Working day and night

XX | The XX

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thexxAs bandas de Brasília deveriam fazer discos como este, não? O tipo de álbum que ressalta as lacunas entre acordes, o vazio que vive dentro das notas, as fendas abertas entre um verso e um refrão, o eco de um estalo eletrônico, o diálogo sussurrado e tenso entre dois vocalistas – um homem e uma mulher, aposto que trancados num quarto escuro.

Seria bonito. Não que tenha sido proposital, imagine. Mas esta estreia do The XX poderia muito bem servir de modelo para as bandas que tentam entender os ruídos brancos de Brasília. Ele parece até ter sido gravado entre as paredes neutras dos monumentos de Niemeyer, diante do horizonte infinito (no início da manhã). O disco todo passa uma sensação de incômoda polidez e organização que é a própria imagem de Brasília aos domingos. Ou de outra cidade como esta, se é que ela existe.

Sejamos menos específicos, então (já que os três leitores deste blog não moram na capital e, por isso, não têm nada a ver com isso): é um álbum londrino que cria uma atmosfera urbana, uma arquitetura musical de concreto e vidro – e habita esse espaço com sentimentos universais: amor, desejo sexual, saudade, hesitação. As programações eletrônicas de Jamie Smith criam um ambiente refrigerado, contemporâneo. Enquanto isso, o jogo de vozes entre Oliver Sim e Romy Madley Croft (boy meets girl) aquece a sala.

Não sei se estou soando abstrato demais (e perdão, turma: acho que perdi o hábito de escrever esses textinhos de blog e provavelmente todos sairão meio mancos daqui em diante), mas tento dizer que esta bandinha inglesa, cujos integrantes têm 20 anos de idade e ainda parecem adolescentes, consegue um tipo de equilíbrio que sempre pareceu raro no pop: encontram um ponto equidistante entre uma sonoridade em parte cerebral e um discurso emotivo, sensual. É o álbum de soul music que o Hot Chip tenta e ainda não consegue fazer.

Nada fácil, portanto. O bacana é que eles conseguem fazer com que a mágica pareça muito simples, até natural. Daí a graça do disco (que não é perfeito, mas surpreendentemente maduro). Notem que, até aqui, não falei sobre o hype criado em torno da banda, tratada pela imprensa britânica como a sensação de agosto. Vale sim notar que o quarteto foge do padrão vigente na ilha (não é grandioso, não se escora em guitarras aceleradas, não sofre de complexo de épico, não é feito para pistas de dança etc), mas esse é um caso em que o disco é mais interessante que o falatório criado em torno dele.

E é uma OBRA que acerta por fazer tudo “errado”. A banda demorou mais de um ano para gravar estes 38 minutos. Com a chave do estúdio, viravam madrugadas acertando mínimos detalhes das canções. Esse cuidado transborda no disco. Mais que isso, o que impressiona é a concisão. Numa entrevista, a banda contou que, na etapa final das gravações, resolveu reduzir todas as faixas ao mínimo, ao essencial. Limou todos os ornamentos, tudo. Daí a sensação de ouvirmos um disco tão enxuto quanto Kill the moonlight, do Spoon, ou o do Postal Service. Aqui, menos é verdadeiramente mais.

Essa economia de recursos produz pelo menos um efeito curioso: as músicas evocam certas referências (Interpol, Radiohead, até Chris Isaak e soft rock) de uma forma discreta, como se citasse delicadamente a obra alheia. A banda optou por produzir o disco talvez para procurar uma voz particular. Encontraram: por mais que lembrem outras bandas, faixas como VCR, Crystalised e Night time é deles e de mais ninguém. E são canções de difícil definição: não são electro, não são trip hop, não são pós-rock, não são shoegazing, ainda que lembrem um pouco todos esses gêneros.

E, por mais que seja um estilo ainda sujeito a uma ou outra obviedade (o lado R&B da banda não me parece bem resolvido, e a balada Shelter acaba soando um tanto genérica dentro do repertório), o disco serve como exemplo para bandas que não se contentam em seguir uma ou outra onda. Dá para perceber que eles tiveram muito trabalho para chegar a um resultado tão fluente e compacto, e que ainda assim dialogasse com o mundo onde vivem. Imagino o que aconteceria se uma banda de Brasília se dispusesse a esse tipo de aventura: formar uma identidade musical sólida e urgente dentro de uma cidade que parece um clarão luminoso, um sonho para todos e de ninguém.

Desse esforço sairia um disco talvez insuportavelmente triste, mas necessário.

Primeiro álbum do quarteto The XX. 11 faixas, com produção da própria banda. Lançamento Young Turks/Rough Trade. 8/10

BÔNUS TRACKS

mewNo more stories… | Mew | 8

Tai. Se não quiserem se inspirar no The XX (que, repito, é o retrato fiel da cidade), que as bandas de Brasília mirem os dinamarqueses do Mew. Eles inventam uma arquitetura de infinitas possibilidades e brincam dentro dela como se estivessem num playground coloridíssimo. É um disco tão ambicioso que soa até exaustivo, mas de uma coragem que anda em falta em qualquer lugar. Eles recuperam uma tradição perdida do rock progressivo (de fins dos 60, mais para o primeiro disco do Pink Floyd que para os que o sucederam) com um olhar distanciado, europeu (e por isso um tanto autoirônico e desencanado em relação ao pop), e um senso de aventura que chega a lembrar The soft bulletin, do Flaming Lips. Poucas bandas americanas do gênero demonstrariam tanta liberdade. Nem tudo é deslumbrante: as letras seguem pueris, por exemplo, e há vários trechos que acenam para a megalomania estéril do Muse. Mas tai uma banda que sabe o que quer, vai às últimas conseqüências e, quando tenta produzir hits (como Beach), acerta de tal forma que fica a impressão de que, com algum esforço da Sony, eles podem sim chegar a multidões. Seria uma praga, mas eu não me incomodaria.

2 ou 3 parágrafos | Up

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up

Sim, meus irmãos: gostei bastante, há trechos belíssimos, tive que enxugar os óculos 3D, não há concorrentes para a Pixar (com exceção de Miyazaki, que dá de lavada), etc e tal. Mas eu esperava um pouco mais deste Up (7.5/10).

Sinceramente, o filme me parece um pouco desconjuntado. Lembro que, num textinho antigo, escrevi que Wall-E mostrava o desejo da Pixar de arejar a animação digital com novas ideias, mas também deixava claro os limites dessas tentativas — já que, depois de uns 20 minutos iniciais bastante atípicos para o formato (cinema mudo e high-tech, com um pé no futuro e outro no passado), o longa ia se adaptando a uma narrativa convencional. Pois bem: Up é isso ao quadrado.

Pete Docter fez um curta-metragem extraordinário (a vida de um homem numa cápsula colorida, em melancólico 3D) que calha de servir de prólogo para um filme de aventuras exóticas que, aposto, minha prima de quatro anos de idade confundiria com Era do gelo 3. Nada tão trivial, no entanto. Ou esquecível, ok. Numa comparação muito estúpida, eu diria que a Pixar de Wall-E e Up é o Beach Boys de Today! (1965). Maravilha, mas ainda fico aqui no meu cantinho esperando dela um Pet sounds.

Eskimo snow | Why?

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whyAlopecia não é um disco que eu colocaria numa lista de 10 mais. Não.

Quando ouço, sinto mais apreensão que admiração. Nos conhecemos assim: eu passava por um momento difícil, com menos de 50% da minha capacidade intelectual, no meio de uma daquelas crises amorosas que transformam o mundo inteiro num chalé friorento, sem luz elétrica, fincado numa cidadezinha monótona povoada por 50 habitantes que nunca saem de casa. Notem meu drama: naqueles dias, quando ouvi o disco, eu literalmente estava numa cidadezinha silenciosa sem luz elétrica. E fazia frio, vê?

Para quem não conhece (e tudo bem se você não conhece, não é uma experiência muito agradável), Alopecia é o diário ensanguentado de Yoni Wolf, o vocalista, compositor e cérebro do Why?, quarteto californiano de indie rock (e “alternative hip hop”, diz o Wikipedia). Um disco arrancado a fórceps. Um testemunho. Um “break up album”. Um template para cartas de suicídio. Um buraco negro no espaço sideral. Um inferno. E mais.

Na época, meados de 2008, muita gente notou que o disco sugeria uma transição para o Why?. Há bandas que ficam cada vez mais experimentais e caóticas. E há o Why?. Yoni vai na contramão: quer refinar o estilo, enxergar com clareza o rosto refletido no espelho. Isso sem abandonar uma sinceridade sem estribeiras, pontiaguda, brutal de verdade.

Alopecia é um disco de sons inquietos, mas o golpe duro é verbal. Chamar os versos de confessionais é pouco: são quase doentios. E aposto que, se Yoni decidisse recitar o álbum num confessionário, o padre perderia a voz. É uma poesia perturbadora porque, em muitos momentos, nos deixa sem saber se ouvimos arte ou um grito de socorro. Ou as duas coisas ao mesmo tempo. Devemos aplaudir ou ligar para o 911?

Daí a apreensão.

A história não termina aí. Na época em que gravou Alopecia, o Why? abandonou no estúdio um punhado de canções que pareceriam deslocadas dentro de um disco tão febril, esquizofrênico. E, de fato, Eskimo snow (o “álbum de sobras”) soa mais polido e coeso que o anterior. Quase não há ecos de hip hop, por exemplo. O que se ouve é um ciclo de baladas psicodélicas (que lembram um pouco o início do prog rock, fim dos 60) com algo de folk e melodias floridas e irônicas na linha do Eels e dos discos mais recentes do Of Montreal. Ou seja: comparando com o que já gravou, o Why? está parecendo até uma banda de rock “normal”.

O curioso é que o disco se segura — não soa como uma compilação de lados B. Mas a maior surpresa é que Yoni guardou versos ainda mais cruéis, melancólicos. Se Alopecia era diário, Eskimo snow é blog. E, detalhe importante, um blog franco, adorável — January twenty something é uma das faixas mais doces que já gravaram, linda de matar. Mais que nunca, é fácil se identificar com a dor de Yoni — e, nesse processo terapêutico, o objetivo dele parece ser exatamente este: compartilhar, compartilhar, compartilhar.

Ao nosso herói, não falta determinação. “Eu quero verdades afiadas em cada verso”, ele diz, em The blackest purse. “Eu queria me sentir próximo de alguém, mas não sinto nada”, conta, em Into the shadows of my embrace. E continua: “Acho que o vizinho de cima ouve quando me masturbo. E há outro me observando no vão da cortina.” Devo rir?

Desabafos e mais desabafos depois, e já cansado de enfrentar a morte e o medo da morte em cada estrofe (e de notar que sempre uma rosa floresce nos detritos, em momento clichê), se explica: “Eu deveria me sentir constrangido por dizer tudo isso em público, mas às vezes precisamos gritar algo que não diríamos a ninguém.”

Certo. Abra um blog, Yoni.

Taí, então: o disco mais violentamente honesto desde Hissing fauna, are you the destroyer?, do Of Montreal. Não tão brilhante. Mas imperfeito, bizarro e tocante. Não vai entrar na sua lista dos 10 mais, mas te acompanhará madrugadas adentro. Em dias difíceis. E nos dias bons, como uma espécie de alerta de que o bicho-papão está atrás da porta.

Cuidado.

Quarto álbum do Why? 10 faixas, com produção da própria banda. Lançamento Anticom. 7/10

Superoito express (12)

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jay

Devo admitir que ando ouvindo menos discos do que eu gostaria. Não sei o que acontece: se o problema é dos álbuns ou meu, mas o desinteresse existe, me consome e é quase total. Mantenho uma distância segura do meu iPod e, nos momentos em que não sou obrigado, ouço música numa única ocasião: quando estou dirigindo. Até a casa da minha namorada, levo uns 20 minutos. Para ver minha mãe, uns 35. Ao trabalho, 15. Gravei um CD-R com uns oito disquinhos e ele roda incessantemente, há algumas semanas, no CD player do meu carro.

Minto: ouço música também quando estou no apê e o silêncio pesa novecentas toneladas. Mas aí são os meus standards, os-da-ilha-deserta, selecionados rigorosamente (ou, explicando melhor, os 15 CDs que cabem na única estante da sala). Neste exato momento, ouço XO, do Elliott Smith, e depois dele virá Oh inverted world, do Shins. Ontem foi Sea change, do Beck – e tai um disquinho duro, que sempre, sempre me emociona da primeira à última faixa.

Bem. Mas, como o jogo aqui é comentar discos relativamente novos, vamos aos que rodam no meu carrinho arranhado, encardido e fedorento.

Watch me fall | Jay Reatard | 8 | Um sujeito que é conhecido há mais de uma década como uma espécie de Julian Casablancas podre, um garoto-problema do underground, não tem o direito de lançar um álbum assim (e pela Matador Records!): doce, transpirando uma loucura tenra, encantado por new wave e bubblegum. Como aconteceu com o mais recente do Against Me! (e, vejam que coincidência, com XO, do Elliott Smith), Watch me fall tenta negociar chamegos com um público mais amplo sem abandonar a integridade. E consegue. Os fãs mais antigos podem até se incomodar com uma certa polidez recém-adquirida, mas Reatard é daqueles que soam espontâneos (e anárquicos, ainda que por linhas tortas – e que acabam lembrando o Frank Black de Teenager of the year) mesmo quando interpretam uma espécie de canção de amor com aparência de hit de seriado de tevê. No caso, se chama I’m watching you, e é uma das melhores do disco. Reatard tem 29 anos e, cá entre nós, a carreira dele começa de verdade aqui.

Farm | Dinosaur Jr | 7.5 | É bem verdade que o Dinosaur Jr praticamente renasceu há dois anos graças às bênçãos da Pitchfork (e a um bom disco, Beyond, que dava um brilho na sonoridade garageira do início dos anos 90 com letras menos ingênuas), mas é com este Farm que essa nova fase começa a ficar interessante. Além de mais confiante que o anterior (repare a duração das canções, muitas delas pra lá dos cinco minutos), o disco mostra uma banda disposta a se surpreender, por isso jovem – mesmo quando repete aquela receita de bolo que conhecemos tão bem. Talvez sob influência do selo Jagjaguwar, que adora uma distorção sem rédeas (vide Sunset Rubdown), eles se soltam e saem com algumas das jams mais sólidas que já criaram. Isso sem contar que é o álbum mais melodioso deles – e há canções de franqueza verdadeiramente tocante, como Plans e Over it, perigosíssimas para quem tem por volta de 30, 35 anos.

Lungs | Florence and the Machine | 6.5 | No início soou criminosamente estridente, e juro que tive que tentar várias vezes antes de desistir e jogar meu carro contra o poste. Sobrevivi, estou de pé (firme e forte) e, por isso, tenho cacife para afirmar seguramente que este disco fica cada vez menos irritante – e que Florence Welch não vive apenas de tributos a Dolores O’Riordan (e, quando a terceira pessoa fez a comparação, jurei que colocaria neste blog – é uma sacanagem, ok, é uma sacanagem óbvia, tá, mas não deixa de fazer algum sentido). O bacana, no fim das contas, é notar como Florence consegue segurar um disco que tinha tudo para soar como uma colcha de retalhos de clichês de rock-fêmea, já que foi confeccionado por três superprodutores e lançado pela Island Records. De alguma forma, ela se sobressai e vence o furacão. Tem pulso, a moça.

Horehound | The Dead Weather | 6 | Jack White parece estar numa berlinda: depois de um disco do Raconteurs que soava como uma versão superproduzido do White Stripes, agora ele apresenta um projeto que parece uma fita demo do White Stripes interpretada por uma banda de bar depois das três da matina. Moral da história: por mais que tente, White não é nem nunca vai ser David Bowie. O Dead Weather tem integrantes do The Kills (Alison Mosshart), do Queens of the Stone Age (Dean Fertita) e do Raconteurs (Jack Lawrence), mas adivinha quem dá as cartas? O mais curioso é que as duas primeiras faixas, que não foram compostas por White, soam como hits perdidos do White Stripes (ou sobras inacabadas dos primeiros discos do Led Zeppelin, o que dá na mesma). O caneco de ouro vai para Hang you from the heavens, a única que decola.

Discovery LP | Discovery | 6 | É uma piada e deve ser encarada como tal: Rostam Batmanglij (Vampire Weekend) e Wes Miles (Ra Ra Riot) brincam de gravar hits de FM, com bitocas para Mariah Carey (So insane), os vocais frágeis (no bom sentido) do Postal Service (Orange shirt) e uma versão robótica e desmiolada, mas muito engraçada, para I want you back, do Jackson 5, que acaba ecoando o Daft Punk de… Discovery. E tem auto-tune. Os indies só querem se divertir.

Humbug | Arctic Monkeys

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s2330379Choque de gerações. Aprendi o significado da expressão quando comecei a trabalhar ao lado de um jornalista pra lá dos 60 anos (ele não revela a idade, mas fiz as contas) que foi convidado para a cerimônia de batismo da Tropicália e muito possivelmente entrevistou Renato Russo quando o vocalista da Legião Urbana ainda comia papinha de maçã e usava fraldas descartáveis. Um repórter admirável, aliás.

Há uns três meses, dividimos a mesma estação de trabalho (a forma elegante como chamamos a bancada fina e acinzentada que ampara os computadores e toda a nossa tralha). Honestamente: não é a convivência mais tranquila que o Ocidente conheceu, mas nos esforçamos para manter um clima de compreensão mútua e solidariedade, na medida do possível. Ele tem manias que me incomodam – exige, por exemplo, que meus fones de ouvido sejam mantidos a pelo menos 50 centímetros do teclado que ele usa. Eu não posso reclamar: tenho tiques que não sei exatamente o quão irritantes soam.

O que nos une, de certa forma, é o amor obsessivo pela música. Ainda assim, mesmo quando é esse o tema em pauta, o diálogo trava. É impossível. Ele se esforça para entender as novidades que aparecem e desaparecem a cada 15 dias. Eu sou curioso, quero conhecer o passado e tenho uma tendência a colocar as experiências dos outros em perspectiva histórica. Sou tolerante, compreensivo, um bom filho e um amigo fiel. Sou quase um labrador. Mas, volta e meia, perco o ânimo quando ele deixa escapar uma daquelas perguntas que, para um repórter de música que nasceu ainda na primeira metade do século 20, são incontornáveis.

– Não consigo entender. Este mundo, as coisas,  música, tudo… Tudo anda tão… Veloz.

Eu sempre argumento com alguma reflexão zen do tipo:

– Tente encarar as coisas de uma forma mais desarmada. Elas são como são. É melhor entendê-las antes de tomar partido. Depois de entender o que acontece, aí sim.

– É, mas eu sei é que não gosto, não gosto mesmo disso, das coisas como elas estão.

E ponto. Não vejo como avançar na conversa.

Hoje o assunto voltou à baila. Eu estava escrevendo uma longa matéria sobre discos que foram lançados em 1969 e viraram clássicos. Ele aproveitou a deixa para voltar à tese de que, na música pop, nada, nada será comparável ao passado – que é belo, reluz e continua vivo, apesar de tudo.

– Fico até pensando: será que acabou?

Me esforço para mostrar que estamos numa época diferente, tão nova e estranha que às vezes, por uma questão de segurança, obriga que a tratemos de uma forma despreocupada. 1969 acabou. O sonho acabou, etc. E que há novos parâmetros em jogo. A velocidade como as novidades hoje se desdobram é um desses fatores. Tentei teorizar sobre o papel das gravadoras, que desabam aos poucos. E, finalmente, procurei sugerir que, num cenário de fragmentação total, a própria ideia de longevidade parou de fazer tanto sentido. O que importa, verdadeiramente, se uma banda de rock vai durar 30 anos e gravar 15 discos?

– Eu até entendo, Tiago, mas sou de uma época em que as boas bandas de rock eram as que duravam. Beatles e Rolling Stones ainda são Beatles e Rolling Stones. E fico com elas.

Acredito que foi aí, exatamente nesse ponto da conversa, que puxei da cartola o novo disco do Arctic Monkeys. Era um bom exemplo a ser usado, já que o repórter havia visto um show da banda (como eu disse, ele se interessa pelas novidades mais comentadas, e admiro essa disposição).

– O terceiro disco do Arctic Monkeys ainda não chegou às lojas. Na verdade, esse fato é irrelevante. Ele está na internet e por isso as pessoas já ouviram, comentaram, avaliaram. Gostaram ou odiaram, tanto faz. Acontece que esse evento, o lançamento do terceiro disco do Arctic Monkeys, já aconteceu. Já passou. Estamos prontos para o quarto disco do Arctic Monkeys, ainda que isso não nos preocupe tanto assim. Você entende a lógica da coisa?

– Entendo. Mas não tem graça.

Voltei para casa pensando nisso, nessa última frase do diálogo. Qual é a graça? Explicar um procedimento que me parece tão simples (baixar música, ouvir, opinar e seguir adiante baixando, ouvindo e opinando) virou uma tarefa complicadíssima. Sou dos que acreditam que a cultura pop vive um momento de transição, ainda dividida entre hábitos antigos e novíssimos. Todas as bandas de rock, por exemplo, entendem que a velocidade hoje se impõe – que não há mais tempo para que passemos seis meses diante de um disco novo, analisando cada acorde e formando opinião. Mas, simultaneamente, grande parte dessas bandas continua gravando álbuns à moda antiga – peças de arte concebidas para serem “lidas” como uma história com começo, meio e fim.

É aí que o Arctic Monkeys me parece um exemplo bastante interessante – mais até do que eu imaginava. Uma banda muito nova, de garotos que mal entraram na idade adulta. E um quarteto que é um símbolo forte desta época por alternar velhas e novas estratégias de criação e marketing. Trata-se de uma novíssima velha banda de rock (e há muitas outras; na verdade, essa ainda é a regra). Eles sabem lidar com a velocidade do tempo em que vivem (até de uma forma instintiva, já que cresceram metidos nesse turbilhão) e criam álbuns com uma lógica que vem dos anos 60 ou 70 – e que, por isso, fisgará o “antiquado” fã de rock.

Muitas das bandas da geração do Arctic Monkeys gravam álbuns que soam como compilações de singles. E não podemos acusá-las de nada, já que o mercado hoje pede que o negócio seja organizado dessa forma. O disco mais recente do Franz Ferdinand é um caso típico: um conceito rarefeito pontuado por duas ou três canções fortes. Talvez esse seja o futuro do pop (ainda não dá para saber), e talvez isso tudo nos deixe frustrados (nós, no meio do caminho entre os velhos e os novos hábitos, órfãos de tudo). Mas o Arctic Monkeys não se abala: e daí este Humbug, um álbum tão redondinho, tão íntegro e tão, de certa forma, ultrapassado.

E digo isso sem juízo de valor: ainda não cheguei aos 60, mas, nesse ponto, me sinto velho. Amo os álbuns à antiga. Eles me dão prazer. Ele fazem com que eu me lembre dos meus discos favoritos, dos vinis que formaram a minha personalidade, das “obras de arte” que eu tentaria criar se eu soubesse tocar guitarra decentemente. Sou um oldie.

Com toda segurança, afirmo que o Arctic Monkeys teria se saído muito bem no início dos anos 90. Ou no início dos 80. Ou em meados dos 70. Final de 60? A concorrência seria dura, mas eles dariam um jeito. Os ingleses insistem em colocá-los no trono do século 21, mas ainda não consigo encontrar o século 21 dentro do Arctic Monkeys. Quatro garotos que gravam álbuns tão corretos, tão econômicos e agradáveis… O que eles dizem sobre o mundo em que vivemos? Não ouço nada. As bandas-símbolo do século 21 teriam que soar, ao menos, esquizofrênicas, paranoicas, desnorteadas, cegas no tiroteio, incertas, quebradiças. Não são tempos confortáveis, vocês sabem.

Então esqueça: não compro o hype. Nunca comprei. Ainda assim, não me envergonho de encarar esta bandinha adorável da forma como ela sempre se apresentou para mim: como uma bandinha adorável. Os singles são eficientes, o vocalista é um letrista às vezes formidável, eles têm boas referências (e soam mais como Smiths que como Oasis) e seguem uma cartilha confiável (Beatles, alô?) que manda as bandas pop evoluírem de disco a disco. Humbug é uma evolução e, por enquanto, o álbum deles de que mais gosto.

Para gravar o disco, os rapazes britânicos tentam captar o som do deserto norte-americano com o aconselhamento espiritual de Josh Homme, do Queens of the Stone Age (e agora, algumas horas depois de ter escrito este texto, concluo que esse trânsito suave e despreocupado por diferentes culturas, cenários e referências conta como um traço contemporâneo da banda). Aposto que eles gravaram tudo num estúdio nada charmoso, mas me encanta a ideia de um Deserto Norte-Americano engolindo as sessões de gravação. As canções batem assim: rodeadas de fantasmas, chapadas de sedativo, com ecos e ruídos que só não soam exatamente sombrios porque esta não é uma banda sombria (eles soam como sempre soaram: estão se divertindo a valer, a vida é boa e o rock não vai morrer).

Em síntese: exatamente o que eu esperaria de um disco do Arctic Monkeys produzido pelo Josh Homme. Os versos, doidos de dar dó, cheiram a mescalina. As duas primeiras faixas, aliás, me deixam com um sorriso de orelha a orelha. Crying lightning é um belíssimo single, que vai crescendo até explodir em guitarras repetitivas e enfezadas, que deve agradar principalmente a quem adora Queens of the Stone Age (e rock britânico psicodélico do fim dos anos 60, lembram do segundo volume do box Nuggets?). Seria um hit estrondoso em 1998. Outras faixas são um pouco menos luminosas, mas o álbum só tem 10 delas, passa rápido e, logo ali, repare na balada que confirma Alex Turner como o novo Morrissey, doa a quem doer (Cornerstone, linda toda vida).

É um bom disco que será tratado, pelo menos por algumas semanas, como o melhor dos mundos. Talvez essa seja a grande diferença, se compararmos o nosso tempo com 1969 ou 1979 ou 1989 ou 1999. Antes, engolíamos uma massa industrial de incríveis novidades até o fundo da garganta, por longos períodos (passei um ano inteiro decifrando Be here now!). Hoje, podemos digerir rapidamente o hype, cair de cansaço e experimentar outras extraordinárias novidades, e daí em diante, até descobrir algo que nos acerte na barriga e nos deixe zonzos. Algo forte. Algo que, para nós, soará verdadeiramente fascinante (nem que, vá lá, por algumas semanas).

Somos uns sortudos, não? Estou começando a acreditar.

Terceiro disco do Arctic Monkeys. 10 faixas, com produção de Josh Homme e James Ford. Lançamento Domino Records, Warner Bros e EMI. 7/10

Arraste-me para o inferno

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Drag me to hell, 2009. De Sam Raimi. Com Alison Lohman, Justin Long, Lorna Raver e Reggie Lee. 99min. 7/10

Imagino que o trailer de Arraste-me para o inferno foi criado para soar engraçado. Não foi? Depois de esquartejar o filme numa centena de pedacinhos sangrentos e nojentinhos, a peça publicitária encerra com o alerta de que o público verá o “retorno do verdadeiro horror” (ou algo assim, nessa linha apocalíptica e boboca).

Não me peça para explicar o sentido de “verdadeiro horror”. Mas, descontado o exagero, entendo o raciocínio de quem produziu o teaser: numa época em que o gênero parece ter se transformado em playground para uma gentalha oportunista do naipe de Michael Bay (mais um remake anódino de slasher-movie e aposto que as calotas derreterão mais aceleradamente), talvez a equipe de publicitários da Universal Pictures tenha apenas imaginado uma forma de nos alertar que veríamos um filme de horror genuíno. Digamos.

Ainda assim, eles estão um tanto quanto errados: Arraste-me para o inferno me parece um terror café-com-leite, concebido para um público que era fã do gênero aos 12, 13 anos de idade – mas que hoje, aos 30, só consegue encará-lo como uma brincadeira inofensiva. Um metahorror. Um terrir na tradição de Fome animal, de Peter Jackson, e da terceira sequência que o próprio Sam Raimi dirigiu para Evil dead, de 1981.

Escancaradamente, e com doçura e bom humor, o diretor nos convida para um trem-fantasma de segunda mão, que revisa a própria trajetória no gênero (e fica a impressão de que, nas idas e vindas ao dark side, Raimi passou três décadas dirigindo o mesmo filme de terror): em Evil dead, cinco amigos eram atormentados por demônios, à solta num chalé infernal. Aqui, uma funcionária de seguradora é amaldiçoada por uma cigana, que provoca todo tipo de alucinação macabra contra a pobre alma.

Seria mais ou menos o mesmo filme, ou uma sequência bastante fiel àquele filme, não fosse por um detalhe: entre Evil dead e Arraste-me para o inferno, Raimi cresceu, amadureceu (também como cineasta, ainda que isso não conte tanto quanto parece), dirigiu três episódios de Homem-Aranha e firmou-se como um dos diretores de entretenimento mais eficientes e poderosos de Hollywood. O novo filme mostra, no mínimo, a distância que separa o autor de 2009 daquele que apareceu em 1981.

Para os fãs do original (estou entre eles) e do cinema de horror dos anos 1980, propõe uma experiência que, sim, é irresistível: olhar no retrovisor da cultura pop e rir da paisagem refletida. Não sei se faz tanto sentido para um público que hoje tem 15, 16 anos. Na sessão em que vi o filme, a maioria simplesmente não entrou no jogo. Entendo a reação: o longa de Raimi mira uma geração específica, que cresceu assistindo a fitas VHS de O exorcista, A profecia e Poltergeist – para sorte dele, a maior parte dos críticos em atividade faz parte dessa turma.

Nesse ponto, o projeto é explícito: abre com uma vinheta retrô da Universal; em vez dos serial killers desmiolados, o diretor aposta no horror do sobrenatural (um nicho meio démodé). O uso excessivo de efeitos sonoros, que martela todas as cenas de susto, os litros de gosma verde-limão, a heroína naive (num determinado momento, ela é descrita apenas como uma “mulher de bom coração”, e é o suficiente)… Tudo conspira para uma homenagem distanciada (já que satírica) a uma onda do cinema de horror que ficou perdida lá no início dos 80.

É um flashback divertido, mas que deixou em mim um certo incômodo. O esforço de Raimi parece um tanto estéril: ele não dirige um “verdadeiro horror”, mas um horror pela metade, que conhece os códigos mais superficiais do gênero, mas teme um mergulho profundo no lodo, na angústia, na agonia. Li numa entrevista que Raimi tem medo de fitas de terror. Este é um filme um tanto amedrontado – talvez receoso de dar um passo além e de perturbar verdadeiramente o espectador (o espírito do gênero não seria esse?).

O que fica é uma piada até engraçada, conduzida com segurança e boas intenções por um cineasta que brinca num cercadinho muito seguro e tranquilo. Os 15 minutos finais, antes do desfecho, lembram mais para o tom à Charles Dickens de Homem-Aranha que a arruaça adolescente de Evil dead. Para quem acompanha o diretor, é interessante notar como um autor correto e adulto lida com um projeto despretensioso – não dá muito certo, mas é uma tentativa reveladora.

E que, no mais, resulta num filme de verdade, vivo – e isso, sabemos muito bem, é quase uma anomalia dentro do nosso circuito-zumbi.

Superoito express (11)

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Vocês devem ter percebido: o blog agoniza. Alguns disquinhos que ando ouvindo (só para não perder o hábito).

Time to die | The Dodos | 7 | Me faz pensar no quanto estamos acostumados a não sermos surpreendidos por nossos ídolos. Time to die é quase o oposto de Visiter, o álbum que revelou o Dodos em 2008 – e por isso, apenas por isos, pode soar estranho (e olha que nem comecei a falar sobre o novo do Arctic Monkeys…). Se aquele era um disco expansivo, um bloco de rascunhos com (lindas) arestas de ideias, o novo sai em busca de precisão, coesão. É outra história. O produtor, Phil Ek, arredonda o som da banda (agora um trio, com vibrafone) da mesma forma como havia feito com o Band of Horses (produziu os dois discos deles), o Shins (Chutes too narrow) e o Fleet Foxes. Pode parecer menos desafiador – e mais compacto, ordinário -, mas garanto que, com algumas audições, faixas como The strums e (principalmente) Fables começarão a soar tão surpreendentes (e aventureiras, repare na sobreposição nervosa de violões, vibrafone e percussão) quanto as do álbum anterior. Em síntese: um irmãozinho imaturo, mas bastante simpático, do Grizzly Bear. 

Ambivalence avenue | Bibio | 7.5 | Até agora, eu desconhecia completamente o produtor britânico Stephen Wilkinson, o Bibio – tudo o que eu lia sobre ele me desanimava (resumindo: muita gente boa o comparava aos imitadores da eletrônica in natura do Boards of Canada e Four Tet). Ambivalence avenue me deixou com vontade de fuçar os outros álbuns do sujeito. O disco, lançado pela Warp Records, oscila entre o folk cru e uma eletrônica desencarnada, mas espanta mesmo quando combina esses dois extremos com uma pegada emotiva, doce e doméstica (aposto que até Jack Johnson adoraria faixas como Lovers’ carvings). Chega a lembrar o transe sixties de Andorra, um disco do Caribou que eu adoro. Não é tudo aquilo, mas chega perto.

Catacombs | Cass McCombs | 7.5 | Outra boa descoberta: um trovador de carreira longa (já tem cinco discos) e que, como o Bibio, resolveu lançar um álbum mais direto e franco. No caso, Cass compõe uma declaração de amor muito tocante à esposa dele. Os versos são tão pessoais que provocam até algum constrangimento: é como se grudássemos o ouvido na porta para ouvir uma conversa íntima. Duas das canções são tão fortes (Dreams come true girl e You saved my life) que sustentam o disco inteiro (e o desfecho, com Jonesy boy e One way to go, é quase singelo, sem tanta sofisticação, mas também adorável). Perfeito para quem, como eu, sente saudades dos projetos solo do Archer Prewitt (ou dos últimos capítulos de John Lennon).

Telekinesis! | Telekinesis | 6 | É curioso que a Merge Records (casa do Arcade Fire, Spoon, Caribou) tenha apostado num projeto unidimensional desses, ora lembrando os primeiros discos do Weezer, ora Strokes. Produzido por Chris Walla (do Death Cab for Cutie), a estreia de Michael Lerner (o faz-tudo do Telekinesis) só faz sentido quando se entende as limitações de uma sonoridade muito à vontade com clichês de indie rock. Dito isso, é mais enérgico que a média.

Skyscraper | Julian Plenti | 5 | Paul Banks se esconde sob um pseudônimo, mas acaba soando exatamente como aquele vocalista do Interpol que conhecemos tão bem. O álbum tem a aparência de uma coletânea de lados B, pouco arriscado (nos momentos de maior ousadia, como a faixa-título, Banks nos revela que anda ouvindo Bon Iver e só) e até cansativo. O single, Fun that we have, mantém a atmosfera do terceiro álbum do Interpol: canções melancólicas para o fim de uma festa.

La Roux | La Roux

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rouxDizem que não devemos avaliar discos quando estamos nos sentindo miseráveis e agoniados. Pois bem: estou triste (muito triste) e irritado (mais ou menos irritado, dependendo do momento do dia), mas algo acontece quando ouço os discos do La Roux e do Little Boots. Se entendo o meu corpo direito, eles provocam reações físicas: apertam minha barriga até quase me levar às lágrimas e depois me confortam com teclados iluminados, melodias antidepressivas e refrãos com sabor de xarope de morango. É como se nada, absolutamente nada estivesse por um fio. Ainda que esteja.

São tempos difíceis, meus amigos.

Mas vamos aos discos, que eles curam: o primeiro, aviso logo, é superior ao segundo. La Roux é uma dupla de electropop da Inglaterra com uma fixação por hits dos anos 1980 – de Yazoo a The Human League (passando por figurões como Prince e Depeche Mode), eles devoram tudo o que era lixo e hoje é um luxo. Num sistema solar habitado por Phoenix e Cut Copy, não é um flashback exatamente inusitado (e este não é um grande álbum). Mas limitar a banda a essa referência é muito pouco, é uma besteirada, já que existe um mulherão deitado nessa cama sonora. E ela se chama Elly Jackson.

Bem Langmaid, o produtor e compositor do La Roux, é o principal responsável pelo som retrô-chic, bem-humorado da dupla (que, nos trechos mais inspirados, lembra os hits mais irônicos do Daft Punk e alguma coisa de Air, Miss Kittin e Annie). Mas é Elly Jackson, a fã de Carole King e Nick Drake, quem tira esse estilo do quarto de brinquedos e infla os acordes de angústia – e aí é sangue mesmo, não é mertiolate (e Karen O tem muito a invejar, no caso). É ela, e só ela, quem faz desse o disco de dance music uma pilha de nervos – e um dos lançamentos mais interessantes do ano com o selo de uma grande gravadora (se bem que há pouquíssimos concorrentes nesse nicho).

O álbum narra uma saga extremamente banal (por isso real) de inseguranças, neuras, algumas alegrias e pequenos desastres amorosos – daqueles que vivemos de vez em quando, mas machucam feito gastrite. “Pontos finais e pontos de exclamação. Minhas palavras derrapam antes que eu tente começar”, ela avisa logo na primeira faixa, In for the kill (e, mais adiante, diz que está nessa “só pelo frio na barriga”). Em Colourless colour, a melhor do álbum, ela lembra dos anos 1990 como um deserto existencial. “Queríamos nos divertir, mas não havia nada mais para brincar”, lembra. E continua: “Quero fugir para sentir o sol na minha pele”. Uma canção tão descartável deveria soar tão verdadeira?

E Cover my eyes é diário de adolescente, tolinho que só: “Quando eu te vejo andando com ela tenho que cobrir meus olhos. Toda vez que você sai com ela, algo dentro de mim morre”, Elly canta. E, entre teclados à Strangelove, é logo acompanhada por um coro de crianças que encontraríamos numa baladona do Michael Jackson à época de Dangerous. Só ouvindo.

Little Boots não soa tão excitante, ainda que também provoque o efeito de um analgésico. O projeto de Victoria Hesketh (outra britânica, outra mulher à beira de um colapso) peca pela afobação: o álbum de estréia, Hands, é desnecessariamente superproduzido (faz a estréia do La Roux parecer um ensaio sobre o minimalismo). São nove produtores (!) – mãos para todo lado. Fica até difícil enxergar uma linha narrativa no álbum, que oscila do electro ao hip hop norte-americano de FM, já que cada canção parece esgotar totalmente suas possibilidades, deixando o espaço aberto para a próxima aventura. Ainda assim, não entendo o disco como um desastre (se isso é um desastre, o que é Lady Gaga?), mas sim como um esforço descontrolado de provocar uma boa impressão.

Uma bobagem. Mas não qualquer bobagem. E vá por mim: experimente nos piores dias.

Créditos
La Roux | La Roux (Polydor, 2009) 7.5
Hands | Little Boots (Atlantic, 2009) 6

Superoito e os primeiros parágrafos

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Imaginei que seria uma boa idéia escrever sobre o medo de voar. Outro dia, não lembro quando, eu estava esperando por alguém no saguão do aeroporto. Não sei quem estava para chegar, se minha namorada ou minha mãe ou a mãe da minha namorada, mas o fato é que alguém estava para chegar e eu estava esperando . Havia muita gente no saguão e todos pareciam ansiosos. Eles roíam unhas numa espécie de coreografia. No mais, torciam para que nenhum Boeing despencasse em mil pedaços, pelo menos não nos próximos 60, 80 minutos.

Adianto que nenhum Boeing caiu. O importante foi que, no meio daquele mundaréu à beira de um ataque de nervos, vi um rapazinho de uns 14, 15 anos, que parecia tenso, mas por um motivo mais nobre. Ele estava de cabelo muito bem lambuzado de gel, o cheiro de perfume estava nos matando e, para deixar a situação toda mais surreal, o moleque andava de um lado para o outro do setor de desembarque com um ursinho de pelúcia pendurado pela pata. Que cena!, pensei. E fiquei esperando o desenrolar da história – já que, como vocês sabem desde criancinhas, sou um dedicado espectador da vida alheia.

Ouvi um diálogo rápido entre o menino e o pai do menino. O garoto queria ficar sozinho. Logo entendi o drama na íntegra: o guri estava prestes a se encontrar pela primeira vez com uma menina linda e irreal que ele (muito possivelmente) conhecia apenas pela internet. Pensei: será isso? Era. Depois de 20 minutos de suor escorrendo no rosto e o maldito ursinho balançando repetidamente no ar, indefeso (coitado), a guria desembarcou e criou-se uma atmosfera de suspense no saguão: será que sim? Será que não? Paramos todos de pensar nos aviões despedaçados e nos concentramos naquela história de amor meio bamba, meio boba, mas muito verdadeira, do tipo que os filmes não nos entregam mais.

O que aconteceu, em resumo, foi isto: o menino escreveu o nome num pedaço de cartolina, que a menina leu do outro lado do vidro. Ela acenou, ele acenou. Eles se examinaram à distância, já que as malas demoravam para chegar e era uma agonia. Já com a mochila cor de rosa e a maleta preta, ela olhou o garoto bem de perto, trocaram algumas palavras que ninguém mais ouviu, ele encostou a mão no ombro da musa (e não é que era uma musa bastante típica, beleza grega etc?) e enfim se beijaram. Tudo ok. Céu de brigadeiro. Expectativas correspondidas. O saguão do aeroporto soltou em uníssono um sonoro suspiro de alívio. Nossos corações tremeram. E, naquela tarde, nenhum Boeing caiu.

Não é bonito? Essa história aconteceu de verdade, exatamente desse jeito como a conto, e ainda me impressiono com a forma como ela guarda tantos sentidos ocultos. Por exemplo: é possível traçar um paralelo entre o medo de voar, que contaminava o saguão do aeroporto, e o medo de um não – o risco e a recompensa pelo risco. O alívio que sentimos quando o voo finalmente chega seria semelhante à forma como nosso peito se enche de ar quando somos correspondidos? Vá saber. Só sei que estou pensando nessa história desde que comecei a escrever crônicas para o jornal onde trabalho. Isto é: há três semanas.

Vocês querem saber como estou me saindo nessa tarefa? Terrivelmente mal, amiguinhos. Terrivelmente mal. Se eu soubesse que as coisas seriam assim, eu nunca, nunca teria dito sim para esse oh tão inglório desafio que tira o meu sono, polui minha mente, corrompe a minha inocência literária e impede até que eu escreva para este blog que tanto amo. Culpem as assustadoras crônicas pelo bloqueio criativo que me atazana há três semanas. É tudo por causa delas. Absolutamente tudo. Eu queria escrever três, cinco posts por noite, mas elas não deixam e eu sou fraco, não consigo lutar.

Verdade. Desde que comecei a escrever crônicas, meu mundinho tomou um choque elétrico. Até agora, escrevi duas. A primeira, um desastre atômico. A segunda, um desastre. A sorte é que quase nenhuma pessoa conhecida leu os textos (e aí descobri que os repórteres nem passam o olho no jornal que escrevem, já que, notando minha crônica lá na página, certamente alguém me provocaria por puro sadismo e nada além de puro sadismo). Fiz questão de não anunciar nada. Entrei e saí da redação morrendo de vergonha e pânico, mas me portei como se nada de extraordinário tivesse acontecido. Uma forma muito elegante de fracassar.

A primeira crônica, muito oportunista, foi sobre o dia em que Michael Jackson passou por Brasília, em 1974, num show do Jackson 5. Tentei reconstruir a cena e inventar algumas coisas, num mix de jornalismo gonzo com devaneios de um blogueiro estúpido. Não deu em nada. Não gostei do resultado. Li depois e quase tive um troço: um textinho sem paixão, sem ritmo, sem humor, todo travado diante da multidão, uma crônica com dor de barriga e mãos suadas.

Depois escrevi aquele texto que anunciei aqui no blog, sobre o menininho encabulado que desenhava na rodoviária. Ficou um pouco melhor. O título me agradou bastante (“O menino invisível”, e com duas ou três possibilidades de leitura, vejam só a evolução). Consegui me colocar no texto com um pouco mais de desenvoltura, criei umas brincadeiras metalinguísticas com o “eu lírico” (eu quando estagiário), a história do menino era a história de quando eu tinha 12 anos, mas detestei o desfecho derramado e desamarrado, com uma construção de frases chorosas e apelativas. Não entendo por que, em todos os meus textos, me obrigo a escrever frases como “não sei”, “não me pergunte”, “não há como saber”. Qual a função disso? Criar uma pose de coitado? Cobrar do leitor piedade, leitor, piedade? As pessoas devem ler e suspeitar que sou simplesmente um ignorante.

O engraçado foi que, nesse último caso, eu esperava alguma resposta dos meus colegas. Nem que algo do estilo “boa tentativa, Tiagão, mas você é uma bichinha chorona”. Mas o que aconteceu foi… nada. O silêncio. Novamente, ninguém leu. Dos leitores do jornal, então, nem um único e-mail de repúdio. Minto. Leram sim. Uma pessoa. Que me deixou muito feliz com um elogio sincero, e é aí que você descobre quem são seus amigos. Mas passei o dia meio decepcionado com aquela não-reação. Então é isso? Você dá o sangue para escrever 37 linhas (e um título de duas palavras!) para, no fim das contas, receber a total indiferença? Mamãe, não quero ser cronista quando eu crescer.

O que, moral da história, só ressalta todo o desastre. Minhas crônicas são tão atraentes e inspiradoras que as pessoas nem começam. Ainda que, nesses casos, eu realmente preferiria que ninguém lesse. Que se concentrassem nos obituários ou num outro tipo de prosa agradável. Os furtos de carros. O trânsito caótico. As reformas no viaduto. Os ipês que florescem na seca. Ninguém quer saber sobre o menininho ridículo que vende balas na rodoviária e ninguém certamente quer saber sobre o modo como eu conto a história do menininho infeliz – e ficamos assim, distantes; eu aqui, o leitor lá.

O problema (para mim) é que é tudo muito difícil. Tudo dolorido de tão difícil. Escrever uma crônica de exatas 37 linhas para pessoas que desconheço completamente… Por onde começar? O primeiro parágrafo é sempre o mais complicado. Não sei o tom a ser adotado. Devo ser mais informal? Devo chegar chutante a porta e forçando amizade? Devo contextualizar de uma forma, er, poética? Devo fazer referências vazias de cultura pop (talvez esperem isso de um repórter de cultura pop)? Posso citar Salinger? E Paul Auster? E a Bíblia? E o Corão? E os provérbios chineses, que sempre salvam o dia? Quanto mais escrevo, mais percebo que deveria permanecer calado.

Antes de rabiscar essas crônicas, dei uma olhada na obra dos cronistas que me antecederam. Tentei copiar o estilo de cada um deles até compor um texto cheio de piscadelas de olho e referências safadinhas a textos publicados anteriormente. Aí percebi que essa era uma forma covarde de me esconder da plateia – e isso me lembrou do dia em que minha irmã, mais tímida que eu, convidou a família para assistir a uma peça de teatro em que atuaria. Quando vimos, o papel da garota era uma árvore. Eu sorri. Minha irmã, quando se esforça e quando quer, é brilhante.

Escolher os temas é árduo, vou te contar. Falar sobre o quê? Dá branco. Tenho medo de mostrar ao mundo que só consigo imaginar histórias meio tolas sobre meu passado, meus cachorros e meu umbigo. Sou uma fraude. O rei está nu. As crônicas me obrigaram a pensar no meu futuro como escritor de romances (e, agora vocês sabem, é assim que me vejo daqui a dez anos), e tudo o que vi foi breu.

Pensei tanto (e este parágrafo é importante, atenção!) que cheguei à conclusão de que meu tema será a adolescência e que, talvez por isso, escrevi uma crônica sobre o pequeno Michael Jackson, uma outra sobre um pequeno vendedor de doces com talento para a pintura e planejo uma terceira sobre um pequeno moleque apaixonado no saguão de aeroporto barulhento.

Talvez o tema tenha me encontrado antes do dia em que percebi que ele estava logo aqui. Não sei (e nisso sou sinceramente ignorante). Mas decidi que preciso iluminar esses personagens. Essa turma. Essas criaturas imaturas e indecisas que não conseguem mirar o espelho e que têm medo e que não sabem exatamente o que são ou o que deveria ser. Essa gangue. Essa faixa etária. Esse universo. É sobre eles que devo escrever e, quando a ficha caiu, me senti um tanto mais tranquilo. As crônicas são a versão imperfeita, tosca e envergonhada – a versão adolescente! – de quem eu quero ser, como escritor, em dez ou quinze anos. E todo começo é um começo.

Eu estava pensando nisso e em outras questões essenciais quando soube que um sujeito de vinte e poucos anos bateu o carro numa mureta e morreu. Era sete da noite. Eu não o conhecia direito, mas conhecia suficientemente para sentir por alguns minutos o que invade nosso corpo quando alguém morre: aquele vazio gelado, o salto no precipício gelado, e depois todas as perguntas que ficam guardadas à espera de um clique gelado. Qual o sentido disso tudo? Para que fazemos o que fazemos? Por que levamos a vida deste jeito? O que queremos de nós mesmos?

Pensei em escrever uma crônica sobre isso. Mas só tenho mais uma esperando na fila. E depois serei um homem livre.

Superoito express (10)

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Ou: por que a crise da indústria musical é um tédio.

Lines, vines and trying times | Jonas Brothers | 4 | E a triste história vai assim: Nick, Joe e Kevin eram três adolescentes ingênuos e serelepes que, apesar de bastante satisfeitos com o confinamento numa interminável sitcom do Disney Channel, ouviram os conselhos dos executivos errados e resolveram… bem, resolveram crescer. O resultado dessa jogada comercial meio apressada é um disco que soa como um longo, aborrecido especial da VH1. Eu, que gosto do power pop abertamente juvenil de A little bit longer, não passei da terceira audição. O excesso de sopros e teclados nos leva a um canto dos anos 1980 que deveria permanecer (para sempre) pouco iluminado. E não sei ainda o que o rap Don’t charge me for the crime embaça mais: a carreira dos Brothers, a reputação de Common ou todo o staff incompetente da Hollywood Records (um galho da Universal, vale lembrar)? Meu conselho: continuem imaturos.   

Music for men | Gossip | 5.5 | Não vou negar o carisma de Beth Ditto, uma band leader que me parece imensa em absolutamente todos os sentidos. Mas, por aqui, o Gossip continua soando como aquela banda do single espetacular (quando decidirem que você deve pagar mico como DJ, vá por mim e não esqueça de Standing in the way of control) e de álbuns inconsistentes. Este é o mais frágil de todos, e uma típica estréia em grande gravadora: a produção de Rick Rubin lima o descontrole que coloria o som do trio, agora sem as arestas punk e atado a um formato glam dançante e “sensual”  (entre aspas mesmo, já que a coisa toda soa mais fria que a morte). O primeiro single, Heavy cross, é uma diluição de Standing in the way of control — uma estratégia bem comum entre novatos amedrontados com a indústria. Nossa sorte é que a Columbia ainda não conseguiu submeter Ditto a uma dieta radical de carboidratos — ela (e pelo menos ela!) segue em forma.

Love vs. money | The-Dream | 6 | O melhor álbum desta listinha deprimente (e o único que recomendo a vocês, ainda que sem muito entusiasmo) é o novo projeto conceitual do produtor de Umbrella, também conhecido como Terius Hagert Youngdell Nash. Ao lado de convidados como Kanye West e Mariah Carey, The-Dream narra um palpitante melodrama pop sobre as tantas e doloridas maneiras como o dinheiro mata o amor e o amor é maior que o dinheiro e o dinheiro não compra o amor e o amor sem dinheiro vale mais que dinheiro sem amor. Etc. Um tanto monotemático, certo? Mas a crítica mainstream adora (e dá até pena ver revistas que já foram consideradas relevantes transformando o Jonas Brothers ou a Lady Gaga em artistas respeitáveis, mas este é o nosso mundo) e eu entendo o porquê do falatório: se o pop anda em busca de um salvador da pátria (e vamos lembrar que Michael Jackson já havia nos deixado há uns bons 30 anos, ok?), The-Dream parece uma opção até razoável. Ele tem tino para a melodia (Right side of my brain é um baita algodão-doce) e é um romântico incurável. Tem muito dinheiro, certo. Mas canta o amor com certa franqueza (na medida do possível — este é um disco da Def Jam). Meu voto é dele.

The fame | Lady Gaga | 4.5 | Ah, sério?  Quando descobri que a Nova Musa do Pop era aquela que cantava praticamente todos os cinco hits vagabundos que rodam incessantamente nas academias de ginástica e estações FM (e descobri tarde, mas não perdi quase nada), fiquei com saudades dos momentos mais açucarados da Kylie Minogue. Há quem encontre influências de David Bowie e Queen, mas suspeito que elas tenham contribuído mais para a performance da moça e menos para a sonoridade de um disco que dilui a cartilha do electropop (letras sacanas e engraçadinhas sobre celebridades lindas, sujas e ricas) num modelito pop “para pistas” que não machuca ninguém. Provavelmente eu deveria ouvir mais vezes, mas prefiro acreditar que o delírio coletivo vai acabar passando e, em dois anos, todo mundo estará novamente mais interessado no novo da Madonna.

Wait for me | Moby | 5 | Por último, um disco que soa como uma coletânea de bonus tracks. Pobre Moby: hoje em dia, a grande ambição do sujeito é fazer um álbum mais ou menos parecido com Play. Engraçado ler a chamada da Folha de S. Paulo: “no novo disco, Moby mistura eletrônica com soul music”. E não é o que ele sempre fez? Um editor mais honesto pouparia o eufemismo e lascaria logo: “no novo disco, Moby mistura seus discos mais recentes com os discos que gravou há algum tempo”. É mais ou menos por aí: um projeto mais introspectivo e caseiro que os anteriores (ok, melhor que os anteriores), mas tão óbvio e aguado quanto tudo o que ele lançou desde Play. Uma pena, já que o primeiro single (a instrumental e sombria Shot in the back of the head) sugeria um desvio de rota. Não é bem isso. Na verdade, é quase nada.

I’m going away | The Fiery Furnaces

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ff_going_press.inddEu não estou otimista.

Tudo bem, admito: eu não sou um sujeito otimista. Naturalmente vejo problemas onde deveria encontrar soluções, complico o que poderia ser simples e caço motivos para me sentir miserável. Talvez eu goste de me ver como uma pulga infeliz, desprezível, para sempre abandonada num mundo cruel. Agora mesmo, reparem, estou ouvindo Elliott Smith, trancado no meu apartamento friorento, me sentindo melancólico por alguma razão obscura. “Going nowhere”, o defunto canta. E eu não posso fazer nada além de concordar com ele.

É isso aí, chapa. A vida é dura.

Encontro as pessoas na rua e elas dizem que eu deveria me sentir bem. Tenho um emprego. Tenho a melhor namorada do planeta. Ganho um salário que paga o aluguel do apê e o pão e o suco de laranja e detergente e os outros produtos de limpeza. Não estou quebrado (por enquanto). Não fui demitido (por enquanto). Não estou totalmente sozinho (e taí uma perspectiva que arrepia minha nuca). Minha existência faz perfeito sentido nos momentos em que não penso na minha existência.

Mas deixemos esse papo sombrio de lado. Já que, oba!, o Fiery Furnaces, uma das bandas que moram no meu coração de papelão (e deixo isso bem claro, antes que me acusem de bajulação explícita, babação de ovo e outros crimes afins), está com disco novo.

E eles estão otimistas.

Aparentemente, pelo menos. Quando penso em Matthew e Eleanor Friedberger, prefiro sempre desconfiar de tudo. Sabemos que os irmãos dividem o gene da ironia e da dissimulação. Será que eles falam sério? Será que eles já falaram sério alguma vez na vida? Ouvi este I’m going away pela primeira vez e, tomado pelo susto (explico o motivo daqui a pouco, calma), fui procurar alguma dica no site deles. Encontrei um textinho que vai mais ou menos assim:

“Toda canção de rock é mais ou menos dramática. E, como os tempos estão difíceis, faz sentido transformar esse ‘drama’ em algo mais parecido com uma versão de Taxi que de Titanic. Gostamos mais de Taxi que de Titanic, de qualquer forma. Então esperamos que as canções deste disco possam ser usadas para que os chapas criem suas versões particulares de Taxi

(E, depois de supor que eles falavam daquela comédia bobinha com a Gisele Bündchen, descobri que Taxi é uma série que foi transmitida na ABC entre 1978 e 1982, sobre o cotidiano de taxistas nova-iorquinos. Ganhou 18 Emmys e foi inspirada numa reportagem)

Eles continuam: “Idealmente, o cenário dramático de uma música é construído pela vida das pessoas que a ouvem. Esta é a promessa e o problema – e talvez o perigo – da música pop. Sim, estamos otimistas”

Está tudo explicado, não? Se eu fosse uma pessoa mais alegre e positiva, talvez as canções do Elliott Smith soariam como sambinhas divertidos e engraçados, daqueles que achamos em parques aquáticos ou aulas de lambaeróbica. E talvez por isso I’m going away me pareça um disco tão lindamente triste. A vida é dura. Os tempos são difíceis. E o Fiery Furnaces continua um ombro onde podemos chorar nossas pitangas.

Começando do começo: para os fãs, o sétimo álbum da banda é uma ruptura perversa numa carreira que, até agora, parecia narrar a história de dois nova-iorquinos que decidiram virar o tal “indie rock” pelo avesso. Isso, repito, para os fãs. Aos que não a conhecem, o disco é qualquer coisa (nessa altura, quem os detratores continuarão observando tudo de longe, meio desconfiados).

Depois de lançar um álbum ao vivo que, creio eu, deve ser ouvido com a disposição e entrega de quem compra ingresso para um show (e acho que foi por isso que tentei Remember só uma vez), o Fiery Furnaces preparou uma surpresa assustadora, impressionante, acachapante: virou uma banda de rock quase “normal”. Não sei o que aconteceu quando você ficou sabendo disso, mas eu quase caí da cadeira.

Sim, já que, para mim, sempre foi um prazer decifrar os enigmas de Matthew e Eleanor. Existe um humor fino e cruel em cada um dos álbuns, um radicalismo quase fora de moda, uma mania de narrar longas histórias, conceitos impenetráveis que nos desafiam a desvendá-los ou abandoná-los de vez (e aposto que muitos preferem essa segunda opção). Lembram do disco que eles gravaram com a avó? E daquele que soa como um álbum tocado de trás para frente? Ah. Bons tempos.

Trocadilhos infames à parte, a partir de Blueberry boat (2004) eles tomaram o barquinho rumo aos confins misteriosos do rock e seguiram em frente. Uma banda à parte. Ame ou deteste, nenhum disco do Fiery Furnaces parece qualquer disco.

Em I’m going away, o barquinho faz um desvio inesperado, depois de ser engolido por uma dimensão paralela, vai parar em algum ponto dos anos 1950. Alguns encontrarão o “disco pop do Fiery Furnaces” que tanto procuravam. Mas ouça com cuidado: a referência aqui é o pré-rock, o folk antiquado, as canções tradicionais (a faixa título é uma antiguidade de domínio público). Tentei ouvir o álbum junto com Together through life, do Dylan, e tudo se iluminou.

Num primeiro momento, soa como uma decepção. Confiem em mim: se o mundo afiar as garras como sempre faz, o destino do disco será semelhante ao do fabuloso Jim, de Jamie Lidell: será tratado como uma “obra menor”, uma espécie de Sky blue sky do Fiery Furnaces. Um projeto convencional e, por isso, pequeno. Não caiam nesse erro, meus irmãos e irmãs! Não. O disco está entre os melhores que a banda gravou – e, se você despir expectativas, encontrará nada menos que quatro obra-primas (dou os nomes: Drive to Dallas, The end is near, Cut the cake e Lost at sea) e um punhado de canções que explicitam o talento para a melodia que sempre se escondeu nas camadas mais profundas dos discos da banda (mas eu sei, eu sei: para o fã, isso não chega a ser uma novidade).

De forma planejada (já que, para os Friedberger, nada existe por acaso), tudo aqui é cristalino: das letras às melodias, dos refrãos aos rompantes econômicos de free jazz que quebram algumas das canções. A história narrada flui graciosamente. A voz de Eleanor atinge ápices inéditos de doçura, a produção parece tão serena quanto a de álbuns como The greatest, da Cat Power, e a falta de modernices faz parte da brincadeira. Uma das canções conta a história de uma mulher que “canta as músicas mais quadradas da jukebox”. O desafio para a banda (e um baita desafio) é soar inventiva dentro de um formato com limitações bem claras e específicas.

E é como eles soam. Seja quando repetem uma mesma ladainha em duas melodias diferentes (Charmaine champagne e Cups and punches) ou quando roubam uma linha de baixo de Black Sabbath (Staring at the steeple), eles interpretam as tradições do rock americano com um misto irresistível de elegância e atrevimento. É uma jornada sutil. Um filme de aventura para adultos sérios e maduros.

Se é assim, de onde vem a tristeza do disco? Surpreendentemente (mais uma vez!), o álbum me emociona em baladas supostamente óbvias que, para uma alma pessimista como a minha, soam francamente desiludidas. Em Drive do Dallas, Eleanor narra a história de uma mulher apaixonada que decide nunca mais dirigir para Dallas com os olhos embaçados. “Se eu vir você amanhã, não sei o que vou fazer”, ela repete e repete, sem fôlego ou conforto. Lost at sea é a confissão didática de uma vida que perdeu o norte. E ficamos sem saber se, em The end is near, ela canta o apocalipse ou o fim de um romance. De uma forma ou de outra, dói feito uma facada no peito (“The worst part is almost over”, canta Elliott, aqui no meu ouvido).

As melodias que embalam essas crônicas de passageiros solitários são arejadas o suficiente para não permitir que caiamos em depressão profunda. Talvez seja isso o que eles queiram dizer com um disco “otimista”. O momento mais luminoso (e meu favorito, de longe) é uma canção sobre uma mulher (sempre ela) que acorda num dia estranho e descobre que virou um sucesso. Está no noticiário local. Está nos jornais. E fica imensamente feliz com a novidade. “Quando ouvi a notícia, quase perdi o fôlego. Como isso pode ter acontecido de verdade?”, ela se espanta, acompanhado por um corinho jazzy de Matthew. “O caminho mais longo é o caminho mais doce para a casa”, ela afirma, naquela lógica estranha que conhecemos bem, na saltitante Take me round again.

Está tudo bem, então?

Para quem enxerga um mundo cinza (e eu enxergo!), uma canção tão alegre quanto essa pode soar dolorida em cada verso. I’m going away é um disco que permite a dupla interpretação. Um veneno agridoce. Eis o perigo da música pop.

Sétimo album do Fiery Furnaces. 12 faixas, com produção de Matthew Friedberger. Thrill Jockey. 8/10