Uma vida mediana

Superoito e a cidade vazia

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Você conhece Brasília?

Se não conhece, recomendo o seguinte itinerário: agende a passagem de avião para um domingo à noite. Ao desembarcar, tome um táxi para o final da Asa Norte. Ao motorista, peça especificamente que ele siga pelo Eixão. Por volta das nove, dez da noite, haverá alguns carros na pista. Alguns, não muitos. É uma pista bastante larga, seis faixas. Garanto que, num domingo como outro qualquer, ela nunca parecerá suficientemente movimentada.

Para uma experiência completa do trajeto, preste atenção a estas instruções. Primeiro, repare a extensão da via. Note como ela parece seguir indefinidamente, com postes que brilham feito estrelas mortas. Depois, vire o pescoço para a direita e observe o desenho dos prédios. Uma paisagem estranhamente ordenada, que sugere assepsia e civilidade. Não? Na altura da rodoviária, faça a sugestão ao condutor: ‘tome o Eixinho, por favor’.

Para chegar ao Eixinho Norte, você verá rapidamente a Esplanada dos Ministérios, a Catedral e, bem lá ao fundo, o Congresso Nacional. Faça de conta que isso tudo é uma miragem. Eles nunca existiram. O Teatro Nacional é uma nave de brinquedo daquelas que você ganhava de presente de Natal quando tinha seis anos de idade e era início dos anos 1980 e a ceia parecia um filme previsível e agradável. Esqueça o teatro.

Esqueça as memórias (por um segundo). Estamos no Eixinho Norte. Os prédios cresceram e quase nos engoliram, estão todos maiores (ainda uniformes, só que maiores). Seis andares. Ordem e progresso. Olhe para o alto. As antenas são tão pequeninas e finas e discretas que talvez não sirvam nem para os passarinhos, vá saber. Veja o meio-fio, a passagem de pedestres. E, neste momento, perceba que não há pedestres na calçada. Eles não estão na rua. Eles não estão em lugar algum. Talvez estejam em casa (as luzes dos apartamentos, provas do crime, estão acesas).

Na parada de ônibus há duas ou três almas, mas elas não parecem pertencer àquele ambiente e por isso se sentem desconfortáveis – enfeitiçadas pelos relógios de pulso, quanto tempo falta para? Na altura da 312, peça para o taxista descer a tesourinha (ele sabe muito bem o que isso significa, não se preocupe), siga até a superquadra e indique o bloco B. Pague a corrida e ofereça gorjeta.

Ao lado do bloco B existe um gramado que, há alguns anos, era maior do que é hoje. Antes, a quadra ao lado não estava habitada. Hoje está. Os prédios têm seis andares, os jardins apareceram da noite pro dia (mas são muito bonitos, acredite) e os carros que entram e saem são quase todos do ano. Ainda assim, existe uma parte do terreno não foi alterado – e imagine aí um espaço vazio onde caberiam cinco ou seis campos de futebol – e ele lembra a minha adolescência. Foram tardes e mais tardes na janela, olhando para aquela área oca, serena, um deserto amarelado cravado na cidade planejada.

Sempre me pareceu um erro de cálculo. Aquela área vazia. Como pode? Uma capital tão perfeitamente serena, tão perfeitamente organizada. E aquilo. Aquele rasgo no meio do nada. O terreno baldio. O mato crescendo. As crianças se escondendo no mato. Os meninos e as meninas se escondendo alegremente no mato. Os trombadinhas assaltando as velhinhas no mato e tudo o mais. O terreno é tema de algumas lendas que o taxista não saberá explicar a você, infelizmente (e não há guias turísticos decentes nesta cidade, por incrível que pareça). Dizem que, numa madrugada fria de junho, uma mulher se perdeu no meio do mato e descobriu um fosso fundo e largo que brilhava e dava no fim do mundo (ou em algum lugar muito distante, não lembro direito). Quando eu era mais novo, eu olhava pela janela e via um fim do mundo bastante plácido. Hoje tenho 30 anos de idade.

Não moro mais lá. Minha avó mora. Vez ou outra, volto àquele prédio para dar carona à velhinha. Paro o carro no estacionamento e fico por uns minutos observando aquele matagal todo. Continua o mesmo, apesar de tudo. Nem a capela que construíram há uns seis meses (um prédio baixo no formato de um hexágono) conseguiu acabar com ele. Não sei se vai durar muito tempo, mas aquele vazio todo ainda está lá para me lembrar dos dias mortos da minha adolescência. Eu passava tanto tempo na janela. Pensando no quê?

Domingo passado foi assim. Deixei minha avó no apartamento, segura, na paz de deus, com os anjinhos e todos os santos, e fiquei alguns minutos diante do terreno baldio, paralisado. Não encontrei respostas para absolutamente nada. Os dias têm sido assim: perguntas. Antes disso, de quase desabar no terreno vazio, passei a manhã na casa da minha mãe. Calado. Não sou um sujeito calado. Mas eu estava calado. Ando calado. E um pouco apático, mas acima de tudo (e isto é o mais estranho) calado.

As pessoas perguntam se estou bem. Digo que estou. Não existe outra alternativa. Eu sou o homem da casa e não posso esmorecer. Percebi isso há uns dois, três dias: eu devo assumir o posto de homem da casa. O homem da casa. Eu. O homem da casa. Tiago, o homem da casa. Minha família é pequena e está ruindo. A doença do meu padrasto, a instabilidade da minha irmã, a velhice da minha avó, o todo peso quase insuportável que descarregamos nos ombros da minha mãe. Tudo ali, exposto de uma forma extremamente crua. Na hora do almoço, quando eu estava prestes a voltar para o apartamento pequeno e frio onde moro, minha mãe pediu para que eu ficasse por lá, naquela casa ampla com cachorros e horta. Que passasse a semana. Que me derramasse no quarto, talvez para sempre. E foi um apelo tão sincero, tão simples e sincero, que tive que engolir saliva para não chorar.

Eles precisam de mim. Ou seria mais correto imaginar que eles querem, querem muito que eu participe disso tudo, dessa tragédia muda, do entardecer dessa família, desse ato final dolorosamente longo e triste? “Você vai sair assim, antes dos créditos finais?”, e fico com a impressão de que me fazem essa pergunta sempre quando saio.

Mas saio. Continuo saindo. E por enquanto me pergunto o que acontece, o que vai acontecer comigo e com eles e com todos os que conheço. Não há respostas e não faço ideia se todas elas aparecerão num flash, pipocando e me cegando instantaneamente. Foi o que senti naquela tarde de domingo. O terreno vazio, as pistas silenciosas e uma dificuldade tremenda de entender por onde devo seguir e o que devo fazer a partir de agora. É a hora. Nada parece seguro. Deus não existe. E a cidade não tem alma. É de concreto, com seis andares e um lindo jardim falso.

O problema talvez seja meio tolo: eu não cresci (ainda). Não estou pronto. Preciso de um tempo. Tomar fôlego, não sei. Ainda busco as soluções que eu encontrava quando era adolescente. Ainda quero abandonar tudo e passar a tarde morta olhando por uma janela. Pensando o quê? Ainda acredito que, quando a minha aeronave perder o rumo, saltarei num colchão confortável e sairei da catástrofe ileso, protegido. Deve ser isto: secretamente, ainda tento me convencer de que, apesar de tudo, existe uma zona de conforto e que este período de turbulência terminará em serviço de bordo e num pouso tranquilo.

Por isso não consigo falar no assunto. As pessoas me perguntam: está tudo bem? E eu: está tudo bem. Quando desabafo, desabafo para poucos. Depois, me sinto mal. Como se eu tivesse inventado uma história sobre a minha vida. Uma história em que ainda não acredito. Talvez seja uma questão de tempo.

E é isto. Recomendo que você dê três ou cinco passos dentro do terreno baldio e olhe para cima. Para a janela do terceiro andar. Lá estou eu. Em seguida, caminhe até a entrada da quadra. É um trajeto curto e que não cansa, três minutinhos. Recomendo os taxistas da região, que cobram caro, mas são confiáveis.

Tome o Eixão e siga para o aeroporto, de olhos fechados. A cidade não existe mais. Você não deve olhar nos olhos dela. E, no mais, você já a conhece. Em 20 minutos, no máximo, estaremos no aeroporto. Coma uma empada no setor de desembarque e beba suco de laranja. Compre uma revista amena ou um livro de 150 páginas. Ouça uma música não muito pesada. Tome o voo de volta. E aqui estamos de novo: boa viagem, até mais.

Superoito não mora mais aqui

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270420091011

(O horizonte na janela do meu apartamento: things they are a-changing)

Sair da casa dos pais, dizem, é um rito de passagem. Um daqueles episódios que modelam o futuro. O primeiro capítulo do resto de nossas vidas. Não? Quase seis meses transcorreram desde o dia em que levei meu colchão, minhas roupas e a tevê para o pequeno apartamento onde durmo quase todas as noites. Seis meses – e, apesar de saber perfeitamente que passei por uma espécie de teste importantíssimo, ainda não consigo avaliar minha performance. A estranha impressão é de que tudo, de alguma forma, mudou. Só não entendo exatamente como.

Há algumas perguntas recorrentes, que interrompem meus pesadelos e martelam alfinetes na minha consciência: como me saí nessa prova? Qual foi o resultado? Fui aprovado? Está tudo ok? Mais importante: se me transformei numa pessoa diferente, quem é ela?

Aparentemente (e surpreendentemente), deu certo. Com o devido distanciamento, sou capaz de reconhecer que cumpri algumas etapas corretamente e que, num período reduzido de tempo e aos olhos invisíveis do mundo, eu tenha finalmente me transformado num cidadão adulto e independente. É esta a versão oficial dos fatos: pago todas as minha contas, compro alimentos e produtos de higiene, lido com impostos e taxas, organizo compromissos, cultivo minha vida social e (um pequeno passo para o homem) estou a alguns minutos de virar sócio na videolocadora da quadra.

Falta plantar uma árvore, escrever um livro e ter um filho. Mas são detalhes. E quem lê livros, afinal?

Para mim, ainda parece incrível imaginar que, há um ano, nada disso parecia plausível. Durante minha adolescência, rejeitei conscientemente as expectativas e os hábitos do cidadão comum. Revoltei-me contra adultos metódicos, conformam com rotinas medíocres. Contra indivíduos sorridentes que, felizes com pouco, contentam-se com empregos maçantes. Deixam-se massacrar pela burocraria. E ainda assim casam-se, têm meninos fedorentos e com eles visitam o zoológico. Eu não os compreendia. Eu não me enxergava neles. A idade adulta parecia apenas entediante e aborrecida: uma infinidade de obrigações que não dão em nada. Muito trabalho, nenhuma diversão.

Talvez por isso eu tenha imaginado que viveria até os 25 anos de idade. Seria o suficiente. Aos 26, me vi sem um plano B. Aos 29, olhei no espelho e notei um adolescente desbotado. Era hora de mudar.

Conheço algumas pessoas que também nasceram no final dos anos 70 e, como eu, viveram sem a necessidade ou a angústia de pensar no futuro – até o momento em que o futuro bateu à porta. Possivelmente faça parte de uma doença geracional: uma resistência quase irracional à idéia de abandonar o ninho. Sabemos que algo está errado, mas não queremos saber. Entendemos a necessidade de seguirmos em frente, mas não entendemos por que. E assim vamos: presos à barra da saia de mães superprotetoras, no aparente conforto de um lar que nos oferece segurança e, como contrapartida, poda nossa liberdade e nos cobra obediência a regras infanto-juvenis. Queremos sair de casa. Mas não queremos.

Desde quando me mudei, virei uma espécie de guru para esse tipo de incerteza. Eu, que pensava ter sido o último solteiro da cidade a alugar uma quitinete, me vi cercado por pessoas em crise, cheias de dúvidas. Pessoas que trabalham, recebem salários razoáveis, freqüentam restaurantes bacanas, gastam uma fortuna com o combo do Cinemark mas, ainda assim, não sabem direito se estão aptas ao Grande Passo. Qual o momento certo?

A elas, só tenho a minha versão da experiência – ainda nebulosa. Não sei muito bem o que aconselhar (e, no mais, este não é um blog de autoajuda), mas compreendo esse tipo de cobrança. Para quem está longe do furacão, o drama pode parecer ridículo, insignificante. Tai você, zombando: “eu me mudei aos 12 anos para um cortiço, quando aprendi a conviver com estivadores e estelionatários: quem quer papo com essa gente imatura?” Para quem está metido lá dentro, é como desbravar uma selva sob ameaça de mães inconsoláveis, chantagens sentimentais, insegurança financeira, aluguéis caríssimos, filas de supermercado, IPTU, vizinhos rabugentos e medo de ter abandonado cedo demais os sonhos de juventude.

Eu, que não sou o superman, também sofri essa trama diabólica. Mas saí vivo e forte. Pergunto-me como.

Para variar, não vou me fazer de vítima: foi até fácil, sabe? Como arrancar um dente de leite. Não há entretenimento no processo de lidar com a papelada do aluguel do apartamento, e organizar as contas com alguma eficiência também leva um certo tempo. Mas, com dois ou três meses, nada disso passa a irritar. Quer dizer: a menos que a operadora de tevê a cabo vá à falência e o obrigue a comprar o pacote de uma concorrente acostumada a preços abusivos. Acontece. Mas é uma questão de saber definir uma margem de risco para absolutamente todas as situações do dia-a-dia. E lidar com autocontrole. Troquei os DVDs pelos livros. Cortei viagens. Não fui ao Coachella (ok, não iria mesmo). Há noites em que passo fome. Perdi cinco quilos. E não consigo reclamar de nada disso.

O que mais mudou na minha rotina não tem a ver com dinheiro, mas com relações familiares. Foi o grande baque. A maior ruptura. Talvez a aventura definitiva. Nesse ponto, tudo está diferente, e não tenho condições de prever o desenrolar da história. Quando me perguntam sobre o impacto da mudança, respondo de imediato: ganhei uma outra família. Note a confusão: eu, uma outra pessoa, ganhei uma outra família. Devo marcar terapia?

Se bem que, descubro lentamente, a boa nova tem um quê de maldição. Não é simples acostumar-se a um núcleo familiar renovado, e a primeira sensação é de que aquelas pessoas que você conhece intimamente não vivem mais com você (reparem que é uma sensação ao mesmo tempo óbvia e profunda). Você é uma visita querida, recebida com sorrisos e regalias. Ao mesmo tempo, você não está lá.

Desde que minha mãe passou a me receber com um generoso tapete vermelho (e toneladas de chocolate), não consigo encarar esse cenário sem dar algumas risadas. Parece que trocaram a aquela mulher por um robô adorável, programado para me agradar. E que, reparem a sofisticação da tecnologia, me telefona algumas vezes por semana para massagear meu ego e me perguntar se está tudo bem. O único defeito de fabricação é que, depois de duas ou três horas de visita, a andróide passa a lamentar a ausência do filho. Às vezes se tranca no quarto. Chora silenciosamente enquanto prepara o pudim.

Passei pela fase em que a distância da família parecia o paraíso. Ok, eu sei, tudo mundo vive esse tipo de coisa e eu devia estar escrevendo sobre o novo álbum do Bob Dylan. Mas veja: até meu padrasto, que não é de muita conversa, me recebia com análises demoradas sobre as principais notícias da semana. Minha irmã, que quase me trucidou com uma faca de cozinha quando eu tinha 14 anos de idade, faz convites graciosos para tocarmos violão e cantarmos canções bobinhas que escrevemos juntos quando éramos pequenos. Até meus cachorros parecem especialmente gentis. Eles sentem minha falta e, mais importante, querem demonstrar isso.

Levou quatro, quase cinco meses para que eu sentisse o empurrão. O susto. Depois de um período de intensa felicidade, me descobri afastado da minha família de uma forma que talvez nunca conseguirei entender. O que aconteceu? Quem deu permissão para que cortassem as cordas que me prendiam ao teto do teatro? Cumpro com afinco a rotina de visitas nos fins de semana, telefono e pergunto por novidades. Ainda assim, é como se eu não participasse ativamente de nada. No tempo em que levei para me acostumar com a ausência da minha família, eles se acostumaram com meu desaparecimento. E decidiram continuar vivendo, corajosamente.

É, veja bem, quase uma idéia de morte. Mais ou menos quando encerramos um longo caso amoroso.

Às pessoas perturbadas pela idéia de mudar-se de casa, evito comentar que existe sim uma conseqüência desagradável para essa saga: mesmo quando não se quer notar, você assina um contrato com a solidão. Ela estará lá, de qualquer jeito. Não haverá como evitar. De madrugada, quando todos os ruídos parecem bombas nucleares. Na estrada que nos leva de volta à casa, depois de um domingo em família. Principalmente quando nosso cérebro começar a tecer prognósticos de um futuro que parece assustadoramente indefinido, incompleto. Diante dele, estamos sós. Com os ruídos. Um apartamento vazio. E ninguém mais para nos guiar pela mão.

Pode ser que aí esteja a resposta para a pergunta que nos atormenta: o que vamos ser quando finalmente crescermos? Um pouco mais solitários, possivelmente. Mas com a esperança tranquila de que, um dia, já perfeitamente curados, conseguiremos lidar com esse e outros tipos de aflição. De uma forma adulta. E sem drama.