Viagem

Bluish | Animal Collective

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Tudo azul (e um pouquinho vermelho) no novo clipe do Animal Collective. Dirigido por Jason Oliver Goodman, o vídeo tem constelações, bolhas de sabão, dançarinas exóticas e tudo aquilo que a gente imagina quando ouve esta que é uma das minhas canções favoritas do grande Merriweather Post Pavilion. Boa viagem.

Superoito, filho

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Combinamos de nos encontrar no aeroporto às onze e meia da manhã. Cheguei mais cedo, às onze, e comprei uma revista. O avião pousou um pouco antes da hora marcada. Meu padrasto estava entre os primeiros passageiros a cruzar o portão de desembarque. Trazia uma bolsa azul retangular que parecia pesada.

Ele apertou minha mão quase furiosamente (como sempre fazia) e perguntou se eu estava bem. Eu não estava bem, mas falei que sim.

O dia em São Paulo: céu descoberto após um fim de semana noir. Uma segunda-feira agradável, quase de primavera – cenário que, portanto, não combina com esta história.

Os personagens principais – eu e meu padrasto – estavam mais para seres de inverno. Introspectivos e desiludidos, mesmo quando contavam piadas infantis.

O homem que cruzou o portão de desembarque era sério. Como de costume.

É claro, no entanto, que muita coisa havia mudado nele. Desde que começou a perder a memória, há dois anos, meu padrasto tornou-se uma outra pessoa. Um outro homem dentro do corpo e dos gestos e do cheiro daquele homem que conhecíamos. A transformação era sutil (e perversa, já que às vezes nos enganava, nos confundia) e ainda não havia chegado ao fim. 

Eu preferia preservar a imagem do meu padrasto de antigamente – o sujeito que me acompanha desde a adolescência, que sempre esteve lá -, mas começo a me acostumar com a pessoa mutante em que ele se tornou. Um homem de 55 anos de idade incapaz de conduzir a própria vida (e, mais grave, consciente de que a parte mais dolorida ainda virá).

Encontrá-lo daquele jeito no aeroporto – vestido elegantemente, de barba feita, carregando a bolsa com dezenas de exames médicos, tentando rir das minhas piadas – me comoveu.

Tomamos um táxi para a Avenida Paulista. A consulta estava marcada para o fim da tarde, por isso planejei uma pausa para o almoço e uma caminhada pela cidade. Era uma situação, para mim, totalmente incomum: nas raras viagens que fizemos, meu padrasto definia os itinerários e nos tomava pelo braço – eu, minha irmã e minha mãe. Dessa vez, eu estava no comando (e a sensação era de que me faltava um curso preparatório, um guia para guias).

Meu padrasto ainda não se conforma com as recomendações médicas. Me pergunto se eu me conformaria (acredito que não). Um senhor atlético, habituado a longas séries de exercícios físicos, não consegue mais se orientar. Precisa de um tutor, de carona. Perde-se frequentemente, e não somente nas ruas das cidades. Perde-se dentro dos filmes e dos livros. Esquece até do que comeu no café da manhã. 

Apesar do sentimento de revolta (cada vez maior), ele aceitou fazer a viagem a São Paulo para ser atendido por um médico mais experiente. É o que nos resta, já que não é possível diagnosticar a doença com exatidão. No caso, o que se pode é, no máximo, se aproximar de um resultado aceitável, mas nunca preciso. O que sabemos (e isso é uma má notícia) é que a memória do meu padrasto se vai como os grãos de areia de uma ampulheta. Num ritmo lento, porém constante.

No restaurante, um fast food muito colorido e alegre, evitamos conversar sobre o assunto. Falamos sobre a cidade e sobre o trabalho. Sobre os meus pesadelos (recorrentes) e sobre os nossos cachorros. Sobre o tempo em que ele entregava telegramas (as memórias da adolescência ainda estavam frescas) e sobre como a Avenida Paulista, para ele, soa como uma incrível novidade. “Sei que estive aqui várias e várias vezes, mas não lembro de nada”, comentou, com um sorriso de quem ironiza o próprio fracasso.

Depois caminhamos duas, três, quadro quadras. Bebemos suco de laranja. Descansamos sob o Masp, observamos o guitarrista solitário à frente do Trianon. Chegamos cedo ao consultório e logo fomos atendidos.

Antes da consulta, a secretária pediu que meu padrasto preenchesse um pequeno questionário, com nome completo, endereço, telefone e o nome da pessoa que o acompanhava naquela tarde. Nessa última lacuna, ele escreveu: Tiago, filho.

Quando notou que eu o observava, perguntou desajeitadamente se deveria ter me classificado de outra forma. “Não, filho está ótimo. É isso e sempre foi”, eu confirmei. E lembrei, num flash agressivo, que não vejo meu pai há pelo menos três anos e que eu e ele talvez devêssemos oficializar a distância infinita que nos separa. 

O médico, um gigante de jaleco com pinta de J.M. Coetzee (quase dois metros de altura, um pouco mais robusto que o escritor sul-africano), fez perguntas enviezadas para testar a memória do meu padrasto:

“Quem o levou ao aeroporto?”

“Não lembro”

“Seu filho o buscou em casa, de carro?”

“Acho que sim”

“Onde estava seu filho hoje pela manhã?” (e, nessa pergunta, o médico pediu para que eu não me manifestasse)

“Estava lá em casa, em Brasília”

“Onde você almoçou hoje?”

“Não sei”

“O que você comeu?”

“Folhas. E um peixe rosa. Não lembro o nome.”

Enquanto eu preenchia um questionário sobre o meu padrasto, observei os pacientes que esperavam para ser atendidos. Uma mulher tentava explicar à filha por que todos estamos fadados a perder a memória. “É muita preocupação (pausa), informação (pausa longa) e decepção (pausa curta) com a vida”, e a filha acenou positivamente com a cabeça.

As paredes eram todas brancas e, no canto da sala, havia uma orquídea branca.

Na despedida, após duas horas de consulta, o médico preferiu não comentar sobre a doença. Pediu mais dois exames. “Pra minha coleção”, meu padrasto brincou. Era o tipo de comentário que eu faria. O tipo de sorriso abobalhado que eu arriscaria numa situação sisuda daquelas. Os mesmos gestos, tudo. Estava tudo diferente, tudo desfigurado, tudo amargo e amarelo (um prédio em chamas), menos o fato de que meu padrasto ainda era meu pai.

Rapidamente, fizemos o exame que faltava e tomamos um táxi para o aeroporto. Eu seguiria em São Paulo por mais dois dias, mas ele precisava de alguém que o acompanhasse ao portão de embarque. Mais uma vez, chegamos cedo demais. “Teve um momento, lá no consultório, quando eu olhei para o lado e percebi que você estava ali. Me perguntei: o Tiago? O que ele está fazendo aqui?”, e disso ele lembrava.

Por volta das oito, minha mãe telefonou e perguntou se eu estava bem. Eu não estava bem, mas falei que sim. “É um bom médico. Muito atento”, resumi. “E ele fez algum teste de memória?” “Fez sim” “E então?” “O pai diz que bombou no vestibular” “Meu deus” “Mãe, é um bom médico. Eu acho até que confio nele”, eu expliquei, e ela se acalmou um pouco.

Me preocupei quando meu padrasto entrou sozinho no setor de embarque, entregue aos lapsos cerebrais, ao medo de esquecer. Acenei, tenso – como um pai acena para o filho que vai à escola pela primeira vez. O menino se afasta e está perdido para sempre.

A porta se fechou e, ali, depois daquela cena, eu deveria entrar no táxi. Já era noite. Mas me sentei diante das lanchonetes e fiquei assim por dez, vinte minutos. Quando o avião decolou, continuei naquela posição. Estava tudo bem? Fiquei sentado ainda por algum tempo, mais uns minutos, totalmente só, e então saí.

Tarot sport | Fuck Buttons

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A ótima aceitação aos álbuns do The XX e do Wild Beasts pode deixar a impressão de que o rock britânico passa por um período muito propício à sutileza e à contenção. Esses dois discos, propositadamente, soam como a arquitetura de Bauhaus (a escola alemã): ainda que influenciadas pela estética sombria dos anos 1980, cada acorde cumpre uma determinada função, as faixas duram apenas o necessário e nenhuma palavra é usada à toa. As canções emocionam por parecer mais simples do que realmente são.

A parte curiosa dessa história (e que pode confundir muito jornalista apressado) é que, num universo paralelo ao dessa “tendência”, há bandas elogiadíssimas que seguem um caminho radicalmente contrário ao do desejo de minimalismo. É o caso do The Horrors (que ocupa a primeira posição na lista da New Musical Express) e do Fuck Buttons. Aí, não há lacunas a serem preenchidas: a música nos soterra em camadas de efeitos, é rebuscada feito arte barroca e, nos momentos mais estridentes, provoca o incômodo de um vinil arranhado.

É claro que, durante o ano, muitas foram as bandas que oscilaram de um extremo a outro. Mas os extremos impressionam.

O novo disco do Fuck Buttons, por exemplo, é o mais próximo que o rock inglês chegou do noise anárquico do Dan Deacon. O álbum anterior, Street horrrsing, levava o pós-rock dos anos 1990 alturas antes inimagináveis (o disco era produzido, não por coincidência, pelo guitarrista do Mogwai, John Cummings). Era um ataque frontal de guitarras em crise nervosa, com breves momentos de doçura (que ninguém é de ferro) e entusiasmo quase juvenil (uma das faixas atende por Okay, let’s talk about magic).

Enquanto o Wild Beasts se transformava numa banda mais sóbria e elegante, Andrew Hung e Benjamin John Power fizeram da transição para o segundo álbum um espetáculo grandiloquente de fogos de artifício. Tarot sport inclui no caldo fervilhante da dupla o elemento que faltava: um quê de euforia eletrônica. O produtor e DJ Andrew Weatherall havia feito um remix delirante para Sweet love for planet Earth. Presumo que a banda, entusiasmada com o resultado, tenha decidido gravar um disco que soasse como um intenso remix do álbum de estreia. Superficialmente, Tarot sport é isso.

Como o álbum de Dan Deacon, esse também se beneficia de repetidas audições. Com faixas longas (quatro delas têm mais de nove minutos de duração) que se conectam umas às outras, o disco nos confronta com agressividade e velocidade. É uma pancada. A abertura, Surf solar, resume as intenções da dupla: um loop de eletrônica repetido à exaustão, num galope cada vez mais acelerado, envolvido num manto de sintetizadores que parecem tirados de uma trilha de filme de ficção científica. O barulho é o da explosão que acompanha a decolagem.

Nas faixas seguintes, o disco sai do solo violentamente, em chamas. Rough steez abre com ruídos industriais e, subitamente, é corrompida por barulhinhos de videogame. Em The Lisbon Maru, a nave flutua graciosamente no espaço — e sugere cenas deslumbrantes. O transe continua em Olympians (o mais perto que o disco chega das melodias doloridas de Come on die young, do Mogwai). A tensão volta a apertar em Phantom limb e Space mountain, até desembarcar de forma sublime na feérica Flight of the feathered.

Mais que uma viagem insólita, Tarot sport quebra as limitações do pós-rock ao agregar elementos que, por outras bandas do gênero, eram tratados como lixo espacial. Cacos de pop, techno, drum ‘n’ bass e drone transformam cada faixa numa colagem disparatada, absurda, excitante de referências. Excessivo, sim. Exaustivo, sem dúvida. Mas como resistir a uma banda que abre os braços para abraçar um universo inteiro?

Segundo disco do Fuck Buttons. Sete faixas, com produção de Andrew Weatherall. Lançamento ATP Recordings. 8/10

Heaven can wait | Charlotte Gainsbourg e Beck

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Antes que 2009 termine e a frase perca o sentido: taí um dos clipes mais bacanas do ano. O Beck fez vídeos interessantes desde Guero, mas os ares psicodélicos/surrealistas de discos como The information e Modern guilt foram finalmente convertidos em imagens. Sei que vocês já viram, mas não custa lembrar que a belezura é dirigida por Keith Schofield. Boa viagem.