Thursday
♪ | Echoes of Silence | The Weeknd
Conhecemos Abel Tesfaye (aka The Weeknd) há apenas nove meses. Felizmente, não se sabe ainda muito sobre ele: imagino que, quando o canadense começar a aparecer nos clipes da Beyoncé e a tomar sol em iates, vamos sentir falta da época em que ainda conseguia dissolver a própria identidade dentro de canções misteriosas, cheias de segredos e armadilhas, talvez não exatamente autobiográficas (nem totalmente inventadas) – um homem na fumaça da ficção.
O noir Echoes of Silence é o último capítulo de uma trilogia de discos que começou com House of Balloons (em março) e seguiu com Thursday (numa quinta-feira de agosto). Como acontece no desfecho de qualquer série, este também pode provocar alguma melancolia nos “leitores” que acompanhavam a história desde o começo. Soa, a um só tempo, como o resumo (de uma aventura) e uma despedida. Tem muito da agonia bonita de um O Poderoso Chefão – Parte 3 – e um pouco das redundâncias tediosas de um Matrix Revolutions. Não é o grande disco que esperávamos de Abel – tampouco o pior.
House of Balloons, o primeiro ato, tinha as músicas mais sedutoras, as cenas de maior impacto, a ação, o drama e as surpresas. Thursday – uma espécie de after-party daquele disco – vinha num movimento um pouco mais arrastado, agônico, se alastrando lentamente como o remix dub de um álbum comercial de R&B. Echoes of Silence reprisa elementos dessas duas encenações, mas inclui um tema ao repertório de Abel: as consequências da fama.
Lavar a roupa suja do showbusiness se tornou um clichê na música pop, mas, no caso do The Weeknd, o clima de ressaca/decadência combina perfeitamente com a atmosfera dos discos anteriores, que viam a vida noturna de uma cidade grande (Montreal, digamos) como um teatro de vampiros, um enorme reality show em que pessoas comuns, solitárias, criavam identidades alternativas para conseguir afeto, sexo, drogas. A noite, para Abel, é um palco.
Mais do que os álbuns anteriores, Echoes of Silence estreita a distância entre Abel e os personagens que vagam nas canções do The Weeknd. Talvez por isso ele me pareça o disco mais inseguro da trilogia: em muitas das músicas, o que se ouve são os “posts” desesperados de um ídolo em ascensão, cheio de incertezas sobre o showbusiness e a ideia de sucesso. “Não cheguei ao topo, mas sinto como se estivesse lá. Me sinto bem”, avisa, em The Fall. Mas, em seguida, comete um ato falho: “Não tenho medo da queda. Já senti o chão antes.”
O medo a gente compreende. Mas queda? Quem falou em queda?
O brinde natalino do Weeknd chega num momento em que Abel dá tapinhas nas próprias costas enquanto lê as listas de melhores discos do ano, acompanha a ótima repercussão de Take Care (álbum de Drake em que participou), e produz remixes para Lady Gaga e Florence and the Machine. Nesse contexto, Echoes of Silence provoca a impressão inevitável de que Abel começa a se preocupar com o expediente da firma da indústria musical. Não acredito, no entanto, que o disco deva ser lido como mero diarinho, como espelho límpido pro artista.
Isso porque Abel segue criando tipos fantasmagóricos para compor as canções. Segue mesclando autobiografia e ficção. Não é sempre que usa a primeira pessoa para narrar as tramas – e, mesmo quando o faz, parece consciente do talento para storyteller. Em XO/The Host, por exemplo, ele volta ao cenário de The Morning para acompanhar a noitada incrível/terrível de uma mulher. O narrador, um mefisto vestido em couro, é aquele que oferece o caminho da perdição a essas almas perdidas/penadas.
Criar fantasias como alívio para um cotidiano insuportável é um tema que aparece na maior parte dessas nove faixas: está em Outside (sobre um casal que se tranca dentro de um quarto, Palmeiras Selvagens style), em Next (cuja protagonista flerta com o narrador só porque ele é o “próximo da fila”), em Initiation (sobre a primeira vez… com o ecstasy) e na faixa-título, a mais tocante do repertório de Abel. “Sei que você sente dor enquanto fazemos amor. Mas, se você está fingindo, vou fingir também”, propõe o ladie’s man patético de Outside.
A prosa segue atormentada, sem alívios. Nada se resolve (a fantasia logo e sempre desmorona). Nenhum romance se sustenta, e a noite segue implacável. Pena que, ao contrário do que acontecia em House of Balloons e Thursday, o cansaço dos personagens agora “vaza” para as melodias e para a produção de Illangelo (o “diretor de fotografia” de Abel), que não parece se sentir desafiado a criar imagens à altura do script do compositor. A faixa de abertura, uma versão de Dirty Diana (lado B de um Michael Jackson fase Bad) é Weeknd as usual: guitarras machonas de hard rock versus batidão-zumbi. Não chega a assustar.
No mais, falta imaginação ao disco: as nuances de House of Balloons, minimizadas em Thursday, são trocadas por uma palheta de cinzas-chapados, repetitivos, que não fazem muito além de reafirmar os traços sombrios das faixas mais conhecidas do The Weeknd (Wicked Games, principalmente, e sempre ela). Para quem ouve, é como voltar pela segunda vez à cena de um crime.
Ao menos, Abel cria uma bela cena de encerramento. A faixa-título, mais um conto sobre amor masoquista, fecha com um dos raros momentos de sinceridade de um narrador cínico, degenerado. À mulher que decepcionou, o homem faz um pedido sussurrado: “Não abandone a minha vidinha.” E a cortina desce, silenciosamente.
Terceiro disco do The Weeknd. Nove faixas, com produção de Illangelo, Clams Casino e DropxLife. XO Records. Baixe aqui: http://the-weeknd.com. 69
Thursday | The Weeknd
Thursday, a segunda mixtape do The Weeknd, é uma continuação de House of balloons, lançada há cinco meses. Mas não uma sequência direta, linear. O que o álbum novo faz é cavar um porão que nos leva ao subsolo daquele outro disco — e, principalmente, a uma camada subterrânea onde germinam as sementes sinistras da faixa mais elogiada que eles lançaram até aqui, Wicked games.
Essa não é, se você quer mesmo saber, a minha música preferida naquele álbum. Mas ela passou a representar, para todos os efeitos, a sonoridade que o Weeknd ia tateando ali: uma versão beira-de-abismo, degenerada, para o R&B comercial. Os lugares-comuns do gênero (a sensualidade forçada, o romantismo canalha, a macheza quase grotesca) eram distorcidos até soar, a um só tempo, monstruosos e plausíveis — como num bom thriller psicológico.
No post sobre House of balloons, escrevi sobre o viés do disco que mais me impressiona: ele soa como uma ótima narrativa de ficção. O canadense Abel Tesfaye (com os produtores Doc McKinney e Illangelo) criou um personagem noturno e autodestrutivo que poderia ser encontrado num livro de Bret Easton Ellis, por exemplo, ou de um Chuck Palahniuk.
O tipo era encenado com tanta convicção que, para o bem das licenças poéticas, teve que permanecer oculto: Abel ainda se recusa a dar entrevistas, e faz poucos shows. Talvez por entender que as mentiras do Weeknd nos atraem porque permitem que a nossa imaginação participe da composição da narrativa — mais ou menos como fazemos ao ler um bom romance.
Em Thursday, esse herói dark retorna para uma aventura nova. Mas, ao contrário de House of balloons, que alternava momentos de euforia e de crises quase suicidas (e o melhor exemplo dessa bipolaridade é a faixa de duas faces The party & the after party), desta vez encontramos o personagem num estado de quase paralisia. E numa madrugada ainda mais congelante.
Em Wicked games, que explica quase tudo sobre esta mixtape nova, Abel resumia as noitadas do The Weeknd com um “diga que me ama, mas só por esta noite” (e, antes disso, “traga as drogas, baby, que eu trarei minha dor”). Thursday alarga essa sensação de experiências vazias, relacionamentos apáticos e amores que só têm serventia até o momento em que a dor passa.
O discurso hedonista do The Weeknd pode ser interpretado como o reflexo de uma estética musical publicitária e juvenil (que eles consomem e vomitam em seleções de MP3 for-free) ou como uma reação, um comentário sobre os artifícios do pop. Não se sabe, e Abel não faz questão de explicar. O que ele faz é forçar fissuras do formato de um típico hit de R&B. Não há futuro possível para os personagens de faixas como The birds, pt 1. “Nunca se apaixone por um sujeito como eu”, ele canta. E sem o entusiasmo: a ideia de liberdade, aqui, não resolve muita coisa.
Mas, voltando a Wicked games, Thursday soa como um longo prolongamento daquela música (às vezes longo demais). Cá estão as guitarras de goth rock, os versos depressivos, o fumacê sonoro que nos remete a um disco como Mezzanine, do Massive Attack, e os gemidos cada vez mais agudos, dilacerados mesmo, de Abel. Algumas músicas não terminam nunca — é um disco longo, agonizante, e soa assim porque é a forma como esta história deve ser contada.
Em comparação a House of balloons, no entanto, Thursday soa como um apêndice — uma cena que expande outra cena, uma espécie de extra de DVD. Tudo o que aparece aqui já estava lá, só que é saturado numa textura granulada, desfocada por efeitos de dub e por guitarras que explodem e depois vão apodrecendo lentamente.
Também em comparação ao outro disco, este me parece um tanto mais apressado, como se tivesse sido escrito numa madrugada (enquanto que o outro parece elaborado com mais paciência). Os versos ruminam cenas redundantes e, com um pouco de boa vontade do ouvinte, podem sugerir uma narrativa circular, uma ressaca dentro de uma ressaca dentro de uma ressaca. “Não quero morrer esta noite, baby”, diz Abel, na modorrenta The zone (com participação de Drake).
Se não é dos capítulos mais poderosos, Thursday entrega um personagem agora completo: o herói decadente de House of balloons caminha pela cidade como um pária de graphic novel. Que nos seduz e enoja — e nos obriga a esperar pelos próximos capítulos com curiosidade, mesmo que mórbida.
Segunda mixtape do The Weeknd. Nove faixas, com produção de Doc McKinney e Illangelo. Faça o download aqui. 76