrônica delicada, juvenil e melancólica. Fique com Ready for the floor e One pure thought.
Distortion, The Magnetic Fields
Essa soa como uma decepção ainda maior – tão estranha que fico até com medo de ouvir o disco mais uma vez. Seria o ocaso de Stephin Merrit? Como sempre, ele segue à risca um conceito resumido no título do álbum. Agora as canções todas vêm embaladas em uma névoa de distorção – ainda que o efeito não seja assustador nem nada. Lembra muito, aliás, os climas sombrios (e cômicos) do projeto paralelo do compositor, o Gothic Archies. Momentos fortes como Too drunk to dream se perdem em trechos que, em dias melhores (i.e., fase 69 love songs), Merrit tiraria com os pés nas costas e reservaria para lados B de singles.
Devotion, Beach House
O primeiro álbum desse duo de Baltimore ficou entre os melhores de 2006 na lista da Pitchfork – o único site que abriu o olho para a psicodelia dopada da banda, espécie de cruzamento entre Mazzy Star, Portishead (sem o lado eletrônico) e climas shoegazer. Este segundo é um pouco melhor, já que a massa sonora ganha algumas camadas mais sutis com a adição de elementos de soul music do fim dos anos 1960. Há faixas belíssimas e tristes à beça, que ouço sem parar – como Gila e Astronaut -, mas também não dá para relevar um certo marasmo, que pesa lá pela metade do caminho.
Mixed up, Love is All
É um disco de remixes prematuro. Os suecos têm apenas um trabalho, com nove faixas (Nine times that same song), e o momento talvez seria de um álbum com novas canções. Mas a justificativa para o ato de narcisismo é até boa: eles têm bons amigos como Hot Chip, The Bees, Studio e Maps, que às vezes até dão uma melhorada em faixas que pareciam largadas pela metade. Há tentativas muito acertadas, como a versão funk do The Bees para Make out fall out make up e as duas interpretações para Busy doing nothing (Optimo e Tapedecic), uma música tão bacana que parece ficar boa de qualquer jeito.
Let the blind lead those who can see but cannot feel, Atlas Sound
Por último, mas não menos importante… O primeiro álbum do projeto do porralokinha Bradford Cox (líder do Deerhunter) periga ser o mais interessante dessa listinha aqui. Só ouvi uma vez, então não posso dizer grandes coisas. Mas é como o oposto perfeito de um disco do Deerhunter: em vez da miscelânea de estilos, o álbum conta uma história com começo, meio e fim, toda costurada por uma estrutura ambient corrompida por belos surtos pop. O vocalista conta que é um disco sobre infância. E define como “música terapêutica”. Talvez seja isso mesmo, no melhor sentido. Volto a ele depois.
A coragem de amar, Crimes de autor *
Disseram hoje que sou um tipo especial de esquizofrênico, já que me divido por três. O Tiago que escreve neste e em outros blogs – isso tudo de acordo com o tal sujeito indeterminado – seria muito diferente do homem que escreve para comprar o pão de cada dia, ou daquele outro que tenta se expressar oralmente. Eu nunca havia parado para pensar com paciência nesse assunto. Sou três em um? E, se sou três em um, estaria eu em promoção?
Questões. Acontece que, depois de dar três largas voltas ao redor do nada, cheguei à conclusão de que não há nada muito atípico ou sensacional (quisera eu) nessa multiplicidade de discursos ou de personas ou de formas escolhidas para encenar uma determinada situação ou de sei lá o que. Não escrevemos um bilhete de amor da mesma forma como preparamos uma carta de demissão. Não planejamos uma redação de vestibular com o mesmo desleixo como copiamos uma receita de bolo. Somos todos camaleões da palavra – até por obrigação, por necessidade. Mas entendo que essa obviedade possa sim parecer algo muito estranho, da mesma forma como o substantivo “maionese” ficará extremamente esquisito quando você decidir admirá-lo com toda a concentração do mundo por uns cinco minutos. Outro dia reclamei da minha prima de 11 anos, que escreve na internet com a mesma destreza de uma analfabeta funcional. Ela sabiamente retrucou: “Tio, não sou desse jeito toda hora!”
Como insisto nesse tipo de jogo mental, passei a sessão inteira de Crimes de autor com esses devaneios tolos quicando nos meus neurônios. Assumo: filmes de Claude Lelouch não costumam fisgar minha atenção. Sempre assisto a eles com o distanciamento curioso de quem espera o grande malabarismo de um peixe amarelo no aquário gigante. Me perdi no meu umbigo também por outra razão: como já havia indicado em A coragem de amar (uma espécie de rascunho gorduroso para o filme seguinte), o cineasta parece obcecado pela forma como o cinema e as pessoas encenam, mudam de tom, vestem-se em personagens, se dividem em duas ou três. É um belo tema, infelizmente mastigado por um diretor que costuma apelar a todo tipo de artifício boboca que tem à disposição.
Lelouch adora fazer com que os personagens cuspam lindas frases de papel-de-carta. “Se fosse possível descobrir a data e a hora da sua morte, você gostaria?”, questiona em A coragem de amar (uma comédia romântica musical com canções que, de tão irritantes, grudam nos mais horrendos pesadelos). “A maior felicidade está nas primeiras vezes”, dispara em Crimes de autor (e eu duvido muito disso, já que, para ficarmos num exemplo mórbido, não fui nada feliz quando vi um cadáver pela primeira vez). Lelouch também é fã de reviravoltas metalingüísticas – e aí aquele tipo inocente que caminha de locação em locação pode se revelar, na décima pirueta do roteiro, o autor da biografia do diretor de um filme inspirado na vida de um primo de Lelouch. A diversão está em servir o rocambole, e não em recheá-lo com reflexões minimamente instigantes.
E, se meu vocabulário atualmente parece muito limitado a termos gastronômicos, talvez essa conte como uma nova persona. A quarta? Chef Superoito, a seu dispor?
Os porralokinhas *
Com minha prima Thainá, de 11 anos, fui ver Os porralokinhas.
Eu ainda estava contaminado pelo espírito natalino. Minha prima também. Aparentemente, só nós dois estávamos contaminados pelo espírito natalino, já que a sala de cinema estava completamente vazia. Foi aí quando descobrimos que nem as crianças em período de férias querem saber de filme brasileiro.
Minha prima estava tão animada com a boa ação do “tio” (é assim que ela me chama) que soltou urros de animação logo nos créditos iniciais. Eu reparei que a pipoca estava salgada demais. Os urros da menina fizeram eco, multiplicados pela sala completamente vazia. Os créditos iniciais são tosquíssimos. Pensei que, naquele momento, eu poderia estar fazendo algo mais produtivo. Poderia estar comendo omelete para ganhar proteínas e aumentar minha massa muscular.
A história de Os porralokinhas é uma porralokice: um grupinho de crianças de classe média alta se mete numa floresta, encontra o Tio Maneco, enfrenta um homem-jacaré e é salvo da natureza selvagem por uma trambiqueira de Copacabana. Pronto, estraguei a surpresa.
Minha prima não ligou para os efeitos especiais meio bizarros nem para uma cena em que dois garotos quase caem de uma ribanceira, mas são capturados por uma bola verde voadora que parece saída de um clipe antigo do Black Sabbath. Minha prima delirava de emoção. Eu imaginava: como aquela cena estaria descrita no roteiro? “E então os garotos são salvos por uma bola verde gigante voadora, e fazem gracinhas dentro da bola”.
Os pirralhos aventureiros falam tanto a palavra “caraca” que eu já estava me arrepiando todo, aí vi um índio com sotaque carioca e desisti de entender. Minha prima explicou que o desafio dos meninos era entrar no olho de um jacaré de pedra e resgatar um sapo de cerâmica que hipnotiza as pessoas. Ã-hã. Acordei do sono profundo numa cena em que as crianças flutuam em bóias coloridas numa espécie de mangue daqueles que a gente encontra no caminho para Pedra de Guaratiba (N.E.: Tiago Superoito, carioca, está contaminado pelo espírito natalino, e por isso escreve como um débil mental).
O Tio Maneco já está bem velhinho, e entra e sai da trama alegremente como um daqueles coadjuvantes insignificantes de Robert Altman. Há vezes em que ele aparece bem mais novo, em imagens rabiscadas meio Grindhouse de um filme antigo cujo nome não sei e estou com preguiça de procurar no Google.
Uma cambada de crianças pula de pára-quedas – minha prima, nesse trecho aí, gritou ‘caraca!’ – e, logo depois, muitas delas desaparecem da história. “O que aconteceu com as outras crianças?”, minha prima perguntou. “Pode ser que tenham morrido”, o “tio” respondeu. “Elas vão voltar?”, a prima perguntou. “Não, provavelmente morreram.” A vida não aceita artimanhas de roteiro, e é bom aprender isso desde cedo.
Minha prima gostou do filme. Perguntei a ela qual seria a cotação para o que acabara de ver e, depois de eu ter explicado o significado da palavra cotação, respondeu três estrelas. Por mim, não levaria uma estrelinha sequer, sou adulto e não tenho coração. Ficamos na média, e agora ela me fez prometer que irei acompanhá-la de novo no cinema “ano que vem” (e eu caí nessa charada ridícula). Semana que vem, talvez eu pegue uma sessão de Bee movie ou de Encantada ou de outro enlatado qualquer.
A desconhecida *
A ucraniana Irina (Xenia Rappaport) tem tantos segredos escondidos no porão que uma década de terapia provavelmente serviria apenas para catalogar os traumas por ordem alfabética. Exilada na Itália, ela tenta escapar de um passado morto-vivo, que para ela retorna em flashes de lembranças – e para nós, espectadores sequelados, em flashbacks fragmentados, sangrentos, amarelados e tremidos, mais ou menos como cenas deletadas de um capítulo de Jogos mortais.
Ela sabe de quem escapa. E também sabe por que decide se infiltrar, disfarçada de empregada doméstica, na casa de uma família de classe média. Nós engoliremos essas informações aos poucos, já que estamos presos num thriller que, com duas horas de duração, só começará a revelar as verdadeiras intenções lá pelo centésimo minuto. Enquanto isso, seremos entretidos por um daqueles exercícios de estilo que, em uma suposta biografia de Giuseppe Tornatore, constará como a “homenagem a Hitchcock” ou como a “homenagem a (inclua aqui o nome de algum mestre italiano do cinema de horror, obscuro)”.
Tornatore manipula o gênero como quem usa serra elétrica para fatiar pizza. Não espere dele o mínimo de sutileza. Não espere senso de humor, nem mesmo em momentos acima do tom que estão um dedinho do completo ridículo (por exemplo: as cenas em que a obstinada Irina vaga por um lixão, à Estamira). A trilha sonora de Ennio Morricone nos prega repetidos sustos, como uma peça extravagante que se desenrola à margem da narrativa. E a fotografia é tão sombria que, na tosca versão digital exibida em cinemas brasileiros, dá vontade de pedir emprestado uma lanterna facilitar o acesso a algumas das cenas. Quando chegamos aos momentos finais, dá para admirar a ousadia de Tornatore (que também escreveu este roteiro esquisitíssimo). Mas também fica a vontade de assistir a qualquer Hitchcock, nem que para tirar o gosto amargo de derivação vagabunda – o que não chega a ser a mais saborosa das impressões.
A bússola de ouro *
Uma coisa é construir um universo fantástico – outra é transformar a construção desse universo em uma dor de cabeça diabólica. Admiro a criatividade de Philip Pullman, que inventou uma forma complicadíssima de narrar uma fábula muito simples, e a cara-de-pau de Chris Weitz, que a adaptou num rocambole de referências (diretas ou indiretas, a esta altura não importa) a Senhor dos anéis, Harry Potter e, num determinado momento (acredite, arght), até a Piratas do Caribe. Na tentativa de fabricar o Ultimate Blockbuster, Weitz se aproximou perigosamente de uma estranha sátira involuntária dos lançamentos de férias. Cada seqüência deste filme nos levará inevitavelmente a outro filme – e a outro, e depois a outro, e depois a uma dor de cabeça diabólica.
A jornada de uma menina nos confins de um planeta meio mágico (versão feminina de Frodo?) para combater uma instituição de ensino dominada pelo autoritarismo (Hogwatrs em Harry Potter e a Ordem da Fênix?) que também aflige um bando de piratas (oh céus) poderia até ter rendido um filme B tosquinho e agradável, mas infelizmente acabou alçada à condição de grande aposta de fim de ano. Daí que, em vez de tratar a aventura com a leveza que ele merece, Weitz imprime à trama aquele peso de auto-importância capaz de transformar cada pequeno elemento da narrativa (e são muitos) em uma espécie de código secreto. Até deciframos que, por aqui, os animais de estimação representam a alma de cada pessoa, teremos perdido o fio da meada de todos os Tão Importantes Debates encenados por personagens que só parecem existir para discutir assuntos supostamente muito importantes (N.E.: Tiago Superoito perdeu os cinco primeiros minutos de filme, que supostamente explicam direitinho toda essa questão de fundamental interesse).
Pior é como guarda a solução dos mistérios mais palpitantes (qual seria, afinal, a função do tão enigmático Pó?) para o próximo episódio da série. Estamos na era dos filmes que, a partir do decalque de fórmulas de sucesso, funcionam como trailers informais para outros filmes. Bom lembrar que a brincadeira de transformar nosso cérebro em gelatina de morango custa quase R$ 20.
Garçonete **
Quando vi o cartaz, já pensei: lá vem mais uma comédia romântica a lucrar com o efeito afrodisíaco da gastronomia nos corações, mentes e estômagos de espectadores mais sensíveis (e famintos).
Muito enganado, eu. Se o filme não chega a ser nouvelle cuisine, é daqueles que tentam arejar um gênero surrado com personagens de carne-e-osso. Até o balcão de oferendas saborosas e altamente calóricas – e, se você não sair da sala de exibição com vontade de comer torta de chocolate com morango, provavelmente precisará ir ao médico para uma consulta de emergência – parece ficar em segundo plano, como uma espécie de entradinha para abrir nosso apetite para a trama principal, sobre uma garçonete com o simples desejo de abandonar o marido bruto e a vida modorrenta em uma cidade sem futuro. Como se a premissa de O céu de Suely encontrasse o tom colorido e amigável de Pequena Miss Sunshine – e daí dá para ter uma idéia do sabor de um filme que até parece, mas não é mera tortinha de maçã do McDonald’s.
É filme que eu colocaria pra rodar antes da ceia de Natal. Minha mãe cairia no choro e minha tia provavelmente terminaria o casamento com o tio encrenqueiro. Mas é esse o espírito. Por falar nisso, antes que seja tarde, Feliz Natal!
Propriedade privada **
Um dos melhores filmes de terror do ano.
Aí vocês me perguntam: foi um bom ano para filmes de terror? Não foi. Mas este conto mínimo sobre relações familiares provoca mais frio na espinha que, digamos, 30 dias de noite. Perturba, e de um jeito que as almas-penadas tailandesas, por exemplo, não conseguem. É que, até certo ponto, o tom extremamente realista desta encenação nos deixa perigosamente perto das vidas de pessoas tão iguais a tantas que conhecemos, e ao mesmo tempo amarradas em laços sentimentais tão doentios.
De início, até imaginamos que trata-se de mais uma história sobre a mãe possessiva que mina a vida adulta de dois filhos, irmãos gêmeos. Parece que ela os aprisiona em um casarão (mal-assombrado?), já que o ex-marido mal pode se aproximar dos dois. Mais adiante, descobrimos que a situação é mais complexa: quando a mãe começa a planejar o futuro ao lado de um novo namorado, os filhos não aceitam. E não aceitam violentamente. Todos deverão viver juntos sob aquele teto. Por quê? Até quando? Os personagens não têm respostas, não querem respostas. Estão todos perdidos em um delírio tão íntimo que ninguém poderá resolver.
Com esses dramas, e apenas com eles, o filme já seria muito assustador. Provocaria ainda mais impacto com 70 minutos de duração, como um golpe rápido e frio. Quanto mais próximo das nossas vidas, mais tormento provoca. O que me incomoda no filme é a necessidade de levar esse conflito a um ponto alto, a um clímax, a uma dispensável simplificação de intenções. O que fica na minha memória não é o desfecho, mas a simples imagem dos três personagens atirados no sofá da sala, no descanso vazio de uma prisão domiciliar. Brrrr.
O sobrevivente **
Não sei, mas fico com a impressão de que temos a tendência de valorizar qualquer novidade de cineastas como Herzog mais pelo repertório de obsessões que esses diretores carregam que por aquilo que efetivamente estará nos filmes em si. Normal, isso acontece. Ninguém vê um filme do David Lynch da mesma forma como encara qualquer entulho desconexo do Gore Verbinski, por exemplo. E Herzog continuará a fazer grandes obras como O homem-urso, para ficarmos em apenas uma delas. E se da próxima vez estivermos diante de uma preciosidade dessas, sem nos darmos conta disso?
Mas, se você tirar o típico momento-Herzog – o encontro entre um homem em condições extremas e a natureza, filmado com a habitual competência -, O sobrevivente poderia ter sido feito por outro cineasta. Não digo outro cineasta qualquer, até por que não deve ser fácil dirigir um filme de prisão tão duro e pouco espetacular, mas Herzog desta vez não consegue muito transferir para o filme a angústia dos personagens. Fica aquela coisa meio fria, distanciada. Em O homem-urso (e cá voltamos a ele), havia um diretor ainda em dúvida, ainda tenso com as imagens que decidiu mostrar ao público. Aqui, existe uma estranha aparência de tranquilidade. É um bom filme, mas que será tratado inevitavelmente (pelo menos em alguns círculos) como algo bem maior.
Retrô 2007: melhores filmes
Quando me vi diante dos mais de 300 filmes que conferi este ano e tentei tirar dali um resumão de grandes momentos, terminei com uma lista de cerca de 20 longas – um número pode parecer até expressivo, mas que (e eu sei disso melhor que ninguém) acaba se repetindo sempre. A diferença é que, em 2007, a quantidade de lançamentos excelentes – aqueles que superam as nossas melhores expectativas – ficou muito acima da média. O balanço impressiona: quase todo o meu Top 10 é de filmes obrigatórios, que receberam cotação máxima deste sujeito ranzina que vos escreve.
Antes do desfile dos campeões, lembro que só entram na lista os filmes lançados no circuito brasileiro durante o ano de 2007. E, por tudo o que as mostras anteciparam, já dá para ter uma idéia de que 2008 será um ano talvez tão interessante quanto. Aguardemos.
MELHORES FILMES DE 2007
1. Império dos sonhos, de David Lynch
Dos porões de Los Angeles, das entranhas de Hollywood, do pesadelo mais desagradável: solto de qualquer amarra, como quem entrega um presente a si mesmo, Lynch filma a agonia.
2. Jogo de cena, de Eduardo Coutinho
O cinema de Coutinho caminhou para chegar até aqui. Como mais uma coleção de histórias bem narradas, é fascinante. Como ensaio sobre a encenação, obra-prima.
3. Lady Chatterley, de Pascale Ferran
O corpo descoberto, pronto para redescobrir o mundo.
4. Zodíaco, de David Fincher
Porta-voz da América dos obsessivos, Fincher se olha no espelho e permite que nos olhemos também. Não é mais um filme de serial killer.
5. Em busca da vida, de Jia Zhang-Ke
O país e as pessoas: movimento lento e perpétuo, destino desconhecido.
6. Medos privados em lugares públicos, de Alain Resnais
Corações sob a neve.
7. Maria, de Abel Ferrara
Desde A última noite, o grande filme sobre uma América esvaziada, presa no vão da crise.
8. Cartas de Iwo Jima, de Clint Eastwood
A guerra do outro.
9. O hospedeiro, de Bong Joon-Ho
Num mundo perfeito, o maior blockbuster de 2007.
10. Cão sem dono, de Beto Brant e Renato Ciasca
Da literatura, o projeto arquitetônico. No cinema, a construção.
Menções honrosas: A espiã, de Paul Verhoeven, Ratatouille, de Brad Bird, e Tropa de elite, de José Padilha
Na Holanda, Verhoeven encontrou a liberdade para entregar-se ao espetáculo mais envenenado. Nas veias do império hollywoodiano, Brad Bird injeta uma bela fábula sobre o processo criativo. Já Tropa de elite, com um interessante jogo de pontos de vista, é mais que um fenômeno pop. A cada um, seu cinema.
A retrospectiva de 2007 termina aqui. Agora que cabou a festa, voltamos à programação normal.
Retrô 2007: piores filmes
Antes do paraíso, o inferno. Este foi um ano até bem decente no circuito brasileiro, mas não podemos esquecer (e não podemos mesmo, já que eles grudaram insuportavelmente na memória) dos filmes que quase nos fizeram comprar uma AR-15 no mercado negro, invadir o multiplex mais movimentado e mandar tudo (e todos) às favas. Com vocês, os abacaxis.
OS PIORES FILMES DE 2007
1. Piratas do Caribe – No fim do mundo, de Gore Verbinski
Uma aventura cadavérica, a forma mais mecânica de filmar o absoluto vazio. Se Verbinski buscava o equivalente cinematográfico para o fim do mundo, conseguiu.
2. 300, de Zack Snyder
A violência é tão fascinante, e nossas vidas são tão normais.
3. Ó paí, ó, de Monique Gardenberg
Vá à Bahia e não me convide.
4. O homem que desafiou o diabo, de Moacyr Góes
O grotesco em celulóide. E é o melhor filme de Moacyr Góes.
5. O magnata, de Johnny Araújo
Juventude descerebrada, filme idem.
6. Babel, de Alejandro González Iñarritu
O mundo, for dummies.
7. Turistas, de John Stockwell
Vá ao Brasil e não me convide.
8. Pecados íntimos, de Todd Field
Ironia é para quem pode.
9. Deite comigo, de Clément Virgo
Sexta sexy com lição de moral cristã.
10. Número 23, de Joel Schumacher
2+3=5. Bomba, 5 letras.
Menções horrorosas: O amor nos tempos do cólera, de Mike Newell, e O vidente, de Lee Tamahori
Respectivamente, as piores adaptações de García Márquez e de Philip K. Dick de todos os tempos.
Amanhã eu volto com os melhores, espera aí.
Retrô 2007: melhores álbuns
Fechar uma lista de dez álbuns em um ano de lançamentos tão surpreendentemente bons não é a mais tranquila das tarefas. Se eu pudesse fazer algum tipo de mutreta, incluiria pelo menos outros quatro no meu Top 10. Por isso, não deixem de valorizar o catatau de discos listados logo abaixo da seleção de favoritos – todos eles merecem carinho e atenção.
MELHORES ÁLBUNS DE 2007
1. Sound of silver, LCD Soundsystem
Agora que todo mundo já notou que este é o crossover mais saboroso entre rock e eletrônica que ouvimos em muitos anos, podemos ir ao coração da história?Mais impressionante que o laboratório formal de James Murphy é como nosso DJ preferido contamina a máquina com poesia franca, sangrenta. Há outro álbum de dance music tão dedicado à crônica das responsabilidades e decepções da vida de adulto? Se há, este aqui certamente é mais comovente.
2. Hissing fauna, are you the destroyer? e Icons, abstract thee, Of Montreal
When someone great is gone.
3. Kala, M.I.A.
Como compor a trilha sonora de um mundo de fronteiras borradas, identidades confusas, conflitos globalizados? Aprendemos a receita com M.I.A., a única capaz de integrar o caos contemporâneo em formato de world music vibrante, capaz de transitar pelo planeta sem vergonha ou passaporte. Soa como o álbum mais despretensioso do ano. No fundo, é o mais ambicioso – e, o tempo dirá, talvez o mais importante.
4. Strawberry jam, Animal Collective
Não há mais como lembrar da época em que o Animal Collective caía de amores pelo folk mais prosaico, despedaçado em belas invencionices de estúdio. Aqui, eles são areia de deserto. Duros na sonoridade, que parece produzida por uma indústria metalúrgica. Furiosos no discurso, que dispara refrões confessionais com a angústia de quem nunca mais terá algo a dizer. Isto é indie rock.
5. In rainbows, Radiohead
Já pela corajosa estratégia de marketing, mereceria um espaço nesta lista – e, de Ok Computer a Kid A, a arte do Radiohead também sempre se dedicou a envenenar os esquemas comerciais de corporações e inimigos afins. Surpresa em igual tamanho: você pode até não ter entendido a razão do título, mas In rainbows não quer te combater. É o álbum mais direto e sensual da banda, um estranho aviso pacífico ao mundo – ‘apesar de tudo, estamos com vocês’.
6. Andorra, Caribou
Summer is ready when you are.
7. GaGaGaGaGa, Spoon
Menos é mais? Que nada. O Spoon é uma das bandas mais sofisticadas, mais cerebrais em atividade. Que culpa eles têm de serem apaixonados por música pop?
8. Person pitch, Panda Bear
Um álbum criado de forma tão modesta – com a demorada, preguiçosa, informal colagem de samplers em um laptop – que deixa a impressão de um hobby esquisito capturado em formato de disco. E um disco tão otimista e descompromissado que provavelmente levaria Brian Wilson às lágrimas.
9. Night falls over Kortedala, Jens Lekman
Bedroom rock é o novo hype, mas o álbum de Lekman provoca estranhamento por nunca soar como um trabalho caseiro. Os samplers são cristalinos, a poesia é enxuta, as referências nunca parecem exageradas. Depois de repetidas audições, a caixinha de música se transforma em uma belíssima viagem ao redor do quarto. O mundo fica para depois.
10. Boxer, The National, e Friend opportunity, Deerhoof
Eu tentei, juro que tentei. Enquanto vocês fazem de conta que há 10 álbuns no meu Top 10, eu fico aqui, debaixo da chuva, com as sombrias canções de amor do National num lado do headphone e o rock-pré-escolar do Deerhoof do outro. Não me peçam para escolher.
E mais: †, Justice; American gangster, Jay-Z; Challengers, The New Pornographers; Everybody, The Sea and Cake; The flying club cup, Beirut; Fourteen autumns and fifteen winters, The Twilight Sad; It’s a bit complicated, Art Brut; Let’s stay friends, Les Savy Fav; Liars, Liars; Myths of the near future, Klaxons; Mirrored, Battles; New wave, Against Me!; Release the stars, Rufus Wainwright; Spirit if, Kevin Drew; Vanguart, Vanguart; We were dead before the ship even sank, Modest Mouse; White chalk, PJ Harvey; Widow city, The Fiery Furnaces; Wincing the night away, The Shins.
Retrô 2007: melhores músicas
Chegou a hora, a hora chegou. Não sei se vocês esperam por isso, mas eu sim. Entra ano, sai ano, nasce blog, morre blog, e o costume de criar listinhas de melhores mantém-se firme, incontornável – pelo menos por aqui. A partir de hoje, caso você se revele uma pessoa paciente e persistente, encontrará a cada dia uma lista de melhores de 2007 aqui neste modestíssimo porão virtual -e aí entram discos e filmes, para facilitar o processo.
Como sempre, não estou aí para a tentativa de uma retrospectiva abrangente e generosa e múltipla e diversificada e… vocês entenderam. Tudo o que tenho a oferecer é minhas melhores lembranças do ano em que os filmes e os discos voltaram a ocupar – quase sem querer, e não posso dizer que eu me orgulhe muito disso – um papel meio que central na minha vida.
Sem mais parágrafos introdutórios. Vamos aos meus favoritos, antes que o ano acabe e ninguém se importe mais com isso.
MELHORES MÚSICAS DE 2007
1. No conclusion, Of Montreal
I’m killing myself But it’s not suicide I’m killing myselfAs canções mais ambiciosas nem sempre são as melhores. Mas, apesar de ter me aproximado com muito receio dessa suíte-super-luxo do Of Montreal (9 minutos? Três músicas em uma?), ainda me assombro com a coragem de alguém capaz de terminar uma música com a constatação de que, apesar de ter feito o possível para resolver a questão mais importante de todas, não existe mais solução. It’s hopeless, e os acordes são engolidos pelo arranjo de cordas mais violentamente triste do mundo.
2. Someone great, LCD Soundsystem
And it keeps coming And it keeps coming And it keeps coming Til the day it stopsNo centro de um álbum de música eletrônica e pós-punk, a doce e dolorida crônica da perda – da saudade e do vazio que continuam voltando até o dia em que páram.
3. Irene, Caribou
You should know better anyway The way that you say You’ll never go awayComeça como eletrônica à algodão-doce, termina como um delírio de amor romântico. O entardecer de um belo álbum de verão.
4. For reverend Green, Animal Collective
Now I think it’s alright to feel inhuman Now I think that’s a riot, oh yeah Now I think it’s alright to sing together Now I think that’s a riot, oh yeahÉ ok cantar junto, oh yeah. Mas de onde vem toda essa agoniaaaaaa?
5. Weird fishes/Arpeggi, Radiohead
I’ll hit the bottom Hit the bottom and escapeDepois de ser devorado por vermes e peixes estranhos, Thom Yorke atinge o fundo do poço e escapa. Há esperança.
6. D.A.N.C.E., Justice
The way you move is a mystery You’re always there for music and meUma homenagem ao Michael Jackson, mas tente ouvir sem essa referência: se transforma numa ode sincera, juvenil à dance music. Tudo o que precisamos.
7. A postcard to Nina, Jens Lekman
Don’t let anyone stand in your way
Na tradição de Smiths, Belle and Sebastian e Magnetic Fields, uma canção de amor para cínicos.
8. Stronger, Kanye West (com Daft Punk)
Don’t act like I never told ya!
Há tempos alguém nos devia a tradução do Daft Punk para o mainstream. Qualquer pessoa. Kanye West? Desejos atendidos, e da melhor forma possível.
9. Turn on me, The Shins
You had to know that I was fond of you Fond of Y-O-UNo ano em que o Shins abriu asas e voou, ainda nos apegamos à absoluta simplicidade do passado. Somos uns nostálgicos.
10. The perfect me, Deerhoof
Meet me, meet me Meet the perfect meNa abertura do álbum mais direto e divertido de uma discografia inclassificável, o Deerhoof dispara o rojão. Perfeitos, eles.
E mais: All my friends, LCD Soundsystem; Archangel, Burial; Atlas, Battles; Bros, Panda Bear; Either way, Wilco; From nothing to nowhere, Pinback; Golden skans, Klaxons; Is there a ghost?, Band of Horses; Jimmy, M.I.A; Keep the car running, Arcade Fire; Kiss kiss is getting old, Les Savy Fav; Long walk home, Bruce Springsteen; On call, Kings of Leon; 1 2 3 4, Feist; Roc boys, Jay-Z; Sci-fi kid, Blitzen Trappen; Slideshow, Rufus Wainwright; You got yr cherry bomb, Spoon.
Senhores do crime ***
Há uma disputa seca e tensa entre mafiosos russos – estamos em um duríssimo filme de gângster. Mas logo ali transita a médica angelical que procura final feliz para um recém-nascido sem pai nem mãe. Seria um conto de fadas? Mais adiante, o gângster encontra a médica e estamos quase na borda de um filme de amor. Mas quase. A trama dobra a esquina e, numa seqüência inacreditável de pancadaria dentro de um banheiro público (que termina da forma mais cruel que poderíamos imaginar), nos damos conta que estávamos desde sempre em um… filme de David Cronenberg.
Não importa mais o que ele decida filmar, se o homem-mosca ou o (traumatizado) homem-aranha. Há temas que perspassam o subtexto de cada um dos filmes, e que retornam aqui sob falsa aparência de sobriedade. Mais que amarrar as pontas de uma história de reviravoltas e traições, Cronenberg vai fundo no estudo psicológico de personagens endoidecidos pelo desejo de roubar o poder, estar no poder, manter-se no poder. Não há como dividir tronos – e, esse jogo doentio de “resta-um”, o cineasta acompanha com distanciamento, e tristeza. Ele sabe como a história termina, mas ainda não consegue entender os estranhos mecanismos da obsessão humana. O cinema de Cronenberg não está aí para satisfazer as vontades de ninguém: fica mais complicado, e melhor, com o tempo.
Encantada **
Atenção, meninas de nove anos de idade: príncipes encantados existem, mas podem não ser tão interessantes quanto o bobalhão da porta ao lado.
E assim, com esse tipo de lição de moral meio torta, a Disney segue conquistando minha admiração. É o que chamo de feel good movie.