Cenas da vida

Superoito e as memórias perdidas

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Meu padrasto está perdendo a memória. Não sabemos exatamente por que. O drama começou há alguns meses, quando ele passou a esquecer o caminho de casa. Depois foi piorando. Nas semanas seguintes, aquele homem sério e alto repetia frases inteiras, perdia as chaves, se atrasava em compromissos, alimentava os cães quando os bichos já estavam empapuçados. Em alguns momentos, ele próprio percebia que algo estava errado na forma desajeitada como lidava com situações triviais. Nessas horas, abria um sorriso envergonhado, meio torto, e era como se tivesse rejuvenescido de uma forma constrangedora.

Foram dias difíceis. Minha família é pequena e, talvez por isso (mas não somente por isso), dependemos intensamente uns dos outros. Cumprimos papéis fixos na aventura do nosso cotidiano, que não é lá muito excitante. Minha mãe é o coração da casa (sempre perto de explodir de emoção), minha irmã é a angústia em pessoa, eu sou filho responsável, bem-humorado e incrivelmente sortudo. Meu padrasto, que sempre tratei como pai, é o cérebro desse organismo — o provedor das decisões racionais que colocam nossa rotina nos eixos.

Quando a memória do meu padrasto começou a derreter, a família trincou. Por pouco caiu em pedaços. Parecia que estávamos todos adoentados. Ficamos perplexos por alguns dias e, quando percebemos que nada daquilo era uma espécie de pesadelo passageiro, começamos a procurar explicações. Todas as possibilidades nos tiravam o sono: a causa do problema poderia ser aquela doença terrível ou aquela outra doença incurável. Poderia ser indício de um mal assustador ou sintoma de um outro tipo de fardo cruel.

Esperamos o resultado dos exames e, quando eles vieram, descobrimos que não era nenhuma tragédia. Meu padrasto estava bem. Saudável. Sofria de estresse (mas quem não sofre?) e de carência de algumas vitaminas (mas quem não sofre também disso?). Os médicos prometerem uma investigação mais detalhada e, enquanto ela não terminava, percebemos que meu padrasto aparentemente começava a recuperar parte das memórias. Tocava acordes complicados no violão. Encontrava o caminho de casa. Nos animamos com a notícia. Depois, nos deparamos com o fato de que as lembranças continuariam a se apagar. Lentamente. E sem explicação.

Continuamos a procurar as causas do problema, mas tudo o que encontramos foi um ponto de interrogação piscando em neon. O cérebro da família dava sinais de cansaço. Eu, trancado no meu apartamento minúsculo, recebia notícias desanimadoras ao telefone. Depois, novos (e empolgantes) indícios de recuperação. Nos fins de semana, eu percebia que meu padrasto estava diferente. Mais moço, num sentido não necessariamente agradável. Mais desligado. Dizem que sou um sujeito sóbrio (sempre sóbrio!) por influência dele. Mas o que teria acontecido se eu tivesse sido criado por esse meu novo padrasto, um homem tão… fragilizado?

Não faço ideia. Se meu pai tivesse meu criado, eu teria crescido um sujeito mais preguiçoso e passivo. Estou certo disso. Tenho 29 anos de idade e sou o retrato cuspido e escarrado do meu pai biológico, mas pouco me pareço com ele. Quando o vejo, dou de cara com uma versão alternativa da minha pessoa. Um espelho mágico. Um desvio que dá num lugar onde eu não gostaria de ter visitado. Com meu padrasto, funciono de uma forma diferente: o que falta em conexão emotiva, sobra em identificação. Eu sempre quis ser um adulto parecido com o meu padrasto e, talvez ele nem saiba disso!, meu padrasto sempre deu o exemplo discreta e elegantemente bem. Somos (éramos) como um par de vasos.

As memórias perdidas levaram para longe o padrasto que eu conhecia e admirava. O que, no início, foi um choque. O homem ao volante, seguro de tudo o que fazia, onde estava? No sofá, olhando para as paredes, dedilhando o violão, em crise de auto-estima, digitando longos e-mails para parentes distantes, brincando com os cães, cada vez mais dependente do auxílio da minha mãe e da compreensão da família. “As coisas vão melhorar”, ele parece nos dizer, triste com a própria situação. “Não sei quando, mas vão.”

Sabemos que não vão. Nesse período de reajustes, minha mãe assumiu a direção da casa, minha irmã encontrou paz de espírito (ainda não sei como ou onde ou se isso conta como um tipo de milagre) e eu me afastei do lar para cumprir rigorosamente minhas obrigações e, aos poucos, me transformar no homem que meu padrasto era. Não é tão fácil quanto parece. Há dias solitários em que tranco a porta, apago as luzes e, com o som de guitarras à britadeira, tento esquecer o pensamento recorrente de que minhas memórias, também elas, um dia serão poeira.

Quando isso acontecer, o que será disso tudo? O que será da minha trajetória? Tai o tormento número um, o pavor que ocupa o primeiro posto no top 5 das minhas aflições recentes. As memórias perdidas. Eu mesmo já devo ter perdido muitas delas. Não me dei conta, será? Outro dia, num desses momentos em que o mundo parece ter se vestido de onça e ninguém se entende, tentei lembrar da minha infância e se, naquela época, eu era um menino menos intransigente, mais flexível, mais paciente. Depois, num desses momentos em que o mundo parece ter se vestido de moedor de carne, tentei imaginar se, quando criança, era esse o futuro que eu planejava para a minha vida. Uma competição ferrenha pelos melhores assentos no Superdome da nossa eterna insatisfação? Não consigo chegar a lugar algum. As memórias se perderam.

O tempo passou e, depois de algumas semanas, comecei a me acostumar com a versão 2.0 do meu padrasto. Nossa relação entrou numa nova adolescência. Éramos dois estranhos até o dia em que decidimos nos conhecer. Aposto que para ele também deve ser difícil. Não sou mais menino e não tenho mais medo de trovoada e já poderia ser pai e é assim que as coisas são.

Há um lado relaxante nessa descoberta. Meu padrasto, um ser humano? Quem diria! Eu, um ser humano? Que coisa, hem! A nova lição do meu padrasto talvez seja a mais valiosa de todas. Talvez seja isso. Nos poucos fins de semana em que me encontro com ele (minha vida é trabalho), passamos horas conversando na varanda, como nunca fizemos. Lavamos os carros e brincamos com os cachorros, e às vezes dá vontade de perguntar se aquele sujeito antigo ainda vive ali dentro daquele corpo branco, mas fico quieto, pensativo. Depois de um tempo, passo a enxergar meu pai biológico no meu outro pai. E tudo fica bastante confuso. E é aí que identifico uma terceira pessoa, completamente diferente.

Por recomendação dos médicos, puxo assuntos que nos levam ao passado. E é bonito. Falamos do tempo em que eu era um moleque despreocupado e dessa fase ele lembra mais do que eu. Uma dia, ele pescou uma cena inteira. “Você subia naquelas montanhas de bicicleta. Você e seus amigos. Era um clube de garotos. Vocês faziam carteirinhas. Com fotografias e tudo. Vocês passavam o dia inteiro nas montanhas. Depois voltavam, exaustos.” E eu reconstruía aquelas imagens de um jeito que elas nunca existiram. Não lembro de nada. Está tudo perdido, perdido, perdido. Mas é emocionante saber que meu padrasto, mesmo lembrando cada vez menos, ainda assim guarda uma lembrança tão inútil e pequena relacionada a este aqui, Tiago, o menino na bicicleta subindo as montanhas.

Ele lembrava com tantos detalhes que parecia o fim do pesadelo. Ele estava curado do mal misterioso! Cinco minutos depois, no meio de outra conversa, ele voltava à história dos meninos de bicicleta, as montanhas, o clube, as carteirinhas com fotografias. Uma frase repetida com o entusiasmo de quem a pronuncia pela primeira vez. Retornamos ao começo, mas agora sem sustos: meu novo padrasto está ali, e ele até que não vai mal.

Os falsários

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counterfeiters

Die fälscher/The counterfeiters, 2007. De Stefan Ruzowitzky. Com Karl Markovics, August Diehl e David Striesow. 98min. 5.5/10

Vi Os falsários ontem pela manhã acompanhado de três adoráveis senhoras que frequentam religiosamente as sessões de cinema organizadas para a imprensa.

Conheço o trio de sexagenárias suficientemente bem: elas gostam de 90% dos filmes a que assistem. Rejeitam furiosamente os 10% que contêm sexo explícito ou cenas grotescas de violência — mas fazem questão de ver até esses, sabe-se lá por que razão misteriosa.

Uma delas fazia 61 anos naquela segunda-feira. O clima estava especialmente agradável. Levaram bolo e, numa garrafa térmica, chá de camomila. “Cinema até no dia do aniversário, é?”, perguntei, irritadiço. “Cinema é meu maior presente”, ela respondeu, delicadamente. Fiquei desconcertado.

Nós costumamos discutir muito sobre filmes. Eu interpreto o papel do rapazinho imaturo e emburrado, que encontra defeito em tudo. Elas atuam como as generosas espectadoras que (coração do tamanho de um balão!) encontram comoventes lições de vida nos filmes do Moacyr Góes. Nos damos bem — quando não estamos nos mordendo feito cachorros. Quando com sono, sou insuportável. As sessões geralmente ocorrem às dez da manhã.

Os falsários, que não contém sexo explícito nem cenas grotescas de violência, agradou ao trio. Elas saíram felizes da sala de exibição. Satisfeitas, como costuma acontecer. Eu, ainda metido numa espécie de bloqueio que me impede de escrever decentemente sobre filmes, sugeri que elas criassem três textos para este blog sobre o longa-metragem que venceu o Oscar de filme estrangeiro em 2008. Blogs não devem ficar parados por muito tempo.

Elas rejeitaram a proposta.

— Não sei escrever nem receita de bolo, meu filho — a mais sincera comentou.

Teimoso, pedi então que elas simplesmente falassem sobre o filme. Eu gravaria a nossa conversa e transcreveria os comentários em forma de parágrafos. Novamente, elas não aceitaram. Tinham medo de passar vergonha num mundo virtual complicado, uma rede de computadores malvados e frios. “Já me basta bater boca com minha neta sobre tecnologia”, ouvi dizerem. Pronunciaram a palavra “tecnologia” como quem diz “astrofísica” ou “paralelepípedo”. Um palavrão. Ficamos assim. Nada de gravação. “Mas posso escrever sobre nosso debate?”

Concordaram.

E aqui transcrevo trechos embaçados daquilo que talvez tenha sido dito no fim da sessão (já se passou um dia e minha memória é curta). Antes, uma breve sinopse do filme: Os falsários, produção alemã dirigida por um austríaco, resgata um episódio histórico inusitado que ocorreu no final da Segunda Guerra Mundial. Com a intenção de salvar uma economia em colapso, oficiais nazistas convocaram judeus talentosos para fabricar notas falsas de dinheiro. O plano funcionou por poucos anos, mas foi o suficiente para entrar na história como o maior esquema de falsificação de todos os tempos. O ator principal, Karl Markovics, interpreta o maior falsário judeu do planeta — ou algo do gênero.

VOVÓ 1: O Oscar escolhe filmes com histórias bonitas e eu já sabia que esse –

VOVÓ 2 (interrompendo): Filmes sensíveis.

VOVÓ 1: É. Sensíveis.

VOVÓ 2: E importantes.

(30 ou 40 segundos de silêncio)

VOVÓ 1: Eu sei que você quer ver arte, Tiago. Você quer ver arte, essas coisas que você escreve no jornal. Mas não é. Não é o –

VOVÓ 2 (interrompendo): Não é o mais importante.

VOVÓ 1: É importante, mas a história vem na frente. Você às vezes passa por cima disso.

VOVÓ 3 (que estava quieta até então): Você vê o cinema de uma forma diferente e eu sei bem o que você está pensando.

EU: No que estou pensando?

VOVÓ 3: Que somos um bando de velhinhas ignorantes.

EU: Isso não passou pela minha cabeça. Quero saber o que vocês acharam do filme.

VOVÓ 3: O filme é isso aí que você viu, meu filho.

EU: Eu sei. Sejam mais específicas.

VOVÓ 1: É um drama histórico, um filme de época, sobre uma coisa importante. Um filme sobre o nazismo. Sobre judeus que foram obrigados a colaborar com o nazismo. Imagina isso.

VOVÓ 2: É impressionante, né não?

VOVÓ 1: É uma coisa!

EU: Eu sei, mas isso é o suficiente? A trama do filme?

VOVÓ 1: É.

VOVÓ 2: É.

VOVÓ 3: No caso, é.

EU: Então tudo bem.

VOVÓ 1: Não somos burras.

EU: Eu sei.

VOVÓ 3: Meu filho, você cobra demais dos filmes. Um filme é um filme. Um filme às vezes não quer muita coisa. Esse aí quer contar uma história que aconteceu e pouca gente conhece. Não é aquela cooooisa que você chama de arte. Não é David Lynch, entende?

EU: Não é David Lynch.

VOVÓ 3: Não é arte! Eu vejo filme há uns cinquenta anos e sei a diferença.

EU: E por que você vê filmes?

VOVÓ 3: Não dá pra explicar.

EU: Não quer tentar?

VOVÓ 3: Tem a ver com a história, eu acho. Essas coisas. Cada filme é diferente. E discutir filme é que nem discutir religião. Não dá em nada. Nunca deu em nada.

VOVÓ 1: O que você achou do filme, Tiago?

EU: Não sei ainda. Tenho que pensar.

VOVÓ 1: Sem pensar, o que você achou?

EU: Eu gostei. Um pouco. (Silêncio) É um caso bastante curioso, e nisso concordo com vocês. É um episódio de Além da imaginação no holocausto. Mas… Muitas vezes, quando vou ao cinema, me sinto soterrado por filmes medíocres sobre temas importantes. Filmes que poderiam ser panfletos ou programas de rádio ou canções de protesto porcamente produzidas. O tema me interessa. O filme não me interessa tanto assim.

VOVÓ 1: Não é um filme medíocre, Tiago.

EU: É medíocre. A câmera treme gratuitamente o tempo todo, a fotografia é aquele cinza banal, o diretor se faz refém de um roteiro que é, no máximo, correto, convencional. O filme tem personagens ambíguos, sim, talvez isso conte como um acerto. Trata de dilemas morais. O ator é muito bom. Mas, pra mim, só prova que o Oscar está interessado em episódios históricos obscuros, de preferência ambientados na Segunda Guerra Mundial. Nada além disso. Fico impressionado como vocês, que assistem filmes há meio século ou algo assim, não conseguem se sentir irritadas com isso. Eu comecei há uns 18 anos e já me sinto um velho!

(Silêncio profundo)

VOVÓ 1: Vamos cortar o bolo?

EU: Eu não queria incom –

VOVÓ 3 (interrompendo): Não incomodou, Tiago.

VOVÓ 1: Vamos cortar o bolo.

VOVÓ 2: É de chocolate amargo. O recheio é de morango.

Cortamos o bolo. Nesse caso, concordamos: estava delicioso. Nos despedimos com sorrisos: muitos anos de vida! Fiquei sozinho por um tempo. Quantos filmes elas já assistiram? Será que elas fazem a conta? Do que elas verdadeiramente gostam quando vão ao cinema? No caminho de volta, eu era um menino com as bochechas sujas de glacê.