Cartas de amor

Superoito e as canções dos outros

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Sempre fico um pouco aflito na véspera do Dia dos Namorados porque (e talvez vocês ainda não saibam disso) me considero o mais infame, o menos elegante, o pior escritor de cartas de amor.

Não posso com elas. Tento vencê-las sim (porque delas não há como fugir), mas elas acabam me massacrando logo nos primeiros rounds, dobrando a minha resistência feito origami. Batalhas sangrentas, que comovem e fazem rir.

Isso porque, quando resolvo espirrar meus sentimentos no papel, sou tomado por uma atração quase magnética pelos lugares-comuns, e raramente escapo dos clichês mais medonhos. De tão adoçados, os parágrafos escorrem geleia de framboesa. São frases piegas, arrepiantes (no mau sentido), do tipo que não se encontra nem no romance mais recente do Nicholas Sparks.

O mais intrigante é que não noto sinais de evolução no meu traquejo com as cartas. Elas me matam de vergonha do jeitinho como me matavam aos 11, 12 anos de idade. Aprendi a dirigir automóvel e a comprar produtos de limpeza no supermercado. Mas o segredo de escrever cartas de amor com dignidade, cartas de amor adultas, ainda me parece tão misterioso quanto o tempero do frango xadrez que servem no China In Box (é suculento, recomendo).

E o problema está longe de ser só esse, só uma questão de não cair no ridículo: eu falho miseravelmente no desafio de usar palavras para resumir a complexidade, o grau, os níveis, os recheios e os tons do amor que eu sinto. O processo é tão penoso que às vezes me pergunto: sou um psicopata?

Ainda acredito que não. Mas me senti um pouco desalmado quando tentei investigar a linguagem apropriada para resumir os meus cinco meses de namoro. Nem preciso dizer que, com as bênçãos de Bono, ainda não achei o que estava procurando.

Foram cinco meses incríveis (clichê número 1), maravilhosos (clichê número 2), inesquecíveis (clichê número 3), que fizeram de mim um homem diferente (clichê número 4), que mudaram a minha vida (clichê número 5), que renovaram as minhas esperanças (clichê número 6) e que provaram o poder de transformação do amor (clichê número 7).

Sete lugares-comuns. Todos verdadeiros, e todos batidíssimos.

Neste caso, para não cair numa humilhação brabíssima, preferi amenizar o impacto dolorido da carta com um presente também muito pessoal: uma coletânea com músicas que, de certa forma, vão contando a história desses cinco grandes meses. Qual não foi minha surpresa ao perceber que as canções escritas por outras pessoas (e pessoas que nem conheço!) resolveram de uma forma muito mais galante (e mais digna!) a tarefa de resumir minhas emoções?

É. Pois é.

Quando ouvimos o CD – eu e minha namorada, num daqueles momentos mágicos da vida a dois (clichê número 8) – fiquei pasmo. Quase chorei, de tão tocado por versos e arranjos e melodias. Não sei se minha namorada ficou tão satisfeita com o presente (por precaução, dei dois livros e um CD), mas aquelas 12 faixas me pareceram tão adequadas, tão exatas, tão sábias que desconfiei – por um breve momento, já que não sou doido – o seguinte: alguma força estranha bagunçou meu HD enquanto eu grudava uma canção na outra. Foi uma espécie de trote, de epifania.

A mixtape parecia fazer tanto sentido que me deu calafrios: trata de sonhos e recomeços, paixões serenas e amores duradouros, as alegres tardes de domingo (quando estamos juntos) e as tristes manhãs de segunda (quando nos despedimos, já que o namoro é à distância), a distância que nos separa e todo o afeto que nos gruda um ao outro. Isso, mas não só isso. O disco acaba falando de coisas que estão nos manuais, nos dicionários, nas enciclopédias, nos tutoriais (e o efeito de iluminar o inatingível bateu principalmente nas faixas instrumentais).

Num primeiro clique, cheguei à conclusão inevitável: a música fala um idioma enigmático que, de alguma forma, explica para mim mesmo tudo o que eu sinto e tudo o que eu sou. Algo muito lindo. Num segundo momento, no entanto, comecei a considerar aquele jogo um pouco deprimente: eu havia criado ilusões, comparações distantes, códigos mui abstratos para garantir significados particulares a canções que não foram criadas para mim.

As canções sempre seriam, lá nas profundezas, dos outros.

Havia algo inusitado ali naquela experiência de ouvir o CD a dois: era como se algumas músicas só provocassem em mim a ideia de resumir o namoro, de explicar tudo. Era óbvio que minha namorada não conseguiria acessar todos os sentidos que, imaginava eu, existia naquelas músicas. E por que não? Tentei explicar os supostos significados, tentei compor um guia para o disco. Mas não parecia suficiente. Tomei um distanciamento dolorido, por fim: algumas das músicas, convenhamos, talvez não significassem coisa alguma para nós dois.

E a carta de amor que escrevi para ela, mesmo singela, certamente dizia muito mais sobre o que vivemos. De uma forma mais autêntica, talvez (apesar dos chavões).

Comecei a notar, então, dois movimentos conflitantes na minha percepção da música: a alegria produzida pela identificação com aquilo que é cantado (ou com a sonoridade da melodia, dos arranjos, do ritmo) e uma ressaca desconfortável quando noto que exagerei na dose, que inventei conexões sentimentais exageradas entre os discos e a minha vida. Que talvez nenhuma delas exista, de fato. Que uso a música tão somente como um recipiente onde projeto as minhas sensações.

Foi um Dia dos Namorados especialíssimo (e fora do comum, não apenas por ter acontecido num 13 de junho). No dia seguinte, no entanto, comecei a pensar com mais seriedade na minha relação (doentia?) com as canções dos outros. Concluí que talvez eu não devesse levá-las como uma questão estritamente pessoal. E que, para o bem da minha sanidade, seria melhor se eu enfrentasse sem tanto pavor as minhas cartas de amor. Textos singelos, mas escritos com as minhas palavras. E com um punhado de clichês, porque não sou de aço.