Mês: fevereiro 2010
Mixtape! | O melhor de fevereiro
Pelo menos para este blog, que não é de ferro, fevereiro não foi um mês fácil. Depois do carnaval, ainda entorpecido pelo consumo desmedido de marchinhas desafinadas, este depósito de abobrinhas capotou na quarta-feira de cinzas e por pouco não saiu do buraco. Dureza, meus irmãos. O pobre coitado quase cometeu blogcídio. Sei que já vimos este filme – mas não deixa de ser um filme triste.
Pois bem: o blog agoniza, mas não nega fogo. E, já que todo fevereiro tem seu fim, chega a hora da minha obrigação mensal favorita – as coletâneas, que preparo com todo amor e carinho.
A deste mês é a mais sortida de todas (mais ainda do que a seleção de melhores de 2009, que você ainda encontra aqui, na parte 1 e na parte 2). Tem indie e soul e minimal e folk e até uma faixa alegrinha do Tindersticks com um quê de Burt Bacharach. É quase um desfile de escola de samba. Detalhe: sem modéstia, a seleção ficou muito bacana (vou até gravar num CD pra ouvir de vez em quando).
(Aliás, recomendo aos interessados que se apressem: a coletânea de janeiro durou menos de 10 dias, quando finalmente foi devorada pelo lado negro da força).
E os melhores do mês foram… O meu disco número 1 de fevereiro é o desta banda que está na foto do post, o Titus Andronicus. The Monitor é daqueles épicos exageradamente humanos. Mas vejam bem: ninguém pode virar o semestre sem ouvir os do Surfer Blood e do Local Natives. São finíssimos, bons do início ao fim. Antes que me perguntem sobre a Joanna Newsom, que entrou na mixtape (como não?), explico que estou desbravando len-ta-men-te o disco triplo da moça. Prometo um texto até… pode ser setembro?
Tai a setlist da vez:
1. Floating vibes – Surfer Blood 2. Airplanes – Local Natives 3. Paradise Circus (com Hope Sandoval) – Massive Attack 4. I learned the hard way – Sharon Jones & the Dap Kings 5. Harmony around my table – Tindersticks 6. Four score and seven (Part one) – Titus Andronicus 7. Bike (Pink Floyd) – The Hotrats 8. Stick to my side (com Panda Bear) – Pantha du Prince 9. Excuses – The Morning Benders 10. Good intentions paving company – Joanna NewsomO link para download é este aqui: Mixtape – O melhor de fevereiro (link atualizado!).
Superoito express (18)
Gorilla manor | Local Natives | 8
Quando ouvi este disco de estreia do Local Natives pela primeira vez, admito que não me animei muito: este quinteto de Los Angeles exibe as próprias referências musicais com o entusiasmo meio ingênuo de um adolescente que, na parede do quarto, pendura cartazes coloridos das bandas favoritas. Daí que não é preciso bater um papo com sujeitos para entender que eles amam os climas misteriosos dos discos do Radiohead, o (falso) descontrole do Pixies, o transpop do Talking Heads (via Vampire Weekend), a emotividade do Arcade Fire e os ventos interioranos de uma balada do Band of Horses. Tudo muito bonito e organizadinho. Mas não seria o caso de abandonar esta banda e ir direto às fontes?
A resposta é um grande não. O “problema” é que, pelo menos para a parte do público que acompanhou o rock dos anos 90 e 00, Gorilla manor despertará tamanha familiaridade que poderá provocar dois tipos extremos de reação: amor imediato ou desconfiança. Dê uma chance ao amor, ok? E note como é interessante a forma como eles conseguem interpretar as próprias referências com muita franqueza, como quem revira as gavetas, escreve uma carta de amor aos ídolos e pede passagem.
Dito isso, taí um début elegantemente ambicioso, com uma obra-prima irresistível (Airplanes, que é tão emocionante quanto Funeral, do Band of Horses), canções obsessivamente buriladas e, mais importante, o ânimo daquelas bandas que apostam tudo em planos incríveis, gigantescos, talvez ridículos. Nisso também lembra Arcade Fire (ou Guillemots, hein?). Fiquemos com a boa lembrança.
Black noise | Pantha du Prince | 7
Nunca entendi o que há de tão extraordinário ou particular na microeletrônica de Hendrick Weber — e olha que tentei os dois discos anteriores dele, que oscilam entre o sublime e o letárgico —, mas Black noise me obrigou finalmente a entrar na sintonia do alemão. Não é um álbum tão acessível quanto parece (a participação de Panda Bear em Stick to my side, a música mais pop que o Pantha du Prince já gravou, pode provocar interpretações equivocadas), mas faixas como Lay in a shimmer e Behind the stars mostram um estilo que se torna mais compacto, seguro e melodioso sem perder a carga de invenção que sempre esteve associado a ele. Para quem gostou do disco mais recente do Four Tet, é um desafio que vale todo o esforço.
Falling down a mountain | Tindersticks | 6.5
Este álbum do Tindersticks, um dos mais sortidos da banda, me decepcionou um pouco — talvez por ter me lembrado de como o Lambchop se apropria de referências mais ou menos parecidas (country, folk, soul music, lounge, easy listening) e, com elas, faz discos infinitamente mais enigmáticos do que este. Falling down a mountain soa como uma tarde de férias na companhia de Stuart Staples, confortável e até despretensioso, com um ar de trilha sonora (reflexo da experiência de Staples no ramo) e até momentos de pausa na habitual melancolia (Harmony around my table é o susto da vez). Não dá pra recusar um disco desses, mas não me peçam para cair de amores por ele.
Turn ons | The Hotrats | 6
Pelo menos por aqui, eram grandes as expectativas para este projeto de Gaz Coombes e Danny Goffey (ambos do Supergrass) que, com produção de Nigel Godrich (Ok computer, Sea change), se dispõe a reinventar maravilhas como I can’t stand it (Lou Reed), Big sky (The Kinks) e E.M.I. (Sex Pistols). Mas acaba que Turn ons soa como muitos álbuns do gênero: as versões não trazem nenhum insight muito particular e fica a impressão de que as homenagens renderiam mais em palco (e aí todos cantaríamos juntos e haveria drinks de graça e choraríamos de emoção e seria o melhor dia das nossas vidas) do que em disco. A boa sacada: Bike, do Pink Floyd, com neon e glitter.
IRM | Charlotte Gainsbourg
Na segunda semana de fevereiro, a Liga dos Blogues Cinematográficos escolheu os melhores do ano. Uma votação acirradíssima, vocês sabem. E não é que, com o aval de 12 blogueiros (num total de 44), o prêmio de melhor atriz ficou com Charlotte Gainsbourg, por Anticristo? Eu discordo. De verdade. Há atuações mais interessantes. Tenho certeza de que existe uma intérprete extraordinária escondida numa pequena produção norueguesa que ninguém viu. Mas admito: votei nela.
Ela venceu Cannes e, se criassem um troféu para a melhor cantora indie francesa de 2010, provavelmente a filhinha do papai Serge e da mamãe Jane Birkin embolsaria o souvenir. Eu também discordaria. Charlotte nunca se destacou pelo virtuosismo do canto, por exemplo. E, nos discos que gravou até agora, não chegou a definir um estilo: sempre permitiu que produtores e amigos compositores a transformassem naquilo que bem entendessem. Mas confesso: se ela a pegasse cantarolando a Marselhesa numa estação de metrô de Paris, eu pararia para olhar. E ficaria olhando.
Charlotte não atua, não canta e parece eternamente perdida (e às vezes entediada) na floresta do rock. É isso. E, se é isso, o que ela tem? Por que os prêmios? Por que tantos amigos famosos? Por que ela provoca uma espécie de atração magnética sobre sujeitos como eu, que racionalmente não vêem nada de extraordinário nela?
Depois de muito ouvir o disco mais recente dessa musa misteriosa (há outra forma de descrever?), IRM, acho que cheguei a uma conclusão sobre o fenômeno: tanto nas cenas mais grotescas de Anticristo quanto num single-chiclete como Heaven can wait, o que me interessa é a forma como Charlotte expõe uma persona que paira acima de qualquer filme, disco e clipe. Diante dela, fica a impressão de que a mulher real, de carne e sangue, divide o estúdio (ou a tela) com a personagem.
E, na música pop e no cinema, existe algo muito fascinante no ato de coragem daqueles que aceitam confundir vida e arte. No rock, acredito até que a separação total entre as duas coisas me provoca um tanto de tédio. Outro dia me peguei ouvindo uma música do Skank e perguntando: quem é Samuel Rosa? O que ele pensa? O que ele sente? Ele está triste ou feliz? Passei minha vida inteira ouvindo Skank e ainda não sei nada disso. Daí uma questão mais importante: por que cobro esse tipo de cumplicidade e franqueza de artistas pop?
No caso de Charlotte, nem é preciso exigir nada. Ela está entregue. Está na nossa mão. IRM (um título inspirado no som dos aparelhos médicos de ressonância) soa como o equivalente musical para Anticristo: o momento em que, depois de uma tragédia pessoal, tenta-se entender a dimensão do trauma. Para Lars Von Trier, o monstro veio na pele de uma crise depressiva. Já Charlotte sofreu uma cirurgia no cérebro como conseqüência de um acidente de ski. A aproximação com a morte é o tema predominante de IRM.
De alguma forma, a urgência de gravar essas canções (como quem escreve telegramas para amigos preocupados) beneficiou a estrutura do disco, mais conciso do que o anterior. Produzido por Nigel Godrich, o álbum 5:55, de 2006, mostrava Charlotte no papel de uma Dona Flor pós-moderna, dividida entre Jarvis Cocker (Pulp) e o Air. O novo é monogâmico: escrito e produzido quase completamente por Beck Hansen (à exceção da fantasmagórica Le chat du café des artistes, de Jean-Pierre Ferland), é um diálogo entre um homem e uma mulher – em tempos sombrios.
Apesar da aparente simplicidade, este me parece o álbum mais diverso e aventureiro que Beck compôs desde Sea change (2002). É uma colaboração, no mínimo, frutífera: Charlotte talvez tenha procurado em Beck uma forma de compreender a influência do pai, Serge, no rock contemporâneo (e aí vale lembrar que o próprio Sea change é, em grande parte, inspirado pelo provocateur francês). Enquanto isso, Beck encontra em Charlotte uma atriz para uma narrativa feminina, com melodias folk e arranjos psicodélicos.
Mesmo cinza e grave (já que o momento de Charlotte não é lá um arco-íris), IRM também soa como o retrato de um encontro feliz entre musa e “cineasta”. Beck escolhe as atmosferas das canções como quem vai desenhando as cenas de um fita surrealista, um sonho dolorido e louco. Charlotte, forte que é, sobrevive a todos os filtros e figurinos – interpreta o script com absoluta convicção. Ela está viva e quente em Vanities, uma balada em tom menor que vai agradar ao público da Feist, mas também em Voyage, que soa como os momentos mais etéreos, românticos e inclassificáveis do Daft Punk. Ele está sempre lá, no comando da câmera. Mas Charlotte é o objeto do close. E nos faz acreditar que sim, ela viveu o drama que narra.
Preciso explicar por que meu voto é (e continua sendo) dela?
Terceiro disco de Charlotte Gainsbourg. 14 faixas, com produção de Beck Hansen. Lançamento Because Music. 8/10
Giving up the gun | Vampire Weekend
No clipe de Giving up the gun, uma das faixas mais surpreendentes de Contra (e que, reconheça, parece sim ter saído do repertório do Postal Service), o Vampire Weekend faz um pocket show para uma esquentada partida de tênis que envolve celebridades como Jake Gyllenhaal, RZA, Lil Jon e Joe “Eu já sabia que o sujeito era cool” Jonas. Lá pelas tantas, dois sujeitos vestindo capacetes de motoqueiro dão o ar da graça – mas aposto que eles não têm nenhum parentesco com o Daft Punk. A brincadeirinha é dirigida pelos irmãos Malloy, que (também aposto!) vão finalmente transformar esta nossa querida banda indie num fenômeno do YouTube e da MTV.
2 ou 3 parágrafos | O lobisomem
O lobisomem (2/5) é desses casos estranhos: um filme que tem muito (um ótimo ator no papel principal, direção de arte caprichada, bela trilha e um conceito firme de homenagem a antigas fitas de monstro da Universal), mas que me deixou petrificado. Foi como assistir a uma colagem impessoal, quase grosseira, de ótimos atributos técnicos e boas intenções. Traduzindo para um linguajar carnavalesco: é aquela escola de samba nota 10 em alegorias e adereços mas que, na avenida, passa feito elefante.
O que acontece? Talvez haja algo problemático na ideia de aproveitar a persona turrona de Benicio del Toro num papel que exige um ar melancólico, romântico. No caso, não dá pé. Mas acredito que a explicação para o que há de oco na narrativa está na direção acéfala. De quem é este filme? Quem é Joe Johnston? O que ele tem a dizer sobre o passado da Universal Pictures? Ainda não faço ideia. Ele vai lá e faz o trabalhinho.
Imagino que, se dirigido por um Tim Burton ou por qualquer outro cineasta com o mínimo de interesse no gênero, este museu de cera possivelmente seria tomado por uma lufada de ar quente. Com Johnston na gerência, é só um museu de cera. Com teias de aranha nos corredores.
Superoito rápido e rasteiro (2)
Like you know it all | Hong Sang-soo | 4/5
Este é o segundo filme de Hong Sang-soo que vejo (o outro foi A mulher é o futuro do homem, de 2004). Daí que não posso encontrar as semelhanças entre este Like you know it all e o passado do diretor (são muitas, dizem). E não sei se me incomodaria com elas. O longa retrata situações muito corriqueiras — em resumo: um jovem diretor de cinema frequenta festivais e conhece pessoas -, mas taí um diretor capaz de olhar para o cotidiano com curiosidade, espanto e a franqueza de um diário. Acredite: neste filme a rotina às vezes parece tomada pelo clima siderado de uma ficção científica.
A divisão da trama em duas partes complementares acentua a impressão de que existe um subtexto misterioso que observa/provoca os personagens. Nada que se aproxime de um tipo banal de misticismo (vide Um olhar no paraíso) ou de filosofices supostamente líricas sobre destino e acaso (vide O segredo dos seus olhos). O diretor é sutil demais para cair nessas armadilhas, e parece entender muito bem os limites e as particularidades do próprio estilo. Estou quase convencido de que seja o único cineasta em atividade que faça justiça às comparações com Eric Rohmer. Próxima parada: Mulher na praia, de 2006.
Lake Tahoe | Fernando Eimbcke | 3.5/5
Por coincidência, logo depois de Like you know it all assisti a outro filme que enxerga as coisas corriqueiras da vida por uma lente torta. Mas, enquanto Sang-soo cria uma atmosfera de leveza à livro de rascunhos (ou de crônicas), o mexicano Fernando Eimbcke desorienta o espectador com uma meta muito precisa: ilustrar a confusão sentimental de um menino metido num drama familiar. O diretor vai tirando lentamente o véu da narrativa (que começa com imagens de uma cidade quase fantasmagórica, filmada em longos planos) até revelar a solução do “mistério” num tom mais carinhoso e pessoal do que poderíamos ter previsto. Muito bonito, ainda que um tanto calculado.
O segredo dos seus olhos | Juan José Campanella | 2/5
O típico candidato que o Brasil inscreveria para concorrer ao Oscar: um drama esguio e posudo (com o “requinte” de uma produção do James Ivory) que me deixou com a maior vontade de assistir a um filme com alguma fluência. Apesar do gosto por melodramas, o forte do diretor de O filho da noiva não é a sutileza (e, nesse ramo, não se aprende muito depois de 16 episódios de Law & Order). É assim, meio no tranco, que ele dá baixa num roteiro complicado (rocambolesco seria um bom adjetivo), que alterna duas tramas em diferentes períodos de tempo, esboça uma reflexão sobre o processo criativo e tenta mesclar uma investigação policial a uma história de amor e obsessão. Existe vida nas cenas finais, mas o filme mal dá conta de carregar o próprio peso.
Percy Jackson e o ladrão de raios | Chris Columbus | 2/5
Quem precisa de um novo Harry Potter? Eu é que não. Este Percy Jackson é um brinquedinho tão oportunista que poderia ter sido engraçado — na trama, que parece uma paródia do último livro da saga de J.K. Rowling, três amigos têm que encontrar pedras misteriosas para salvar o mundo —, mas o mix de mitologia grega, RPG, cosplay, X-Men, Lady Gaga e AC/DC me deixou com saudades de A bússola de ouro. Sério: desta vez, nem os jovens nerds vão (se) aguentar.
Um sonho possível | John Lee Hancock | 2/5
Se Preciosa é o “feel bad movie” da temporada, Um sonho possível usa mais ou menos o mesmo material sensacionalista (o drama de um adolescente negro, obeso, marginalizado, quase catatônico, que encontra um fio de esperança sabe-se lá como) para criar um “feel good movie” para torcidas de futebol americano. Quando Sandra Bullock (interpretando Julia Roberts) vencer o Oscar pelo papel da “mulher branca e bondosa”, você vai testemunhar a maior sandice da Academia desde a vitória de Gwyneth Paltrow por Shakespeare apaixonado. Vai ser triste. Mas já é inevitável.
Um olhar do paraíso | Peter Jackson | 1.5/5
Acusem-no de qualquer coisa (e assinarei embaixo), mas não venham me dizer que Peter Jackson é um sujeito de poucas ambições. O homem é destemido. Depois de se apropriar de Tolkien e King Kong, ele resolveu cruzar a última fronteira e, deus!, filmar o infilmável: o paraíso, o “outro lado”, o indizível, a vida eterna e tudo o mais. Um olhar do paraíso é um objetivo gigantesco disfarçado de “filme pequeno”, daí minha decepção ao notar o quão verdadeiramente pequeno este filme é. O diretor aposta tudo (e ele sempre aposta tudo) num projeto que dificilmente daria certo: encontrar certa harmonia (ou pelo menos um desequilíbrio interessante) entre um thriller PG-13 e uma meditação new age sobre a morte. Acontece que o suspense simplesmente não está lá — e não consigo ver muita diferença entre os delírios de Jackson e aqueles quadros kitsch vendidos em feiras hippie (ou entre este filme e o mortífero Amor além da vida). A menina morta vive nos anos 1970, mas essa não me parece uma justificativa convincente para a overdose de CGI flower power.
2 ou 3 parágrafos | Food, INC
Se me obrigassem a optar entre este documentário e The cove (ambos indicados ao Oscar), eu jogaria os dois filmes para o alto e escolheria aquele que caísse primeiro no chão. Os temas, é claro, são diferentes. Mas, formalmente, são cineplanfletos muito parecidos. Nos dois casos, o espectador é convidado, ao fim da palestra, a acessar um site e participar de uma corrente ecologicamente correta.
Respeito a ideia de defender apaixonadamente uma causa, sem objetivo jornalístico nem nada, mas a pregação me incomoda um pouco. Esse procedimento lembra um pouco os métodos de Michael Moore e do Al Gore (em Uma verdade inconveniente): todos os argumentos são válidos, contanto que não arranhem a tese do cineasta. Não há espaço algum para contradições, complexidade, coisas inexplicáveis. A ladainha é toda pré-fabricada — o que resta é mostrá-la de forma didática aos “leigos” (isso vale para o vídeo dos golfinhos mortos e, em Food, INC, para a visita aos campos de concentração de galinhas).
Ainda assim, dentro desse molde sufocante, vejo algum interesse em Food Inc (3/5). Não tanto nas “denúncias” do filme (eu mesmo, que nem me preocupo muito com alimentação, já sabia sobre a maior parte das informações que estão aqui), mas por algumas reflexões “de raspão” sobre o comportamento humano. O modo como, por exemplo, instintivamente acreditamos que alguém (ou alguma empresa, associação, ou o governo) garante a nossa proteção quando compramos uma embalagem de pão ou um pote de maionese. A verdade é que ninguém garante: e é esse o horror que está embutido neste filme.
Swim | Surfer Blood
Taí a Flórida alternativa do Surfer Blood: tem festa do pijama, faz frio, as jaquetas quadriculadas estão na moda e o Mickey Mouse é um pervertido. Posso ir pra lá? A direção é de Kevin Chapados e Chunwoo Kae.
Heligoland | Massive Attack
Quem tem menos de 20 anos pode (e tem o direito de) desconfiar, mas havia um tempo em que o Massive Attack era uma das bandas mais importantes do planeta.
Sério. Quando lançaram Mezzanine, em 1998, Daddy G, Mushroom e 3D ainda posavam nas fotos como gângsteres emburrados, irritadiços, visionários e muito perigosos. Até eu, um inocente fã de Smashing Pumpkins e Oasis, os respeitava.
Nas revistas inglesas, pareciam intocáveis: passavam por “pais do trip hop” (o gênero mais cool na prateleira de CDs), “alquimistas pop”, “inventores da nova soul music”, “reis de Bristol”. Eram os caras que gravaram uma obra-prima precoce (Blue lines, de 1991) e dois grandes álbuns que chegavam bem perto daquela estreia (Protection, de 1994, e o próprio Mezzanine). Nas listas de melhores do ano, entravam sempre com pulseirinhas VIP.
Acredito até que, por algum momento, alguns meses, lá por volta de 1996, todo rapper sonhava em fazer uma ponta num disco do Massive Attack.
Para quem viveu os anos 90, é complicado entender por que, há 10 anos, o Massive Attack não é capaz de provocar tanta comoção. O que houve? Por que uma banda que traduzia tão bem a atmosfera de tensão e paranoia do fim de século não conseguiu sobreviver ao bug do milênio? Por que, justo no momento em que as coisas ficaram verdadeiramente confusas, eles nos abandonaram?
Sem querer encontrar o diagnóstico para a síndrome, minha hipótese é de que a musa do Massive Attack era os anos 90. O trio soube, como poucos, congelar a polpa de uma década transitória, sem identidade definida, um período de muitas incertezas e transformações velozes, às vezes inacreditáveis (e a banda nem teve tempo para entender a internet, por exemplo). O trip hop é a trilha sonora dos anos 90: uma colagem mutante, urbana, sombria e prestes a explodir.
Discos como Mezzanine e Pre-millenium tension (esse último, do Tricky) ainda soam como um réquiem para o século. Curioso é como o “novo mundo” previsto pelo trip hop acabou por destroçar o gênero. O Portishead demorou uma eternidade para lançar o terceiro disco, que só foi possível graças a um longo processo de reinvenção. O Tricky não soube se adaptar bem ao futuro e o Massive Attack acabou se desintegrando. O gélido 100th window, de 2003, soa como um projeto solo de 3D — ainda estiloso e fatalista, mas sem destino.
No álbum novo, Heligoland, eles tentam retomar uma estrada que parecia perdida desde o fim dos anos 90. Daddy G volta à cena e, agora como duo, a banda tenta retornar a uma sonoridade mais carnuda, calorosa, mais para a soul music do que para a eletrônica minimalista. É uma boa tentativa, com alguns grandes momentos. Mas, novamente, eles se esforçam para retratar um estado de coisas que não mais compreendem.
Para eles, a única salvação seria fazer justiça ao prestígio que ainda preservam junto ao público que cresceu nos anos 90. Muitos críticos vão tratar este disco com condescendência, talvez estimulados por lembranças daquela época. Ainda que nada em Heligoland dê sinais da maior qualidade do antigo Massive Attack: a capacidade de nos assombrar.
Pelo contrário. Este é o álbum mais domesticado que eles gravaram. Previsível na escolha dos convidados da vez (se bem que Horace Andy, Hope Sandoval e Damon Albarn mostram muito bem a saudade que este disco sente dos anos 90), mas o mais próximo que eles chegaram do pop. A faixa de abertura, com participação de Tunde Adebimpe (TV on the Radio), explica tudo: começa como um mantra à Protection e logo facilita nosso trabalho com um trecho melodioso que quase soa como uma homenagem a Brian Wilson. Slitting the atom, outro bom momento, abre com camadas de vocais abafados, mas quebra o mistério com um refrão até assobiável. O miolo do disco fica nessa dúvida: é possível reciclar e diluir o próprio passado com alguma diginidade?
Talvez sim. Um exemplo de que a banda realmente se esforçou é a alienígena Paradise circus, que poderia ser usada como tema de ficção científica (o clima cinematográfico do disco, aliás, diz muito sobre a experiência de 3D em trilhas sonoras). Ou o crossover, ainda que discreto, com o brit pop, em Saturday come slow (uma típica balada desesperada dos três últimos discos do Blur).
Há elegância, alguma segurança nesse tiroteio. Mas, é claro, eles continuam perdidinhos nos anos 00. Seria interessante se, nos próximos discos, 3D e Daddy G conseguissem usar essa dificuldade de adaptação como motor para dialogar com uma geração que também sofre com esse tipo de crise. Mas, ao contrário de colegas de classe como o Radiohead e o Portishead, o Massive Attack parece preocupado demais com a própria sobrevivência para pensar nesse tipo de aventura.
Daí que corre o risco de, para toda uma geração com menos de 20 anos, serem lembrados como os caras que criaram o tema de House. O futuro (eles estavam certos!) é mesmo triste.
Quinto disco do Massive Attack. 10 faixas, com produção da própria banda. Lançamento Virgin Records. 6/10
Lost | LA X
(Cuidado, os próximos parágrafos contêm inúmeros spoilers da sexta temporada de Lost. Estão avisados)
Conversei com três ou quatro pessoas que, com bons argumentos, detestaram os dois primeiros episódios desta sexta temporada. Pode parecer mesmo muito difícil defender uma série que parece ter se contentado com a tarefa de explicar, um a um, os seus próprios enigmas (e os saltos temporais da quinta temporada ainda me parecem uma distração bem tola). Mas taí, discordo dos detratores: não só gostei deste recomeço como passei a acreditar que a série vai sim conseguir criar um desfecho capaz de remeter à atmosfera de mistério das primeiras temporadas.
Depois dos flashbacks e flashforwards, os roteiristas encontraram um jeito de fazer justiça ao jogo narrativo que marcou alguns dos melhores momentos do programa: agora, duas realidades se alternam. Existe a vida na ilha, em 2007, e a vida sem o acidente que derrubou no avião da Oceanic, em 2004. Seria uma temporada inteira dedicada a ilustrar o experimento do Gato de Schrödinger?
Lost segue frágil em vários aspectos: os diálogos são apenas razoáveis, as atuações não vão além do mediano e toda a encenação quase sempre acaba descambando para o kitsch (os defensores do templo, dentro da ilha, poderiam fazer parte do elenco de coadjuvantes de Piratas do Caribe). O trabalho coletivo de montagem, no entanto, continua bem afiado. E falem o que quiserem: não conheço outra série de tevê que tenha desenvolvido uma trama com uma estrutura narrativa tão livre, tão maleável. É, nesse aspecto (e continua a ser), um laboratório.
E, mais importante, parece que Damon Lindelof e Carlton Cuse vão compartilhar do sentimento prematuro de perda que acomete os fãs da série e criar uma temporada quase tristonha, melancólica. Foi que pressenti quando vi as cenas no avião, com a aparição de personagens que já não estavam em cena há algum tempo. Tem algo de bonito nisso: nessa realidade alternativa, com um quê de sonho, o espectador também realiza um desejo — o de voltar ao começo e reviver antigas sensações.
Tomorrow, in a year | The Knife
Quando o The Knife anunciou que escreveria uma ópera inspirada no livro A origem das espécies (1859), de Charles Darwin, muitos se apressaram a enxergar ali uma anomalia pop. Mas vamos lá, gente! Pelo menos para mim, sempre pareceu óbvio que as descrições do naturalista britânico acabariam engolidas por um disco do Flaming Lips. A diversidade biológica! A evolução! A árvore da vida! A viagem do HMS Beagle! Os tentilhões de Galápagos!
No mundo pop, os mais destemidos também sobrevivem. Daí que o duo sueco teve a ideia primeiro e, numa colaboração com Mt. Sims e Planningtorock, escreveu as 15 faixas que compõem o álbum duplo Tomorrow, in a year, cujo repertório foi criado inicialmente para uma performance encenada pelo grupo dinamarquês Hotel Pro Forma. Depois de uma pesquisa exaustiva sobre a vida e a obra de Darwin, o Knife escreveu a primeira ópera da carreira.
No site da banda, Olof Dreijer comenta que não havia assistido a uma única ópera e desconhecia o significado da palavra libretto. Mas, num intensivão por conta própria, aprendeu tudo sobre os “gestos dramáticos” e, depois de um ano, finalmente conseguiu se emocionar com a interpretação de uma soprano. Talvez o grupo Hotel Pro Forma estivesse procurando algo do gênero: uma ópera desajeitada, virgem, naturalmente experimental, mais ou menos o que Lars von Trier buscava quando escalou a Björk para escrever as canções do musical Dançando no escuro.
É claro que, em casos como esses, só a experiência completa só é possível para quem assiste ao resultado da combinação entre música e performance. Em disco, Tomorrow, in a year soa lacunar. Quando ouvimos o som de cachoeiras e passarinhos piando, tudo o que podemos fazer é imaginar alguma cachoeira ou alguns passarinhos piando. Azar dos ouvintes pouco criativos. Sorte de quem comprou ingressos para as apresentações de Estocolmo, encerradas anteontem.
Talvez melancólico com o fim da jornada, o The Knife entrou em estúdio e resolveu registrar essa ópera-minimal (!) em CD. O resultado, previsivelmente, é o disco mais (espere um momento enquanto busco uma palavra gentil) desafiador desde Embryonic. Um projeto experimental com alguns respiros pop.
Para provar que não fujo dos desafios, ouvi o disco da forma como o The Knife recomenda no site da banda: com headphones e máxima concentração. É uma viagem insólita e entediante, adianto, mas que faz justiça ao caráter exploratório do conceito. Fica evidente que o The Knife se embrenhou por territórios desconhecidos (há trechos de passarinhos ou cachoeiras que foram gravados na Amazônia!) e aprendeu algo sobre ópera. Várias das canções são interpretados com pompa e agudos agudíssimos. As letras traduzem o espírito de descoberta e espanto que, sim, está no coração de A origem das espécies.
Ouvi o álbum de uma vez só, como se não houvesse como comprar ingressos para outras sessões, e saí do espetáculo com a impressão de que fui recompensado pelo esforço. A primeira metade do disco, talvez de propósito, soa quase impenetrável: ruídos minimalistas são sobrepostos a som ambiente e colorido new age, distorcidos por sopranos e valorizados por um registro curioso da natureza (há uma faixa que flagra um passarinho aprendendo a cantar, em diferentes estágios).
O segundo CD, mais amistoso, inclui uma canção arejada que poderia entrar no próximo álbum pop do The Knife, Colouring of pigeons, e mais divagações sobre biologia, sementes e as relações entre Darwin e a filha Anne.
Se o objetivo era captar a dimensão quase asfixiante da obra monumental de Darwin, o The Knife chegou perto. Tomorrow, in a year é um gigante construído com pedacinhos delicados. Apresenta, para os mais pacientes, um jeito inusitado de olhar o mundo, como se pela primeira vez. Não é um disco que eu ouviria várias vezes (talvez duas faixas e olhe lá), mas aposto que ele não quer ser ouvido várias vezes. Não é um álbum pop. Depois do primeiro contato, a tendência é que a sensação de familiaridade dilua a aura de mistério que cerca esse sonho de Darwin.
Então, e falo sério, siga meu exemplo: não ouça novamente. Desista. Fique com o primeiro gosto. E, exaurido, contente-se com as boas e más lembranças dessa estranha, impossível expedição.
Ópera escrita pelo The Knife, com Mt. Sims e Planningtorock. 15 faixas. Lançamento Rabid Records. Qualquer nota/10 (mentira, é 6).
2 ou 3 parágrafos | Indicados ao Oscar
Bateu um pouco de saudade do tempo em que eram cinco os indicados ao Oscar. Havia os favoritos (no máximo dois, geralmente um), os que perderiam com alguma dignidade (no máximo dois) e os que entravam na lista pra fazer figuração. Agora vemos esse elenco de sempre acompanhado de cinco candidatos que aparecem meio que largados no subsolo, na classe econômica da premiação, totalmente fora de cena.
Não entendi a graça da brincadeira (claro, são 10 os estúdios na briga pelo Oscar de melhor filme, e aposto que todos ficaram muito satisfeitos com a partilha), mas seria interessante se a Academia inventasse o ‘Oscar B’, destinado à disputa entre Distrito 9, Um homem sério, Um sonho possível, Educação e Up – Altas aventuras.
E, como um amigo meu bem notou, dá para dividir os indicados também entre os filmes de guerra (Avatar, Hurt locker, Bastardos inglórios, de alguma forma Distrito 9) e aquelas obras supostamente inspiradoras com lições de superação/perseverança (Amor sem escalas, Up, Educação, Preciosa e Um sonho possível, que vi agora mesmo e é tão pueril que parece ter sido feito pra meninos de cinco anos). Um homem sério, que nem é algo tão atípico ou provocativo assim, fica parecendo até uma pedra na garganta da Academia. Uma disputa não tão interessante (de qualquer forma, estou começando a apostar na vitória de Hurt locker), mas gostei de ver A teta assustada na lista de filmes estrangeiros. Nem por ser sul-americano, ou peruano. Mas por fugir completamente daquele padrão careta de telefilme que as comissões de seleção brasileiras acreditam interessar a Hollywood. Olha lá: não é bem assim.
The courage of others | Midlake
The courage of others é um daqueles discos que fazem com que eu me sinta um tipinho irrelevante: enquanto eu enfrento os grandes desafios da minha existência (acordar cedo, pagar o aluguel, regar as plantas e visitar minha mãe nos fins de semana), o Midlake se preocupa com a imensidão da natureza, o sentimento de melancolia que acompanha a morte do inverno e o “som grandioso de todas as criaturas vivas”.
Ah, sério? Aposto que este quinteto do Texas não leva a nossa oh-tão-sagrada existência com tanta austeridade. Mas, quando entram em estúdio, soam como cinco monges exilados em meio a uma plantação de bromélias, a muitos quilômetros das preocupações trivais que transformam nossas rotinas em episódios frívolos de seriados de tevê.
Deve haver algum ranço confessional escondido no subsolo deste terceiro disco do Midlake, mas ainda não encontrei a chave (e talvez seja minha culpa, ovelha desgarrada e meio burra). Desconfio que tudo seja uma questão de mise-en-scene: em The trials of Van Occupanther, de 2006, a banda tentava criar uma narrativa pastoral, como se Nick Drake interpretasse um songbook de Neil Young. Desta vez, eles apontam a embarcação para o folk rock britânico do fim dos anos 1960.
É uma aventura mais contida, limitada, menos ambiciosa, mas talvez o objetivo deles sempre tenha sido este: soar exatamente como uma banda-tributo do Pentangle, com algo de Incredible String Band. E vá entender: alguns desejos são meio estranhos mesmo.
A cadência uniforme do disco, que parece ter sido todo ele gravado numa tarde fria e chuvosa, pode atender as expectativas de quem procura desesperadamente um sucessor para Veckatimest, do Grizzly Bear. São dois álbuns duros feito pedra lascada, ainda que, cá para meus ouvidos, o Midlake ainda pareça uma daquelas bandas in-progress que se contentam em tomar um gênero (ou uma referência) e partir para o decalque — com ternura, claro.
Daí que as letras do disco são todas ricas em traços impressionistas, com imagens de vilas longínquas, ambientes selvagens, florestas tomadas por criaturas exóticas (seriam elfos?) e amores impossíveis. Até meu padrasto, o último defensor do rock progressivo dos anos 1970, talvez encarasse como uma homenagem fiel demais ao período. ‘Seria gozação?’, ele perguntaria, descrente.
Não é. O Midlake soa muito sincero nessa ode ao transe cósmico de canções que fazem absolutamente tudo para se livrar as impurezas deste mundo. Não encontrei nada ainda, mas certamente existe sabedoria, dignidade nesse esforço. Bom para eles. No entanto, se a banda estiver interessada em encontrar uma voz particular, vou avisando: a jornada é bem outra.
Mas chame de Astral geeks, se preferir.
Terceiro disco do Midlake. 11 faixas, com produção da própria banda. Lançamento Bella Union. 6/10