Cinema

cine | O porto

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Confesso a vocês, amigos, que não foi pouco o meu desânimo quando li as primeiras notícias sobre este filme de Aki Kaurismaki. Escritas durante a cobertura do Festival de Cannes de 2011, essas reportagens meio genéricas informavam que o finlandês havia dirigido um longa sobre imigração ilegal na Europa, um dos temas preferidos dos cineastas que se escondem atrás de grandes temas.

Talvez as minhas expectativas (muito baixas) tenham contribuído para que eu me surpreendesse com um filme que, além de não se ater à “análise sociológica” de um assunto que está na moda, cria uma gambiarra cinematográfica que me parece instigante: o cineasta está, a todo momento, infiltrando um contexto realista (a truculência que a França impõe aos migrantes e “outsiders” em geral) numa “cidade paralela” que só existe mesmo na Kaurismakiland.

O diretor é finlandês, os personagens vivem na França, mas podemos fizer que Le Havre não se passa exatamente em nenhum desses país, mas flana numa terra cinematográfica que se desdobra como uma espécie de realidade alternativa — um território regulado pelo estilo de um autor. O laconismo dos personagens, o emprego muito específico do tempo (como que entorpecido, numa velocidade um pouco aquém à da vida) e a encenação de cartum (um cartum azulado e zombeteiro, diga-se) — entre outros traços tão próprios à câmera de Kaurismaki — aqui aparecem como uma forma enviesada de ver um tema que volta e meia aparece nos noticiários.

A (boa) diferença é que, enquanto tantos diretores comentam a questão com um realismo chapado, lamentando o destino terrível dos excluídos, o finlandês cria uma fábula otimista — sobre a relação de amizade entre um engraxate e um menino migrante — em que tudo aparentemente indica um final feliz. Mas, sorrateiramente, esse ambiente fantasioso de Kaurismaki aponta para tudo o que existe de cruel e caótico no outro lado do espelho. Isto é: no mundo do espectador.

(Le Havre, Finlândia/França, 2011). De Aki Kaurismaki. Com André Wilms, Blondin Miguel e Jean-Pierre Darroussin. 93min. B+

cine | Projeto X

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Sempre que topo em algum lançamento da onda “found footage”, lembro logo do meu preferido entre os filmes de Lars von Trier, As Cinco Obstruções. No documentário, o diretor desafiava um ídolo (o cineasta Jorgen Leth) a refazer um curta-metragem obedecendo a uma série de restrições, todas elas determinadas (é claro) pelo próprio Trier. Há quem interprete essa obsessão por definir limites bem específicos para a encenação — que se nota em outros filmes do diretor, como Os Idiotas e Dogville — como um esquema de marketing. É, não é? Mas também podemos tomar essa estratégia como uma reação a uma época em que o digital passou a permitir enorme liberdade a quem faz filmes.

O filão “found footage” (como se mostra hoje) parece todo ele construído em torno dessa provocação de Trier — já que esses filmes baratos (em digital, com aparência tosca de exercício universitário) se submetem, de antemão, a um punhado de “obstruções” formais. A começar pelo ponto de vista do narrador, já que as imagens são captadas ora pelos próprios personagens principais, ora por sistemas de vigilância, ou por coadjuvantes que calham de flagrar as cenas via telefone celular ou câmera portáteis. O combo final nada mais é que a edição — para efeitos “informativos” — de um material bruto que evidencia algum crime ou fenômeno sobrenatural.

A maior parte dos filmes desse subgênero segue rigorosamente esse modelo realista, testando os efeitos que toda essa crueza provoca no espectador (em Cloverfield e Poder sem Limites, por exemplo, a graça é narrar tramas de sci-fi como se fossem flagrantes de reality shows). Projeto X é, ao menos em tese, um filme da lavra “found footage”: após um aviso de que a Warner lamenta por mostrar aquelas gravações (ou algo parecido), o que vemos são as imagens captadas por um grupo de amigos numa “festa de arromba”. São incalculáveis as opções de edição, já que praticamente todos os convidados têm iPhones à mão — e tomaram, desconfio, algumas boas doses de energético.

O “found footage” é um jogo de tabuleiro. É uma lástima (e aqui estou sendo dramático) que Projeto X não queira jogá-lo. Não por falta de ambição — o produtor Todd Phillips (de Se Beber, Não Case) tenta atualizar as chulices de Clube dos Cafajestes para a geração do iPad e de Kanye West. O modelo visual é usado (aí sim) como um aplicativo para tornar o filme mais “urgente” a uma parcela teen do público — e abandonado quando o diretor não precisa dele (principalmente nas cenas em que a narrativa se transforma em clipes de hip-hop). O desfecho, fuzilando cruelmente as minhas pobres expectativas, anula toda a suposta anarquia da trama com um alívio romântico que caberia numa season finale de Gossip Girl.

Superficialmente, é uma comédia anormal (e, por isso, interessante). Mas Lars von Trier pediria para fazer de novo — porque, claramente, alguém não entendeu como a brincadeira funciona.

(Project X, EUA, 2012). De Nima Nourizadeh. Com Thomas Mann, Oliver Cooper e Jonathan Daniel Brown. 88min. C

cine | Poder sem limites

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Numa boa entrevista ao The A.V. Club, Nicolas Winding Refn contou que gosta de filmar a partir de premissas muito acessíveis e simples – exemplo: um personagem correndo contra o relógio, fora da zona de conforto, metido numa situação em que nada funciona conforme o esperado. Quando se define uma estrutura dramática porosa (e genérica) o suficiente, ele explica, o importante passa a ser a forma como o cineasta a preenche. Talvez por isso a trama de Drive – sobre um motorista sem nome, misterioso durante e após a projeção – pareça um tanto oca quando tentamos contá-la a alguém.

Ainda mais tolo é o enredo de Poder sem Limites, um filme que deixa a suspeita de ter sido concebido com método semelhante ao de Refn. Na sinospe, o que encontramos é uma daquelas fitas de fantasia sazonais sobre os wonder years de super-heróis, com os conflitos que a linha de produção da Marvel leva de 15 a 20 minutos para compor. É um ponto de partida absolutamente comum – mas que, por ser trivial, libera o diretor estreante Josh Trank para fazer um filme de heróis que, descontada a trama, tenta ser diferente de todos os outros.

Como acontece em Drive, Trank usa a singeleza do argumento para criar um pacto ultraveloz com uma parcela do público, acostumada às artimanhas do gênero. Esses espectadores talvez aceitem rapidamente jogar o filme, apesar de tudo o que ele tem de anormal (e não é pouca coisa). Porque, ainda que seja mais um filme de super-herói, ele parece ter sido criado após o apocalipse do subgênero, no day after de uma overdose cansativa de blockbusters supercustosos e repetitivos. É como se Trank se empenhasse, a cada cena, para encontrar soluções audiovisuais capazes de reanimar os truques que o público dos multiplexes conhece intimamente.

O efeito de desconstrução/reconstrução mais interessante, aí, se dá com a manipulação das câmeras, que “narram” o filme – sempre de acordo com as convenções de outro subgênero manjado, as fitas de “found footage” (à la A Bruxa de Blair). Trank parece partir do ponto em que Cloverfield e [REC] pararam, contaminando imagens de “reality TV” com temas e efeitos surreais. A diferença (que muito me anima) é que, ao usar o CGI como se não houvesse amanhã, este filme vai muito mais longe, tratando o cinema como um brinquedo nas mãos de uma criança agitada. As cenas aéreas, delirantes, nos mostram como, na média, as fitas de fantasia são medrosas.

Algumas soluções visuais podem emocionar quem tem fé no sci-fi, acima de tudo quando os personagens usam superpoderes para fazer as câmeras flutuarem: é como se o próprio filme levitasse graciosamente, em planos fantasmagóricos, sem limites (eis um belo acerto, aliás, do título em português).

Todo o trecho mais, digamos, lúdico da trama, em que os amigos experimentam os poderes, me interessa mais que os setores inicial e final do filme: aos poucos, o longa se desloca de Cloverfield e X-Men ao território camp de um Carrie, A Estranha, com resultados também curiosos (as cenas da relação entre pai bronco e filho nerd e solitário são de uma crueza que não se vê nem em adaptações de Chris Nolan), mas que parecem-me empurrar o filme aos solavancos a um desfecho trágico.

Por mim, tudo bem. É assim que terminam as fitas de super-heróis. E Poder sem Limites pertence a essa casta, ainda que pouco se identifique verdadeiramente com ela. O que temos é um filmezinho cheio de ansiedade e fúria (bem adolescente, portanto), à imagem do anti-herói autodestrutivo que Trank cria para si. Parecido com muitos outros, mas singular.

(Chronicle, Inglaterra/EUA, 2012) De Josh Trank. Com Dane DeHaan, Alex Russell e Michael B. Jordan. 84min. B+

cine | Shame

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Podemos acusar Steve McQueen de muitos pecados (o mais óbvio: vaidade, já que o homem adora mostrar que sabe filmar com elegância), mas não de se ausentar diante do personagem central de Shame, um homem viciado em sexo. O ponto de vista do cineasta é tão aparente que o filme parece transcorrer em duas linhas simultâneas: numa delas, conhecemos um personagem transtornado, em confronto com os próprios desejos; e, em outra, encontramos a faixa de comentários de McQueen sobre esse tipo transtornado, indicada por uma trilha sonora sempre pesarosa e por uma câmera fria, deadly serious, capaz de transformar cada encontro sexual em sessão de tortura.

O cineasta investe esforço para se colocar sempre ao lado do protagonista, usando uma série de recursos estilísticos (às vezes, com a sutileza de um Gaspar Noé) para tornar palpável, cinematográfica, uma tragédia íntima. A atuação de Michael Fassbender define com tanta precisão a agonia lacônica desse homem-zumbi (uma espécie de Psicopata Americano sem ironias, para a sensibilidade dos fãs de Drive) que resta a McQueen interpretá-lo, via instalações chiques de imagem&som. Provocam incômodo (em mim, é claro) as cenas em que o diretor dilata gratuitamente a ação ou vai pescar referências “cool” de De Olhos Bem Fechados (de Kubrick) e de Irreversível (de Noé). Um cineasta ainda in progress.

O arremate do roteiro também me parece acidentado. As primeiras cenas, que mostram o cotidiano doentio do personagem, são fortes porque prendem Fassbender numa estrutura circular, sem saída tanto pra ele quanto pro espectador. O filme vai titubeando e se despregando do eixo, no entanto, quando se vê obrigado a criar possibilidades de redenção ao anti-herói, seja na relação com a irmã invasora (ainda assim, até o diretor deixa tudo de lado pra ver Carey Mulligan cantando New York, New York), seja num clímax que providencia a fórceps uma inevitável descida ao inferno (lembranças tristes de Réquiem por um Sonho maltrataram minhas retinas). O diretor tenta se impor a todo custo, mas o personagem (ufa) o nocauteia — é mais complexo e singular que o filme em si.

(Inglaterra, 2011). De Steve McQueen. Com Michael Fassbender, Carey Mulligan e James Badge Dale. 101min. B

top 100 | Os filmes da minha vida (18)

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Amigos, esta é uma semana especialmente movimentada, com incríveis novidades na vida deste blogueiro. Espero, por isso, que vocês relevem o chuvisco de posts, que não estão caindo neste website com a regularidade prometida.

Lamento. Mas, para desempenar a barra de rolagem, cá está um novo episódio de uma saga com filmes que, por motivos quase insondáveis, foram importantes para a minha vida.

No capítulo de hoje, dois longas não muito antigos.

066 | Amantes Constantes | Les Amants Réguliers | Philippe Garrel | 2005

Um amigo meu viu o filme acompanhado da ex-namorada, que queria reatar a relação. Ela não aguentou e rapidamente saiu da sala de projeção, mas ele preferiu continuar com o filme e o namoro acabou definitivamente ali. Possivelmente essa também teria sido minha opção diante de imagens que produzem efeito hipnótico em quem se deixa embriagar por elas. Não sei se esse amigo gostou do filme (talvez não), mas é o de menos: ainda que trate de episódios históricos importantes por um viés que vira pelo avesso um punhado de discursos oficiais – é um réquiem endereçado à geração de 68 -, o que me assombrou antes de tudo foi o choque provocado por essas cenas em P&B puído, rugoso, acho até que bruto, expressivas o suficiente para enxotar do cinema certos espectadores e, em outros, inspirar fascínio eterno.

065 | Magnólia | Paul Thomas Anderson | 1999

Nem foi amor fulminante: na primeira sessão, lembro que as firulas do filme mais me incomodaram que entusiasmaram. O que ficou dele – e, mais tarde, acabou me levando de volta a ele – foram as canções de Aimee Mann. Cada vez que eu as ouvia, uma imagem do longa voltava à minha memória, de forma que as imagens de Paul Thomas Anderson rodaram centenas, milhares de vezes na minha cabeça, atuando como o refrão de uma música pop muito eficiente. Depois me rendi e revi o filme, que hoje me parece belo por causa da intensidade até inconsequente (vide Presságio, para mais informações sobre o tema) como se lança às próprias obsessões. Como numa boa faixa de Mann, as fragilidades de melodia/arranjos são compensadas pela emotividade de uma voz vigorosa, a que não falta verdade.

cine | A música segundo Tom Jobim

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Ainda que esta informação não vá interessar a vivalma, devo informar-lhes que foi graças a um programa de televisão que me engracei com a bossa nova: não lembro quando, acho que por volta de 1990, acabei obcecado por um desses especiais comemorativos que reúnem figurões da MPB. Gravei o showzinho numa fita VHS, que rodou no meu videocassete até quase empalidecer. Desafinado se tornou uma das músicas mais importantes da minha pré-adolescência, ombreando com hits do R.E.M. e da Legião Urbana. Era uma canção inquebrantável, capaz de resistir à interpretação mais efêmera, ao maneirismo mais kitsch. Para um menino de 10 anos, era como descobrir um segredo e um tesouro em pleno horário nobre.

As imagens daquela fita VHS voltaram à minha cabeça durante a projeção de A Música Segundo Tom Jobim. Por isso, me perdoem se este post se tornar muito pessoal (no mais, nunca é tarde para lembrar que isto é apenas um blog, um diário). O doc de Nelson Pereira dos Santos e Ana Jobim reúne mais de uma dezena de clipes (muitos deles, televisivos) em que cantores brasileiros e estrangeiros interpretam músicas de Tom Jobim. Há clipes de boa e má qualidade, interpretações notáveis e excêntricas, vídeos novos e velhos: a música, no entanto, sobrevive gloriosamente ao tempo, às diferentes vozes e idiomas; a tudo.

O que num primeiro momento pode parecer um formato singelo (e ouvi pessoas inteligentes comentarem que o filme nada mais é que uma colagem de curiosidades do YouTube) logo se mostra um artesanato audiovisual muito bem urdido, com uma montagem que alinha os clipes num desenho melodioso. Sem narração em off ou depoimento de, digamos, Nelson Motta, o filme prefere a sugestão sutil ao didatismo tosco – ainda que o recurso digital usados para animar as fotografias em preto e branco me pareça um tanto trivial. Em algum momento, um cartaz descreve a bossa nova como “a primeira música moderna brasileira”. Nada mais coerente, então, que este belo longa-metragem aqui: um filme moderno brasileiro.

(Brasil, 2012). Documentário de Nelson Pereira dos Santos e Ana Jobim. 88min. B+

top 100 | Os filmes da minha vida (17)

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No episódio pós-carnavalesco da saga mais irrelevante da internet mundial, cês ficam com mais dois filmezinhos que ganharam uma série expressiva de 10, notas 10, na minha apuração particular de votos & quesitos.

Para não burlar o regulamento defendido pela comissão organizadora (isto é: eu), este ranking parmanece totalmente fiel ao compromisso de revelar muito sobre as minhas lembranças cinematográficas e, infelizmente, pouco sobre os filmes em si (até porque não lembro muito bem de vários deles).

Neste capítulo, por exemplo, temos um longa-metragem que geralmente aparece em listas de melhores e outro que, bem, cês entenderam como funciona este jogo.

068 | Conta Comigo | Stand by Me | Rob Reiner | 1986

Não me julguem: aos 10 anos de idade, um dos meus passatempos preferidos era caminhar perigosamente na linha de trem que cortava o município litorâneo onde minha família se instalava nas férias de verão. À noite, o trajeto podia ser medonho: quando a máquina barulhenta se aproximava, e os trilhos começavam a tremer, e estávamos (por azar) papeando entre morros, a única escapatória era atirar o corpo nas pedras que forravam a encosta e esperar o fim do turbilhão. Sobrevivíamos. E, após a passagem do trem, algo ficava mais forte na amizade entre os garotos que participavam da aventura. Um sentimento ilustrado à perfeição por este Conta Comigo, um dos maiores entre todos os filme-de-menino

067 | Tempos Modernos | Modern Times | Charles Chaplin | 1936

Foi deveras incomum meu primeiro contato com os filmes de Chaplin. Lembro que eu era muito novo (nove ou dez anos) e que minha mãe, psicóloga, estudava os filmes do homem para escrever um artigo ou algo que o valha. Passávamos tardes esquadrinhando as fitas de VHS, vendo e revendo cenas num indo-e-vindo caótico. Hoje, não consigo separar um filme do outro, e vejo o cinema do diretor como um aglomerado de imagens que parecem contar uma única história. A exceção é Tempos Modernos, que, pouco tempo depois, resolvi rever inteirinho, sem interrupções. O efeito foi de um deslumbramento tão intenso que, na época, pensei lá comigo: ‘este é o modelo de um grande filme’. Desde então, não o revi para confirmar ou desmentir aquela impressão.

cine | A Dama de Ferro

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No contrafluxo de um J. Edgar ou de um Não Estou Lá, serve de exemplo para o que há de mais antiquado no filão das cinebiografias. De tão didaticamente ruim, de tão míope, poderia ser usado até como material educativo para alertar alunos de jornalismo: o retrato da primeira-ministra inglesa Margaret Thatcher não só ameniza fatos que são de amplo conhecimento (a Guerra das Malvinas, por exemplo) como está sempre desviando a câmera para não encarar os aspectos mais complicados, e controversos, da personagem que decide perfilar. Thatcher, recriada por uma Meryl Streep emperequetada num cosplay im-pe-cá-vel, aparece na tela como uma senhora solitária, saudosista, às voltas com as dificuldades de se livar do fantasma (metafórico) do marido morto. Talvez por não ter encontrado muitos ganchos sentimentais na trajetória da poderosa, a diretora Phyllida Lloyd (de Mamma Mia, estão avisados) usa a personagem como motivo para um draminha manso, pra toda a família. Evite.

(The Iron Lady, Inglaterra, 2011) De Phyllida Lloyd. Com Meryl Streep, Jim Broadbent e Richard E. Grant. 105min. D

cine | 50/50

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Quanto mais penso no filme choroso que 50/50 poderia ter sido (se dirigido por, digamos, Lasse Hallström), mais me simpatizo por ele. Aliás, a afeição se torna fácil quando percebemos que o roteiro (de Will Reiser, um iniciante) e a direção (de Jonathan Levine, que fez o igualmente arejado The Wackness, que vi numa edição do FicBrasília) estão sempre atuando de forma a descontrair uma premissa que é, por natureza, trágica (resumindo o script: rapaz atlético, boa-praça, genro-do-ano, saúde de ferro, descobre que tem 50% de chances de sobreviver a um câncer).

Quem espera o martírio de um drama hospitalar acaba encontrando, por isso, um longa sereno e relaxado (quase sempre no bom sentido), curioso por temas que tangenciam a trama principal: as relações que se estreitam ou se rompem numa situação-limite, os compromissos familiares,os momentos de espera e preparação para as piores etapas do tratamento médico… Parece simples (e cá está um filme que quer parecer simples), mas quantos outros cancer movies ignoram a obrigação de ir construindo o enredo que nos torture gloriosamente num clímax catártico banal?

Outra particularidade é o olhar de jovem-macho que o filme banca com muita clareza, idealizando toscamente a figura feminina (Anna Kendrick é a musa dócil, em oposição à imagem da namorada traiçoeira e insensível) e tratando a amizade mano-a-mano quase como um bromance de adolescência (e Seth Rogen, como sempre, se presta bem ao papel do amigo bronco-porém-fiel). Existe espontaneidade nessa atmosfera juvenil, como se o filme tivesse sido escrito em cômodos de alojamento universitário. Tem uma qualidade que se tornou rara na indielândia: é fluente, e parece (mesmo quando imaturo) de uma franqueza inatacável.

(50/50, EUA, 2011) De Jonathan Levine. Com Joseph Gordon-Levitt, Seth Rogen e Anna Kendrick. 100min. B

top 100 | Os filmes da minha vida (16)

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Ei, amigos: aqui seguimos com o ranking mais inútil da internet brasileira, que reúne 100 filmes que foram extremamente importantes para a, err, minha vidinha. Infelizmente, estamos falando de uma lista muito pessoal, cujo critério principal não é a qualidade ou a importância ou a belezura ou o poder de influência ou o status dos filmes, mas o impacto que essas obras incríveis provocaram na, err, minha vidinha.

Bem, vocês entenderam. Nesta edição, aliens e nudez frontal.

070 | Eles Vivem | They Live | John Carpenter | 1988

Vou tentar não ficar muito emotivo neste parágrafo aqui, mas entendam que é muito difícil manter a compostura diante de uma comédia de horror sobre alienígenas, consumo desvairado, capitalismo, óculos mágicos, o APOCALIPSE e o hábito saudável de mascar chicletes e chutar bundas. O meu preferido de John Carpenter é o ultimate Filme B — hilariante como as piadas que contávamos durante a aula de História, mas com ideias perigosas que podem mudar a vida de um garoto de 16 anos. No mais, como faço pra curar a saudade daquele tempo bom em que os filmes de Carpenter eram discutidos na web como obras de intenso caráter subversivo?

069 | Instinto Selvagem | Basic Instinct | Paul Verhoeven | 1992

Fun fact: fui barrado na sessão de Instinto selvagem. Que coisa, não? Eu, um moleque ousado de 12 anos, até tentei convencer o moço da bilheteria de que fecharia os olhos nas cenas MAIS FORTES, mas tive que lidar com um decepcionante “se manda, garoto”. Tímido e humilado, engoli meu orgulho e aceitei a ideia de ver o filme em VHS (onde os sonhos aconteciam). O que rolou na primeira sessão é impublicável e vocês não gostariam de saber; mas, agora falando sério, vale ser registrado que não me recuperei do golpe desferido por aquela cena lá que todos vocês conhecem muito bem. Também me pareceu uma fita de suspense até bem arranjada, ainda que na época eu não tenha prestado muita atenção a esse detalhe, sinceramente.

cine | A invenção de Hugo Cabret

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Até agora, parecia possível organizar os filmes recentes de Martin Scorsese em dois compartimentos: um deles era reservado às criações do ficcionista intenso, exuberante; o outro, às sóbrias master classes de um documentarista que usava formatos convencionais para descrever a trajetória de tipos ilustres (Bob Dylan, George Harrison) e ensinar sobre a história do cinema. Eis que, como num número de ilusionismo, A Invenção de Hugo Cabret chega para sobrepor essa faceta àquela: é, como um amigo resumiu, A Personal Journey with Martin Scorsese Through Early Movies, FOR KIDS.

O que seria apenas um filme “família” em 3D (e é mais ou menos assim que o diretor descreve o longa) se transforma, assim, num projeto mais complexo e importante – que periga ser tratado, pelos fãs do cineasta, como uma obra autorreferencial, um espelho mágico para o próprio Scorsese, haja vista a quantidade de vezes que o diretor acena para a própria trajetória e para temas que aparecem tanto em seus longas de ficção quanto nos documentários. O que temos aqui, num sinopse até meio grosseira, é a aventura de um menino órfão, um “outcast” como tantos que o diretor filmou, que encontra no cinema um elo entre o passado (é nos filmes antigos, perdidos, que ele procura sinais do pai morto) e o futuro (são esses mesmos filmes que ajudam a formar a personalidade do garoto). Difícil não identificar o nome SCORSESE brilhando nas entrelinhas da trama.

A primeira parte da narrativa, quando esse menino tenta descobrir um enigma deixado pelo pai, tem menos força que a segunda, quando o tema passa a ser o início do cinema, com um tributo ao poder encantatório dos filmes de Georges Méliès e dos irmãos Lumière, produzidos numa época em que cinema ainda era visto inocentemente, como um brinquedo de parte de diversão. Um desequilíbrio até previsível, já que fica fácil identificar por qual dos trechos Scorsese mais se interessa.

O legado de Méliès e Lumière, aliás, orienta as escolhas técnicas do filme. O diretor usa o 3D digital com um propósito muito específico: o de criar conexões entre o deslumbramento tecnológico do século 21 e a própria invenção do cinema, uma “máquina de sonho” (como um dos personagens define, a certa altura). Mais do que qualquer outro filme pós-Avatar (mais até do que o próprio Avatar), neste aqui o 3D ganha um aspecto metalinguístico, artístico – e, como se não bastasse, Scorsese parece se divertir criando cenas que testam as possibilidades do recurso visual, alternando o estica-e-puxa da profundidade de campo com elementos de cena que “flutuam” diante dos olhos do público. A sequência de abertura, um “tour” na locação principal do filme (uma estação de trem), sintetiza a intenção número 1 do cineasta: nos deslumbrar enquanto teoriza sobre as “técnicas de deslumbramento” do cinema.

Impressiona. Mas é na segunda metade (quando já conhecemos o espaço onde os personagens vivem e o filme decola, enfim) que o diretor tira o coelho da cartola: vai perfurando a trama com minidocumentários sobre a história dos primeiros filmes silenciosos (especialmente os de Méliès, um dos personagens da trama) e com lições sobre preservação de películas (numa das cenas, um personagem olha para a câmera e ensina a molecada a cuidar bem de filmes velhos). Eu poderia escrever um texto longo comparando o didatismo sólido de Scorsese (que não se deixa levar por generalizações) com o discurso tatibitate de O Artista – mas fica para a próxima. O que embasbaca neste filme é o domínio técnico e estilístico de Scorsese, capaz de compor uma fábula cheia de fofurices infantojuvenis para filhos, pais & vovós (com a finesse visual de um, digamos, Harry Potter & as Relíquias do Cinema Mudo) e, ao mesmo tempo, criar um ensaio sobre cinema que só ele poderia ter feito – já que, repito, parece prolongar as experiências do diretor com documentários sobre o tema.

Quem acusa Scorsese de ter se convertido, desde os anos 90, num cineasta profissional “a todo custo”, negociando confortavelmente com os padrões dos grandes estúdios, vai encontrar nesta superprodução Oscar-friendly um inimigo perfeito. Cá pra mim, A Invenção de Hugo Cabret representa o reflexo mais preciso de uma fase serena, tecnicamente inatacável, porém sinuosa e cheia de armadilhas – em que um filme industrial não é somente aquilo que parece ser (e aquilo que o estúdio quer nos vender, ainda que seja também isso), exigindo do espectador a disposição de procurar na imagem sentidos mais profundos. No caso, os óculos 3D ajudam.

(Hugo, 2011) De Martin Scorsese. Com Asa Butterfield, Chloe Grace Moretz, Ben Kingsley e Sacha Baron Cohen. 126min. A

cine | Tomboy

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Na edição de 2011 do Festival de Berlim, Tomboy venceu o prêmio Teddy, entregue ao melhor filme com temática homossexual. O troféu deve ter facilitado a distribuição do filme, uma produção modesta, que custou 1 milhão de euros. Mas ele pode dificultar a vida de quem espera encontrar na tela os temas e conflitos de uma produção tipica e abertamente gay. Não é o caso. A dificuldade de classificar o projeto, aliás, esclarece o que existe de notável no segundo longa de Céline Sciamma: tal como a personagem principal, uma menina que se passa por menino, a narrativa flutua entre definições de gênero e de orientações sexuais.

Mais justo seria tratar este pequeno filme como um conto de infância, um conto de verão, que retrata com naturalidade as crises de uma identidade em formação. Já que a questão “ser ou não ser gay?” passa muito à margem da rotina inocente de Laure, uma petiz de 10 anos interpretada com convicção espantosa por Zoé Héran. A criança, que se mudou há pouco para um subúrbio de Paris com os pais (Mathieu Demy e Sophie Cattani) e a irmã caçula (Malonn Lévana), tem outras preocupações: fazer novos amigos é uma delas, e talvez a mais importante.

No suadouro do verão, Laure sai de casa vestindo bermuda, regata e com cabelo curto. A vizinha Lisa (Jeanne Disson) logo a confunde com um menino — o que, para a nova moradora da vizinhança, não é nada mal. Daquele dia em diante, passa a se apresentar como Mickäel, embarcando numa fantasia que não pode (nem vai) durar muito. Com uma câmera suave, grudada aos gestos infantis, a cineasta acerta ao arejar a narrativa, sem truques de folhetim. Não há por que condenar Laure: a farsa da menina, ainda que deixe na plateia a expectativa por uma tragédia, é narrada com a leveza algo amarga de quem entende que, aos 10 anos, as transições aparentemente simples podem ser também as mais doloridas.

(França, 2011) De Céline Sciamma. Com Zoé Héran, Malonn Lévana e Jeanne Disson. 84min. B

cine | O artista

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Depois de ter passado uma semana inteira enfezadinho com este filme tão adorável e fofo, acredito ter finalmente encontrado o motivo para a minha birra: é que, encerrado o debate sobre o quão ESPERTA é a ideia de recriar a atmosfera de um filme mudo por um viés contemporâneo, à serviço de uma (zz) linda homenagem ao cinema, não resta quase nada a ser dito sobre o filme. E, até por uma questão de coerência, eu poderia encerrar este post aqui.

Ah, ok: também podemos falar sobre como esse clima oldie é encenado de uma forma tecnicamente impecável. Os cenários são um bem fiéis àquilo que esperamos encontrar num filme velho, os atores estão um charme só, dá vontade de levar o cachorrinho pra casa e o roteiro contém dúzias de sacadinhas pós-modernas, ainda que monotemáticas: são variações sobre o fato de que, num filme silencioso, os atores não podem FA-LAAAR.

Ha-ha. Admito que ri (minto: sorri) durante o filme. Uma das sequências, a do sonho, merece ganhar um prêmio de curta-metragem. É divertido, sabe? A forma como o diretor parece estar fazendo um filme para pessoas que nunca frequentariam uma jornada de cinema silencioso, mas que (sabe-se lá por que razão) acham que os filmes eram mais genuínos nos anos 20. Muitas dessas pessoas, suponho, incluem Cantando na Chuva na lista de longas preferidos, ainda que não o tenham visto — caso contrário, certamente iriam reparar que esta ideia aqui é quase igual àquela (com a diferença de que, naquela, o segundo ato era bem menos previsível).

Vamos falar em ideias, então. O Artista talvez me incomode por parecer filme-de- uma-ideia-só — ideia essa que se esgota nos primeiros 30 minutos de duração (e ainda bem que não vi o trailer, porque teria sido um spoiler terrível). Os outros 90 são, no mínimo, redundantes. Por quê? Talvez porque muitos dos filmes mudos eram mesmo redundantes (e aqui a cobra morde o próprio rabo), ainda que haja controvérsias em relação a isso, mas e daí? Quando não está brincando com a faísca ultracriativa de trama (resumindo o enredo: ator de cinema mudo não consegue se adaptar à transição para cinema falado), o cineasta simplesmente deixa o herói do filme à deriva, chorando nos cantos enquanto o desfecho não vem.

Na cena final, o diretor nos mostra que o filme talvez não tenha apenas uma única ideia (certo, estou sendo cruel), mas duas. Ele nos ensina que a técnica do cinema mudo acabou por se tornar útil ao cinema falado. Não é irônico? Acho que sim. O Artista tira o chapéu elegantemente para tudo isso, dá um sorriso, pisca pra plateia. É um filme galante que nos entretém. Só senti falta (e isso não consigo encontrar nem em entrevistas, apesar de ter procurado com muita curiosidade) do olhar de um cineasta que não se contentasse tão somente com 1. o truque formal e 2. a explanação simplezinha acerca das transformações de uma época do cinema. Um olhar capaz de esgarçar a ideia, dilacerar o truque, e de nos surpreender profundamente.

Mas aí talvez seria pedir demais. Eu sei. Estou sendo rabugento. Quem tem uma ideia ESPERTA talvez não precise disso, de um olhar. Não cobramos um olhar de, por exemplo, anúncios sagazes de televisão. Queremos que os anúncios nos confortem, nos estimulem, nos afaguem, e um olhar pessoal às vezes nos incomoda, nos apresenta as coisas de uma outra perspectiva e anuvia o nosso dia. Not here. No que os fãs do filme vão retrucar com um “e daí?” Eles têm razão, já que o longa cumpre com precisão o objetivo que estipula para si. Voltando ao primeiro parágrafo deste post: não há o que discutir. É (atenção que vou repetir a palavra mágica) eficiente. No mais, eu nunca quis saber verdadeiramente o que o diretor de, hum, Amélie Poulain (outro filme que parece-me um projeto de filme, um filme-sem-filme) pensa sobre a vida, o mundo, a arte e tudo mais.

Que venha o Oscar, então. E viva o cinema etc.

(The Artist, França, 2011). De Michel Hazanavicius. Com Jean Dujardin, Bérénice Bejo e John Goodman. 100min. C (ou, sendo cínico, B).

top 100 | Os filmes da minha vida (15)

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Vamos a mais uma rodada daquele famigerado ranking de filmes? (A única resposta possível, I’m afraid, é sim). Após uma interrupção que ninguém notou, esta discreta seleção pessoal de obras cinematográficas pede licença para voltar – desta vez, com dois títulos cabulosos (como diria minha prima de 12 anos), que justificam os suspiros de ai-ai, que saudade do tempo bom que não volta mais… Snif.

072 | Rosetta | Jean-Pierre e Luc Dardenne | 1999

Não foi, infelizmente, minha primeira incursão down the Dardenneland: Rosetta foi exibido em Brasília muito depois de O Filho e de A Criança, numa mostra de cinema europeu. Sessão única. Descobrir o filme nessa condição poderia ser perigoso, já que o estilo dos cineastas me parecia familiar. Ainda assim, foi um choque: a sensação era de acompanhar o filme ao lado dos personagens – um convite à imersão que ainda me parece mais eficiente que qualquer 3D. Ao fim da sessão, uma amiga admitiu que, enfim, havia entendido o porquê do prestígio dos Dardenne: um comentário exagerado, mas não retruquei.

071 | Uma Mulher Sob Influência | A Woman Under the Influence | John Cassavetes | 1974

Assisti a todos os filmes do Cassavetes numa mesma época – talvez da maneira errada e tarde demais, eu sei -, quando eles foram lançados em DVD nos Estados Unidos. Desde que moro em Brasília (e lá se vão 20 anos), nenhum longa do diretor foi exibido numa sala de cinema daqui. Posso dizer, portanto, que a tevê salvou este cinéfilo aqui: lembro que, na terceira vez que vi Uma Mulher Sob Influência, eu usava o controle remoto para selecionar os momentos mais assustadores de Gene Rowlands, surtando gloriosamente nos cômodos de uma casinha de classe média. Desde então, espero por uma chance de vê-lo no cinema: esse filme, porém, ainda não vi.

cine | Millennium – Os homens que não amavam as mulheres

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Os livros da série Millennium são best sellers que não provocam repulsa em quem diz detestar best sellers: ainda que vendam o tipo de conteúdo “pulp” que predomina nas prateleiras de thrillers, eles são escritos com uma prosa clara, sem excesso de lugares comuns, por vezes até elegante (o autor, Stieg Larsson, era um repórter de prestígio na Europa) e, portanto, mais respeitável que os garranchos de um, digamos, Dan Brown.

E mais: na trama, que atualiza alguns métodos herdados de Agatha Christie e Arthur Conan Doyle, o personagem principal, um jornalista ético e combativo, é um mascote que o escritor cria para criticar a cobertura econômica chapa-branca que a imprensa europeia geralmente pratica. Esse tipo honesto acaba por investigar casos de abusos contra mulheres. Temas importantes, que incluem a trilogia na categoria de obra-literária-para-resenhas-em-revistas-semanais.

O aspecto mais atraente e “vendável” dos livros, no entanto, é bem outro: a relação de amizade/parceria/paixão entre esse herói da mídia investigativa e uma hacker arredia, ambígua e superesperta, que todo jornalista gostaria de ter como assistente.

Podemos ler a trilogia de, pelo menos, três formas: são love stories, thrillers de mistério e dramas sociais (o primeiro livro chega a listar estatísticas sobre crimes contra mulheres suecas). É o acúmulo dessas intenções que, creio eu, faz dele um produto com potencial para fazer a conexão entre o leitor de um Philip Roth e aquele que deseja apenas experimentar as sensações de uma “junk fiction”: medo, aflição, diversão.

Explico tudo isso para que vocês entendam por que vejo como muito apropriada a escolha de David Fincher para dirigir a adaptação norte-americana do primeiro livro da série: ele é um dos poucos cineastas que seriam capazes de transferir para o cinema não apenas a trama de Larsson, mas todo esse “crossover” pop comercial. Cá está: um diretor respeitável, de prosa fluente e “legível”, cravando os dentes num produto de entretenimento, e estampando nele uma certa grife.

O filme sueco não tem (nem seria capaz de ter) esse grau de afinidade com os originais. Fincher é, até por obrigações que são comuns a esse tipo de projeto, “fiel” à trama (e, nesse aspecto, antes que me perguntem, o filme a segue até excessivamente), mas o que me impressiona é como ele, talvez inconscientemente, consegue adaptar por completo o tom do livro: faz um thriller “respeitável”, com uma caligrafia fluente, sobre um punhado de intrigas de folhetim.

É possível pensar em muitas ligações entre este filme e elementos que são recorrentes na obra de Fincher: a personagem da hacker Lisbeth Salander, por exemplo, é a nova sócia em um clube de solitários e “outsiders” que já incluía Ellen Ripley (Alien 3), o serial killer de Seven, o herói masoquista de Clube da Luta e Mark Zuckerberg (A Rede Social). Outra tentação é criar uma comparação entre a investigação inconclusa, lacunar, de Zodíaco e o excesso de explicações e “conclusões” de Millennium. Mas prefiro encarar este filme como um “blockbuster” de Fincher, à la O Quarto do Pânico, em que as habilidades técnicas do diretor se tornam mais decisivas que o olhar criativo do autor.

Exatamente como o livro, aliás, o filme usa a aptidão narrativa e um espírito bem jornalístico (de denunciar abusos, maus tratos) para justificar cenas que, numa produção menos sofisticada, seriam interpretadas simplesmente como exercícios de sadismo e grosseria. Fincher às vezes se diverte (na sequência de abertura, no clímax, quando usa Enya como música-tema para um assassino), às vezes se limita a fazer o trabalho da maneira mais correta possível. Preserva, ainda assim, uma das boas provocações do livro: a misoginia europeia sobreviveu ao fim do nazismo, e hoje se esconde nos apartamentos de cidadãos aparentemente responsáveis e bondosos.

Um dos meus problemas com o livro é que ele parece-me irregular, começando bem e terminando não tão bem. Nas últimas páginas, o livro me deixa com a impressão de que Larsson está se apressando para encerrar a trama e resolver todos os enigmas à tempo de pegar uma sessão de cinema às nove da noite. A adaptação de Fincher é tão, hum, respeitosa que preserva uma sensação que, para mim, se tornou incômoda: a de que o enredo “pulp” se deixa inflar por uma quantidade exagerada de assuntos, personagens e intenções, resolvendo o imbróglio sem muita perspicácia ou paciência. Digamos que seja um defeito de fabricação — do tipo que, num projeto desta natureza, um cineasta prático como Fincher não tem autorização nem ânimo para consertar.

(The Girl with the Dragon Tattoo, EUA, 2011). De David Fincher. Com Rooney Mara, Daniel Craig e Christopher Plummer. 158min. B