The XX

House of balloons | The Weeknd

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“Saiam da sala!”, nossa professora ordenava, num tom irônico de madrasta malvada, quando nos passava os exercícios que exigiam total concentração. Era engraçado. Não conheci outra que odiasse tanto a sala de aula: para essa senhora de rosto quadrado e centenas de dentes, as melhores ideias surgiam lá fora.

E, se bem lembro, os meninos e as meninas quase nunca estávamos entre quatro paredes. Sempre sentados no canto da quadra esportiva, nos corredores, perto da lanchonete, no canteiro lisérgico (coloridíssimo) da pré-escola. Caderno, lápis e oxigênio. Não é por pouco que sinto tanta saudade da minha sétima série, da professora de português, da arquitetura vazada do colégio, do cheiro de tinta fresca que eu reconheceria se o prédio ainda estivesse de pé. Não está.

O importante para este texto, antes que eu me perca, tem a ver com uma dessas lições ao ar livre. Era um exercício simples: teríamos que observar a paisagem e escrever um parágrafo em primeira pessoa. Moleza. Levei 15 minutos para cumprir a tarefa, entreguei a folha e fui comer um salgadinho na cantina.

Antes que eu devorasse a coxinha de galinha, porém, a mulherona quadrada apareceu no refeitório. “Tiago, o que é isto?”, e ela parecia intrigada. Não entendi o motivo do espanto e suspeitei que eu não tivesse compreendido a lição. Será que troquei as bolas? Será que escrevi o que não devia? Será que tropecei em alguma proibição secreta? A coxinha esfriava.

“Me explique isto aqui, Tiago: ‘O dia está bonito, o sol brilha com muita força…” (e, enquanto ela recitava meu parágrafo infeliz, eu lamentava mentalmente o textinho absolutamente ordinário; mas era tudo o que eu conseguia naquele momento, naquelas condições, me perdoe) “… e as crianças brincam na pista asfaltada que dá para a W3. O vento brinca com os meus cabelos, que caem na minha testa e tampam minha visão.” Nesse momento, ela parou.

Fiquei esperando o restante, o fim da punição. Era um texto vergonhoso, eu sabia. Ficaria pior. Mas ela interrompeu a leitura e ficou admirando meu rosto – que, por sua vez, admirava um ponto de interrogação invisível.

“O que você quis dizer com isso, Tiago?”, ela quis saber.

“Não sei sobre o que cê ta falando, tia”, eu desconversei.

“O vento brincou com seus cabelos, foi? Os seus cabelos caíram na sua testa, foi? Mas que cabelo, Tiago? Que cabelo?”

(naquela época, eu pedia para que o barbeiro caprichasse na máquina 4).

Não havia muito cabelo, é verdade.

Eu poderia ter arrumado várias explicações para a minha licença poética, mas nenhuma seria aceitável. Então, no desespero, saquei uma resposta que me surpreendeu:

“Não sou eu aí no texto, tia. É meu eu-lírico”.

A explicação deu tão certo, colou tão bem colada que, daí em diante, a professora me adotou como aluno favorito. Eu, o número 1, parecia entender os mistérios da literatura. Eu, o especial, sabia me mover no pântano da ficção.

É claro que eu era nadaa daquilo. Eu tinha 12 anos. Eu escrevia bobagens. Eu era um farsante, um sortudo, um joguete do destino. Mas a reação entusiasmada da professora acabou me ensinando que devemos desconfiar dos textos escritos em primeira pessoa (e dos pré-adolescentes com crises de autoestima). Eles mentem. Eles trapaceiam. Eles nos engabelam.

Pois bem.

Lembrei dessa historinha tola quando procurei (e não encontrei) informações sobre o The Weeknd, a “banda” (deveríamos chamá-lo assim?) que está grudada na barra da saia do meu iTunes há algumas semanas, feito menino órfão. Ela não quer, não vai me abandonar enquanto eu não a adote para sempre.

O que me atrai nessa narrativa em primeira pessoa chamada House of balloons é o quanto ela parece pouco confiável. Uma grande mentira, certo? Tudo o que dizem sobre o The Weeknd é o dono do projeto atende por Abel Tesfaye. Ele é canadense. E o Drake, nosso herói sentimental do R&B, curte tweetar elogios para o sujeito.

Se você fuçar um pouco mais no Google, porém, vai descobrir que o terreno é mais movediço. Há quem diga que Abel é o pseudônimo de alguém conhecido, um rapper famoso ou quase-famoso. Há quem diga que ele não é canadense. Há quem diga que ele é um personagem de ficção. Boatos. Intrigas. Folhetim.

Por mim, tanto fez. Sinceramente. A obscuridade do The Weeknd (cuja mixtape House of balloons foi lançada de graça na web e, note a ironia da coisa, é tão coesa que não parece em nada com aquilo que entendemos por mixtape) conta como um fator de interesse, um elemento de suspense. É. Nada é o que parece ser (a menos que alguém comprove o contrário). Tenho centenas de razões para assegurar que o personagem principal das músicas não é o autor dessas canções.

O menino de cabelos longos, vocês sabem, era e não era eu.

As nove faixas desse disco são narradas por um homem noturno, febril, lascivo, que se pendura de balada em balada como um animal eternamente faminto, empapuçado de dólares, álcool e cocaína. “Confie em mim, garota. Você quer ficar alta com isso”, ele promete, já na faixa de abertura. E depois tem mais: “Ele é quem você quer. Eu sou quem você precisa.” O Don Juan veste Prada.

Nesta mixtape, o mundo é observado através da percepção turva desse narrador-rimbaudiano: já na primeira música, ele soa entediado. É muito dinheiro, e “o dinheiro é o motivo” (em The morning). “Você trás as drogas e eu levo a minha dor”, ele avisa (em Wicked games). A festa começa, a festa termina, e o que resta é a sensação de que estamos congelados num plano em preto-e-branco, sob luzes frias. Tudo se move e estamos um pouco tontos e tristes.

Ouço o disco duas, três vezes, e a impressão me parece definitiva (ainda que não seja): esse narrador totalmente confiante, solto no mundo, violento e estilhaçado, não poderia ter escrito canções tão simétricas, elegantes, calculadas, que equilibram lindamente hip-hop, soul music e goth rock e parecem (isso sim) ter nascido após dezenas de madrugadas perdidas dentro de estúdios de gravação.

Eu apostaria que Abel é tão nerd, tão branquelo e frágil quanto os meninos do The XX ou quanto James Blake. Não apostaria que é um bom vivant movido por instinto e estrondo (mas posso estar errado; e a graça, meus amigos, está nesse mistério).

House of balloons é um disco de detalhes reluzentes, e um trechinho dele (talvez o mais brilhante) explica por que ele só poderia ter sido criado por um produtor muito sóbrio e obsessivo: a forma absolutamente precisa como o sampler de Happy house, da Siouxsie and the Banshees, é adaptado no refrão da faixa título. Nada menos que sublime (e há um trecho de Beach House igualmente arrepiante).

Ou a forma como a entonação de Abel em The morning – sussurros para uma noite maldormida – acaba contradizendo (ou, pelo menos, assombrando) versos sobre dinheiro e farra. “Eu faço essas paredes vibrarem como se estivessem grávidas de seis meses”, ele promete. Mas soa como se as paredes o ameaçassem– e elas desabam.

O enigma engrandece, alarga, enevoa o disco (da mesma forma como os segredos do Belle and Sebastian tornavam If you’re feeling sinister um álbum muito mais saboroso; nos sentíamos à vontade para moldá-lo da forma como bem entendêssemos) até transformá-lo, por fim, numa obra de ficção muito bem engendrada.

Percebo o personagem-narrador e noto o autor, que nos acena com melodias, arranjos, samplers e um trabalho de produção delicadíssimo, de sensibilidade incomum, sinistro e emotivo em igual medida.

Outro dia, vimos aqui em Brasília um filme brasileiro, O céu sobre os ombros, que parte do princípio de que os atores devem interpretam eles próprios. É um curto-circuito de ficção e documentário: os atores escolhem episódios do próprio cotidiano, que serão encenados para o filme. Numa das cenas, uma personagem transsexual, prostituta, transa com um “cliente” dentro do carro, diante de um semáforo. Não fica claro, no filme, se o sexo ocorreu de verdade ou se foi encenado. As imagens apenas sugerem: o espectador que se vire com elas.

Ao fim de sessão, uma repórter não resistiu e, curiosa para vencer as barreiras impostas pelo filme, foi perguntar à transsexual se a cena havia sido encenada ou não. Ao que ela veio com uma resposta ainda mais intrigante: “Foi tudo totalmente ensaiado”, ela disse. E arrematou: “Contratamos um ator pornô, fomos à rua, transamos de verdade, mas ele nem gozou. Tudo ficção.”

Minha professora de português, estou certo, entenderia.

Primeiro disco do The Weeknd. Nove faixas, com produção de Don McKinney e Illangelo. Independente. Baixe em www.the-weeknd.com. 8.5/10

James Blake | James Blake

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Quando o avião desceu no aeroporto de Brasília, domingo à noite, ainda não chovia. Mas lembro do céu avermelhado — aquele vermelho escuro, sangrento, vazando entre as nuvens, prestes a desmoronar num aguaceiro. Desde que moro na cidade (e cheguei há quase 20 anos), é uma imagem que me deixa agoniado. Por aqui temos céu em exagero — quando ele se enfeza, não há como ignorá-lo.

Mas o curioso é que, apesar da fúria climática, eu estava tranquilo. Nada me assustava naquele momento. Mais estranho que isso: nada, nem a vermelhidão do céu, despertava um átomo sequer da minha atenção. Eu flutuava anestesiado no setor de desembarque. No espelho do banheiro, tudo o que consegui notar foi um menino com um sorriso impossível de ser desfeito, perplexo diante de um aquário gigante. O que acontecia?

Algumas horas antes, quando anunciaram que o aeroporto de São Paulo seria fechado por conta do mau tempo (e as pessoas pareciam preocupadas com as pancadas medonhas de chuva), eu me senti aliviado por ficar mais algum tempo naquela enorme sala de espera, aquele purgatório refrigerado, eu e dezenas de desconhecidos. Não tenho certeza, mas devo ter pedido um suco de laranja.

Eu estava desligado da cidade, do mundo, um pouco desligado da vida. Uma sensação de torpor que, para mim, não é tão comum. Só que não era uma sensação ruim. Naquele fim de semana, algo novo começara. Havia um terreno a ser habitado — e ele se abria diante dos meus olhos. Fui procurar meus fones de ouvido e liguei, não por acaso, no disco do James Blake.

É um álbum que me acompanha desde o fim de dezembro, e que, aposto, vai me seguir durante o ano. Uma espécie de vulto, de nuvem vermelha. Que pode soar ameaçador, mas acho que vai me fazer bem.

Quando escrevi sobre Kaputt, do Destroyer, percebi no disco algo sobre as tentativas que às vezes fazemos para recriar a vida, alterar um destino que nos parece cômodo. A transformação da banda de Dan Bejar se comunicava diretamente com o meu desejo de abandonar para sempre algumas experiências recentes, desastrosas: o fim de um longo namoro e a dificuldade de aceitar um cotidiano que me parecia vazio, incompleto.

O disco do James Blake ressoa de uma forma parecida, ainda que mais profunda. É um álbum com lacunas que ainda não foram preenchidas. De certa forma, soa como um esboço de canções em branco e preto à espera de um retoque, de uma aquarela. “Está germinando”, diz Blake.

E é assim que, nessas canções desencarnadas, eu me enxergo.

Haverá muitos textos sobre este disco, comparações rasteiras serão feitas (Antony and the Johnsons, Thom Yorke), prevejo um bombardeio de hype e bajulação (em 2010, os Eps do britânico entraram no alto de melhores do ano da Pitchfork). Mas espero que não subestimem o que há de singular na arte de Blake: a forma como as canções se desnudam até soar quase como sussurros, monólogos secretos. Elas abrem espaços silenciosos onde nós, os ouvintes, podemos criar as imagens que bem entendemos. Em resumo: podemos colorir essas músicas e, assim, torná-las um pouco nossas.

Blake comenta em entrevistas que o disco de estreia do The XX foi uma grande inspiração. Há semelhanças. São dois álbuns que depuram as canções até um formato muito econômico, quase frágil. Negam os efeitos mais artificiais e as firulas de estúdio para valorizar a força dramática da hesitação, das cenas em que nada parece acontecer.

A diferença é que não consigo notar no disco de Blake as referências oitentistas do The XX: o compositor cria uma conexão estreita entre a soul music dos anos 1970 e o dubstep (e toda a eletrônica mais minimalista, daí a semelhança com o projeto solo de Yorke) dos anos 2000. Blake é um soulman escrevendo a trilha para as madrugadas de 2011.

Como acontece com o début do The XX, ele soa especialmente forte quando cruzamos as ruas largas de Brasília. Talvez por ser uma cidade que ainda não está pronta, que não nos mostra a cada minuto o quanto estamos sozinhos sob um céu onipresente. Blake mal faz desconfia, mas escreveu um disco bem brasiliense, que será compreendido integralmente por quem dirige no Eixão às duas da manhã numa noite chuvosa. Concreto e silêncio.

No meu caso, ele representa um pouco mais do que isso. As canções de Blake até me confortam, já que me sugerem a possibilidade de um recomeço. É assim que interpreto o disco: uma estreia que me emociona por soar verdadeiramente como uma estreia. Blake começa de um arcabouço vazio e vai erguendo lentamente, cuidadosamente, os tijolos de cada faixa. O prédio parece alto, mas o disco termina antes do segundo andar.

Os versos são curtos, confessionais, e se repetem num loop hipnótico. “Tudo o que sei é que estou caindo, caindo, caindo”, ele diz, em The Wilhelm scream, “Meu irmão e minha irmã não falam comigo, mas eu não os culpo”, entrega, em I never learnt to share. Até a adaptação de Limit to your love, de Feist, soa particular: “Há um limite para o seu amor, como um mapa sem oceanos”. Enquanto Blake se expõe — tão franco quanto um Jeff Buckley —, as melodias vão formando estruturas quebradiças de eletrônica e blues. É um disco de inverno, quase sempre melancólico, suicida. Mas tudo sob controle: uma encenação muito bem arquitetada.

Em apenas 38 minutos de duração, Blake isola o conceito do disco num recipiente fechado, quase que em vácuo. A concisão pode provocar algum incômodo (será criticado por soar monótono, anotem aí), mas, numa época em que os grandes discos tentam soar gigantescos, esta parece uma ousadia muito bem-vinda.

Depois de chegar em Brasília, na madrugada de domingo, ouvi ainda mais uma vez. Meus fones tremendo, volume máximo, as nuvens desabando lá fora. Numa época recente, ele despertaria em mim os sentimentos mais chuvosos. Neste incrível início de 2011, que me transformou repentinamente num homem otimista e feliz (uma criança pequena num playground), soa como algo totalmente diferente: um primeiro disco para o resto da minha vida.

Primeiro disco de James Blake. 11 faixas, com produção de James Blake. Lançamento Atlas/A&M. 8.5/10

Let go | jj

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Os suecos misteriosos do jj (que estão com disco novo na praça, jj 3) não gostam de dar entrevistas, se recusam a posar de astros, e, se pudessem, evitariam revelar os próprios nomes (mas anote aí: Joakim Benon e Elin Kastlander). O elegante clipe de Let go, dirigido por Marcus Söderlund, desfaz um pouco o enigma e explica por que a banda foi convidada para abrir shows do The XX nos Estados Unidos: este também é um mundo em preto, branco e vermelho-sangue.

VCR | The XX

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Faz tempo que o The XX estava merecendo um clipe assim, tão elegante e preciso quanto o som da banda. O diretor Marcus Söderlund, que parece ter estudado o disco de estreia do quarteto, entendeu tudo. Nessas canções, aparentemente tão calculadas, o amor é de aquecer (e, por fim, colorir) fotografias em branco e preto.

Adeus, 2009 | Superoito’s mixtape, parte 2

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Meu segundo best-of de 2009 saiu um pouco menos sombrio do que o primeiro, mas não tanto quanto eu esperava. Talvez o ano tenha sido assim mesmo: meio bizarro, osso duro de roer. Paciência.

Aos menos melancólicos, fica a dica: da sétima faixa em diante, a pista esquenta.

E tem pra todo mundo – uma óbvia do Dirty Projetors (eles estão ali em cima, na foto que abre o post), uma não tão óbvia do Animal Collective, um balanço charmoso do Basement Jaxx, a “devoradora de homens” Neko Case, o hit improvável do Phoenix e, claro, Fever Ray (para Diego e Filipe). Espero que vocês sofram um pouco, mas se divirtam.

Ei:  um abraço a quem baixou a primeira coletânea. O número de downloads me surpreendeu. E, já que a ideia não é um fiasco completo, em janeiro de 2010 começo a preparar coletâneas mensais.

Eis a tracklist desta nova mixtape:

1. Stillness is the move – Dirty Projectors
2. When I grow up – Fever Ray
3. Crystalised – The XX
4. Laura – Girls
5. Bonfires on the heath – The Clientele
6. Bluish – Animal Collective
7. People got a lotta nerve – Neko Case
8. 1901 – Phoenix
9. Ecstasy – JJ
10. Feelings gone – Basement Jaxx
11. Moth’s wings – Passion Pit

Faça o download (via Rapidshare): Superoito’s mixtape 2009, parte 2

E, ainda nesta semana, devo terminar minha lista de melhores filmes do ano. Até.

Adeus, 2009 | Os melhores álbuns do ano (parte 2)

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É isso, meus irmãos: o top dos melhores discos de 2009 está aí, galante e inteirinho para quem quiser ver. Mas lembro que, até o fim da próxima semana, a série Adeus, 2009 segue com a lista dos meus filmes favoritos (que será fechada assim que eu conseguir me livrar do trabalho e assistir a Avatar) e mais uma mixtape que, espero, será um pouco menos acinzentada do que a anterior. Espero que tudo termine bem. Enquanto isso… 

10. The Pains of Being Pure at Heart – The Pains of Being Pure at Heart

Certeza que o Pains of Being Pure at Heart nasceu mesmo em Nova York? Para mim, ainda soam como quatro galeses que, depois de passar o inverno ouvindo The Jesus and Mary Chain e Belle and Sebastian, resolveram passar o verão na Suécia: leram livros cabeçudos, gravaram um disco de rock, e lembraram dos dias calorosos de adolescência. Tipinhos blasé. Que sabem como matar o tempo de uma forma produtiva.

9. Together through life – Bob Dylan

O tempo de Dylan é ontem? É hoje? Não me pergunte. Together through life é mais um álbum que ri sarcasticamente das regrinhas do pop contemporâneo e inventa o som de uma época que talvez nunca tenha existido. Atenção para a sinopse: este é um road movie (em sépia) sobre a pré-história do rock, encenado por um ator/diretor que, impertinente, insiste em esnobar nossas expectativas. Moral da história: mais uma vez, o gênio ri por último.

8. Fever Ray – Fever Ray

A estreia solo de Karin Dreijer Andersson (a mulher-mutante-zumbi à frente do The Knife) é um breu. Não deve, por isso, ser ouvida de luzes apagadas. Como numa produção de horror alemã dos anos 1920, seres estranhos se movimentam lentamente sob sombras. Mais assustador é notar que, na tradição de um Portishead, trata-se de um álbum sobre o terror do cotidiano — que nos aflige entre quatro paredes de concreto. Sabe qual? Aquele que não poupa ninguém.

7. XX – The XX

Quatro moleques de 20 e poucos anos. O que eles teriam a dizer sobre o estado do rock britânico? Praticamente tudo. Mesmo sem querer, o primeiro disco do The XX soa como uma resposta a anos de grandiloquência, ambições épicas e uso descontrolado de fumaça artificial. Com fé quase cega na sutileza, a banda grava lindos esqueletos de love songs que, para nossa completa surpresa, soam mais sensuais que qualquer hit da Kylie Minogue. Sem exageros: um tesão de disco.

6. Dragonslayer – Sunset Rubdown

Pobrezinhos de nós, fãs do Wolf Parade. Depois do tufão chamado Dragonslayer, eu não me impressionaria se os canadenses resolvessem tirar recesso por tempo indeterminado. No disco, o exército de Spencer Krug renasce como uma criatura à parte, ameaçadora e misteriosa. É caminho sem volta: em apenas oito faixas (monumentais, ambiciosas), a banda cobra um lugar espaçoso no mundo. E não deixa que sintamos saudades daquele outro projeto de Krug.

5. Album – Girls

Conhecer a história de Christopher Owens não é fundamental para amar deste álbum (e amá-lo é muito fácil). Mas ela nos ajuda a entender por que um sujeito que passou a infância e a adolescência trancado num culto religioso estupidamente radical resolveu gravar um disco que soa como um grito de liberdade. Do rock ‘n’ roll ao noise, o Girls metralha canções com a alegria angustiante de quem finalmente abre um baú que havia sido trancado à força. Catarse. Ou, se preferir, apenas o som de uma juventude perdida.

4. Two dancers – Wild Beasts

No rock contemporâneo, muitas são as bandas conservadoras que se fazem de ultramodernas. Mas poucas tentam entender o que faz do “rock clássico” um porto seguro tão atraente para fãs de música pop. O Wild Beasts é, por isso, uma raridade: uma banda que abandonou tiques do indie para estudar a arte da canção. Two dancers parece familiar (e tipicamente britânico) desde a primeira audição. Mas a fórmula é revigorada de tal forma – pelas performances lânguidas dos vocalistas, pelos versos enigmáticos, pela atmosfera sombria e decadente que envolve as músicas – que, perto dele, qualquer hit do Coldplay parece desonesto. Nada de novo nessa história. Mas não é sempre que a tradição soa tão urgente.

3. Bitte orca – Dirty Projectors

Não importa quanto tempo você invista no álbum-revelação do Dirty Projectors: ele sempre deixará a sensação de uma obra aberta – uma narrativa sem desfecho. O processo criativo de Dave Longstreth é tão caótico que deixa a impressão de haver vários projetos em estágio embrionário dentro de Bitte orca. Essa profusão de ideias (quase todas inusitadas: há folk, pós-punk, afropop e o diabo) permite ao ouvinte um prazer incomum: somos convidados a nos perder dentro de um álbum de rock. Como nas melhores aventuras, o desafio é totalmente recompensado.

2. Veckatimest – Grizzly Bear

Veckatimest é o contra-ataque que não esperávamos do Grizzly Bear. Muitos fãs do disco anterior, Yellow house, talvez teriam apostado num álbum mais extrovertido e pop (ou, num sentido oposto, mais radical, experimental). Mas a banda – mais madura do que eu e você, possivelmente – preferiu seguir uma trilha mais enigmática. Sob neblina seca, o disco condensa as experiências anteriores (do rock californiano a uma psicodelia dura, quase entorpecida, quase fria) num molde absolutamente compacto. É como se todas as canções inesperadamente decidissem narrar uma só história, com a atmosfera desolada (mas com momentos de esperança e beleza) de um conto de fadas para adultos. Talvez seria melhor ouvir este disco em meio à leitura de A estrada, de Cormac McCarthy. Ou após uma sessão de Deserto vermelho, do Antonioni. Quem sabe aí começaríamos a entendê-lo?

1. Merriweather Post Pavilion – Animal Collective

Escrevi meus primeiros comentários sobre MPP (e o chamo assim porque somos íntimos) há exatamente um ano. Naquele dezembro, já dava para notar que seria quase impossível encontrar um concorrente à altura do impacto provocado por um disco que soa extraordinário até para os padrões (muito altos) do Animal Collective. Muito se falou sobre como a banda trata a música eletrônica – da mesma forma curiosa (infantil, no melhor dos sentidos) como brincou com elementos do folk e da música experimental. Mas o álbum ainda me deslumbra por outro motivo: por mostrar com clareza a face humana do trio.

Como sempre, não há limites para a invenção musical. O que faz de MPP uma obra-prima, no entanto, é como essa sonoridade irrequieta dialoga com os versos mais francos e emotivos que eles já gravaram. Depois da viagem ao fundo do coração selvagem, eis que encontramos a maior surpresa: Avey Tare, Panda Bear e Geologist, artistas do inusitado, também se sentem perdidos diante das incertezas do nosso mundo. Exatamente como quase todos nós.

Tarot sport | Fuck Buttons

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A ótima aceitação aos álbuns do The XX e do Wild Beasts pode deixar a impressão de que o rock britânico passa por um período muito propício à sutileza e à contenção. Esses dois discos, propositadamente, soam como a arquitetura de Bauhaus (a escola alemã): ainda que influenciadas pela estética sombria dos anos 1980, cada acorde cumpre uma determinada função, as faixas duram apenas o necessário e nenhuma palavra é usada à toa. As canções emocionam por parecer mais simples do que realmente são.

A parte curiosa dessa história (e que pode confundir muito jornalista apressado) é que, num universo paralelo ao dessa “tendência”, há bandas elogiadíssimas que seguem um caminho radicalmente contrário ao do desejo de minimalismo. É o caso do The Horrors (que ocupa a primeira posição na lista da New Musical Express) e do Fuck Buttons. Aí, não há lacunas a serem preenchidas: a música nos soterra em camadas de efeitos, é rebuscada feito arte barroca e, nos momentos mais estridentes, provoca o incômodo de um vinil arranhado.

É claro que, durante o ano, muitas foram as bandas que oscilaram de um extremo a outro. Mas os extremos impressionam.

O novo disco do Fuck Buttons, por exemplo, é o mais próximo que o rock inglês chegou do noise anárquico do Dan Deacon. O álbum anterior, Street horrrsing, levava o pós-rock dos anos 1990 alturas antes inimagináveis (o disco era produzido, não por coincidência, pelo guitarrista do Mogwai, John Cummings). Era um ataque frontal de guitarras em crise nervosa, com breves momentos de doçura (que ninguém é de ferro) e entusiasmo quase juvenil (uma das faixas atende por Okay, let’s talk about magic).

Enquanto o Wild Beasts se transformava numa banda mais sóbria e elegante, Andrew Hung e Benjamin John Power fizeram da transição para o segundo álbum um espetáculo grandiloquente de fogos de artifício. Tarot sport inclui no caldo fervilhante da dupla o elemento que faltava: um quê de euforia eletrônica. O produtor e DJ Andrew Weatherall havia feito um remix delirante para Sweet love for planet Earth. Presumo que a banda, entusiasmada com o resultado, tenha decidido gravar um disco que soasse como um intenso remix do álbum de estreia. Superficialmente, Tarot sport é isso.

Como o álbum de Dan Deacon, esse também se beneficia de repetidas audições. Com faixas longas (quatro delas têm mais de nove minutos de duração) que se conectam umas às outras, o disco nos confronta com agressividade e velocidade. É uma pancada. A abertura, Surf solar, resume as intenções da dupla: um loop de eletrônica repetido à exaustão, num galope cada vez mais acelerado, envolvido num manto de sintetizadores que parecem tirados de uma trilha de filme de ficção científica. O barulho é o da explosão que acompanha a decolagem.

Nas faixas seguintes, o disco sai do solo violentamente, em chamas. Rough steez abre com ruídos industriais e, subitamente, é corrompida por barulhinhos de videogame. Em The Lisbon Maru, a nave flutua graciosamente no espaço — e sugere cenas deslumbrantes. O transe continua em Olympians (o mais perto que o disco chega das melodias doloridas de Come on die young, do Mogwai). A tensão volta a apertar em Phantom limb e Space mountain, até desembarcar de forma sublime na feérica Flight of the feathered.

Mais que uma viagem insólita, Tarot sport quebra as limitações do pós-rock ao agregar elementos que, por outras bandas do gênero, eram tratados como lixo espacial. Cacos de pop, techno, drum ‘n’ bass e drone transformam cada faixa numa colagem disparatada, absurda, excitante de referências. Excessivo, sim. Exaustivo, sem dúvida. Mas como resistir a uma banda que abre os braços para abraçar um universo inteiro?

Segundo disco do Fuck Buttons. Sete faixas, com produção de Andrew Weatherall. Lançamento ATP Recordings. 8/10

XX | The XX

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thexxAs bandas de Brasília deveriam fazer discos como este, não? O tipo de álbum que ressalta as lacunas entre acordes, o vazio que vive dentro das notas, as fendas abertas entre um verso e um refrão, o eco de um estalo eletrônico, o diálogo sussurrado e tenso entre dois vocalistas – um homem e uma mulher, aposto que trancados num quarto escuro.

Seria bonito. Não que tenha sido proposital, imagine. Mas esta estreia do The XX poderia muito bem servir de modelo para as bandas que tentam entender os ruídos brancos de Brasília. Ele parece até ter sido gravado entre as paredes neutras dos monumentos de Niemeyer, diante do horizonte infinito (no início da manhã). O disco todo passa uma sensação de incômoda polidez e organização que é a própria imagem de Brasília aos domingos. Ou de outra cidade como esta, se é que ela existe.

Sejamos menos específicos, então (já que os três leitores deste blog não moram na capital e, por isso, não têm nada a ver com isso): é um álbum londrino que cria uma atmosfera urbana, uma arquitetura musical de concreto e vidro – e habita esse espaço com sentimentos universais: amor, desejo sexual, saudade, hesitação. As programações eletrônicas de Jamie Smith criam um ambiente refrigerado, contemporâneo. Enquanto isso, o jogo de vozes entre Oliver Sim e Romy Madley Croft (boy meets girl) aquece a sala.

Não sei se estou soando abstrato demais (e perdão, turma: acho que perdi o hábito de escrever esses textinhos de blog e provavelmente todos sairão meio mancos daqui em diante), mas tento dizer que esta bandinha inglesa, cujos integrantes têm 20 anos de idade e ainda parecem adolescentes, consegue um tipo de equilíbrio que sempre pareceu raro no pop: encontram um ponto equidistante entre uma sonoridade em parte cerebral e um discurso emotivo, sensual. É o álbum de soul music que o Hot Chip tenta e ainda não consegue fazer.

Nada fácil, portanto. O bacana é que eles conseguem fazer com que a mágica pareça muito simples, até natural. Daí a graça do disco (que não é perfeito, mas surpreendentemente maduro). Notem que, até aqui, não falei sobre o hype criado em torno da banda, tratada pela imprensa britânica como a sensação de agosto. Vale sim notar que o quarteto foge do padrão vigente na ilha (não é grandioso, não se escora em guitarras aceleradas, não sofre de complexo de épico, não é feito para pistas de dança etc), mas esse é um caso em que o disco é mais interessante que o falatório criado em torno dele.

E é uma OBRA que acerta por fazer tudo “errado”. A banda demorou mais de um ano para gravar estes 38 minutos. Com a chave do estúdio, viravam madrugadas acertando mínimos detalhes das canções. Esse cuidado transborda no disco. Mais que isso, o que impressiona é a concisão. Numa entrevista, a banda contou que, na etapa final das gravações, resolveu reduzir todas as faixas ao mínimo, ao essencial. Limou todos os ornamentos, tudo. Daí a sensação de ouvirmos um disco tão enxuto quanto Kill the moonlight, do Spoon, ou o do Postal Service. Aqui, menos é verdadeiramente mais.

Essa economia de recursos produz pelo menos um efeito curioso: as músicas evocam certas referências (Interpol, Radiohead, até Chris Isaak e soft rock) de uma forma discreta, como se citasse delicadamente a obra alheia. A banda optou por produzir o disco talvez para procurar uma voz particular. Encontraram: por mais que lembrem outras bandas, faixas como VCR, Crystalised e Night time é deles e de mais ninguém. E são canções de difícil definição: não são electro, não são trip hop, não são pós-rock, não são shoegazing, ainda que lembrem um pouco todos esses gêneros.

E, por mais que seja um estilo ainda sujeito a uma ou outra obviedade (o lado R&B da banda não me parece bem resolvido, e a balada Shelter acaba soando um tanto genérica dentro do repertório), o disco serve como exemplo para bandas que não se contentam em seguir uma ou outra onda. Dá para perceber que eles tiveram muito trabalho para chegar a um resultado tão fluente e compacto, e que ainda assim dialogasse com o mundo onde vivem. Imagino o que aconteceria se uma banda de Brasília se dispusesse a esse tipo de aventura: formar uma identidade musical sólida e urgente dentro de uma cidade que parece um clarão luminoso, um sonho para todos e de ninguém.

Desse esforço sairia um disco talvez insuportavelmente triste, mas necessário.

Primeiro álbum do quarteto The XX. 11 faixas, com produção da própria banda. Lançamento Young Turks/Rough Trade. 8/10

BÔNUS TRACKS

mewNo more stories… | Mew | 8

Tai. Se não quiserem se inspirar no The XX (que, repito, é o retrato fiel da cidade), que as bandas de Brasília mirem os dinamarqueses do Mew. Eles inventam uma arquitetura de infinitas possibilidades e brincam dentro dela como se estivessem num playground coloridíssimo. É um disco tão ambicioso que soa até exaustivo, mas de uma coragem que anda em falta em qualquer lugar. Eles recuperam uma tradição perdida do rock progressivo (de fins dos 60, mais para o primeiro disco do Pink Floyd que para os que o sucederam) com um olhar distanciado, europeu (e por isso um tanto autoirônico e desencanado em relação ao pop), e um senso de aventura que chega a lembrar The soft bulletin, do Flaming Lips. Poucas bandas americanas do gênero demonstrariam tanta liberdade. Nem tudo é deslumbrante: as letras seguem pueris, por exemplo, e há vários trechos que acenam para a megalomania estéril do Muse. Mas tai uma banda que sabe o que quer, vai às últimas conseqüências e, quando tenta produzir hits (como Beach), acerta de tal forma que fica a impressão de que, com algum esforço da Sony, eles podem sim chegar a multidões. Seria uma praga, mas eu não me incomodaria.