Memórias perdidas

Superoito, filho

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Combinamos de nos encontrar no aeroporto às onze e meia da manhã. Cheguei mais cedo, às onze, e comprei uma revista. O avião pousou um pouco antes da hora marcada. Meu padrasto estava entre os primeiros passageiros a cruzar o portão de desembarque. Trazia uma bolsa azul retangular que parecia pesada.

Ele apertou minha mão quase furiosamente (como sempre fazia) e perguntou se eu estava bem. Eu não estava bem, mas falei que sim.

O dia em São Paulo: céu descoberto após um fim de semana noir. Uma segunda-feira agradável, quase de primavera – cenário que, portanto, não combina com esta história.

Os personagens principais – eu e meu padrasto – estavam mais para seres de inverno. Introspectivos e desiludidos, mesmo quando contavam piadas infantis.

O homem que cruzou o portão de desembarque era sério. Como de costume.

É claro, no entanto, que muita coisa havia mudado nele. Desde que começou a perder a memória, há dois anos, meu padrasto tornou-se uma outra pessoa. Um outro homem dentro do corpo e dos gestos e do cheiro daquele homem que conhecíamos. A transformação era sutil (e perversa, já que às vezes nos enganava, nos confundia) e ainda não havia chegado ao fim. 

Eu preferia preservar a imagem do meu padrasto de antigamente – o sujeito que me acompanha desde a adolescência, que sempre esteve lá -, mas começo a me acostumar com a pessoa mutante em que ele se tornou. Um homem de 55 anos de idade incapaz de conduzir a própria vida (e, mais grave, consciente de que a parte mais dolorida ainda virá).

Encontrá-lo daquele jeito no aeroporto – vestido elegantemente, de barba feita, carregando a bolsa com dezenas de exames médicos, tentando rir das minhas piadas – me comoveu.

Tomamos um táxi para a Avenida Paulista. A consulta estava marcada para o fim da tarde, por isso planejei uma pausa para o almoço e uma caminhada pela cidade. Era uma situação, para mim, totalmente incomum: nas raras viagens que fizemos, meu padrasto definia os itinerários e nos tomava pelo braço – eu, minha irmã e minha mãe. Dessa vez, eu estava no comando (e a sensação era de que me faltava um curso preparatório, um guia para guias).

Meu padrasto ainda não se conforma com as recomendações médicas. Me pergunto se eu me conformaria (acredito que não). Um senhor atlético, habituado a longas séries de exercícios físicos, não consegue mais se orientar. Precisa de um tutor, de carona. Perde-se frequentemente, e não somente nas ruas das cidades. Perde-se dentro dos filmes e dos livros. Esquece até do que comeu no café da manhã. 

Apesar do sentimento de revolta (cada vez maior), ele aceitou fazer a viagem a São Paulo para ser atendido por um médico mais experiente. É o que nos resta, já que não é possível diagnosticar a doença com exatidão. No caso, o que se pode é, no máximo, se aproximar de um resultado aceitável, mas nunca preciso. O que sabemos (e isso é uma má notícia) é que a memória do meu padrasto se vai como os grãos de areia de uma ampulheta. Num ritmo lento, porém constante.

No restaurante, um fast food muito colorido e alegre, evitamos conversar sobre o assunto. Falamos sobre a cidade e sobre o trabalho. Sobre os meus pesadelos (recorrentes) e sobre os nossos cachorros. Sobre o tempo em que ele entregava telegramas (as memórias da adolescência ainda estavam frescas) e sobre como a Avenida Paulista, para ele, soa como uma incrível novidade. “Sei que estive aqui várias e várias vezes, mas não lembro de nada”, comentou, com um sorriso de quem ironiza o próprio fracasso.

Depois caminhamos duas, três, quadro quadras. Bebemos suco de laranja. Descansamos sob o Masp, observamos o guitarrista solitário à frente do Trianon. Chegamos cedo ao consultório e logo fomos atendidos.

Antes da consulta, a secretária pediu que meu padrasto preenchesse um pequeno questionário, com nome completo, endereço, telefone e o nome da pessoa que o acompanhava naquela tarde. Nessa última lacuna, ele escreveu: Tiago, filho.

Quando notou que eu o observava, perguntou desajeitadamente se deveria ter me classificado de outra forma. “Não, filho está ótimo. É isso e sempre foi”, eu confirmei. E lembrei, num flash agressivo, que não vejo meu pai há pelo menos três anos e que eu e ele talvez devêssemos oficializar a distância infinita que nos separa. 

O médico, um gigante de jaleco com pinta de J.M. Coetzee (quase dois metros de altura, um pouco mais robusto que o escritor sul-africano), fez perguntas enviezadas para testar a memória do meu padrasto:

“Quem o levou ao aeroporto?”

“Não lembro”

“Seu filho o buscou em casa, de carro?”

“Acho que sim”

“Onde estava seu filho hoje pela manhã?” (e, nessa pergunta, o médico pediu para que eu não me manifestasse)

“Estava lá em casa, em Brasília”

“Onde você almoçou hoje?”

“Não sei”

“O que você comeu?”

“Folhas. E um peixe rosa. Não lembro o nome.”

Enquanto eu preenchia um questionário sobre o meu padrasto, observei os pacientes que esperavam para ser atendidos. Uma mulher tentava explicar à filha por que todos estamos fadados a perder a memória. “É muita preocupação (pausa), informação (pausa longa) e decepção (pausa curta) com a vida”, e a filha acenou positivamente com a cabeça.

As paredes eram todas brancas e, no canto da sala, havia uma orquídea branca.

Na despedida, após duas horas de consulta, o médico preferiu não comentar sobre a doença. Pediu mais dois exames. “Pra minha coleção”, meu padrasto brincou. Era o tipo de comentário que eu faria. O tipo de sorriso abobalhado que eu arriscaria numa situação sisuda daquelas. Os mesmos gestos, tudo. Estava tudo diferente, tudo desfigurado, tudo amargo e amarelo (um prédio em chamas), menos o fato de que meu padrasto ainda era meu pai.

Rapidamente, fizemos o exame que faltava e tomamos um táxi para o aeroporto. Eu seguiria em São Paulo por mais dois dias, mas ele precisava de alguém que o acompanhasse ao portão de embarque. Mais uma vez, chegamos cedo demais. “Teve um momento, lá no consultório, quando eu olhei para o lado e percebi que você estava ali. Me perguntei: o Tiago? O que ele está fazendo aqui?”, e disso ele lembrava.

Por volta das oito, minha mãe telefonou e perguntou se eu estava bem. Eu não estava bem, mas falei que sim. “É um bom médico. Muito atento”, resumi. “E ele fez algum teste de memória?” “Fez sim” “E então?” “O pai diz que bombou no vestibular” “Meu deus” “Mãe, é um bom médico. Eu acho até que confio nele”, eu expliquei, e ela se acalmou um pouco.

Me preocupei quando meu padrasto entrou sozinho no setor de embarque, entregue aos lapsos cerebrais, ao medo de esquecer. Acenei, tenso – como um pai acena para o filho que vai à escola pela primeira vez. O menino se afasta e está perdido para sempre.

A porta se fechou e, ali, depois daquela cena, eu deveria entrar no táxi. Já era noite. Mas me sentei diante das lanchonetes e fiquei assim por dez, vinte minutos. Quando o avião decolou, continuei naquela posição. Estava tudo bem? Fiquei sentado ainda por algum tempo, mais uns minutos, totalmente só, e então saí.

Superoito e as memórias perdidas

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Meu padrasto está perdendo a memória. Não sabemos exatamente por que. O drama começou há alguns meses, quando ele passou a esquecer o caminho de casa. Depois foi piorando. Nas semanas seguintes, aquele homem sério e alto repetia frases inteiras, perdia as chaves, se atrasava em compromissos, alimentava os cães quando os bichos já estavam empapuçados. Em alguns momentos, ele próprio percebia que algo estava errado na forma desajeitada como lidava com situações triviais. Nessas horas, abria um sorriso envergonhado, meio torto, e era como se tivesse rejuvenescido de uma forma constrangedora.

Foram dias difíceis. Minha família é pequena e, talvez por isso (mas não somente por isso), dependemos intensamente uns dos outros. Cumprimos papéis fixos na aventura do nosso cotidiano, que não é lá muito excitante. Minha mãe é o coração da casa (sempre perto de explodir de emoção), minha irmã é a angústia em pessoa, eu sou filho responsável, bem-humorado e incrivelmente sortudo. Meu padrasto, que sempre tratei como pai, é o cérebro desse organismo — o provedor das decisões racionais que colocam nossa rotina nos eixos.

Quando a memória do meu padrasto começou a derreter, a família trincou. Por pouco caiu em pedaços. Parecia que estávamos todos adoentados. Ficamos perplexos por alguns dias e, quando percebemos que nada daquilo era uma espécie de pesadelo passageiro, começamos a procurar explicações. Todas as possibilidades nos tiravam o sono: a causa do problema poderia ser aquela doença terrível ou aquela outra doença incurável. Poderia ser indício de um mal assustador ou sintoma de um outro tipo de fardo cruel.

Esperamos o resultado dos exames e, quando eles vieram, descobrimos que não era nenhuma tragédia. Meu padrasto estava bem. Saudável. Sofria de estresse (mas quem não sofre?) e de carência de algumas vitaminas (mas quem não sofre também disso?). Os médicos prometerem uma investigação mais detalhada e, enquanto ela não terminava, percebemos que meu padrasto aparentemente começava a recuperar parte das memórias. Tocava acordes complicados no violão. Encontrava o caminho de casa. Nos animamos com a notícia. Depois, nos deparamos com o fato de que as lembranças continuariam a se apagar. Lentamente. E sem explicação.

Continuamos a procurar as causas do problema, mas tudo o que encontramos foi um ponto de interrogação piscando em neon. O cérebro da família dava sinais de cansaço. Eu, trancado no meu apartamento minúsculo, recebia notícias desanimadoras ao telefone. Depois, novos (e empolgantes) indícios de recuperação. Nos fins de semana, eu percebia que meu padrasto estava diferente. Mais moço, num sentido não necessariamente agradável. Mais desligado. Dizem que sou um sujeito sóbrio (sempre sóbrio!) por influência dele. Mas o que teria acontecido se eu tivesse sido criado por esse meu novo padrasto, um homem tão… fragilizado?

Não faço ideia. Se meu pai tivesse meu criado, eu teria crescido um sujeito mais preguiçoso e passivo. Estou certo disso. Tenho 29 anos de idade e sou o retrato cuspido e escarrado do meu pai biológico, mas pouco me pareço com ele. Quando o vejo, dou de cara com uma versão alternativa da minha pessoa. Um espelho mágico. Um desvio que dá num lugar onde eu não gostaria de ter visitado. Com meu padrasto, funciono de uma forma diferente: o que falta em conexão emotiva, sobra em identificação. Eu sempre quis ser um adulto parecido com o meu padrasto e, talvez ele nem saiba disso!, meu padrasto sempre deu o exemplo discreta e elegantemente bem. Somos (éramos) como um par de vasos.

As memórias perdidas levaram para longe o padrasto que eu conhecia e admirava. O que, no início, foi um choque. O homem ao volante, seguro de tudo o que fazia, onde estava? No sofá, olhando para as paredes, dedilhando o violão, em crise de auto-estima, digitando longos e-mails para parentes distantes, brincando com os cães, cada vez mais dependente do auxílio da minha mãe e da compreensão da família. “As coisas vão melhorar”, ele parece nos dizer, triste com a própria situação. “Não sei quando, mas vão.”

Sabemos que não vão. Nesse período de reajustes, minha mãe assumiu a direção da casa, minha irmã encontrou paz de espírito (ainda não sei como ou onde ou se isso conta como um tipo de milagre) e eu me afastei do lar para cumprir rigorosamente minhas obrigações e, aos poucos, me transformar no homem que meu padrasto era. Não é tão fácil quanto parece. Há dias solitários em que tranco a porta, apago as luzes e, com o som de guitarras à britadeira, tento esquecer o pensamento recorrente de que minhas memórias, também elas, um dia serão poeira.

Quando isso acontecer, o que será disso tudo? O que será da minha trajetória? Tai o tormento número um, o pavor que ocupa o primeiro posto no top 5 das minhas aflições recentes. As memórias perdidas. Eu mesmo já devo ter perdido muitas delas. Não me dei conta, será? Outro dia, num desses momentos em que o mundo parece ter se vestido de onça e ninguém se entende, tentei lembrar da minha infância e se, naquela época, eu era um menino menos intransigente, mais flexível, mais paciente. Depois, num desses momentos em que o mundo parece ter se vestido de moedor de carne, tentei imaginar se, quando criança, era esse o futuro que eu planejava para a minha vida. Uma competição ferrenha pelos melhores assentos no Superdome da nossa eterna insatisfação? Não consigo chegar a lugar algum. As memórias se perderam.

O tempo passou e, depois de algumas semanas, comecei a me acostumar com a versão 2.0 do meu padrasto. Nossa relação entrou numa nova adolescência. Éramos dois estranhos até o dia em que decidimos nos conhecer. Aposto que para ele também deve ser difícil. Não sou mais menino e não tenho mais medo de trovoada e já poderia ser pai e é assim que as coisas são.

Há um lado relaxante nessa descoberta. Meu padrasto, um ser humano? Quem diria! Eu, um ser humano? Que coisa, hem! A nova lição do meu padrasto talvez seja a mais valiosa de todas. Talvez seja isso. Nos poucos fins de semana em que me encontro com ele (minha vida é trabalho), passamos horas conversando na varanda, como nunca fizemos. Lavamos os carros e brincamos com os cachorros, e às vezes dá vontade de perguntar se aquele sujeito antigo ainda vive ali dentro daquele corpo branco, mas fico quieto, pensativo. Depois de um tempo, passo a enxergar meu pai biológico no meu outro pai. E tudo fica bastante confuso. E é aí que identifico uma terceira pessoa, completamente diferente.

Por recomendação dos médicos, puxo assuntos que nos levam ao passado. E é bonito. Falamos do tempo em que eu era um moleque despreocupado e dessa fase ele lembra mais do que eu. Uma dia, ele pescou uma cena inteira. “Você subia naquelas montanhas de bicicleta. Você e seus amigos. Era um clube de garotos. Vocês faziam carteirinhas. Com fotografias e tudo. Vocês passavam o dia inteiro nas montanhas. Depois voltavam, exaustos.” E eu reconstruía aquelas imagens de um jeito que elas nunca existiram. Não lembro de nada. Está tudo perdido, perdido, perdido. Mas é emocionante saber que meu padrasto, mesmo lembrando cada vez menos, ainda assim guarda uma lembrança tão inútil e pequena relacionada a este aqui, Tiago, o menino na bicicleta subindo as montanhas.

Ele lembrava com tantos detalhes que parecia o fim do pesadelo. Ele estava curado do mal misterioso! Cinco minutos depois, no meio de outra conversa, ele voltava à história dos meninos de bicicleta, as montanhas, o clube, as carteirinhas com fotografias. Uma frase repetida com o entusiasmo de quem a pronuncia pela primeira vez. Retornamos ao começo, mas agora sem sustos: meu novo padrasto está ali, e ele até que não vai mal.