Dia: junho 16, 2011

Calgary | Bon Iver

Postado em Atualizado em

No refúgio subterrâneo onde vive este monstrinho visual de Bon Iver, coisas estranhas acontecem: às vezes, a sensação é de estarmos presos numa capa de disco da Enya. Mas há cenas que evocam Lewis Carroll, e aí as coisas melhoram um pouco. De qualquer forma, pode ser usado como instrumento de acusação para aqueles que veem no disco mais recente de Justin Vernon um desejo louco de entrar na programação de madrugada das rádios AM. A direção é de Andre Durand e de Dan Huiting.

Bon Iver | Bon Iver

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Mais do que melodia, estilo e poesia, música pop também é uma arte da fabulação. Uma canção quase nunca é apenas o que se ouve, não é simplesmente o acúmulo de acordes, harmonia e voz. Ela faz parte de uma narrativa complexa (e às vezes muito longa) sobre a criação de heróis, mitos.

Acontece assim desde o começo (e isso que digo é até bem óbvio). Desde Elvis Presley, de Lennon & McCartney, de Mick Jagger e Johnny Rotten, de David Bowie e Neil Young, de Ian Curtis e Madonna. Quando bate o ouvido numa música de Kurt Cobain, por exemplo, a tendência do fã é associar aquele “capítulo” a uma história maior, que parece seguir indefinidamente. Como se cada canção abrisse uma nova trilha de acesso à persona do ídolo.

Era assim quando eu ouvia os primeiros discos do Radiohead. Eu imaginava Thom Yorke como um sujeito arredio e de saúde frágil, extremamente inteligente porém incapaz de se adequar ao mundo. Um band leader que se adoentava a cada sopro de vento um pouco mais frio. Já Prince me parecia um vampiro moderno, sexy porém condenado a viver na solidão de uma mansão dourada. Não sei ainda, sinceramente, o que pensar de Frank Black: mas ele sempre aparentou ser um sujeito meio doentio, dado a surtos.

O fã mais imaginativo cria histórias que os aproximem do artista. Já o artista, num caminho paralelo, também vai construindo um personagem que se torna mais profundo e contraditório (mais crível, digamos) a cada música, a cada disco. Há os músicos mais instintivos, que vão definindo essa identidade como que naturalmente. E há os que maquinam cada transformação, cada performance, que confudem conscientemente a própria vida com a imagem divulgada na mídia, multiplicada nos palcos, ampliada e retorcida.

É engraçado, por isso, como a história do pop pode ser lida como um grande romance à moda de Tolstoi, com centenas de personagens metidos em tramas enormes, folhetinescas. O mocinho e o bandido, a donzela e a mulher independente, os sentimentais e os brutos. Personagens ricos, até imprevisíveis, que parecem cumprir arcos narrativos muito bem definidos. A história de Michael Jackson, para ficarmos no exemplo mais épico, renderia um filme extraordinário.

Se pensarmos o pop como um livro de mil páginas e os artistas como personagens permeáveis (criados por eles próprios, mas também por cada “leitor”), a história de Justin Vernon pode parecer um exemplo arredondado, perfeitinho, de como a música se beneficia de um contexto “ficcional”, de uma narrativa lúdica que paira em torno dos sons que aparecem nos discos. Porque a história de Vernon, queira ou não, é uma bela de uma fábula.

O disco que iniciou a saga, For Emma, forever ago (2008) pode ser encarado de uma forma relativamente simples: Vernon, que então assumiu o codinome Bon Iver, parecia cobrar um lugar entre os songwriters melancólicos, cabisbaixos, na tradição de Tim Buckley e Nick Drake. Mas, simultaneamente, trabalhava com camadas cíclicas e enevoadas de efeitos sonoros que pareciam remeter a bandas um tanto mais experimentais, como Animal Collective e Deerhunter.

Era possível gostar de Vernon apenas por esse estilo, que soava ao mesmo tempo convencional (visitava o fim dos anos 60, início dos 70; e não parecia nada novo) e up-to-date (já que testava um folk atmosférico, misterioso, que ainda se tornou muito querido no indie rock). Mas, quando se conhecia a história de For Emma, forever ago, era possível amar Vernon. E tratá-lo como um personagem, um ser da música pop.

O disco, dizem, foi gravado num período de isolamento do cantor, que abandonou uma banda não muito bem sucedida e se isolou num chalé abandonado, onde registrou canções absolutamente pessoais (e sofridas) sobre amor e dor. Soa como um CD talhado a machadadas. E talvez seja isso mesmo. Hoje se sabe que a maior parte das músicas estava escrita antes da viagem à casinha da montanha. E que a sensação de isolamento e angústia que as canções evocam talvez sejam apenas uma (excelente, diga-se) obra de ficção.

No entanto, quem se importa? Conhecer todos os detalhes sobre a gravação de um disco como esse (envolto numa história tão fascinante) seria como passar um tempo na companhia de Thom Yorke e, em seguida, ouvir Kid A. Aposto que o personagem do vocalista perderia um pouco do encanto que desperta em nós.

O desafio do disco novo de Bon Iver é, portanto, apresentar uma nova aventura para um herói que, desde o lançamento de For Emma, se transformou numa espécie de coadjuvante pau-pra-toda-obra. A voz de Vernon parecia tão especial (e as harmonias, tão memoráveis e curtas, por isso “sampleáveis”), que o cantor foi convidado para participar de uma série de projetos. Topou quase todos – entre eles, o mais recente de Kanye West.

Fico me perguntando: o que se espera de um disco novo de Bon Iver? Descobri que, particularmente, eu não esperava nada. Na verdade, não queria nem mesmo um disco. Porque, na minha cabeça, a história daquele personagem já estava contada. For Emma me parece um álbum completo, com início, meio e fim. É claro que, no capítulo final, bate uma curiosidade sobre o que teria acontecido ao homem das cavernas: mas talvez não seria tão atraente ouvir um disco inteiro sobre um tipo outsider que consegue fama, reconhecimento, fãs e sai para jantar com rappers e roqueiros. Parece um tanto banal (ainda que, no caso de Vernon, a realidade possivelmente seja bem essa).

Esqueçamos a realidade, portanto. O disco novo de Bon Iver segue o personagem de For Emma numa lenta trajetória de reconhecimento do mundo: como se aquele tipo ferido, introspectivo, resolvesse seguir lentamente para fora. É, antes de qualquer coisa, mais um belo exercício de ficção: Vernon dá conta de empurrar os limites de um universo (criado a partir de impressões pessoais, é claro, já que estamos no ar rural/doméstico de Wisconsin, cidade natal do músico) sem trair o perfil psicológico do personagem. “Não estou mais vivendo na escuridão”, ele conclui, na última faixa do disco.

É uma espécie de happy end. O interessante é como Vernon não transforma um disco de libertação e celebração (afinal, profissionalmente o músico nunca esteve mais feliz) numa corrida-da-vitória, num oba-oba sem propósito. Pelo contrário: apesar de estar acompanhado de músicos muito talentosos (entre eles, o guitarrista Greg Leisz, que trabalhou com Lucinda Williams, e os saxofones de Colin Stetson, do Árcade Fire), o compositor segura as rédeas de uma mise-en-scene até muito concisa, apesar de todas as mudanças sutis de climas e tons que aparecem entre uma música e outra.

Se For Emma era um drama sobre alienação e lembranças, Bon Iver soa como uma aventura mais serena, em que as memórias (ainda muito fragmentadas; é quase impossível decifrar as letras) se deixam contaminar pelas paisagens de cidades, por espaços abertos, fluem num leito muito largo. O movimento para frente se torna enfim possível, mas o terreno parece tão amplo que o personagem dá passos curtos. Vai seguindo pouco a pouco.

Cada canção olha para uma paragem diferente, das guitarras repetitivas e densas de Perth aos ar quase kitsch dos sintetizadores de Beth/Rest. Um momento especialmente deslumbrante é Hinnom, TX, quando Vernon parece cantar num bosque de maravilhas: a voz ecoando alta, grave, em meio a estalos ora estranhos, ora muito agradáveis e gentis. Ouvir o disco mais de três, quatro vezes pode mostrar que ele se aventura mais do que imaginávamos nas primeiras audições.

O que me agrada, acima de tudo, é como Vernon banca a missão de criar um disco que dá continuidade ao anterior, que vai modelando uma persona, uma identidade, uma narrativa própria. É a juventude de um personagem. É possível dizer que, como o herói deste disco, Bon Iver escolhe mapear com cautela, mas sem preguiça ou covardia, o chão onde pisa. Criou um capítulo talvez mais controlado e sóbrio do que esperávamos, mas tão gracioso quanto selvagem – e seguro de si. Quando termina, nos deixa com vontade de ouvir mais.

Segundo disco de Bon Iver. 10 faixas, com produção de Justin Vernon. Lançamento Jagjaguwar Records. 8/10