Trecho

Trecho | O idioma do caos

Postado em

“Num conto que nunca cheguei a publicar acontece o seguinte: uma mulher, em fase terminal de doença, pede ao marido que lhe conte uma história para apaziguar as dores insuportáveis. Mal ele inicia a narração, ela o faz parar:

– Não, assim não. Eu quero que me fale numa língua desconhecida.

– Desconhecida? – ele pergunta.

– Uma língua que não exista. Que eu preciso tanto de não compreender nada!

O marido se interroga: como se pode saber falar uma língua que não existe? Começa por balbuciar umas palavras estranhas e sente-se ridículo como se a si mesmo desse provas da incapacidade de ser humano. Aos poucos, porém, vai ficando mais à vontade nesse idioma sem regra. E ele já não sabe se fala, se canta, se reza. Quando se detém, repara que a mulher está adormecida, e mora em seu rosto o mais tranquilo sorriso. Mais tarde, ela lhe confessa: aqueles murmúrios lhe trouxeram lembranças de antes de ter memória. E lhe deram o conforto desse mesmo sono que nos liga ao que havia antes de estarmos vivos.

Na nossa infância, todos nós experimentamos esse primeiro idioma, o idioma do caos, todos nós usufruímos do momento divino em que a nossa vida podia ser todas as vidas e o mundo ainda esperava por um destino. James Joyce chamava de “caosmologia” a esta relação com o mundo informe e caótico. Essa relação, meus amigos, é aquilo que faz mover a escrita, qualquer que seja o continente, qualquer que seja a nação, a língua ou o gênero literário.”

Trecho de Línguas que não sabemos que sabíamos, de Mia Couto.

Trecho | A morte da música

Postado em Atualizado em

“Quando ouvem a palavra ‘clássica’, muitos só pensam em ‘morta’. A música é descrita em termos de sua distância do presente, sua diferença da massa. Não surpreende que as histórias sobre sua morte iminente sejam comuns. Os jornais recitam uma ladainha familiar de problemas: as gravadoras estão reduzindo suas divisões de música clássica; orquestras enfrentam déficits; mal se ensina música nas escolas, ela é quase invisível na mídia, ignorada ou ridicularizada em Hollywood. No entanto, essa mesma história era contada há quarenta, sessenta, oitenta anos.

A Stereo Review dizia em 1969: “Vendem-se menos discos clássicos porque as pessoas estão morrendo. O mercado clássico moribundo de hoje é o que é porque há quinze anos ninguém tentou instilar o amor pela música clássica nas então impressionáveis crianças que hoje constituem o mercado”. O maestro Alfred Wallenstein escreveu em 1950: “A crise econômica que as orquestras sinfônicas americanas enfrentam está se tornando cada vez mais aguda”. O crítico alemão Hans Heinz Stuckenschmidt escreveu em 1926: “Os concertos têm pouco público e os déficits orçamentários crescem de ano para ano.” Os lamentos sobre o declínio ou a morte da arte aparecem já no século 14, quando se julgava que as melodias sensuais da Ars Nova assinalavam o fim da civilização. O pianista Charles Rosen observou com sabedoria: “A morte da música clássica talvez seja sua tradição viva mais antiga”.

A música está sempre morrendo, sem parar. Ela é como uma diva que não envelhece, numa excursão de despedida sem fim, em busca de uma aparição francamente definitiva. É fácil nomear porque, para começar, ela nunca existiu de fato – não no sentido de ser proveniente de um único lugar ou tempo. Não tem genealogia e nenhuma etnia: compositores importantes de hoje vêm da China, da Estônia, da Argentina, do Queens. A música é simplesmente o que o compositor cria – uma longa cadeia de obras escritas às quais se ligaram várias tradições de execução. Ela abrange o alto, o baixo, o imperial, o clandestino, a dança, a oração, o silêncio, o ruído. Os compositores são gênios parasitas: alimentam-se com voracidade da matéria sonora de seu tempo a fim de gerar algo novo. Eles passaram por tempos duros nos últimos cem anos, enfrentaram obstáculos externos (Hitler e Stálin eram críticos amadores de música), bem como problemas inventados por eles mesmos (“Por que ninguém gosta de nossa linda música dodecafônica?”). Mas eles talvez estejam à beira de um renascimento improvável, e a música talvez assuma uma forma que ninguém reconheceria hoje.”

Trecho de Escuta só – Do clássico ao pop, de Alex Ross.

Trecho | Na galeria

Postado em

“Então. Haverá um período de nada e aí a próxima exposição. Victoria Hwang, em meio de carreira, subvalorizada, mas começando a atrair sérias atenções por razões que Peter não consegue decifrar totalmente: essas coisas podem ser misteriosas, algum consenso visceral entre um corpo pequeno, mas influente de pessoas, de que é hora, de que esses objetos de repente são mais importantes do que pareceram a princípio. São malucas, essas mudanças de ares. Não são calculadas, não no sentido de uma conspiração de marchands internacionais (às vezes ele gostaria que fossem), mas não são exatamente sobre arte também. São reações impossíveis de tão intrincadas a um bilhão de minísculas mudanças na cultura, na política, nos íons da maldita atmosfera; não podem ser previstas, nem entendidas, porém dá para sentir que estão chegando, como animais que se acredita serem capazes de sentir um terremoto horas antes de ocorrer.”

Trecho de Ao anoitecer, de Michael Cunningham

Trecho | Lugar-comum

Postado em

“Nenhum julgamento e nem sequer um adjetivo podem ser repetidos impunemente. O critério pactuado, a tese compilada, o valor promulgado ou o adjetivo que já colou ao substantivo (o “esforço árduo”, as “manobras ardilosas”) transformam-se com frequência em sucedâneos da atenção que as coisas exigem ou do respeito que merecem, nunca redutíveis aos fragmentos que se deixam apreender por nossas opiniões ou julgamentos. Opiniões como as que hoje garantem, por exemplo, que o amor é bom, a televisão é ruim, o pensamento único pior ainda ou que o fundamentalismo é o fim da picada etc. etc. Que lindo, que claro, que simples, que beatificante, que nojo!

No princípio foi o Verbo, que resultou em escândalo e paradoxo até ser prontamente mobiliado e habilitado como Lugar-Comum: um lugar-comum que vive – e eventualmente mata – só de ser dito e repetido, que pode ser usado sem precisar nem mesmo ser pensado. Quantas vezes, digo eu, é possível proclamar uma ideia sem colocá-la, por sua vez, em perigo? Kafka nos aconselhava a parar sempre uma palavra antes da verdade, em vez de enlameá-la com mil. Como é difícil, contudo, essa continência verbal, esse recato!

Ao Verbo seguiu-se a ladainha de seus filhos menores, das divindades de ocasião: a Natureza, a História, a Razão, a Cultura, a Tradição, a Ruptura… Deuses menores que no século 20 recém-encerrado se democratizaram e multiplicaram, encarnados agora em discursos, metodologias, cenários, approaches, ideologias, semiologias, subversões, desconstruções e todas as outras palavras que ainda hoje pululam entre bibliografias acadêmicas, os manuais de “autoajuda” e o jargão dos catálogos de exposições. Mas logo em seguida, com pouco tempo de uso, a maioria desses lugares-comuns se transforma em resíduos fósseis: velhos caminhos que não conduzem a parte alguma.”

Trecho de Deus, entre outros inconvenientes, de Xavier Rubert de Ventós

Trecho | Sobre a crítica

Postado em Atualizado em

“Não temos o hábito de debater na escola, educadamente, como parte do processo mesmo de aprendizagem. Diferentemente do que ocorre em outras culturas, não faz parte da nossa experiência educacional argumentar, defender um ponto de vista, fundamentar uma opinião, procurar exemplos que a ilustrem, desenvolver um raciocínio para convencer o outro. Não aprendemos a, em seguida, parar para ouvir, ponderar, pesar os argumentos alheios, avaliá-los, ver em que medida eles devem ser refutados ou podem ser aceitos. Não nos ensinaram a construir sínteses nem consensos. Qualquer discussão entre nós descamba logo para o pessoal, o agressivo, o hostil. Vence quem ganha no grito.

A crítica é parte integrante do universo artístico quando ela própria, de alguma forma, participa da criação – e por isso é necessária. Um texto criador não se esgota numa leitura de dicionário ou filológica, que decifre o sentido literal do que nele está escrito. A crítica digna desse nome, criadora, usa a linguagem de tal maneira que explora a obra, aberta e cheia de sentidos, naquilo que a criação tem de profético, de certo modo. Ajuda a compor essa criação, a lhe dar sombra e volume, sem medo de submergir na coexistência de sentidos que caracteriza a linguagem artística, uma linguagem simbólica e trabalhada.

Dessa forma, a criação só tem a ganhar com o exercício de uma crítica desse tipo. Uma crítica nascida de uma espécie de provocação feita pelo texto comentado, um estímulo sedutor que desperta no crítico o desejo de escrever, ele também. Uma crítica que, por participar da criação, tem muito mais a ver com o prazer de pensar e de escrever do que com o poder de condenar ou exaltar que caracterizam um juízo final.”

Ana Maria Machado, em Silenciosa algazarra.

Trecho | Uncool

Postado em Atualizado em

“Quando falava com os filhos, Keith percebia que cool, legal, era absolutamente o único sobrevivente do léxico de sua juventude. Seus filhos usavam a palavra, suas filhas a usavam, mas a palavra tinha perdido sua conotação de graça-sob-pressão e queria dizer apenas bom. De forma coerente, ele nunca ouvia o seu antônimo: uncool.

Para alguém nascido em 1949, a palavra traz dificuldades adicionais. Envelhecer é muito uncool. Bolsas nos olhos e rugas são muito uncool. Aparelhos auditivos e andadores são muito uncool. Cemitérios são uncool demais.”

Trecho de A viúva grávida, de Martin Amis

Trecho | Luz e silêncio

Postado em Atualizado em

“Kathy fez o que sabia que não deveria fazer, pois os clientes sem dúvida precisavam e esperavam poder falar com ela de manhã. Desligou o celular. Fazia isso de vez em quando, depois de as crianças descerem do carro e quando estava voltando para casa. Só para ter aquela meia hora de solidão durante o trajeto – aquilo era um luxo, mas era fundamental. Ficou olhando para a rua, em silêncio completo, sem pensar em nada. O dia seria longo, e não iria terminar até as crianças irem para a cama, então ela se permitiu aquela única extravagância, um intervalo ininterrupto de trinta minutos de luz e silêncio.”

Trecho de Zeitoun, de Dave Eggers

Trecho | O ritmo, pouco a pouco

Postado em Atualizado em

“O que é um filme senão uma tentativa de inventar relações originais entre o tempo e o espaço? Em certos filmes, como os meus, esse trabalho talvez seja mais aparente, e talvez mais radical também. Mas eu não procuro essa sensação de fascínio de modo teórico, eu me deixo levar pelos lugares onde filmo, não calculo a duração particular dos meus planos, eu encontro o ritmo geral do filme pouco a pouco.”

Trecho de entrevista de Hou Hsiao-Hsien a Antoine de Baecque e Jean-Marc Lalanne, no catálogo da mostra Hou Hsiao-Hsien e o cinema de memórias fragmentadas. Foto do filme Café Lumière, de 2003.

Trecho | O esquecimento

Postado em

“O surpreendente era que sua vida pouco havia mudado após o nascimento de sua filha, Catriona. Os amigos lhe haviam dito que ficaria abismado, que se transformaria, que seus valores seriam outros. Porém nada mudou. Catriona era algo bom, mas continuou a confusão de sempre. E, agora que entrara nos últimos estágios ativos de sua existência, começou a compreender que, não ocorrendo acidentes, a vida não mudava. Ele fora iludido. Sempre presumira que chegaria um tempo na vida adulta, uma espécie de planalto, em que haveria aprendido todos os truques de ir levando as coisas, de simplesmente ser. Com todas as cartas e e-mails respondidos, todos os papéis em ordem, livros organizados alfabeticamente nas estantes, roupas e sapatos em bom estado nos armários onde podia encontrá-los; com o passado, incluindo as cartas e fotografias de outrora, arrumado em caixas e pastas; com a vida privada assentada e serena, assim como as acomodações e as finanças. Em todos aqueles anos, essa arrumação, o calmo platô, nunca apareceu, e apesar disso ele havia continuado a presumir, sem pensar sobre o assunto, que estava pertinho, ali do outro lado da esquina, que em breve ele faria um esforço e o alcançaria. Naquele momento a vida se tornaria clara e a mente livre, sua existência como adulto teria então início de fato. Contudo, pouco após o nascimento de Catriona, pensou ter entendido a verdade pela primeira vez: no dia de sua morte, estaria usando meias de pares diferentes, haveria e-mails não respondidos, e na pocilga que chamava de casa ainda existiriam camisas sem os botões do punho, uma lâmpada apagada no hall, contas a pagar, sótãos a limpar, moscas mortas, amigos esperando por uma resposta e amantes que ele não havia confessado ter. O esquecimento, palavra final em matéria de organização, seria seu único consolo.”

Trecho de Solar, de Ian McEwan (ao som de As the world rises and fall, do Clientele).

Trecho | Um sonho, um mapa falso

Postado em Atualizado em

“Eu também tenho sonhado com outro lugar, um lago ao norte, com chalés e pequenas propriedades rurais ao redor de sua margem sul. No meu sonho, chego até lá vindo do sul da Califórnia, onde moro; esse é um local para passar as férias, mas é muito antiquado. Todas as casas são de madeira, com aquele tipo de tábua marrom tão popular na Califórnia antes da Segunda Guerra Mundial. As estradas são de terra. Os carros também são mais antigos. O que é estranho é que não existe nenhum lago assim na parte norte da Califórnia. Na vida real, já dirigi todo o caminho para norte que leva até a fronteira com o Oregon e cheguei a entrar no Estado do Oregon. Só existem 1500 quilômetros de território árido.

Onde é que existe esse lago – e as casas e estradas ao redor – na verdade? Sonho com ele inúmeras vezes. Como nos sonhos tenho a consciência de que estou em férias, de que minha verdadeira casa fica no sul da Califórnia, às vezes dirijo de volta até aqui, Orange County, nesses sonhos interconectados. Mas quando volto para cá, estou morando numa casa, ao passo que na realidade vivo em um apartamento. Nos sonhos, sou casado. Na vida real, vivo sozinho. O mais estranho ainda é que minha esposa é uma mulher que nunca vi antes.

Em um dos sonhos, nós dois estamos do lado de fora, no quintal, regando e podando nosso roseiral. Posso ver a casa ao lado: é uma mansão, e temos em comum com ela um muro de alvenaria. Rosas selvagens foram plantadas numa trepadeira que sobe pelo muro, para torná-lo atraente. Quando passo meu ancinho ao lado das latas de lixo de plástico verde que enchemos até a boca com galhos podados, olho para a minha mulher – ela está regando as plantas com uma mangueira – e olho para o muro com suas trepadeiras e rosas, e sinto-me bem; penso: não seria possível viver feliz no sul da Califórnia se não tivéssemos esta bela casa com seu belo quintal. Preferiria ser o dono da mansão ao lado, mas de qualquer maneira eu pelo menos posso vê-la, e posso entrar no seu jardim mais espaçoso. Minha mulher veste blue jeans; ela é magra e bonita.

Quando acordo, penso: eu deveria dirigir até o lago ao norte; por mais bonito que seja cá em baixo, com minha esposa e o quintal e as rosas selvagens, o lago é mais bonito. Mas aí percebo que estamos em janeiro, e haverá neve na rodovia quando eu chegar ao norte da Área da Baía; não é um bom momento para voltar para a cabana no lago. Eu deveria esperar até o verão; afinal de contas, não sou lá um motorista muito bom. Mas meu carro é dos bons; um Capri vermelho quase novo. E então, quando acordo, percebo que estou vivendo num apartamento no sul da Califórnia sozinho. Não tenho esposa. Não existe aquela casa, com o quintal e o muro alto com trepadeiras e rosas. O que é mais estranho ainda: não só não tenho uma cabana no lago ao norte como também não existe nenhum lago assim na Califórnia. O mapa que seguro mentalmente durante meu sonho é um mapa falso; ele não mostra a Califórnia. Então, que Estado ele mostra? Washington? Existe uma grande massa de água ao norte de Washington; já sobrevoei na ida e na volta para o Canadá, e já visitei Seattle certa vez.

Quem é essa esposa? Não apenas sou solteiro, como nunca fui casado nem jamais vi essa mulher. Mas nos sonhos eu sinto um profundo, confortável e familiar amor por ela, o tipo de amor que só cresce com a passagem de muitos anos. Mas como é que eu sequer sei disso, já que nunca senti um amor assim por ninguém?

Ao me levantar da cama – estava tirando um cochilo no finzinho da tarde -, entro na sala de estar do meu apartamento e sou atingido de imediato pela natureza sintética da minha vida. Som estéreo (sintético); aparelho de televisão (este é certamente sintético); livros, uma experiência de segunda mão, pelo menos comparada com dirigir subindo a estrada estreita de terra que margeia o lago, passando por baixo dos galhos das árvores, finalmente chegando à minha cabana e o lugar onde estaciono. Que cabana? Que lago? Consigo até mesmo me lembrar de ter sido levado até lá orginalmente, anos atrás, por minha mãe. Agora, às vezes, vou por via áerea. Existe um vôo direto entre o sul da Califórnia e o lago… a não ser por alguns quilômetros depois do campo de pouso. Que campo de pouso? Mas, acima de tudo, como é que eu consigo suportar a vida artificial que levo aqui neste apartamento de plástico, sozinho, especificamente sem ela, a mulher magra de blue jeans?”

Trecho de Valis, de Philip K. Dick

Trecho | O medo

Postado em

De que Ivánov tinha medo?, Ansky se perguntava em seus cadernos. Não do perigo físico, já que como ex-bolchevique muitas vezes esteve perto da detenção, da prisão e da deportação, e embora não se pudesse dizer que fosse um tipo valente, também não se podia afirmar, sem faltar com a verdade, que fosse uma pessoa covarde e sem peito. O medo de Ivánov era de índole literária. Isto é, seu medo era o medo que sente a maioria daqueles cidadãos que um belo (ou horrendo) dia decidem transformar o exercício das letras e, sobretudo, o exercício da ficção em parte integrante das suas vidas. Medo de serem ruins. Também, medo de não serem reconhecidos. Mas, sobretudo, medo de serem ruins. Medo de que seus esforços e seus labores caiam no esquecimento. Medo da pisada que não deixa marca. Medo dos elementos do acaso e da natureza que apagam as marcas pouco profundas. Medo de jantarem sozinhos e de que ninguém repare na sua presença. Medo de não serem apreciados. Medo do fracasso e do ridículo. Mas sobretudo medo de serem ruins. Medo de habitar, por todo o sempre, o inferno dos escritores ruins. Medos irracionais, pensava Ansky, sobretudo se os medrosos contrabalançavam seus medos com aparências. O que vinha a ser a mesma coisa que dizer que o paraíso dos bons escritores, segundo os ruins, era habitado por aparências. E que o bom (ou a excelência) de uma obra girava em torno de uma aparência. Uma aparência que variava, claro, de acordo com a época e os países, mas que sempre se mantinha como tal, aparência, coisa que parece e não é, superfície e não fundo, pura pose, e a pose era inclusive confundida com a vontade, cabelos e olhos e lábios de Tolstói e verstas percorridas a cavalo por Tolstói e mulheres defloradas por Tolstói num tapete queimado pelo fogo da aparência.

Trecho de 2666, de Roberto Bolaño.

Trecho | Uma coisa sobre a grande arte

Postado em

“Ele escutou Juliet, nua e crua do princípio ao fim mais duas vezes, ainda sentado no banco, e durante a terceira começou a andar pela casa. Uma coisa sobre a grande arte: faz com que se ame mais as pessoas, perdoando-as pelas suas pequenas transgressões. Funciona da mesma forma que a religião, se pensarmos bem. O que importava que Annie tivesse ouvido o disco antes que ele tivesse chance de fazer o mesmo? Era só imaginar todas as pessoas que haviam ouvido o disco original antes que ele o houvesse descoberto! Ou imaginar todas as pessoas que haviam visto Taxi driver antes dele, por falar nisso! Isso amortecia o impacto da música? Fazia com que fosse menos dele? Duncan queria ir para casa, abraçar Annie e falar de uma manhã que jamais esqueceria.”

Trecho de Juliet, nua e crua, de Nick Hornby.