Trecho | Lugar-comum
“Nenhum julgamento e nem sequer um adjetivo podem ser repetidos impunemente. O critério pactuado, a tese compilada, o valor promulgado ou o adjetivo que já colou ao substantivo (o “esforço árduo”, as “manobras ardilosas”) transformam-se com frequência em sucedâneos da atenção que as coisas exigem ou do respeito que merecem, nunca redutíveis aos fragmentos que se deixam apreender por nossas opiniões ou julgamentos. Opiniões como as que hoje garantem, por exemplo, que o amor é bom, a televisão é ruim, o pensamento único pior ainda ou que o fundamentalismo é o fim da picada etc. etc. Que lindo, que claro, que simples, que beatificante, que nojo!
No princípio foi o Verbo, que resultou em escândalo e paradoxo até ser prontamente mobiliado e habilitado como Lugar-Comum: um lugar-comum que vive – e eventualmente mata – só de ser dito e repetido, que pode ser usado sem precisar nem mesmo ser pensado. Quantas vezes, digo eu, é possível proclamar uma ideia sem colocá-la, por sua vez, em perigo? Kafka nos aconselhava a parar sempre uma palavra antes da verdade, em vez de enlameá-la com mil. Como é difícil, contudo, essa continência verbal, esse recato!
Ao Verbo seguiu-se a ladainha de seus filhos menores, das divindades de ocasião: a Natureza, a História, a Razão, a Cultura, a Tradição, a Ruptura… Deuses menores que no século 20 recém-encerrado se democratizaram e multiplicaram, encarnados agora em discursos, metodologias, cenários, approaches, ideologias, semiologias, subversões, desconstruções e todas as outras palavras que ainda hoje pululam entre bibliografias acadêmicas, os manuais de “autoajuda” e o jargão dos catálogos de exposições. Mas logo em seguida, com pouco tempo de uso, a maioria desses lugares-comuns se transforma em resíduos fósseis: velhos caminhos que não conduzem a parte alguma.”
Trecho de Deus, entre outros inconvenientes, de Xavier Rubert de Ventós
junho 27, 2011 às 6:29 pm
Eu ainda prefiro os antigos trechos de 2666. Talvez já seja um lugar-comum dizer isso, mas é o meu livro preferido, talvez porque qualquer livro se torne o preferido de alguém depois de oitocentas páginas.
junho 27, 2011 às 6:58 pm
2666 é uma maravilha mesmo. Mas tem muito livro por aí, não dá pra escolher trechos só de um, certo?
junho 27, 2011 às 8:05 pm
Dá pra passar anos só de trechos de 2666. Aliás, agora que eu finalmente descobri o Bolaño (e isso soa como “agora que eu finalmente descobri a América”) acho que eu não vou ler mais nada, sair da escola e mudar o meu nome para Benno von Archimboldi Júnior. Seria uma vida emocionante.
junho 27, 2011 às 8:10 pm
A literatura do cara tem esse poder de criar os fãs mais dedicados do mundo. Dá vontade de ficar preso no mundo que ele criou, admito.
novembro 9, 2011 às 8:48 pm
Tbm estou lendo DEUS, ENTRE OUTROS INCOVENIENTES estou no último capitulo um livro excelente, descobrir o autor uns quatros meses atrás e adorei a forma e a autoridade ao escrever. Abraços!