Livro

[julie orringer]

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“Vocês têm de fato a intenção de se casar no navio?”, perguntou Klara para a filha. “É o que querem?”

“É o que decidimos”, respondeu Elisabet. “Acho emocionante.”

“Então não vou poder ver você casada.”

“Vai me ver depois que eu casar. Quando voltarmos para visitar você.”

“E quando imagina que isso vai acontecer?”, perguntou Klara. “Quando acha que vai poder comprar passagens para atravessar o oceano? Sobretudo se os pais do seu marido não aceitarem sua união?”

“Achamos que talvez a senhora quisesse morar nos Estados Unidos”, disse Paul. “Para ficar perto das crianças e tudo o mais, quando tivermos filhos.”

“E quanto aos meus próprios filhos?”, disse Klara. “Talvez não seja nada fácil para mim cruzar um oceano desse jeito.”

“Que filhos?”

Ela olhou para Andras e pegou sua mão. “Nossos filhos.”

“Mamãe!”, exclamou Elisabet. “Você não pode estar falando sério. Pretende mesmo ter filhos com…?” E apontou o polegar para Andras.

“Pode ser. Conversamos sobre o assunto.”

“Mas você é un femme d’un certain age!”

Klara riu. “Somos todos de certa idade, não somos? Vocês, por exemplo, são de uma idade em que é impossível compreender como trinta e dois anos podem parecer o início de uma vida, e não o final.”

[trecho do livro A Ponte Invisível, de Julie Orringer]

[jennifer egan]

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Ted sentia-se um anotador de apostas. Os filhos praticavam todos os esportes imagináveis, e alguns que não o eram (para Ted): futebol, hóquei, beisebol, lacrosse, basquete, futebol americano, esgrima, luta livre, tênis, skate (não era esporte!), golfe, pingue-pongue, Video Voodoo (com certeza não era esporte, e Ted se recusava a dar sua chancela), escalada, patinação, bungee jump (quem praticava isso era Miles, seu mais velho, em quem Ted sentia uma alegre tendência à autodestruição), gamão (não era esporte!), vôlei, uma versão mais leve do beisebol chamada wiffle ball, rúgbi, críquete (em que país eles moravam?), squash, polo aquático, balé (Alfred, claro) e, mais recentemente, tae kwon do. Às vezes, Ted tinha a impressão de que os filhos só praticavam esportes para garantir a presença do pai junto à maior variedade possível de superfícies de jogo. Obediente, ele comparecia, e gritava a plenos pulmões entre as pilhas de folhas e o cheiro acre de madeira queimada no outono, entre os pés de cravo iridescentes na primavera, e em meio aos verões chuvosos infestados de mosquitos do norte do estado de Nova York.

[Trecho de A visita cruel do tempo, de Jennifer Egan]

[pablo de santis]

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Aprendi que uma livraria deve fugir tanto da ordem quanto da desordem. Se a livraria for caótica demais e o freguês não puder se orientar sozinho, ele vai embora. Se a ordem for excessiva, o freguês sentirá que conhece a livraria por inteiro, e que nada mais haverá de surpreendê-lo. E vai embora também. Leve-se em conta que os sebos existem só para leitores que detestam fazer perguntas: querem conseguir tudo por si mesmos. Além disso, nunca sabem o que estão procurando, só sabem quando encontram.

[Trecho de Os antiquários, de Pablo de Santis]

livro | Festa no covil

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O que você faria se o seu filho (ou o irmão pequeno, ou o sobrinho) pedisse um hipopótamo anão da Libéria? O pai de Totchli, narrador-mirim do livro Festa no covil, decide fazer valer o desejo do menino. Não só esse, mas todos – porque, claro, ele é um homem muito rico. E também por acreditar (e isto ele vive dizendo) que, quando não se pode ir à montanha, é possível fazer a montanha andar.

Como encontrar e capturar o bicho? A pergunta intriga Totchli. O garoto só pensa nela. Quem lê o romance, no entanto, tem outras dúvidas. Por exemplo: por que essa criança não tem amigos? O que explica o fato de ela estudar em casa, e não numa escola? Ela mora num palácio de verdade, cercado por leões e tigres, ou inventa uma realidade à semelhança dos desenhos animados?

As respostas acabam aparecendo — nas entrelinhas, vazando nas frestas da fala de Totchli. É um tema delicado. Página a página (e são poucas: 88), descobrimos estupefatos que o herói do livro é filho de um traficante poderoso, que o mantém preso numa mansão kitsch e o ensina — entre outras lições — a odiar os gringos americanos, a valorizar a lealdade e a matar gente. Enquanto isso, o escritor mexicano Juan Pablo Villalobos, estreante em ficção, usa um ponto de vista infantil para observar (de solsaio) a crise de um país.

Mas e o hipopótamo anão da Libéria? Ele está em todo canto, no começo, no meio e no fim da história – porque, vale repetir, Totchli só quer saber dele. A sanguinolência do cotidiano, que machuca a sensibilidade do leitor, se tornou tão comum para o menino que ele mal se deixa afetar por ela. Dezenas de pessoas perambulam nos cômodos do casarão: seu professor particular, empregados, prostitutas, políticos. Enquanto a tevê exibe notícias policiais, ele joga Playstation, coleciona chapéus e pesquisa palavras no dicionário. Gosta das mais difíceis, como sórdido, patético ou nefasto.

No posfácio do livro, o escritor inglês Adam Thirlwell elogia a gana experimental do texto de Villalobos. A micronarrativa do mexicano, segundo Adam, se apropria de um gênero pulp (a narcoliteratura) de uma forma absolutamente original — já que este estupendo Festa no covil, indicado ao First Book Award do jornal The Guardian, é também um conto familiar, que o escritor concebeu para alertar o filho recém-nascido sobre a perda da inocência, a sedução do poder, a solidão e as contradições sociais de um país tão ferido quanto ameaçador.

A linguagem do livro, segundo Thirlwell, se mostra “uma coisa precária, insensível, inocente, perturbada, opaca, devastada”. Totchli, apesar de precoce, ainda é uma criança. Ao transferir esse olhar enclausurado como que diretamente para o papel, sem anestesia, Villalobos sugere um contexto tão repugnante que, nos momentos mais tétricos, obriga o leitor a desviar o olhar. O menino, no entanto, assiste à selvageria dos adultos como quem passa os olhos em mais um filme de samurai. Não é nada, não é nada. Principalmente quando se tem hipopótamos anões na Libéria.

(Fiesta en la Madriguera/Down the Rabbit Hole, 2010). De Juan Pablo Villalobos. Tradução de Andreia Moroni. Companhia das Letras. A

[mário de andrade]

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“Quando me iniciei fazendo versos, reuni meus melhores sonetos, o que eu supunha fosse o melhor, e mandei-os em carta a Vicente de Carvalho, pedindo-lhe opinião. Ainda não publicara coisa nenhuma, a não ser alguns sonetos em revistecos sem importância. Vicente nunca me respondeu. Cheguei a ir à casa dele para retirar a limpo se morava mesmo lá, ou se estava em São Paulo. Estava. Deve ter recebido a carta registrada e… sei que não respondeu. Como gosto muito da poesia dele, até agora sofro disso”

“Quando releio coisas passadistas minhas tenho a impressão do Mário de Andrade que fui na casa dos vinte. Um sujeito grandão, feio como o diabo, almofadinha usando com exagero as modas do dia, desengraçado de corpo, com olhar apagado, no princípio uma cabelama enorme que não havia meios de ficar quieta, um tipo antipático porém que tinha um certo sal, dava vontade da gente saber mesmo o que ele é”

[Mário de Andrade, em entrevista e carta, no livro 1922 – A Semana que Não Terminou, de Marcos Augusto Gonçalves]

[roberto bolaño]

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Minha rotina consistia em levantar cedo, tomar o café da manhã com minha mãe, meu pai e meu irmão, fingir que ia para o colégio e pegar um ônibus que me deixava no centro, onde dedicava a primeira parte da manhã aos livros e a passear e a segunda a ir ao cinema e, de uma maneira menos explícita, ao sexo.

Os livros, costumava comprar na Librería de Cristal e na Librería del Sótano. Se tinha pouco dinheiro, na primeira, onde sempre havia uma mesa de saldos, se tinha dinheiro bastante, na última, que era a que tinha novidades. Se não tinha dinheiro, como acontecia com frequência, costumava roubá-los indistintamente numa ou noutra. Fosse como fosse, no entanto, minha passagem pela Librería de Cristal e pela Librería del Sótano era obrigatória. Às vezes chegava antes do comércio abrir e então o que fazia era procurar um ambulante, comprar um sanduíche de presunto e um suco de manga e esperar. Às vezes sentava num banco da Alameda, um que fica escondido no meio da vegetação, e escrevia. Isso tudo durava aproximadamente até as dez da manhã, hora em que começavam em alguns cinemas do centro as primeiras sessões matinais. Procurava filmes europeus, mas em algumas manhãs de inspiração não discriminava o novo cinema erótico mexicano ou o novo cinema de terror mexicano, o que no caso era a mesma coisa.

[Trecho do conto O verme, em Chamadas Telefônicas, de Roberto Bolaño]

[dennis lehane]

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Ela foi julgada por roubo e condenada. Perdeu a casa. Perdeu também o marido, que se mandou enquanto ela cumpria a pena de prisão domiciliar. Sua filha foi expulsa da escola particular em que estudava. Seu filho foi forçado a abandonar a faculdade. De acordo com as últimas notícias que eu tivera, Peri Pyper estava trabalhando como telefonista em uma concessionária de carros usados de Lewiston, e à noite fazia faxina em uma loja da rede atacadista BJ’s Wholesale na localidade próxima de Auburn.

Ela pensou que eu fosse seu companheiro de bar, seu flerte inofensivo, sua alma gêmea política. Ao ser algemada, encarou-me e viu minha traição. Seus olhos se arregalaram. Sua boca formou um O perfeito.

– Patrick, nossa – ela disse logo antes de ser levada embora. – Você parecia tão real.

Tenho quase certeza de que foi o pior elogio que já recebi.

(Trecho de Estrada Escura, de Dennis Lehane)

[michel laub]

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1.
O diagnóstico do Alzheimer é feito em várias etapas. Primeiro é uma consulta simples, o médico pergunta sobre os lapsos de memória do paciente, se ele fuma e bebe, se toma remédios, se teve alguma doença grave e fez algum tratamento ou cirurgia nos últimos anos. O médico ouve os batimentos cardíacos, mede a pressão, pede exames clínicos de orientação e linguagem, e em seguida uma tomografia, e também uma ressonância magnética, e também uma dosagem de hormônios da tireoide, e também de cálcio e fósforo e vitamina B, e também recomenda o PET Scan e o SPECT, uma série de procedimentos para excluir outras causas para os lapsos, como o estresse, a demência, a arteriosclerose, a depressão e o tumor.

24.
Primeiro o meu pai deixou o assunto o mais próximo possível de uma rotina doméstica, e tenho até a impressão de que ele se empenhou para que a minha mãe continuasse lidando com isso como se nada houvesse acontecido, um esforço para continuar reproduzindo diante dela as manias costumeiras, e cada vez que eu telefonava ela dizia que ele continuava do mesmo jeito, os resmungos, a louça e as calças, o programa de rádio de manhã. Era como se ela e eu nos convencêssemos de que meu pai ainda era o mesmo, uma espécie de licença renovada a cada telefonema. Passou a ser comum ele repetir a pergunta que fez dois minutos antes, e dar dinheiro em excesso à faxineira ou ao porteiro, e mudar de humor no meio de uma conversa, mas parecia ainda estar longe a tarde de inverno em que ele surpreenderia a minha mãe, um gesto nunca antes visto, uma palavra que em quarenta anos de casamento ela nunca tinha ouvido da boca dele, uma novidade que anuncia uma sequência ainda mais acelerada de mudanças, meu pai perdendo um pouco do que qualquer um de nós reconheceria como algo único dele, e uma manhã ele acorda sem saber o nome de uma cidade, e na outra se um animal voa ou nada ou se arrasta, e numa terceira a marca do próprio carro e como se usa o acelerador e o freio, e de repente ele não sabe há quantos anos está casado com a minha mãe, e nessa tarde de inverno tomando chá e distraída com o relógio de parede que marca cinco horas ela percebe que ele não faz ideia de quem é e do que está fazendo ali.

[trechos do livro Diário da Queda, de Michel Laub]

top 10 | Os livros de 2011

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Depois dos rankings de Melhores Filmes, Piores Filmes e Melhores Discos de 2011, encerro a minha retrospectiva com uma lista de 10 bons livros que li durante o ano.

Para não bagunçar os critérios, só entram no top aqueles que foram publicados pela primeira vez no Brasil em 2011. Essa regra exclui, por exemplo, um punhado de romances antigos do Philip Roth, seminários de Freud e Moby Dick.

Mas ele, o manual do jogo, não torna inelegíveis os livros novos do Roth (Nêmesis), do DeLillo (Ponto Ômega) e do Piglia (Alvo Noturno), além de um punhado de outros (Um Dia, argh) que não entram no ranking porque não entram. Paciência.

Por coincidência, quase todos os que estão nesta saíram pela Companhia das Letras. Não foi de propósito, gente: nada tenho contra as outras editoras; e, no mais, não estou ganhando cachê pra publicar este post.

10 Ilustrado | Miguel Syjuco

Este thriller sobre um misterioso assassinato em Manhattan (a vítima: um escritor filipino de sucesso internacional, mas rejeitado pelos próprios compatriotas) pode ser lido como uma sátira cruel sobre um país caótico, onde a criação artística se tornou uma aventura. Felizmente, soa menos como world music, mais como rock psicodélico.

9 Escuta Só | Listen to This | Alex Ross

Este livro de ensaios seria apenas uma espécie de coletânea de sobras do monumental O Resto é Ruído, publicado aqui em 2009. Surpreendente é notar que, com a gravata afrouxada, Ross escreve ainda melhor: rigor histórico à parte, o que ele compõe são belas crônicas de fé no poder de sobrevivência da música – erudita ou não.

8 Silenciosa Algazarra | Ana Maria Machado

Uma coleção de pensatas ainda mais despretensiosa que o greatest hits de Alex Ross, mas que pode comover quem, como eu, não vê sentido algum nas políticas públicas de incentivo à leitura. Um livro simples, inconformado e potente, escrito numa prosa direta, que não quer nunca nos iludir.

7 O Romancista Ingênuo e o Sentimental | The Naive and the Sentimental Novelist | Orhan Pamuk

Este ano, chegou ao país um bom livro do Nobel turco, O Museu da Inocência. Mas ainda prefiro esta coletânea de palestras sobre romances literários. O poder de deslumbramento dessas “aulas” pouco ortodoxas – lições sobre o mistério das grandes obras – equivale ao dos melhores romances que Pamuk criou.

6 Cinefilia | Antoine de Baecque

Havia o perigo de que Cinefilia se saísse uma espécie de livro didático sobre a cinefilia francesa moderna – nascida ainda na pré-história da nouvelle vague -, mas não há nada singelo na ambição de Beacque: o francês quer aproximar o leitor de uma história ainda cercada mais por mitos que por homens. Daria um ótimo filme.

5 Zeitoun | Dave Eggers

O melhor livro de Eggers é, quem diria, uma reportagem literária sobre um sobrevivente do furacão Katrina. A secura como descreve sofrimento do personagem evita, a todo custo, o sentimentalismo oportunista que geralmente acompanha a reconstituição jornalística de atos heroicos. O escritor cresceu.

4 Os Filhos da Viúva | The Widow’s Children | Paula Fox

Escrito em 1976, esta é uma das obras-primas de Paula Fox que foram descobertas talvez tarde demais (nos Estados Unidos, os livros adultos da escritora saíram de catálogo em 1992), mas que não perderam o viço. A habilidade como alterna os pontos de vista dos personagens – abomináveis, adoráveis – nos deixa sem ar.

3 Diário da Queda | Michel Laub

Para quem não conhecia os anteriores de Laub (meu caso), este Diário da Queda chegou como uma senhora surpresa: o escritor tem a coragem de enfrentar grandes temas – o holocausto e Alzheimer, para ficarmos nos maiores deles – com o tom catártico de quem divide segredos muito pessoais com o leitor.

2 Liberdade | Freedom | Jonathan Franzen

Não sei se Franzen encontrou tudo o que procurava neste “grande romance americano” – um Tolstói para os subúrbios da era Bush! Uma Paula Fox em cinemascope! Um Paul Thomas Anderson das letras! -, mas é emocionante assistir às peripécias de um autor que usa o talento (não é pouco) à serviço de ambições tão amplas.

1 Meus Prêmios | Meine Preise | Thomas Bernhard

Por falar em ambições épicas… Meus Prêmios, este livrinho póstumo de Bernhard (que o austríaco escrevia pouco antes de morrer, em 1989), tem apenas 112 páginas, com nove artigos sobre (vocês adivinharam) os prêmios recebidos pelo escritor. E é isso. Só isso. Mas o que parece uma curiosidade tolinha na biografia do autor logo se impõe como uma obra atualíssima: isso porque as pessoas seguem premiando e as premiações literárias são, e sempre serão, jogos patéticos de vaidade – que, ao fim e ao cabo, nos ensinam um tanto sobre o comportamento humano. Bernhard é dos poucos escritores que conseguem me fazer rir de raiva. Meus Prêmios é, dito isso, um livro muito engraçado – e, ao mesmo tempo, revoltante.

[orhan pamuk]

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Imaginemos que um autor escreve uma autobiografia na primeira pessoa do singular e o faz com absoluta honestidade, assegurando-se de que todos os detalhes de sua vida, centenas de milhares de detalhes, são fiéis a sua experiência de vida. E imaginemos que um editor esperto lance o livro como um “romance” (existem muitos editores espertos capazes disso). Tão logo esse livro é chamado de romance, passamos a lê-lo de maneira muito diferente da pretendida pelo autor. Começamos a procurar um centro, a perguntar-nos sobre a autenticidade dos detalhes, que parte é real, que parte é imaginada. Assim agimos porque lemos romances para sentir essa alegria, esse prazer de buscar o centro (da narrativa) – assim como para especular sobre o conteúdo real dos detalhes e para nos perguntar quais são fruto da imaginação e quais se baseiam na experiência.

Agora devo dizer que essa grande alegria de escrever e ler romances é dificultada ou ignorada por dois tipos de leitor:

1. O leitor totalmente ingênuo, que sempre lê um texto como uma autobiografia ou como uma espécie de crônica disfarçada de experiência vivida, não importando quantas vezes você diga a ele que está lendo um romance.

2. O leitor totalmente sentimental-reflexivo, que acha que todo texto é constructo e ficção, não importando quantas vezes você diga a ele que está lendo sua mais franca autobiografia.

Devo alertá-los para que mantenham distância dessas pessoas, pois elas são imunes às alegrias de ler romances.

[Trecho do livro O romancista ingênuo e o sentimental, de Orhan Pamuk]

[machado de assis]

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Não compreendo o crítico sem consciência. A crítica útil e verdadeira será aquela que, em vez de modelar as suas sentenças por um interesse, quer seja o interesse do ódio, quer o da adulação ou da simpatia, procure reproduzir unicamente os juízos da sua consciência. Ela deve ser sincera, sob pena de ser nula. Não lhe é dado defender nem os seus interesses pessoais, nem os alheios, mas somente a sua convicção.

Machado de Assis, no artigo O ideal do crítico (1865)

[paula fox]

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Desmond curvou a cabeça. Clara se perguntou se ele iria escorregar da cadeira para o chão, desmaiar no tapete. Ele mal parecia estar vivo, curvado na cadeira, o rosto escondido, as mãos de dedos grossos pousadas nas coxas. Ela nunca o tinha visto tão bêbado, tão passado, em nenhum dos restaurantes e quartos de hotel em que o encontrara ao longo dos anos. Mas a mãe, afora uns poucos apartes musicais sobre a incrível “confusão mental” dele, não prestava muita atenção a Desmond. Talvez fosse aquilo o que ela chamava de “ser melhor” com ele. Assim tinha dito a Clara por volta de um ano antes numa conversa telefônica. Oh, ela estava ficando melhor, dissera, mais sensata do que jamais tinha sido com Ed e suas bebidas, aprendendo a deixar os homens em paz. “Você não pode salvar um bêbado da bebida”, ela havia dito, “você não pode salvar ninguém de coisa alguma.”

Clara supunha que não se podia salvar quem quer que fosse, não em quartos de hotel, lugares que não pertenciam a ninguém, lugares de interrupção, de imunidade diante da vida comum, onde o espírito se abate, fica desolado, gélido, mas a carne se inflama, incandescente, excitada pelo odor da licenciosidade que parece emanar da cama, do banheiro, do travesseiro de qualquer um, do abrigo espúrio de todo mundo.

Trecho do livro Os filhos da viúva, de Paula Fox

[steve toltz]

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Enquanto Terry foi brincar com os demais na piscina, eu me sujeitei a uma coisa terrível chamada dança das cadeiras, outro jogo cruel. Há uma cadeira a menos, e quando a música para, você tem de correr para conseguir um lugar. Festas infantis são riquíssimas em matéria de lições de vida. A música toca no último volume. Nunca se sabe quando vai parar. Você fica aflito durante toda a brincadeira; a tensão é insuportável. As crianças dançam em círculo ao redor das cadeiras, mas não é uma dança feliz. Todas têm os olhos grudados na mãe que comanda o rádio, a mão a postos no controle do volume. De tempos em tempos, uma criança se antecipa e se atira em uma cadeira. As outras gritam. Ela se levanta da cadeira outra vez. Está uma pilha de nervos. A música continua. Os rostos das crianças estão contorcidos de terror. Ninguém quer ser excluído. A mãe troça delas fingindo que vai mexer no volume. As crianças desejam que ela morra. O jogo é uma analogia da vida: não há cadeiras bastantes ou bons momentos o suficiente, não há comida suficiente, nem alegria, nem camas, nem empregos, nem risadas, nem amigos, nem sorrisos, nem dinheiro, nem ar puro para respirar… mas a música continua.

Trecho de Uma fração do todo, de Steve Toltz

[chico buarque]

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Hoje se vendem menos discos. Faz diferença?

Não, para mim não faz. Tanto é que fiquei sabendo mais ou menos dessas novidades durante as conversas de lançamento do disco. Então me foi apresentado um projeto de lançar o disco pela internet e eu não conhecia nada disso. E aí eu fui conhecer a realidade do mercado. Eu andava longe disso havia cinco ou seis anos e não sabia que tinha mudado tanto assim. A previsão do lançamento de um disco é, em termos numéricos, muito inferior agora. Então, tentei compensar a gravadora, de certa forma, pelo investimento que ela fez, colaborando no projeto de lançamento deles. Internet e aquela coisa do site e tal. Mas isso não é assunto meu. Eu, na verdade, cheguei a uma altura da vida que não preciso mais do disco para sobreviver. Eu já tenho basicamente aquilo que eu preciso, não tenho grandes ambições. Já tenho certa estabilidade financeira e não preciso ficar muito preocupado com isso. Meus discos vendem direitinho, tenho direitos autorais aqui e lá fora. Os livros vendem mais do que os discos, inclusive [risos].

Trecho de entrevista de Chico Buarque à revista Rolling Stone Brasil.

[philip roth]

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“Levar seus livros de uma vida para outra não era novidade para Zuckerman. Em 1949, ele saíra da casa dos pais e se mudara para Chicago levando na mala as obras anotadas de Thomas Wolfe e o Roget’s Thesaurus. Quatro anos mais tarde, contando então vinte anos, deixara Chicago com as cinco caixas de papelão em que acondicionara os clássicos adquiridos a duras penas em sebos, e as levara para o sótão da casa de seus pais, onde ficaram durante os dois anos em que serviu o Exército. Em 1960, quando se separou de Betsy, foram necessárias trinta caixas para transportar os livros retirados de estantes que não lhe pertenciam mais; em 1965, ao se separar de Virginia, as caixas chegavam a quase sessenta; em 1969, mudou-se da Bank Street com oitenta e uma caixas de livros. Para abrigá-los, novas estantes de três metros e meio de altura haviam sido instaladas, de acordo com suas instruções, em três paredes do novo escritório; mas, embora já houvessem se passado dois meses e os livros geralmente fossem os primeiros a encontrar o devido lugar quando ele se mudava de um local para outro, dessa vez eles permaneciam nas caixas. Meio milhão de páginas abandonadas, intocadas. O único livro que parecia existir era o seu. E, sempre que ele tentava esquecê-lo, alguém se encarregava de refrescar sua memória.”

Trecho de Zuckerman libertado, de Philip Roth.