Diarinho

Superoito, duas vidas

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De madrugada ouvi um estalo que começava e parava, começava e parava. Parecia gota d’água caindo numa folha de metal. Mas deve ter sido um sonho.

Quando toca, o despertador do meu celular solta uma musiquinha doce, celestial feito sino de igreja. A tela do aparelho brilha e treme. Digitei 4h30.

Pedi pra ela programar o outro celular. Por via das dúvidas, desencargo de consciência, desconfiança, essas coisas. Vai que. Ela topou.

Mas pedi: quatro e quarenta, tá? Porque o som daquele aparelho é um bom-dia alegre, e eu não tava pra isso. Que é que cê tem?, ela perguntou. Né nada.

Antes disso eu chorei um pouquinho. A luz apagada, então ela não viu. Perguntou se eu chorava e eu disse não, né nada. Tava só lembrando, falei.

Chorei um pouquinho porque pensei no jeito como ela olha o laptop, naquela pose fixa e séria de quem desenha uma equação fatal. É lindo.

Sei que ela não gosta de homem que chora por qualquer coisa, daí que fiquei na minha. Era a última noite, mas eu preferia nem pensar muito porque.

Uns dias antes, acertamos que o futuro seria: casar (sem filhos), comprar panelas e pôsteres pra sala, videogame e um apartamento no alto da rua.

Ela é a mulher que eu amo.

Acordei às 4h30. E disse: desliga o celular que já-já toca. Ela esbarrou no botão sem largar o sono. Olha, encontrei alguém que sonha mais que eu.

Fui tomar banho. Pedi o táxi, que chegou em dois minutos. Pensei que-rápido, tomei um copo de chá, ela tava dormindo, um beijo e té logo, te amo.

Na minha vida número 1 chove uma chuvinha gelada, faz frio, visto dois casacos (um pullover e uma jaqueta), o ar arranha minha garganta e tal.

Encontro o taxista, ele também sente frio (parece que sente). Cinco da manhã, nem tem sol ainda, de onde você é? Ele pergunta, eu respondo.

Depois ficamos calados. Gosto de ver as ruas na madrugada da minha vida número 1. Dependendo da hora do dia, elas mudam de tamanho. De manhã são largas.

À noite são estreitas. Um dia, quase me atropelaram. Um careca com um cachorro briguento. Uma velhinha. Um mendigo maluco. Amo São Paulo.

São duas vidas. A número 1 é a minha preferida.

Ela vive dizendo vempracá, vempracá, me atiçando, mas ainda não é hora, a hora ainda vai chegar, às vezes sou um menino assustado, um guri bobo.

Então cabou o tempo.

Depois de duas semanas em São Paulo, era dia de voltar. Ao trabalho, à minha vida número 2, a mala cheia, mas desta vez deixei cinco ou seis camisas.

São Paulo sou eu. Brasília, minha outra casa, é uma cidade ampla. Talvez ampla demais. Vivo me perdendo lá dentro, mesmo nas quadras que conheço.

Quando o avião decolou, as nuvens todas desapareceram. Todas de uma vez. A chuva passou e o céu foi ficando avermelhado. São Paulo brincando comigo.

Outro dia perguntaram por que São Paulo e eu fiquei: hem? Não sei, deve ser por causa das pessoas que sobem e descem a Paulista, acho que sim.

Muita gente na rua. Cheiros da minha infância. Minha infância perto da praia. Aí descobri que o inverno em São Paulo pode ser o mais seco, o mais frio e cruel.

Tem isso. O avião ainda tava decolando quando lembrei do dia horrível no metrô, tanta gente apertada que parecia um atentado, mulher chorando etc.

Na poltrona do avião, homem dormindo e roncando. Tirei meu fone pra ouvir umas músicas, mas só consegui pensar tá errado, tá errado, tá errado, tá sim.

Tem esse chavão de que Brasília é hostil de tão seca. Eu acho que não. Eu gosto da névoa amarela e da poeira. E do céu azul sem nuvens: um lençolzão.

Minha mãe e meu padrasto foram me buscar. Ele sempre calado, preocupado com o que diz, com o que faz. Ela um pouco triste – de saudade, sei.

Não noto se meu padrasto tá melhorando ou piorando. Ele fica quieto, cada vez mais quieto, e a doença mordendo de um jeito que só ele sabe dizer.

Acaba que a gente se acostuma. Ele também. Eu e minha mãe. Minha irmã. Até os cachorros. Ele nunca foi tão amável. Minha mãe fez café com pão.

Mãe quer que eu fique, tenho que trabalhar. Minto: tenho sono, tou é sintonizando minha outra vida. A número 2. E a cidade já parece outra.

Nem sei que cidade é esta. Mudou muito. Mudou foi nada. Pra que essas ruas todas se dão voltas em torno delas próprias? Carros em silêncio, nem rádio.

Ligo a música no volume máximo porque não sei o que tou fazendo aqui. Não sei. A mulher fecha a janela. Não sei mesmo, moça, me desculpe, té mais.

No trabalho aparece o brilhozinho verde no celular. É ela. Quer saber se tou bem. Talvez sim. Certeza que não. Sempre machuca trocar de vida, só eu sei.

Arrancaram minha pele e trocaram por outra (mais ou menos isso). Como se eu fosse um personagem do David Cronenberg (a comparação mais exata).

Não sei o que essas pessoas querem de mim. Trabalho pra quem? Por quê? Meus amigos estão falando e não entendo. É hora do almoço e todos falam.

E parece que se passaram três meses desde quando acordei, naquela manhã. Hoje. Hoje pela manhã. Parece que o tempo alargou, não sei nem explicar.

Recebo mensagens da minha outra vida enquanto cumpro as tarefas do dia. Mais mensagens quando desço pra ir ao banheiro e pra lanchar. Paralelas.

Mais cedo discuti com minha mãe porque ela queria me dar de presente uma estante. E não preciso. Não vou ficar nesta cidade por muito tempo, mãe.

Não vou ficar, mãe. Não vai durar muito tempo. Mas ela quer que eu fique com a estante porque ela prefere não acreditar que eu queira ir embora. É.

Eu teria ficado abalado com aquilo. Ela péssima. Mas não sou um cara triste, contei uma piada, acho que ela ficou bem, depois nos falamos no telefone, ok.

Nem vejo como injustiça. Não saio reclamando. Não acho que exista isso, injustiças da vida, injustiças no acaso. As coisas são o que são e é isso, vamos.

Só que tá tudo errado e eu preciso resolver. Não posso com esse lá e cá. A cada mudança de pele, é como se me roubassem ânimo e eu envelhecesse.

No pulo de uma dimensão pra outra, algo se perde. Algo fica na outra cidade, e isso eu não recupero mais. Agora sou um personagem de K. Dick.

Não sei o que vou fazer depois, no dia seguinte. Ainda não posso planejar nada. Estou em trânsito, trânsito permanente, entre pedágios, andando.

E hoje foi um dos piores dias.

Depois do trabalho fui ao supermercado, comprei água e cereal, paguei uma conta na lotérica, vim pra minha casa, o apartamento cheirando a mofo.

As mensagens dela seguiam aparecendo, flashes da minha outra vida. Ela trabalhando, ela em quatro palavras por vez, ela desaparecida, ela etc.

No shopping, o restaurante anuncia: é o melhor da cidade. Não sei mais o que isso representa? Qual é o tamanho da cidade? Agora ela parece pequena.

Antes de chegar no apartamento, desci o eixo como quem explora e invade uma floresta. Quebrando troncos de árvores; tou perdido de verdade.

No último telefonema da noite, minha mãe perguntou se eu estava mesmo bem e eu disse que sim, né nada. Vamos seguindo, quem é que sabe?

Meus livros ainda espalhados no chão do quarto, e eu um pouco decepcionado por encontrá-los mais uma vez. Vocês deveriam ter sumido do mundo, não?

Eu enchendo a geladeira com garrafas de água. Eu e o cesto de roupa suja. Eu e a mala desfeita. Eu e meu laptop (que eu levo comigo de vida a vida). Eu só.

Já um pouco tarde, eu agora com sono e ainda paralisado (é o efeito do transe, não se muda de vida em vão), encarando a tela, esperando a ligação.

Aí ela aparece, às vezes só a voz. Quando ela aparece me sinto um pouco lá. E parece até que faço drama, porque as cidades ficam perto, não é fim do mundo.

Daí tento explicar que não é sobre distâncias. É sobre vida. Duas vidas. Duas vidas. E aí tomam como uma metáfora. E explico que não é metáfora. É o que é.

Outro dia perguntei pro meu padrasto: quando você percebe que esqueceu uma coisa importante, e volta àquele momento pré-esquecimento, como é?

Ele disse que há as coisas que ele esquece e há as que não ele não esquece. E que, hoje, as lembranças e as lacunas estão convivendo bem, sem crises.

Não sei como. Ele não sabe explicar. Confesso: tenho um pouco de medo de entender. Só sei que isso tudo, esses dias longos, nunca são do jeito como a gente quer.

Superoito, mesa pra dois

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Estava eu salinha de espera da oficina mecânica, virando as páginas de uma revista de celebridades, quando li a notícia: depois de muitas tentativas infelizes de subir ao altar, a apresentadora de tevê finalmente decidiu acertar ponteiros com Santo Antônio. A modelo se casaria sim, em breve, graças ao bom pai, mas com uma condição – ela e o marido, um empresário que preferiu não conversar com a repórter, morariam em casas separadas.

A jornalista, e todas são curiosíssimas, quis saber: “Casas separadas? Como é isso?” Sempre alerta, a atriz respondeu com frases prontíssimas. Pregou uma lição sobre como, no mundo moderno, a convivência pode minar a individualidade, principalmente entre pessoas atarefadas, bem sucedidas e que aprenderam a gerenciar a solidão.

Gostei da palavra. Gerenciar. Pensei ali, enquanto o mecânico virava meu carro pelo avesso: soa poético quando as pessoas usam termos empresariais para tratar do cotidiano. Um lirismo frio, metálico, mas que me parece contrabandeado de um bom filme do David Cronenberg. De qualquer forma, acho que já comecei a fugir do assunto que é central a este post.

Voltemos então à revista, à celebridade, à apresentadora de tevê, à modelo, à atriz (talvez cantora). Num certo momento, desviei minha atenção do texto (que começava a ficar cansativo, uma repetição de comentários otimistas sobre isso e aquilo) e mirei as fotos. Parecia haver algo forçado, artificial nelas – e aqui não falo em maquiagem, penteado ou efeitos digitais.

A mulher sorria para a câmera, radiante com a novidade. Um casamento. Uau. Não acontece todo dia. Mas, ao mesmo tempo, notei algo desconfortável naquelas imagens. A estrela independente posava em quartos de hotéis, restaurantes, bares, ruas parisienses, cafés. Mas estava sempre sozinha. Sempre sozinha. E, se você reparasse no olhar azulzinho da moça, notaria que algo a incomoda.

Seria isso? Algo a incomodaria de verdade? Havia, de fato, uma distorção naqueles flashes. Mas seria o caso de uma lente equivocada? De um filtro escolhido com desleixo? Ou apenas a percepção de um leitor que queria encontrar algo incômodo no olhar daquela celebridade?

A última opção me parece a mais verdadeira. Para minha sorte, o mecânico mostrou extrema agilidade e terminou o serviço em pouco mais de 15 minutos. Eu ainda teria a manhã inteira de segunda-feira para pensar em outras frivolidades (arrepiantes) antes de pegar o avião para São Paulo.

É uma viagem que faço com freqüência. Há cinco meses, vivo um namoro em casas separadas. Talvez por isso eu me identifique um pouco com a noiva famosa da revista. Eu moro num apartamento em Brasília. Ela mora num apartamento em São Paulo.

Entendo que, no meu caso, são casas extremamente separadas. Uma relação menos simples do que aquela que a modelo/atriz/cantora tenha projetado. Ela provavelmente imaginou o formato mais recorrente dos casamentos modernos: ela se acomoda num loft estilo Sex and the City (cheio de sapatos e laptops róseos) enquanto ele, do outro lado da rua, convida os amigos empresários para tomar um uísque enquanto jogam sinuca e baralho num apê todo acinzentado, estiloso e com a aparência de um Hard Rock Café.

Ok. É um sonho possível. Mas talvez ela não tenha a cogitado que, numa relação amorosa, a distância pode exercer dois movimentos simultâneos e opostos: arejar o dia-a-dia, mas corroer a intimidade. Prolonga o amor (cada encontro soa como um recomeço, eis o clichê), mas provoca uma sensação de afastamento e desamparo que pode ser fatal.

Amor à distância: eu poderia escrever um livro sobre o tema. E seria um livro cheio de contradições e questões obscuras, sem certezas, mais ou menos como uma biografia de banda de rock dos anos 70. Não há existe uma única verdade, uma única linha narrativa, uma regra que resolva todas as equações (até porque os integrantes da banda estavam chapados demais para lembrar de alguma coisa).

Mas este não é um post sobre amor à distância. É, sim, um post sobre convivência. Sobre dividir a casa, apesar do mundo moderno, da globalização, da convergência tecnológica e das revistas de celebridades.

Minha experiência nesse ramo é, aviso logo, quase nula. Levei um namoro longo em casas separadas (mas a convivência era mais intensa que a de muitos casais grudentos), depois morei sozinho por um período curto e, em seguida, engatei um namoro interestadual. Ainda não testei a ideia de compartilhar, na real, um lar. Na verdade, admito que eu ficava um pouco nervoso com o conceito, com o modus operandi da coisa.

Descobri há pouco que, quando eu pensava sobre essa perspectiva de mudança, o que me perturbava era o medo de perder algo. Algo. Algo que eu não sabia o que era. Não exatamente a minha liberdade, ou a minha individualidade. Não estou falando em termos abstratos. Eu temia o custo dessa espécie de negociação. Porque meu professor de economia ensinou que havia um custo para tudo. E certamente eu teria que abrir mão de muitas coisas, de manias e hábitos, para ter a coragem de pedir uma mesa para dois.

Foi uma aflição parecida àquela que me invadiu quando deixei a casa dos meus pais. Na época, eu suspeitava que seria uma transição terrível. Que seria um trauma. Lembro que eu não queria me desfazer de nada. Não queria perder a minha cama, o meu computador, a minha conexão banda larga, a estante dos meus livros, meu armário, o jardim da casa, meus pais, minha irmã, os cachorros, os sofás, o aquário feioso. Eu sentia que estava fazendo uma escolha equivocada. E que eu iria pagar um preço alto, talvez alto demais, por aquela odisseia.

Acabou que, mais ou menos como numa fábula urbana (e moralista, boboca), o herói da história entendeu que, além de necessária, a mudança revelou algo profundo: que o medo de mudar, de abandonar o conforto e seguir em frente, talvez tenha feito com que perdesse tempo, que adiasse por teimosia a estação seguinte. Quando morei sozinho, percebi que meu quarto era pequeno demais. E que, apesar de confortável, o ninho familiar estava transformando um adulto num crianção.

E, no mais, era tempo de crescer.

Hoje percebo que meus planos são outros. Namorar à distância atiçou em mim um desejo totalmente contrário ao da celebridade da revista: o que mais quero é a experiência de viver numa mesma casa. É isso aí. Estou na contramão da contemporaneidade, eu sei, mas é mais forte do que eu. Por enquanto, essa é uma meta difícil (ainda não sabemos como estreitar a distância que nos afasta, e seguimos em cidades separadas, trabalhando um aqui e o outro lá). Mas uma meta que existe. E, filosoficamente falando, me parece muito viável.

E ela começa aqui, agora, mais ou menos enquanto escrevo este texto.

Há quem decida investir 15 dias de férias em pacotes turísticos ou retiros espirituais. Eu preferi usar o recesso para conviver com a minha namorada, dividir uma casa, esboçar uma rotina, dar o primeiro passo. Depois de cinco meses, sinto que estamos finalmente sedimentando nosso namoro. E me parece um bom começo. Nesta primeira semana, notei que eu estava novamente enganado em relação às minhas angústias: não sinto como se estivesse perdendo algo. Não é como se eu tivesse trocado minha liberdade por outro bem. Não. É diferente disso.

Ontem à noite conversei com minha namorada sobre a situação. Ela me perguntou se me sinto em casa. “Tá tudo bem, Tiago?” (ela é sempre muito atenciosa, e isso me mata de alegria). E eu disse que sim, é o que sinto. Estou em casa, estou bem, estou feliz. Depois ela contou que, num período recente, levou muito a sério a ideia de que o certo mesmo seria apostar numa relação em casas separadas. “O ideal, imagine isso, seria morar no apartamento ao lado. Ele ficaria sempre lá, perto, mas eu poderia dormir sozinha quando estivesse de mau humor”, ela explicou. Um bom argumento, na minha opinião.

Talvez ainda seja cedo para tirar alguma conclusão sobre a experiência. Uma semana é muito pouco. E, depois de tanto tempo namorando à distância, o conforto de um lar compartilhado se tornou, para mim, insuperável. Não sou parâmetro para nenhum casal. Meus sentimentos estão desregulados. Quando ela chega do trabalho e preparamos hambúrgueres, sinto que vivo alguns dos momentos mais felizes da minha vida.

Talvez eu seja um sujeito apto à vida de casal, ao confinamento amoroso. Faço concesões com facilidade, ainda que eu saiba agora (e mais do que nunca) que não se deve fazer concessões em excesso. Entendo que, nos momentos de crise, dividir um apartamento pode ser sufocante. Vi dezenas de filmes sobre o assunto. Conheço casais que, em espaços abertos, não se aguentam. Imagino como deve ser torturante para eles o ato de recolher a toalha que foi largada por descuido em cima da cama. Ou de baixar a tampa do vaso sanitário.

Mas o ceticismo dos que alertam sobre os perigos da convivência também deveria valer quando se trata das relações em casas separadas. Ou não? Porque a distância, mesmo que mínima, não bloqueia o fim do amor, não ameniza as discussões, o destempero. Sei de casais que vivem em cidades separadas há muitos anos, mas se encontram pouco para não se agredirem. Sei de casais que se amam quando estão juntos, mas que precisam viver aos amassos com outras pessoas. Acontece.

Nessa selva, o único exemplo que tenho é a minha história. As minhas histórias. E, até agora, elas me mostram que o medo de conviver às vezes pode ser pior, mais massacrante que a convivência em si. Deve parecer uma lição barata, muito típica dos livros de autoajuda e das revistas de fofocas, mas ela me traz algum alento.

Porque, para alguém que se acostumou à solidão (mas não se conforma com ela), existe algo muito poético, muito emocionante naquele momento em que ela deita no sofá sem pentear o cabelo, com o pijama antigo, girando a colher dentro de uma xícara de chocolate quente. Isso é intimidade. Para mim, isso é o paraíso.

Os discos da minha vida (34)

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Sem cabeça, sem pulso, sem estômago para a saga dos 100 discos que zonearam a minha vida. O mais seguro é terminarmos este post logo, antes que eu me aborreça. O pavio aqui está curto, amigos.

Antes, rapidinho, um sonho que tive ontem. Era assim: por engano, postei no Facebook os cinco primeiros colocados deste ranking. Percebi cinco minutos depois, apaguei o post, mas depois me amaldiçoei por ter arruinado a surpresa. Desliguei o computador, tomei um copo de suco de laranja, liguei de novo, voltei ao Facebook e percebi que a lista estava toda errada, muitos dos discos eu sequer havia ouvido. Aí não entendi mais nada.

Interpreto o sonho da seguinte forma: dou importância excessiva a esta série de posts, que certamente não vai dar em lugar algum e, pior, promete terminar num anticlímax tenebroso. Que deus nos proteja. Outra interpretação possível: estou dormindo pouco, escrevendo demais e comendo pouco cálcio.

Que seja. O importante é que com sonho não se brinca. Eles sempre têm alguma razão.

Os discos deste post destoam um pouco daqueles que apareceram recentemente nesta lista faraônica. Não são álbuns que costumam pintar em listas de melhores de todos os tempos e, coincidentemente, eles resumem dois períodos muito específicos da minha vida: meus 13 anos (já morando em Brasília) e meus 11 anos (ainda no Rio de Janeiro).

Preparem-se para o mais pessoal, o mais estabanado, o menos instrutivo entre todos os posts desta saga que só me traz pesadelos e ansiedade. Até semana que vem.

034 | Last splash | The Breeders | 1993 | download

Lembro que gravei o CD numa fita-cassete, dai eu podia descer do apartamento e ir ouvindo enquanto caminhava até a Cultura Inglesa (que ficava a uma quadra do prédio). Eu tentava chegar ao fim do disco, tentava sempre, mas passei algumas semanas indo e voltando entre as faixas 1 e 4 e, por uns meses, aquele me parecia o conjunto de canções mais perfeito. O maremoto caloroso de New Year, o apito de Cannonball, o sabor melado de Invisible man e, finalmente, os versinhos estilhaçados, sacanas e ao mesmo tempo tão desesperados de No aloha (a minha preferida do disco). Um dia fui assaltado. Demorei um tempinho para perceber (estava em Saints, outra joia), então entreguei meu relógio e perguntei se eles queriam o walkman. Olharam para aquele objeto arranhado, encardido, e disseram não. Me senti o menino mais fraco da cidade, os ossos quase partindo de tanta tristeza, mas capturei os fones a tempo do refrão: “O verão está pronto quando você está.” Top 3: No aloha, Saints, Invisible man.

033 | As quatro estações | Legião Urbana | 1989 | download

Lembro que as tias organizaram um amigo-oculto de fim de ano. Então obrigaram a gurizada a escrever no papel as opções de presente. Um primo meu pediu uma bermuda. Minha irmã, roupas da Barbie. E eu, que não pensava em outra coisa, tratei de anotar: boneco de Batman. Mas acabei ganhando (um tanto decepcionado, admito) a minha segunda opção: o disco As quatro estações, da Legião Urbana, que tocava nas rádios e parecia divertido. Acho que foi ali que minha relação com a música começou a mudar, sem que eu notasse. Alguns versos soavam completamente misteriosos (“lá em casa tem um poço, mas a água é muito limpa”), outros me pareciam non-sense, aí eu sorria toda vez que os ouvia (“quando o sol bater na janela do seu quarto, lembra e vê que o caminho é um só”), três ou quatro faixas fugiam totalmente da minha compreensão (Maurício, Sete cidades) e o sucesso da temporada, Meninos e meninas, me parecia apenas uma música sobre meninos e meninas. Ouvi tantas vezes que o vinil arranhou. Até os meus 12 anos, era o melhor disco do mundo. Depois, virou o melhor disco da minha pré-adolescência. Assim ficou. Ainda há trechos que, hoje, faço questão de não entender. Melhor desse jeito. Top 3: Há tempos, Eu era um lobisomem juvenil, Quando o sol bater na janela do teu quarto.

Os discos da minha vida (25)

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A saga dos 100 discos que conheço como a palma da minha mão chega a um capítulo especialmente doméstico. Vamos esfriar a cabeça e conversar sobre família? Só por um minuto?

Sei que há temas muito mais urgentes (questões sobre gagueira em O discurso do rei, para ficarmos num tópico muito quente), mas este ranking já é grandinho e anda com as próprias pernas. Deixem o moleque ser feliz, ok?

Voltando ao tema: família. Os discos de hoje se aninharam na minha vida graças às influências da minha mãe e do meu padrasto. Eu disse que seria uma listinha muito pessoal, certo? Sejam bem-vindos à sala de estar.

Também são discos que, durante a infância, eu detestava até a morte. Detestava até debaixo d’água. Detestava até com cobertura de chocolate. Detestava até com geleia de framboesa. Detestava. Detestava.

E detestava porque eles sempre estavam lá. Eles sempre estavam rodando na vitrola. Produziam ruídos familiares. Acredito até que fui um pouco alfabetizado por eles. Primeiro em português, depois em inglês. Quando comecei a crescer, e a rejeitar tudo o que pertencia aos meus pais, esses dois discos sofreram muito, pobrezinhos.

A redenção veio muito depois, quando eu fiz 20, 25 anos, e voltei aos álbuns que soavam como parte do meu organismo. Fui ouvir os discos a sério e descobri que eles eram velhos companheiros. Irmãos briguentos, mas adoráveis. Irmãos que desaparecem e depois voltam. Irmãos que, quando a gente menos espera, começam a fazer falta.

É esta a história. Vamos a eles, esses bastardos cheios de glória.

052 | Construção | Chico Buarque | 1971 | download

Entre os discos do Chico, não é aquele de que minha mãe mais gosta (de longe, o preferido é Almanaque), mas é aquele que gravei numa fita cassete e levei comigo. Com o tempo, quando abandonei os traumas de infância e me familiarizei com a discografia inteira do homem, descobri aquele que talvez seja o mais valente dos discos brasileiros. Destemido em tudo: nos arranjos épicos de Rogério Duprat (que o aproximam de uma sonoridade tropicalista, impensável nos álbuns anteriores, muito comprometidos com a tradição do samba), em versos que confrontam o regime militar com uma proximidade quase suicida, nas canções que descortinam um país tomado por um certo mal estar (mas um Brasil também infinitamente lírico, vasto). Tudo isso e sim, claro: um disco mais moderno do que 90% do que é gravado hoje no país. As mães, acredite, têm razão. Top 3Deus lhe pague, Valsinha, Construção.

051 | The dark side of the moon | Pink Floyd | 1973 | download

O disco favorito do meu padrasto sempre me pareceu de uma pompa insuportável. Lembro que, aos 12 anos, eu reclamava sempre que os sinos começavam a soar na sala – e isso acontecia praticamente todo fim de semana. Era o álbum que, na época, representava tudo o que eu queria combater: os enormes monumentos erguidos por meus pais. Eu me trancava no quarto e ouvia grunge, punk rock. Foi muito tempo depois, quando até o meu padrasto parecia ter se cansado do tilintar da máquina registradora (e de outros efeitos especiais), encontrei nas canções o lado obscuro da minha adolescência. O som que batia à porta do meu quarto. Foi como voltar àquelas tardes tão banais: meu padrasto encostado na janela, sugado por melodias que irradiavam de outro planeta. Uma parte da vida também foi engolida por este disco, e aí não importa mais se acho uma grande de uma chatice cósmica (mas fiquem tranquilos: não é). Top 3Breathe, Us and them, The great gig in the sky.

Deerhoof vs. Evil | Deerhoof

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Preciso fazer uma confissão, meus amigos: nos últimos meses de 2010, não foi tão complicado escrever para este blog. É. Não foi. Nos momentos mais sinistros, quando o meu mundinho tão sólido começa a desmanchar no ar, é nestas páginas que me penduro. Os dedos agarrados ao teclado, gritando socorro. Fica até fácil.

Acontece que depois, quando o apocalipse esfria, os parágrafos voltam a uma condição de repouso. Ou, pior, de movimento retilíneo uniforme. Aí descubro que não sei mais lidar com eles. Os dedos hesitam no teclado. A maré tranquila não faz bem à canoa.

Nas últimas semanas, fiquei nesse impasse. A vida está boa, larguei meus problemas na porta. 2011, para mim, é uma comédia romântica às avessas, abrindo com o happy end (cenas felizes que me impressionam dia após dia). O blog, que sempre foi um pouco triste, destoou do contexto. Até pensei: talvez ele tenha que mudar.

Fiquei aflito, pra ser sincero: o site me parecia confuso, indeciso demais. Ainda não sei a quem interessa um blog como este, que não é isso nem aquilo, que não tem RG, que anda sempre na beira do telhado. Que não fala exatamente sobre música nem sobre cinema, que não é só um diário (de um sujeito mediano) nem um laboratório de textinhos ingênuos com ambição literária. Talvez tenha um pouco de todas essas coisas, mas essa equação (pouco + pouco + pouco) passou a me incomodar.

Fiz planos que facilitariam a minha vida. Passou a parecer uma questão de foco. Por exemplo: fazer deste um blog de música, quadradinho (mas talvez eficiente), com notícias e resenhas. Ou: fazer deste um blog de cinema, sisudo e cheio de pensamentos um tiquinho arrogantes. Ou: abandonar os discos e os filmes para escrever sobre o meu dedão do pé e minhas lembranças de adolescência, de um jeito arreganhadamente narcisista porém amável, com a possibilidade de fazer sucesso com a gurizada. Ou: listar episódios de seriados. Ou: rankings non-stop. Ou: mixtapes para sempre!

Nada parecia satisfatório, nada. Mas, em meio à confusão, brilhou um farolete onde eu menos esperava. Sim, no disco novo do Deerhoof.

Explico: o Deerhoof (que era um trio, hoje um quarteto) é daquelas bandas que atraem pela gana como defendem visões de mundo muito particulares. Lindas e loucas idiossincrasias. No caso, os principais mandamentos do grupo são: 1. Nunca se repetir e 2. Nunca se domesticar (pelo menos não totalmente, ou não da forma como esperamos). Eles gravam discos que soam simultaneamente dóceis e selvagens. Não nos deixam seguros.

“I’m not fucking around”, diz Sufjan Stevens. Pois o Deerhoof é o contrário disso. Qualquer álbum deles poderia se chamar To fuck around, já que o estilo da banda soa como uma colagem de experiências que, mesmo quando produzem faixas perfeitinhas, sempre sugerem um ensaio na garagem. É brincadeira, brodagem, vontade de tentar algo diferente. Uma disposição para a desordem que lembra esquisitices como The Fiery Furnaces e os primeiros discos do Super Furry Animals.

Tudo pode dar certo. Mas pode dar errado.

As liberdades da banda fizeram com que eu deixasse de me preocupar com as liberdades do blog. Sem querer comparar um ao outro (meu blog é quase nada; este disco é às vezes muito). Não acredito que seja um blog corajoso ou importante, ou que vá ser reconhecido em 2040, nada disso: o que me conectou ao site desde o início foi a possibilidade de usar estas páginas para fazer qualquer coisa. E fazer tudo errado, só que do meu jeito. Parecia simples. Mas admito que às vezes isto se torna um buraco de coelho.

No décimo disco do Deerhoof, noto um dilema parecido. Quanto mais a banda se aventura (sem itinerário, já que tudo é possível), mais ela queima possibilidades que pareciam promissoras e opta por desvios nem sempre animadores. É um álbum que, em comparação ao anterior (Offend Maggie, lançado há três anos) soa compacto, com anomalias curtas que cruzam referências dos anos 60 (a psicodelia) e 70 (o hard rock) enquanto beliscam de vez em quando as melodias mais coloridas, mais agradáveis.

Ao contrário de Friend opportunity (2007), no entanto, não é cajuzinho, não é uma moça exótica que nos chama para dançar. Deerhoof vs. Evil me parece mais arredio, uma jam com remela nos olhos, nas primeiras horas da manhã.

No mais, apesar de todas as voltas que este quarteto dá, o estilo da banda permanece intacto: os versos infantis que se repetem em ciclos (a ótima Secret mobilization abre com um sugestivo “Isto não é baseado numa história real”, e há as bombas atômicas caindo do céu de The merry barracks, outro estouro), os riffs inesquecíveis que avançam sobre nós apenas por alguns segundos, antes de sair correndo, a voz miúda de Satomi Matsuzaki e os momentos completamente inesperados, como a balada hippie No one asked to dance.

Talvez pareça insignificante. Mas quer saber? Não me importo. Não abandono o Deerhoof porque a banda incorpora, de certa forma, tudo o que eu queria ser: um homem capaz de, apesar de todas as expectativas criadas pelos outros, defender com firmeza as minhas convicções e as minhas alegrias — as mais estranhas e caóticas, principalmente.

E este blog, um campo minado, ainda é uma das minhas felicidades. Então sigamos.

Décimo disco do Deerhoof. 14 faixas, com produção da própria banda. Lançamento Polyvinyl Records. 7/10

Os discos da minha vida (23)

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Hoje este ranking é só saudade. A saga dos meus 100 discos inesquecíveis chega a uma episódio um tanto choroso, um tanto blue, mas nada grave: pode parecer incrível, mas voltei a ser um menino de 15 anos, ansioso e febril, que anda pelas ruas sem ouvir o barulho dos carros e nem dorme direito de tanto pensar nela. Olho para as nuvens e vejo desenhos engraçados. No trabalho, não me concentro. Sorrio quando os casais se abraçam. 

Eu sei, meus bróderes: soa como uma enxurrada de sentimentos perturbadores. Mas estou me sentindo muito bem, obrigado.

É claro que ela faz falta, está longe, e isso machuca um pouco. Mas, por outro lado, ela se faz sempre tão presente que é como se a distância encurtasse. Entre uma e outra chamada de longa distância, vamos enganando o calendário até o próximo voo, que não demora. Pode parecer uma tortura. Mas estamos bem, obrigado.

Meu único desejo, neste momento, é que a sensação não vá embora. Talvez ela não vá, quem sabe? Me descobri um otimista.

Por tudo isso vocês notarão nos novos textos deste blog – e, por consequência, nesta saga que não acaba nunca – algo de juvenil, de muito ingênuo. Que sou eu na minha expressão mais sincera, eu em janeiro de 2011, eu abobado encarando a parede branca do meu quarto, eu queimando parágrafos com lirismo de colégio, eu num momento da minha vida que ainda me enche de surpresa e alegria. 

Com o tempo, vou explicar melhor o que acontece. Enquanto não consigo, abro minha estante e tiro mais dois discos que talvez vocês gostem de ouvir – talvez vocês precisem ouvir (são dois álbuns que marcaram a minha vida e a vida de uma multidão). Talvez vocês se apaixonem por eles. E aí talvez vocês entendam mais ou menos em que pé estou.   

056Bringing it all back home | Bob Dylan | 1965 | download

Entre todos os discos de Bob Dylan, Bringing it all back home era o favorito dos meus 15 anos de idade, um pouco antes de eu descobrir Nashville skyline e Blood on the tracks. Com o tempo entendi o motivo de tanto fascínio: é o disco em que Dylan bagunça o quarto de brinquedos, talvez entusiasmado demais com todas os objetos coloridos que estão espalhados no chão. É, para efeitos de história do pop, um álbum de transição: metade folky, metade elétrico, o prenúncio da revolução de Highway 61 revisited (também de 1965), mas já surreal e enigmático como as obras-primas que ele gravaria daí em diante. Uma diferença em relação aos outros: neste aqui, Dylan faz a invenção mais sofisticada soar como um hobby, uma brincadeira, uma ideia de diversão. Top 3: Maggie’s farm, Subterranean homesick blues, It’s alright ma (I’m only bleeding).

055 | Music from Big Pink | The Band | 1968 | download

Não foi proposital organizar este encontro extraordinário, dentro de um post, entre o meu disco favorito da The Band e um dos meus preferidos do Bob Dylan. Mas, forçando a amizade, acredito que eles têm semelhanças que vão muito além do fato de que a sonoridade da The Band foi em grande parte amadurecida nos shows de Dylan, com quem se apresentou anos antes. São dois discos que exalam um ar de descoberta. Dylan descobria aos poucos um estilo; já a The Band encontrava uma forma de condensar várias das referências que moldaram o fim dos anos 1960: o rock, o country, o folk, a psicodelia, a contracultura, as estradas sem fim, a cultura hippie, a saudade das tradições. Nasciam os fundamentos do country rock. Todo esse estado-de-coisas cultural inserido naturalmente num disco de 11 músicas. O tipo de fenômeno que não acontece sempre. Mas aconteceu. Top 3: This wheel’s on fire, The weight, I shall be released.

(noite de Natal, em casa, 21h)

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Minha irmã: Acho que no Natal as pessoas deviam cantar Parabéns pra você.

Eu: Parabéns pra Jesus.

Minha irmã: Isso. Parabéns pra Jesus. Nessa data querida.

Eu: E todas as musiquinhas.

Minha irmã (cantarolando): É big, é big! É hora, é hora!

Minha prima (cantarolando): Com quem será? Com quem será?

Eu: Essa eu acho que não.

Minha prima (cantarolando): A chuva cai, a rua inunda…

Minha irmã (cantarolando): ô Jesus Cristo, vou comer seu bolo.

Eu: Acho que não. Ele tem estômago pra piada babaca, vó?

(surda): Macio e molhadinho, Tiago. Uma loucura o peru.

Rolling blackouts | The Go! Team

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Terminamos o namoro há mais de três meses e ainda não consigo olhar os casais de namorados — principalmente os mais adoráveis — sem me sentir mal.

De umas semanas para cá, no entanto, algo mudou em mim. Antes eu olhava os casais e pensava: “que terrível, eles são felizes e eu não”. Hoje penso: “que pena, não tem final feliz.”

É um sentimento ruim: desencanto. Não me orgulho dele.

Daí que, talvez inspirado no espírito natalino, criei para mim um programa de 12 passos para vencer a desilusão. O primeiro: ir ao shopping center mais movimentado da cidade e enfrentar os casais.

Aconteceu anteontem. Cheguei meia hora antes da sessão de cinema e fiquei sentado num banco assistindo à comédia romântica que as pessoas encenam nos shopping centers. Triste.

Os casais tão satisfeitos e alegres admirando as vitrines e roubando beijos e dividindo sorvete e abraçando pela cintura e cochichando no ouvido e aqueles sorrisos que dizem ao mundo “estou sonhando, estou flutuando, não quero mais nada, minha vida está completa”.

Não aguentei 10 minutos (mas vou tentar de novo).

Outro desafio é ouvir discos otimistas. Por coincidência, comecei a escutar o novo do Go! Team exatamente no dia em que fui ao shopping ver os casais. Logo nos primeiros acordes — um mashup alucinado de gritos de cheerleaders, trilha de filme barato, confete e serpentina — notei que não era para mim. Voltei à névoa (ou: ao novo do Destroyer).

No dia seguinte fiz uma outra tentativa. Não de voltar ao shopping, mas de ouvir Go! Team. Antes, percebi que a minha lista de melhores álbuns de 2010 está cheia de lançamentos depressivos, que me perturbam, me servem de espelho.

Daí que voltei ao Go! Team num momento mais apropriado (um dia de sol) e consegui me simpatizar com este disquinho otimista, que mira o pop com a lente da euforia. Ian Parton, o compositor da banda, não consegue esconder o prazer que sente em relação à música, às próprias referências (homenageadas explicitamente), ao turbilhão sonoro que cria. Está tão satisfeito, tão empolgado com tudo isso que o disco possivelmente não entrará em nenhuma lista de melhores de 2011 (elas são feitas por sujeitos como eu, em eterna agonia, insatisfeitos e exigentes demais).

Ouvir o disco é como assistir a um casal se beijando, na praça central do shopping, num domingo à tarde. Um tipo banal de idílio.

Não é um disco pop da Robyn, por exemplo, que nos espezinha mesmo nos trechos mais agradáveis. É um disco pop da fase mais recente do Belle & Sebastian, que nos conforta e nos faz cócegas.

E um disco muito sortido e até um pouco adulto, já que, desta vez, o objetivo de Parton é criar canções mais redondinhas, que não nos soterre violentamente. Tem participações de Satomi Matsuzaki (do Deerhoof, na lindeza doce que é Secretary song) e de Bethany Constantino (do Best Coast, na minha favorita do disco, Buy nothing day). Não soa coeso, mas era essa a ideia.

Cada faixa é um brinquedo no playground: Ready to go steady, por exemplo, é a guloseima vintage que poderia estar num disco do Camera Obscura; Yosemite theme soa como trilha de desenho animado japonês; a faixa-título, Rolling blackouts, é dream-pop interpretado por fãs de Sonic Youth. O que não muda no disco inteiro é a sensação de que ele foi gravado numa semana em que tudo deu certo.

O problema (e aí entra o ouvinte exigente demais) é que esse clima desencanado, rasteiro, justifica certa preguiça de se esforçar. O sexteto acena para os ídolos sem encontrar um lugar no mundo para si própria. No primeiro disco, Thunder, lightning, strike (2004), o Go! Team parecia uma daquelas bandas que já nascem com um estilo arrematado. Agora ela passa a soar derivativa (talvez abalada pela reação desanimada ao disco anterior, Proof of youth, de 2007) e, por isso, deixa uma impressão menos forte.

Mas é um disco que, como os outros que eles lançaram, combina perfeitamente com os nossos dias felizes e periga nos machucar nos nossos momentos mais desiludidos. O Go! Team ainda é uma banda de rock que pisca incessantemente, como um letreiro luminoso de vinte metros de altura. Às vezes cansa.

Não é para qualquer um. Não é para todas as horas. Depois de um dia inteiro me engordurando de Go! Team, voltei ao disco do Destroyer e senti um pouco de alívio. Talvez o problema esteja em mim.

Terceiro disco do The Go! Team. 13 faixas, com produção de Gareth Parton. Lançamento Memphis Industries. 6/10

(terça-feira, biscoito chinês, à noite)

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Não tenha pressa, a prosperidade baterá brevemente à sua porta.

(sms, ontem, dentro de um sonho)

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Meu bem, preciso de uma autorização sua pra eu escrever um blog sobre você. É possível? Bjos, saudade.

(sábado, no carro, 14h20)

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Minha irmã: Não. Não, mãe. É conservador pra burro, totalmente atrasado dizer um negócio desses. Chegar dizendo que a menina abandonou o colégio, namorou aquele estúpido e começou a usar crack ou sei-lá-que-bagulho só porque, olha isso, só porque a mãe dela resolveu assumir o caso com uma mulher? Ó, conheço umas três pessoas que viveram esse tipo de draminha e sei de umas duzentas que estão cagando pra isso. Imagina se vão se preocupar com quem a mãe fica ou deixa de ficar. A vida da mãe é a vida da mãe. E ponto final, meu deus! Pode acreditar: ninguém tá nem aí.

Eu: Você acha? O que eu noto hoje é que os pais se preocupam demais com esse tipo de coisa, enquanto que os filhos estão pensando em outros assuntos. Quer dizer: é claro que, se minha mãe começasse a sair com uma mulher, eu perguntaria: como assim? Mas eu tenho 30 anos, não sei o que eu pensaria se tivesse 12. Na verdade, acho que não sei mais nada sobre os meninos de 12 anos. Pra mim é meio que um outro mundo, e eles estão mil anos à frente de mim. Outro dia eu tava entrevistando um cabeleireiro totalmente afetado e daí entrou o filho dele, um rapazinho de 15 anos, enganchado numa menina de uns 18. O garoto todo marrento, aquela voz de ‘não mexe comigo que sou machinho’, foi lá e deu um beijo no pai, brincou com a cabeleira do homem, e eu fiquei pensando: caramba, alguma coisa aconteceu, alguma coisa está acontecendo, ou talvez não esteja acontecendo nada e eu seja o cara mais conversador do planeta. Ou talvez não esteja acontecendo nada e este seja um caso muito específico.

Minha irmã: Está acontecendo, Tiago. Já aconteceu.

Minha mãe: Não é tudo isso.

Eu: Aí eu fico pensando no que acontece com o garoto que é criado por duas mães, como funciona? De verdade, na real, como acontece? Sei que não é nada extraordinário, que tem família de todo tipo, boas e ruins. Que as pessoas se viram, seguem em frente do jeito como conseguem. Mas fico pensando se o menino vai tentar compensar a ausência do pai, se ele vai buscar o pai em algum lugar. Se ele vai precisar do pai em algum momento. Se ele vai tentar compensar isso de outra forma. Cê entende, né? Falo sobre pessoas como nós dois… Nós, com os nossos pais. Dois pais, e todos esses problemas. O pai ausente, o outro que passou a vida inteira meio distante. E eu senti isso, você sentiu isso. Essa falta. Então me pergunto se, quando superarmos todos os nossos preconceitos e aceitarmos todo tipo de formação familiar menos convencional, se não vamos voltar a essa velha discussão sobre a figura paterna, sobre o quão importante ou desimportante ela é para nossa vida. Esse debate vai voltar à moda? Quando? Ainda quero saber muito sobre isso, sobre esse tema, ele me persegue todos os dias, e é como se estivessem encerrando o assunto, dizendo: não é grande coisa, Tiago, é uma questão ultrapassada. Entendem?

Minha mãe: Você devia arrumar uma namorada.

Minha irmã: Não tô nem aí, sinceramente.

(e-mail para um amigo que mora longe)

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R.,

É você mesmo?

Li o seu e-mail três vezes e ainda não me recuperei da surpresa estranha que é receber notícias suas. Escreva mais, meu velho. Por favor. Escreva hoje.

Quanto tempo mesmo? Ainda tentando calcular. Uns 10, 11 anos, tudo isso? Uma década! Uma década que não nos falamos? Acho que menos. Talvez mais. Lembro de quando você mandou um e-mail contando que estava na Austrália e que a comida era ruim, e que os cangurus saltitavam na rua, brincavam entre os carros. Quando foi? Uns seis anos? Nem consigo fazer as contas.

Pois é, meu amigo: por aqui, a noção de tempo está embaralhada. Você escreveu pra dividir esses problemas, essas aflições todas, e entendo quando você diz que não é capaz de falar sobre o assunto com as pessoas mais próximas, com seus roommates aí de Londres (e agora você está em Londres!). Acho até engraçado (e estou pensando em humor amargo) que você tenha decidido entrar em contato exatamente agora, quando minha vida também se transformou num questionário arrepiante, à espera das respostas breves e exatas que não encontro em lugar algum.

Não deixa de ser uma dessas coincidências malucas e incríveis.

Você não imagina o tumulto que o seu texto provocou na minha vidinha mediana. As suas palavras me atiraram de volta a uma época que sempre encarei com muita tristeza – e, quando lembro, tudo o que vem à minha cabeça é uma cena lenta e interminável, um plano fixo: eu dentro do meu quarto, trancado no apartamento, olhando através da janela do terceiro andar. Mas talvez essa tenha uma imagem que eu tenha polido e lustrado dentro da minha cabeça infeliz durante esse tempo todo. Você me lembrou dos amigos que me acompanharam naquela época e do quanto eu sinto a falta deles, de vocês.

Éramos quatro? Ou cinco? Onde os outros foram parar? Por que nos perdemos uns dos outros? Por que não mantivemos contato? Você diz que o F. está casado e tem uma filha de dois anos, se formou em engenharia e toca numa banda de metal. Li esses parágrafos com os olhos cheios d’água, lamentei profundamente não ter acompanhado essa história. Nós todos, cada um para um canto. Quando aconteceu? Você deve lembrar, trocamos trocentos e-mails (tenho alguns deles aqui, guardados). Mas e aí? Escrevemos o centésimo e-mail e decidimos que era hora de apagar as luzes, ir para casa, engatar a terceira marcha? Foi isso?

Soa patético, eu sei: estou num momento difícil.

Você diz: consegui realizar meus sonhos, tenho 30 anos e agora nada acontece. E eu te entendo. Cara, aos 18 você já falava nesse plano de ir morar em Londres, de fazer cursos disso e daquilo, de se aventurar sei lá onde, mundo afora, ao infinito e além! E agora que você está aí, nessa névoa, engolindo fish & chips, com saudade dos amigos perdidos, triste feito um vira-lata, escrevendo pra um sujeito que não está perto há uma década, que se transformou noutra pessoa (e essa pessoa, acredite, nem sabe mais quem ela própria é). E desabafando sobre detalhes da sua vida que você revelaria quando tínhamos 19! É estranho.

Mas cara: é bom saber sobre você. Dá um certo alívio. Havia um momento da minha vida que eu queria deixar tudo para trás. Hoje, quero recuperar as lembranças e guardá-las comigo. Mas, claro, é triste notar que estamos os dois naufragando. Triste e bizarro – éramos os mais corretinhos, os mais estudiosos do grupo. Tenho certeza: você também não imaginava, lá no passado pré-histórico da nossa adolescência, que nossos 30 anos seriam tão incertos. Everything in its wrong place. Uma ponte quebrada. A sensação de que a vida nem começou, que está tudo indefinido. Nós perdemos, meu amigo: perdemos o sorteio, ficamos com o Futuro Difícil e não com o Futuro Próspero ou com o Futuro Tranquilo. Azar o nosso.

Você não sabe nada sobre os últimos sete anos da minha vida, então aí vai um resumo em fast-forward: por todo esse tempo, namorei a mulher que eu acreditava ser a Mulher da Minha Vida (com maiúsculas), até o dia em que notamos o quão errada estava a relação. Foi quando entendi que ela havia se transformado na Mulher do Meu Passado. Terminamos há três meses, todos os planos descartados, e-mails fofos nas devidas lixeiras virtuais, e hoje tudo o que tenho é um sentimento que não consigo definir. Não é só saudade, não é (definitivamente) amor, não é medo de ficar só, não é melancolia, não é dor de cotovelo (ela está namorando), talvez um pouco de frustração, paralisia sentimental, trauma, cansaço. Talvez outra coisa mais grave.

Entendo quando você diz que se sente despreparado para a vida. Acontece comigo, hoje mais do que nunca. Você diz: fico com a impressão de que não fui educado para perder, que fui mimado pelos meus pais e pelos professores, pelas namoradinhas, por todo mundo. Que todos garantiam que as coisas iriam terminar bem. E que isso era uma mentira, mas uma mentira que nos confortava (ou que pelo menos nos fazia pensar em outros assuntos). Você diz que sofreu muito quando o seu pai morreu, e que tudo em Londres parece artificial e distante, e que você foi tão longe que não sabe mais onde está, e que você cresceu sem se tornar adulto. E agora tem 30 anos. É.

Não sei o que aconselhar (talvez você deva fazer como eu faço: ocupar o tempo, trabalhar, ler livros, ver filmes, escrever, se desgrudar de si próprio). Mas posso contar minha história? Nesses três meses de separação, algo imprevisto aconteceu: quando finalmente decidi parar de me preocupar com o futuro, pequenos fatos extraordinários acabaram me atropelando. Tirei férias para me isolar das pessoas e, para minha surpresa, descobri os melhores amigos do mundo, pessoas que me entendem e gostam de mim (hoje o drama é outro: eles moram longe, em outra cidade, e isso me entristece e perturba).

Parece um conto de fadas boboca, mas não estou exagerando. Eles, os amigos, me ensinaram que posso começar uma outra vida, uma outra rotina, e uma vida mais saudável do que aquela que eu levava com a minha ex-namorada. Antes, eu estava trancado num namoro cinzento, vivendo uma solidão confortável, um tédio aconchegante. Eles, os amigos, não sabem a importância que tiveram nesse processo todo: me ensinaram que ainda respiro, que a minha história segue. Hoje me sinto um pouco otimista, menos aflito.

Não quero ditar uma fórmula: faça amigos e seja feliz. Não. Não acredito nisso. E eu não estou feliz. Livros de autoajuda me fazem cócegas, sério. As coisas são menos práticas, sabemos disso. Você está em Londres há pouco tempo, talvez seja uma questão de adaptação a um ambiente hostil (aposto que nada aí é mais desesperador ou silencioso do que os domingos em Brasília, estou certo?). Pode ser que as coisas mudem aos 35, quando nos descobriremos sábios e lúcidos. Pode ser que o Futuro Difícil vá se transformar subitamente num Futuro Estável, e marcaremos um encontro com os amigos de colégio para mostrarmos a eles que triunfamos. Pode ser que aconteça.

Por enquanto, só sei o seguinte (e mil desculpas pelo e-mail infinito; nesses 10 anos me descobri um escritor prolixo): tudo o que aconteceu de ruim comigo mostrou que não há cordões de segurança me prendendo ao teto do teatro. Pode ser uma noção assustadora, num primeiro momento. Mas estou começando a me entender com ela.

Abraço (e não desapareça),
Tiago.