Wolf Parade
Organ music not vibraphone like I hoped | Moonface
É feito de areia o espírito do homem que narra Return to the violence of the ocean floor, a música de abertura deste disco do Moonface. Isso aí: de areia.
Às vezes, esse espírito escorre entre os dedos do sujeito e volta à praia, ansioso para se entregar à violência do oceano. Mas aí o homem se ajoelha para catar todos os grãos e mantê-los em segurança. Parece uma tarefa impossível.
É uma imagem de pesadelo (eu, pelo menos, não conseguiria dormir tranquilamente depois de uma cena dessas). Mas que me explica muito sobre as canções e os álbuns de Spencer Krug, o “chefe de máquinas” do Moonface.
É que eles (as canções e os álbuns) sempre soaram, aqui nos meus ouvidos, como tentativas de capturar um certo sentimento de tensão — como se Krug flagrasse a luta entre aquele narrador racional e as seduções do oceano (ou da loucura, da desordem, como você preferir).
Não foi sempre assim?
Quem digita o nome Spencer Krug no Wikipedia encontra e fotografia de um homem branco com uma bandana amarela e camisa social cinza, cantando. Também descobre que esse canadense de 34 anos está (ou esteve) associado a seis projetos: Fifths of Seven, Frog Eyes, Swan Lake, Sunset Rubdown e, finalmente, o Wolf Parade, que se encontra num “hiato indefinido”.
O temperamento do compositor, afinado quase sempre numa chave obsessiva-compulsiva, “assina” cada um desses projetos (e pode ser reconhecido nos primeiros acordes de cada canção). Contudo, o hobby de Krug é criar bandas, talvez motivado pela mesma angústia que move quem não dá conta de morar numa mesma cidade por muito tempo. “Sempre gostei do estouro de criatividade que surge quando projetos começam”, disse.
Saltar de banda em banda, no entanto, não altera o que há de essencial na alma de Krug. Não é como se ele criasse vários personagens para um elenco imaginário. Não. Não é tão simples. As diferenças entre um Sunset Rubdown e um Wolf Parade, aliás, são sutis. Em cada banda, Krug acentua um ou outro traço de estilo — mas nunca deixa de ser o compositor que conhecíamos.
No caso do Moonface, o que eu ouço é uma versão degenerada do som do Sunset Rubdown (a próxima fase, mais árdua, no jogo de videogame): sintetizadores grosseirões, estridentes (o disco, não à toa, se chama Organ music), em faixas permanecem conosco por tempo demais (durante e depois da audição). Existe algo único, algo bestial e estúpido nessas faixas, mas demoramos para perceber o que ele representa.
Às vezes, Krug deixa a impressão de que responde com deboche à indietrônica supostamente agressiva (mas com intenções cada vez mais comerciais) do Handsome Furs, projeto de Dan Boeckner, colega de Wolf Parade. A música de Dan mostra limites bem definidos (o que, para mim, não é um problema por si só), enquanto que Krug se lança ao mistério, se afoga antes que o afoguem (taí o tal oceano que suga a alma do personagem que abre o disco).
Sozinhos, eles libertam os gostos extremados, pessoais, as idiossincrasias que eram um tanto que amortecidas pelo espírito de “trabalho de grupo” do Wolf Parade.
Hoje admito que sinto até um pouco de alívio com o “recesso” do Wolf Parade. Porque uma banda é apenas uma banda, e tanto Spencer Krug quanto Dan Boeckner não pareciam se sentir confortáveis com expectativas e pressões que, ao fim e ao cabo, nada tinham a ver com arte.
Krug, principalmente ele, parece ver os discos e a condição de músico de uma maneira fluida e intensa. Cada disco é uma aventura que precisa ser seguida por outra. Um disco pode ser que não seja apenas o capítulo de uma obra longa, mas um livro com começo, meio e fim. Ir matando bandas e discos pode ser um esporte saudável, quando se fala num compositor tão inquieto.
Com apenas cinco faixas (mas faixas por vezes intermináveis, exaustivas), Organ music me parece um prólogo. Ou uma nota de rodapé. Há faixas que soam diretas (Ocean floor é das mais pessoais que Krug gravou). Outras remetem a temas que aparecem em discos do Wolf e do Sunset (Fast Peter, sobre um homem que deixa a cidade para viver com a mulher que ama, é mais uma a tratar da angústia por mudança, êxodo). E há as que prolongam os climas prog/psicodélicos de Dragonslayer: Shit-hawk in the snow é The Doors produzido com os equipamentos (e o desencanto) de Unknown pleasures (mas reduzir o som a essas duas referências seria, francamente, simplificar tudo).
O disco fecha com uma maré quase mansa, mas espessa. Krug confessa: “Talking Heads me dá saudade dos meus amigos”. Um coração frouxo faz planos frouxos. E o álbum termina. Talvez programado para a autodestruição. E vai deixando um barulho que nos atrai e repele — tentamos capturar a alma de Krug, mas ela novamente escorre entre nossos dedos.
(Uma conclusão, apenas: talvez seja o disco menos extraordinário de Krug, mas o homem nunca escreveu canções com desfechos tão bonitos, morrendo e brilhando mar adentro. Emociona.)
Primeiro disco do Moonface. Cinco faixas, com produção de Spencer Krug. Lançamento Jagjaguwar Records. 77
Go tell fire to the mountain | WU LYF
No meu caso, antes acontecia assim: quando eu resolvia escrever, as palavras iam aparecendo em grupos de vinte, trinta, quarenta, e chegavam com tanta ansiedade que eu achava mais sensato não acalmá-las nem ordená-las: elas iam caindo no teclado de qualquer jeito, de barriga, de costas, de cabeça pra baixo. Era o caos.
A maioria, é verdade, mergulhava para a morte e era sepultada em parágrafos grotescos, sujando o monitor com gosma e boas intenções. Quando eu era um pouco mais novo, escrever era ejetar todas as frases que superlotavam a minha cabeça e tensionavam meus dedos. Eu as abandonava mais ou menos como um caminhão que estaciona no terreno baldio para descarregar o lixo.
Hoje as palavras aparecem em grupos menores, acredito que de dez a quinze por vez. E não chegam com a mesma intensidade, nem com a mesma fúria. Há os dias em que não noto gana alguma no desembarque, e me pergunto: se elas não me afligem da forma que elas me afligiam quando eu tinha 16 ou 17 anos, por que ainda me preocupo tanto com elas?
Há algum tempo, eu estava certo de que seria um escritor. Agora não sei mais.
Talvez seja sinal de maturidade (e isso existe?). Escrever menos, sem ir com tanta sede ao pote, pode ser indício de rigor e elegância. Em tese, adultos são mais rigorosos que adolescentes. Também são mais elegantes. Sabem o que querem ser, até porque já cresceram. No mais, o senso comum alerta que escrever é cortar palavras, ser conciso, exato, poupar tempo. Finitude é o termo.
Sim, sim. Só que dá um baita de um incômodo quando ligo o computador e fico admirando a tela em branco, o cursor vertical piscando. Às vezes até quero escrever. Mas vivo me perguntando: escrever para quê? Para quem? Por quê? E não encontro soluções para nada disso. Porque às vezes parece que ninguém está lendo, que ninguém merece ler tanta bobagem. E às vezes sinto que estou apenas sequestrando e matando palavras, por esporte.
Escrevo porque posso, e não porque devo.
Ainda acredito, contudo, que existe sim uma arte perversa (mas admirável) na carnificina de sílabas, nesse uso exagerado e infantil de frases, no exagero de significantes, no ato desmiolado de escrever por escrever, de escarrar as palavrinhas, de esparramá-las em parágrafos longos e feios, toscos de tão imaturos. Francamente, detesto os blogs que eu escrevia aos 16, 17 anos. Mas percebo algo romântico neles. Eram textos suicidas, que cheiravam mal e iam apodrecendo em público.
Não eram nada apresentáveis. Nada saudáveis.
Há alguns dias tento entender o que tanto me atrai ao disco de estreia da banda inglesa WU LYF (sigla para World Unite! Lucifer Youth Foundation), e acredito que tenha algo a ver com os textos que eu escrevia aos 16, 17 anos. Tai um álbum que tenta agarrar as palavras com um pulso adolescente. Elas praticamente derretem nos nossos headphones, esquartejadas após a outra. É uma matança cruel.
Adianto aos mais sensíveis: é quase impossível entender a interpretação do vocalista Ellery Roberts. Nem faça esforço. Ele não canta; ele grunhe. E não estamos falando da aspereza vocal de um ogro do thrash metal. Fico com a impressão de que Ellery está forjando um idioma próprio. É como se vestisse a persona de um homem pré-histórico que, depois de muita relutância, decidiu finalmente sair da caverna. Ele olha para o mundo de uma forma bestial. O que vê, em compensação, não é exatamente civilizado.
Mas a performance de Ellery, apesar de repulsiva, não tem a intenção de nos afastar dos versos da banda. Pelo contrário. No site oficial, o WU LYF publica as letras das canções para orientar os ouvintes. E é aí que as coisas começam a ficar, no meu ponto de vista, mais fascinantes. São canções que soam como o fluxo de consciência de um menino atormentado por um enxame de palavras. Chegou a hora de soltá-las no ar.
E Go tell fire to the mountain é, antes de qualquer coisa, um disco de palavras. Palavras de ordem, de guerra, de desabafo, palavras que vêm e voltam em ciclos, palavras cuspidas do esôfago, palavras de desencanto e fervor. Se Ellery fosse um vocalista menos excêntrico, mais fluente, e se as melodias acompanhassem o vigor e a vibração frenética das letras, estaríamos diante de uma banda comunicativa quanto um Arcade Fire. O WU LYF tem muito a falar.
É bem verdade que a garganta arranhada do vocalista colabora para que criemos toda uma mitologia em torno da banda, que bolou uma campanha misteriosa de marketing, na rebarba do Odd Future Wolf Gang Kill Them All. Também estamos falando de um coletivo que envolve músicos, artistas gráficos, cineastas etc; ainda que, no caso, o cerne do WU LYF seja um quarteto de rock até relativamente convencional.
Você ouve o disco e imagina um bando de bárbaros (e musicalmente, eles são pouco sutis – gostam de estrondo e da repetição de camadas de órgãos e guitarras; preferem a unidade à diversidade). Na realidade, o que temos são sujeitos de classe média alta, nascidos em Manchester. De qualquer forma, é muito convincente a fantasia criada pelo World Unite para capturar a nossa atenção.
E boa parte dessa ilusão é criada pelas letras, que conclamam o ouvinte a sair às ruas e mudar um mundo que, se levarmos a sério a ladainha da banda, está quase acabando. Um expediente até démodé, mas irresistível. O World Unite pede ao público para que “seja bravo”, para que “abandone as armas” e que viva intensamente, antes que a morte chegue e acabe com a festa.
São hinos, e não duvide disso. A banda cria uma sonoridade maciça, mas se aproxima do ouvinte como quem conta um segredo via MSN. “Ei, quantos de vocês têm medo da morte?”, eles perguntam, na faixa de abertura (que repete o bordão “te amo pra sempre”, sem perder a macheza). Na lista de agradecimentos do disco, que foi gravado numa igreja (naturalmente), citam Frida Kahlo e Tupac Shakur.
Não sei se o World Unite vai se transformar numa banda tão adorável, tão gente-como-a-gente quanto um Wolf Parade, um Hold Steady ou um Titus Andronicus, mas eles fazem o possível para se associar esse time de “adultescentes” que escrevem épicos para serem compactados em 160kbps. Spitting blood e We bros são faixas que fazem justiça a essa gangue de últimos românticos.
O diferencial, creio eu, está na fome de palavras que marca o disco do WU LYF. Em alguns momentos, mesmo diante das letras, me perguntei: sobre o que eles estão cantando? Para quê? E cheguei à conclusão de que, às vezes, não estão cantando sobre coisa alguma. São apenas palavras ocas, palavras suicidas, palavras em vão. Go tell fire to the mountain diz muito, exageradamente, talvez pelo prazer de dizer. O que ouvimos são palavras em pleno processo de digestão, retorcidas em suco gástrico, lambuzadas e incompreensíveis.
Acaba que não faz muito sentido. Mas a fricção entre a expressividade das palavras e a interpretação febril garante um sentido de urgência que nos emociona (mesmo quando não sabemos por que razão). Na última faixa, eles nos têm nas mãos. Mesmo quando notamos que os versos da banda não são muito diferentes do conteúdo de um blog juvenil – e daqueles ingênuos, desesperados, que nos fazem corar.
Primeiro disco do WU LYF. 10 faixas, com produção da própria banda e de Dave Jay. Lançamento L Y F. 8/10
Sound Kapital | Handsome Furs
Eu não esperava encontrar tanta melancolia, saudade e (alguma) dor profunda no momento em que resolvi trancar a matrícula na academia de ginástica. Mas foi o que aconteceu, amigos. Foi o que aconteceu.
Este não é um blog dissimulado. Portanto, devo contar a história inteira, sem esconder os capítulos mais ridículos.
Aconteceu que, naquela manhã fria de sexta-feira, a gerência da academia decidiu reajustar o valor da mensalidade. Já era cara. Muito cara. Mas (foi o que descobri) não o suficiente. Usaram a desculpa inevitável (a renovação muito tardia dos equipamentos) para anunciar a facada. Só que o golpe foi inesperado. Tão inesperado que minha mochila escorregou do meu ombro e caiu no chão.
“Não posso pagar”, avisei, num sussurro.
A secretária me olhou com falsa piedade.
“ Você pode fazer o plano anual”, ela declamou, como quem lê um panfleto invisível. “Vai pagar menos, e ainda vai ter direito a trancar a matrícula nas férias.”
Não parecia tentador.
“Sabe o que é?”, e o sussurro virou quase um código silencioso, “É que eu não posso fazer planos. Nenhum plano. Não sei o que vai acontecer comigo. Não sei, minha vida pode mudar completamente em uma semana, um mês. Não sei. Não posso”, e fiquei mudo por alguns segundos, já com a testa franzida, palpitando em agonia.
A reação da secretária me surpreendeu. Em vez de compreender a situação, ela foi um pouco mais fundo. Novamente, o golpe me pegou de surpresa.
“Tiago, olha só: você diz isso sempre. Que não pode fazer planos. Mas já está aqui há três anos. Nada mudou”, e ela tratou de sublinhar com tinta amarela a palavra “três”.
A observação (muito atenta, talvez indiscreta) acabou desatando um engarrafamento de dominós em queda. Primeiro tranquei a academia, num ato instintivo de vingança. Depois passei a manhã inteira metido em divagações muito tristes, numa auto-terapia angustiante. A secretária da academia me abriu os olhos: há três anos, há três anos não consigo fazer planos.
Nem preciso dizer que foi uma malhação vagarosa e especialmente dolorida. O sentimento de fadiga nos braços e nas pernas não foi maior do que o peso de alguns halteres na minha consciência. Por que passei tanto tempo nesse estado deprimente de incerteza? E por que (pergunta mais difícil) eu ainda me encontro preso nesse limbo?
As questões, é claro, ficaram sem respostas.
Depois fiquei me perguntando (mais perguntas!) por que tranquei a matrícula de uma forma tão destemida, decidida, como se não houvesse amanhã. É claro que sofri muito com a decisão (não consigo me desapegar facilmente nem de uma xícara velha), mas notei que estou numa fase de desapego, de mudança, de rupturas quase desesperadas (ainda que patéticas). E que a transformação está acontecendo um pouco antes do início da Grande Aventura.
Percebo que, talvez inconscientemente, estou lacrando as caixas com os meus pertences. Fechando tudo antes que chegue o caminhão de mudança. Saindo, indo.
A despedida da academia coincide com o período em que tudo na minha vida passou a parecer datado: meus discos, meus livros, meu carro, o apartamento onde moro, meu blog. É como se tudo isso pertencesse ao passado.
Também coincide, é claro, com o começo de um namoro que está transformando a minha vida. Transformando e transformando profundamente. Porque é a primeira vez que sinto, de verdade, que ganhei o direito a fazer planos. E planos sérios, que vão durar.
O episódio da academia, somado a tantos outros pequenos sinais do cotidiano, foi apenas o gatilho para que eu notasse algo mais grave: que estou pronto para, finalmente, começar.
Estou pronto para quebrar o movimento circular de uma vida sem planos.
Parece um alívio, certo? Mas não é um sentimento simples. Porque, por mais que se tente simular valentia, é sempre penoso começar. Bate nervosismo, tensão, frio na nuca. Não se sabe por onde. Não há quem dê conselhos. Os amigos não ajudam tanto quanto gostariam. Os pais não entendem. Não escreveram muitos livros (plausíveis) sobre o assunto. Não tem manual. A solução não está no Google.
E parece ainda mais complicado começar aos 31 anos, quando todas as pessoas partem do princípio (muito sensato) de que você já começou. Ou de que já deveria ter começado. Você se sente um pouco velho para zerar o placar. Mas também novo, jovem, disposto, entusiasmado, ainda que os outros não percebam nada disso.
Esse desejo de seguir em frente chegou com tanta força que me desapaixonei um pouco pelos discos e pelos filmes, os deixei em segundo plano. Não são muitos os que me comovem. Os bons livros me parecem um pouco mais tocantes, já que contém o tipo de complexidade enlouquecedora que bate à minha porta.
E é por conta dessas mudanças todas, acho, que este blog anda tão abandonado. Mas não tenho coragem de me desfazer também dele, de trancar esta matrícula e seguir adiante. Talvez, pensando bem, retratar essa fase estranha e complicada acabe garantindo alguma utilidade a ele. Não sei ainda.
No mais, talvez vocês queiram saber sobre filmes e discos. Não é uma boa hora. Entendo que há discos muito bons por aí, continuo ouvindo dezenas deles, e sei analisá-los com distanciamento (o do Bon Iver, o do Cults, e alguns outros). Escrevo resenhas para o jornal; este é um trabalho que faço com prazer e curiosidade.
Mas, no tempo livre, são poucos os discos que me sequestram. Sound Kapital, do Handsome Furs, é desses. Talvez não seja grande. Duvido que seja importante. Mas ele vai espelhando este meu período de vida. Talvez por se movimentar para frente, mundo adentro, e num ritmo frenético, urgente, às vezes histérico, chutando portas e fazendo malas.
Este é o terceiro CD da dupla formada por Alexei Perry e o marido Dan Boeckner. O mais luminoso e enérgico (características que notamos logo de cara), e o menos estático (as faixas foram compostas e gravadas durante a turnê da banda, em vários lugares do planeta). Ir embora é um dos temas do disco. Ir embora e voltar diferente, outro. A primeira música se chama When I get back e o refrão vai assim: “Quando eu volto, nada parece a mesma coisa”. Há uma que atende por Repatriated. Eu entendo tudo isso.
Também é, por consequência, um disco sobre a terra desolada que aparece após a mudança, depois do apocalipse pessoal. Sobram lembranças meio enevoadas (Memories of the future) e música rasteira (Cheap music), ecos em sintonia borrada. “Não há hits porque não existe mais rádio”, canta Dan. É um mundo ainda a ser explorado.
No site da Sub Pop, não fazem questão de nos avisar que este é o primeiro disco do Handsome Furs após o fim do mundo (ou: após o fim do Wolf Parade, ex-banda de Dan, que entrou num hiato por tempo indeterminado em maio de 2011). É uma informação importante, que nos ajuda a entender por que Sound Kapital é um disco cheio de grandes compromissos: um álbum que parece começar de novo. Antes, o Furs era um “projeto paralelo”. Hoje, é o ganha-pão do canadense.
Essa mudança de perspectiva pode parecer uma bobagem, mas me parece capital (perdoem o trocadilho) para o disco — e acredito que é isso, exatamente isso, que me aproxima tanto dessas músicas. Hoje, Dan faz do Handsome Furs uma máquina estridente, tecnológica, que revisa o rock eletrônico dos anos 1980 (New Order, Depeche Mode) com uma fúria, uma virulência que lembra muito o tom de celebração e libertação do último disco do Wolf Parade, Expo 86.
Os críticos que desprezaram aquele álbum possivelmente vão ignorar Sound Kapital. Talvez eles não entendam (ou não admirem) a maior qualidade do Wolf Parade, que é recarregar as baterias do pós-punk, feito de guitarras e uivos. Existe uma energia primal em jogo. O importante, no caso deles, não é tanto o esforço por originalidade, mas gana e empolgação. Qualidades por demais abstratas, que dificultam o trabalho de quem ama a banda e quer defendê-la.
São características que não faltam ao Handsome Furs. Por isso, acredito que o fã do Wolf Parade não terá dificuldades para cair de paixão por este disco. Como a transição de Peter Hook entre o Joy Division e o New Order, Dan altera a coloração do estilo sem mover o que há de essencial no que sempre fez: são músicas que não negam o poder do rock de instalar revoluções nos nossos headphones. De instigar mudanças. De nos surpreender com empurrões e rasteiras. De nos eletrizar.
Sound Kapital tem apenas nove músicas. Conheço todas de trás para frente. Amanhã, vou para São Paulo ficar três semanas na casa da minha namorada. Pode ser que esta se transforme na trilha sonora deste recesso. Um período que possivelmente vai me transformar num homem ainda menos apegado à minha vidinha antiga. Quando eu voltar, desconfio, nada vai parecer igual.
Terceiro disco do Handsome Furs. 9 faixas, com produção da própria banda. Lançamento Sub Pop. 8/10
Os melhores discos de 2010 (10-1)
Vamos ao top 10?
Não necessariamente os 10 Melhores Discos de 2010 (admito que o título do post ficou um pouco blasé: é pra chamar atenção no Google), mas aqueles que provocaram reações felizes neste blog e, simplificando de vez a metodologia, fizeram de 2010 um ano um pouco menos frustrante para o blogueiro que escreve estes posts confusos. Um sujeito que acha que entende sobre alguma coisa e que, de janeiro pra cá, sofreu um bocado.
Antes, as menções honrosas, para ouvir antes de morrer (em ordem alfabética): American slang, The Gaslight Anthem; Before today, Ariel Pink’s Haunted Graffiti; Broken dreams club, Girls; Cosmogramma, Flying Lotus; The fool, Warpaint; Forgiveness rock record, Broken Social Scene; Gorilla manor, Local Natives; Grinderman 2, Grinderman; Hidden, These New Puritans; IRM, Charlotte Gainsbourg; Pilot talk, Curren$y; Public strain, Women; Treats, Sleigh Bells.
E, coming soon, a lista dos 20 melhores filmes de 2010 e, se tudo der certo e eu cumprir o meu cronograma apertado, os 10 discos brasileiros do ano. Mas não prometo nada, ok?
10 | The age of adz e All delighted people EP | Sufjan Stevens
I should not be so lost… But I’ve got nothing left to love – ‘I walked’
Sufjan no furacão (ou: a crise dos 30). “Quanto mais ouvimos o disco, mais fica claro que a provocação não é gratuita – ele foi criado como uma afirmação de princípios. É como se as faixas refletissem um compositor de pulsos abertos, afetado por decepções amorosas, desejo de espiritualidade, medo da passagem do tempo e outras crises que se enfrenta aos 35. A reação de Sufjan a esse cataclisma define a música que ele produz hoje, mais tensa e caótica do que de costume.” (14 de outubro, texto completo)
9 | The Monitor | Titus Andronicus
The enemy is everywhere – ‘Titus Andronicus forever’
Um épico americano, em lo-fi. “Um disco imenso e valente, que cria uma atmosfera de filme de época (sobre a Guerra Civil) para se aventurar na América de hoje. Nunca sem paixão, o Titus Andronicus entende os desafios de uma banda de rock independente: aproveitar as liberdades do mercado para brincar com as convenções, experimentar, criar monumentos de areia — nem que apenas para procurar um tipo diferente de diversão” (12 de fevereiro, texto completo)
8 | The ArchAndroid (Suites II and III) | Janelle Monáe
It’s a cold war… You better know what you’re fighting for – ‘Cold war’
Janelle, nossa heroína. “Sem querer forçar comparações absurdas (mas já forçando), a estreia de Janelle Monáe soa como se tivesse sido criado por uma menininha que, sem contato com os produtos mais mecânicos do pop, ouviu um disco dos Beatles (ou do Frank Zappa, ou do Love, ou uma ópera-rock do The Who) e decidiu escrever algumas canções. Nos 68 minutos de duração, a palavra que quica é liberdade.” (27 de maio, texto completo)
7 | Body talk | Robyn
Get a heart made of steel ‘cause you know that love kills – ‘Love kills’
Agonia e êxtase. “Robyn entende o que há de mais poderoso na música pop: cumplicidade e catarse. Com arranjos introspectivos, este seria um dos discos mais melancólicos da temporada (reparem nos versos sobre amores perdidos, crises de identidade, depressão e solidão). Mas o clima é festivo de doer. Os minidiscos são de provocar dependência química, mas este aqui é grande disco pop do ano.” (9 de dezembro, texto completo)
6 | Halcyon digest | Deerhunter
Walking free… Come with me… Far away… Every day – ‘Desire lines’
Um álbum de memórias, sobre juventude, mas Bradford Cox ainda vive cada disco como se não houvesse amanhã. “O vocalista se exibe em quase todas as canções. Ora melancólico (quase suicida), ora eufórico, otimista. Em todos os casos, leva às gravações um discurso franco, sem corretivos, que nos toma pelos braços. Somos cúmplices. Pode ser encenação – mas, nesse caso, a técnica só valoriza um álbum que soa como os posts desesperados (e ansiosos, e por vezes apressados) de um blogueiro que ouviu demais.” (20 de setembro, texto completo)
5 | The Suburbs | Arcade Fire
Sometimes I can’t believe it, I’m moving past the feeling – ‘The Suburbs’
Um grande disco de rock dos anos 70 para as tardes silenciosas da minha juventude. “O discurso do Arcade Fire se infiltra em nossas vidas, em nossas lembranças, em nossas aflições. Não existe conclusão em The suburbs porque nossas vidas também são imprecisas. E, se o disco parece se movimentar em círculos (com trechos de melodias e de versos que se repetem), é que estamos sempre retornando às nossas casas, aos nossos antigos problemas, aos nossos sonhos mortos, às nossas frustrações e à nossa adolescência.” (27 de julho, texto completo)
4 | Teen dream | Beach House
It is happening again – ‘Silver soul’
Jornada delicada sonho adentro. “Este é um daqueles álbuns em que uma pequena banda adapta um estilo sólido a certas convenções do pop rock. Soa como um problema? Não quando essa pequena banda está disposta a usar um ou outro truque para facilitar nosso acesso a um mundo ainda sutil, ainda misterioso. Que me perdoem os mais radicais: à luz rósea do pop, a história do Beach House fica ainda mais bonita.” (26 de dezembro de 2009, texto completo)
3 | Have one on me | Joanna Newsom
Hey, hey, hey, the end is near. On a good day you can see the end from here – ‘On a good day’
Visões de Joanna (num disco onde, se aceitarmos o convite, podemos morar por um bom tempo). “A sensação de liberdade, de não dever satisfações ou se obrigar a algum tipo de obrigação, contamina de tal forma este álbum triplo que, lá pelos 60 minutos de viagem, tudo o que eu consigo ouvir nele é beleza bruta, beleza estranha, beleza sutil, beleza que emociona, beleza nos detalhes mínimos, beleza que não se sabe de onde vem, beleza inclassificável, beleza difícil, beleza insuportável. Outra beleza.” (2 de março, texto completo)
2 | Expo 86 | Wolf Parade
A little vision come, come shake me up – ‘Ghost pressure’
Quatro velhos amigos numa sala (enquanto o mundo pega fogo). “Quando fazemos algum esforço, conseguimos visualizar, entre uma faixa e outra, uma banda correndo dentro do estúdio, excitadíssima com as próprias canções, com pressa para gravar, mixar, concluir o trabalho e mostrar-nos o resultado. É, apesar dos versos ainda muito agoniados, um disco que sorri para si mesmo e para o público. Nada como o som de uma banda de rock no auge, feliz com a imagem refletida no espelho” (16 de maio, texto completo)
1 | My beautiful dark twisted fantasy | Kanye West
We’re going all the way this time – ‘All of the lights’
No mundo parelelo de Kanye West, discos pop ainda nos deslumbram e espantam, ainda nos levam a lugares onde nunca estivemos. “A angústia de West, para nossa surpresa, acaba por energizar o disco, já que ele compõe e grava como se estivesse à beira do precipício. Como se houvesse apenas mais uma chance (não é o caso, mas o sujeito é uma pilha de nervos). Em sua discografia, não existe um outro disco que aposte tantas fichas, que mire tão alto e que tome caminhos tão arriscados. As faixas são grandiosas por birra, não por necessidade. Muitas delas caberiam em três minutos de duração. Mas West as alonga para explicitar o que têm de desconfortável. Uma obra-prima.” (16 de novembro, texto completo)
Yulia | Wolf Parade
Com certo atraso (justificado pela dificuldade de encontrar uma versão decente no YouTube), eis o clipe novo do Wolf Parade. Um clipaço, aliás. Em Yulia, dirigido por Scott Coffey, um cosmonauta deixa a atmosfera enquanto uma mulher o acompanha pela tevê. Ou: de amores e viagens espaciais.
The five ghosts | Stars
Não acredito em fantasmas. Mas meus fones de ouvido querem que eu acredite.
Elas, as almas penadas, assombram algumas das minhas canções favoritas de 2010. Perambulam em Ghost pressure, do Wolf Parade, se camuflam nas metáforas de Anyone’s ghost, do The National. Passeiam em melodias do The Roots, do Blitzen Trapper e de tantos outros. O indie rock, especialmente, virou uma casa do espanto.
Na história do pop, fantasmas sempre apareceram subitamente para representar frustrações, aflições, agonia, amores perdidos e todo tipo de crise nervosa. Mas há bandas, como o Wolf Parade, que se interessam tão profundamente pelo tema que mereceriam inaugurar um gênero específico: rock fantasmagórico, que tal?
Bem-vindos, então, a The five ghosts, do Stars. Um álbum conceitual sobre fantasminhas camaradas e outros nem tanto.
O interessante, no caso, é que não se trata de um típico “ghost record” (anote aí que a moda vai pegar). O que há de mais bizarro no quinto álbum dos canadenses é que um tema sempre tão cavernoso é tratado com leveza e até bom humor. É isso mesmo que você leu: este é um disquinho tão doce e tão macio e tão amigável que deixa nos nostálgicos a vontade louca de clicar a palavra “Cardigans” no YouTube – e ser feliz.
O que não deixa de provocar um certo incômodo. Estamos falando de fantasmas, não estamos?
Ainda mais perturbador: não são personagens de contos de fadas que habitam essas canções. Dead hearts, a primeira música, é uma versão indie para O sexto sentido, sobre “amiguinhos” que têm luzes dentro dos olhos e que estão “lá fora” (medo!). Mas é narrada num jogo vocal inocente, entre menino e menina, acompanhado de guitarras dedilhadas, cordas e um piano delicado. Uma fofura dos infernos.
A terceira se chama I died so I could haunt you (‘Eu morri só pra te assombrar’) e abre com a informação de que “há milhares de fantasmas à luz do sol”. O refrão, com um quê de power pop, é tão contagiante quanto um hit do Jonas Brothers. E aí chega Fixed, com uma melodia grandalhona e reluzente meio The Killers. A seguinte é até engraçadinha: We don’t want your body (‘Nós não queremos seu corpo’), um electropop de morango, vai num clima vampiresco safado que soa como uma homenagem a True blood.
De fato, nenhum outro disco do Stars soa tão coeso. “Foi a primeira vez em que tivemos o luxo de dividir uma sala e escrever, juntos, as canções”, contou a vocalista Amy Millan. O método surta efeito. Mas me pergunto se muitas dessas faixas não mereciam mais tempo para germinar dentro da sala. Mais adubo. Mais água e brisa. Nos momentos mais extrovertidos, o disco soa menos como um conto de horror a ser levado a sério e mais como uma paródia rasteira do estilo Orgulho e preconceito e zumbis (e zumbis canadenses, ha-ha).
Mas, pelo menos, é um disco que mostra a distância que separa os fantasmas de um Edgar Allan Poe das criaturas de uma Charlaine Harris. The five ghosts não é de todo transparente (repito: um disco otimista e até eufórico sobre fantasmas!), mas mostra uma grave tendência à segunda opção.
Quinto disco do Stars. 11 faixas, com produção da própria banda. Lançamento Soft Revolution/Vagrant Records. 6/10
Dragonslayer | Sunset Rubdown
Quando estivermos velhinhos e finalmente decidirem escrever um livro parrudo e ambicioso sobre a música pop do início do século 21, haverá lugar para Spencer Krug?
Consigo imaginar alguns dos capítulos dessa obra: 1. O “novo rock” nova-iorquino: Strokes, Yeah Yeah Yeahs, Interpol e congêneres; 2. O avanço do mp3 e a retração do CD – estudo de caso: Radiohead e o fim dos tempos; 3. Fragmentação e hibridismo no rock independente: Sufjan Stevens, Arcade Fire e as possibilidades criativas do álbum; etc. O livro seria publicado por uma editora de hippies e distribuído no circuito universitário. No coquetel de lançamento, roqueiros nostálgicos e calvos, com barbas brancas e bastões coloridos à new rave.
Uma bela cena. Acontece que Spencer Krug provavelmente não será lembrado por ninguém. Aposto. As injustiças estão em todo canto, não? Vou fazer minha parte: copiar os arquivos de Dragonslayer num CD-R e escondê-lo num cofre programado para ser aberto em 2050. Taí minha contribuição para o futuro das nossas criancinhas.
Spencer Krug tem 32 anos, é canadense, guitarrista e compositor, toca num punhado de bandas de rock geniais e isso é tudo o que sei sobre ele. Todo fã de rock sonha em roubar duas horas do ídolo com perguntas que nada têm a ver com música. Eu conversaria com Krug sobre cinema. Para mim, tudo o que ele canta e grava sugere planos, travellings e efeitos visuais. Apesar de obviamente cinematográfico, o rock de Krug não me remete a um filme específico ou a um cineasta. Soa como intensa e interminável trilha sonora para uma obra misteriosa, ainda inédita.
Por que um compositor capaz de imaginar cenas tão sugestivas será esquecido completamente? É que a arte de Krug fica no meio do caminho entre o que há de mais urgente no pop contemporâneo (numa frase: é uma voz que poderia ter vindo de qualquer país, de qualquer década, de qualquer geração, simultaneamente Bowie, Francis e Bejar) e o que existe de mais ultrapassado (a ambição de transformar cada álbum num capítulo de uma longa obra em progresso, na tradição do rock progressivo dos anos 70; as canções perdem muito do sentido quando distribuídas separadamente).
Mas é essa dualidade que me aproxima do sujeito. Em 2050, se alguém precisar de um exemplo para os paradoxos desse período de transição do pop, encontrará um bom material de reflexão em álbuns como At Mount Zoomer (do Wolf Parade, onde o prog rock encontra o blog rock) e este Dragonslayer (que soa prog até no nome, mas é gravado com os procedimentos do novo garage rock). Krug personifica uma série de contradições e o som que produz pode ser chamado de esquizofrênico sem que isso pareça um defeito.
No Wolf Parade, a “banda oficial”, Krug negocia muitas das decisões com Dan Boeckner, um compositor mais dócil e afinado a formatos convencionais de indie rock. Para quem procura um close-up do compositor, será inevitável recorrer ao Sunset Rubdown, que funciona como uma espécie de laboratório de ideias. Uma combo underground no sentido datado da palavra: experimental, “difícil”, despreocupada com mercados (vale reforçar que, hoje, o indie rock transformou-se numa opção viável e rentável ao mainstream, vide casos como Sub Pop, Matador Records e Merge).
É no Sunset Rubdown que Krug expurga loucuras sem qualquer tipo de filtro. O primeiro disco, Snake’s got a leg, de 2005, era um projeto solo. A partir de Shut up I am dreaming (de 2006, cujo título resume o tom simultaneamente agressivo e onírico do projeto), passou a alimentar uma banda paralela, que se transformaria num monstro irreconhecível em Random spirit lover (2007), o disco maldito desta década.
Em Randon spirit lover, o interesse de Krug era testar as possibilidades de estúdios de gravação. Era um álbum-colagem, fantasmagórico, superproduzido (para padrões indies) e frágil. Um disco que, radical, dividiu até os fãs do Wolf Parade (eu mesmo ainda não sei por onde começar). Dragonslayer foi concebido como uma reação àquela besta: uma obra “direta, natural e honesta”, com improvisações que poderiam ter sido captadas numa performance ao vivo. “A banda espera que o álbum soe como um amigo que parece normal, mas que, quando você o conhece intimamente, revela-se claramente um louco.” (eles avisam, no texto de divulgação).
Não preciso dizer que é daqueles discos que imploram para serem mastigados lentamente – mais um motivo para que ele se perca do radar de uma crítica cada vez mais apressada (e que prefere ser conquistada de imediato, vide a reação quase unânime ao novo do Yeah Yeah Yeahs). As canções começam de um jeito e terminam de outro. As referências a dragões, deuses, virgens, príncipes, castelos e personagens bíblicos podem parecer barrocas demais para quem nunca abriu um livro de RPG (mas eu nunca abri um desses, vejam só). E, numa tacada só, deve ser um martírio atravessar uma faixa de 10 minutos, duas de seis e três de cinco (a mais curtinha dura 3:48).
Mas, para quem se desafia a aprender as regras de um universo musical (e o mundo de Krug está mais para os delírios de Rufus Wainwright que para os contos de fadas sombrios do Modest Mouse), Dragonslayer sobreviverá como dos jogos mais brilhantes do ano. O rock de Krug é tão cerebral quanto emotivo, e descobrir a existência dessa faceta dupla é a chave para entrar no disco.
As oito canções desenham cenários surrealistas – como nos sonhos, até as cenas mais ridículas provocam enorme impacto sentimental. As primeiras audições do disco nos soterram de forma implacável. A primeira faixa, Silver moons, é um fluxo de consciência sobre lembranças. “Eu acredito em envelhecer graciosamente”, diz Krug, antes de descambar num incompreensível “debaixo das rendas do vestido que você usa há um oceano e uma maré e uma rebelião numa praça.” A seguinte, Idiot heart, desaba feito um surto epiléptico. “Nunca fui um bom dançarino, mas conheço o suficiente para saber que você deve mexer o seu corpo idiota”, ele ordena. Com guitarras pontiagudas, tensas, os acordes nos atingem nos rins.
Não é fácil seguir adiante, mas o disco vai se abrindo maravilhosamente a outros cenários. Paper lace, a faixa mais exótica, lê a psicodelia do The Doors numa estética lo-fi, vazia de ornamentos. “O que existe no coração das meninas bonitas?”, Krug quer saber. Em Nightingale/December song, ele dança sob estrelas cadentes. “Nós somos chamas solitárias”, canta. Os 10 minutos de Dragon’s lair resultam no clímax perfeito para o álbum: um solo repetitivo de guitarra que costura os climas de uma guerra imaginária. “Esta é para os críticos e suas mães decepcionadas”, diz a letra. Não me pergunte por que.
(O álbum todo sugere o que teria acontecido se Viva la vida, do Coldplay, tivesse sido produzido inteiramente num manicômio).
Mais aventureiro que Shut up I am dreaming e não tão impenetrável quanto Random spirit lover, Dragonslayer é meu álbum favorito do Sunset Rubdown (e um pouco aquém de Apologies to the Queen Mary, do Wolf Parade, mas só um pouco). O que eu guardaria num cofre para abrir quando todos estivermos velhos e cansados dos artifícios da música pop. Um disco imponente de rock progressivo que também pode ser interpretado como a soul music do futuro. Spencer Krug sangra do alto de uma torre medieval. “Meu coração é um reino onde o rei é um coração”, ele avisa. O sonho ainda pulsa.
Quarto álbum do Sunset Rubdown. Oito faixas, 48 minutos de duração. Lançamento Jagjaguwar Records. 8.5/10