Surpresas

Superoito express (41)

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Nesta edição: 1, 2, 3, 4, 5 machos solitários (e foi por acaso – não é incrível?)

Within and without | Washed Out | 7.5

Já não alertamos que é perigoso inflar as nossas expectativas? A Sub Pop, que lança o long-player de estreia do Washed Out, admite que está entusiasmada com o disco num nível quase insuportável. A onda de elogios para este projeto de Ernest Greene, o novo prodígio de Atlanta, deve atingir escala oceânica nas próximas semanas – quanto sites que sempre apostaram no rapaz tentarão nos convencer de que Within and without é a última ilhota verdejante do Atlântico. A Spinmandou ver: “Chillwave para quem não aguenta mais chillwave”. Uau.

Ouvir o disco, nesse contexto de euforia, parece até dispensável. Comigo aconteceu o contrário: ouvi o disco quase por acaso, sem atentar muito para todo esse foreplay, e me interessei por ele sem grande empolgação. Digamos que eu tenha admirado a atmosfera aquática, fluida, que Greene cria para envolver as composições – mas não consegui notar uma identidade forte neste disco, que me faça defendê-lo como algo verdadeiramente especial. Eu confundiria algumas dessas faixas com as do Toro Y Moi, com as do Memory Tapes (leia textinho a seguir). Talvez por isso o rótulo chillwave tenha colado tão bem a esses projetos: é que, em muitos momentos, eles acabam soando como exercícios de gênero.

O sujeito pode ser um diretor competentíssimo de fitas policiais. Mas daí ser um Michael Mann… Greene é sim competente, se aproveita do formato conciso que a Sub Pop tanto preza e se alia a um produtor experiente sem se deixar asfixiar por ele (o homem é Ben Allen, de Merriweather Post Pavillion, do Animal Collective, e Halcyon digest, do Deerhunter). Os momentos mais extrovertidos são os que mais me fisgam – o romantismo sem-medo-de-ser-passional de Amor Fati, acima de todas -, mas nota-se que a praia do Washed Out é uma introspecção por vezes etérea, vaporosa, mas sempre cheia de sutilezas: um estilo que Greene defende com convicção e rigor; qualidades que serão recompensadas pela torcida.  

Player piano | Memory Tapes | 7.5

Desconfio que o LP de Dayve Hawk não será recebido com tanta euforia e condescendência quanto o do Washed Out (até porque o Memory Tapes lança pela Carpark Records, selo minúsculo em comparação à Sub Pop), mas acredito que estejam num mesmo patamar e que até se complementem – e não me canso de ouvir um logo após o outro. Enquanto o Washed Out vai depurando os traços mais visíveis da chillwave, o Memory Tapes trata de pressionar os limites do gênero – de tal forma que Player piano acaba sabotando nossas expectativas. As faixas mais surpreendentes são também as mais dóceis, que chegam a lembrar o pop eletrônico de um Postal Service, por exemplo (ouça Wait in the dark e Sun hits). As colagens do disco anterior dão espaço para composições mais diretas, quase corriqueiras, mas não dá para dizer que este disco tente o caminho mais fácil: Hawk arrisca para tentar encontrar um sotaque, uma voz reconhecível, uma marca. Não acredito que tenha chegado lá, mas a aventura tem lá seu encanto (e o finalzinho de Worries é amor para o inverno inteiro, não dá pra negar). 

Dedication | Zomby | 7

Deixando o distrito da chillwave rumo às quebradas do dubstep (ou algum lugar próximo dali), o novo do produtor inglês nos recebe com um temperamento quase oposto à ternura triste do Washed Out e do Memory Tapes: o tecido aqui é áspero, o clima soa apreensivo – estamos presos num dia chuvoso. A faixa-guia é Things fall apart, que praticamente resume a ambiência pós-apocalíptica do disco: não são poucas as coisas que desmoronam. Por mais que eu tenha dificuldades sérias com o dubstep mais arredio e single-minded (a exceção é James Blake, mas acredito que ele não se enquadre completamente no gênero), Dedication não me parece uma jornada aborrecida noite adentro. Ainda que não fuja da premissa do disco, que poderia ser usado como trilha para um filme de serial killer do David Fincher, Zomby vai abrindo vielas soturnas a cada faixa – e as melhores, como Digital rain e Mozaik, ficam rondando o nosso cérebro horas depois da audição, feito resíduo de pesadelo. Atormentam.  

Goodbye bread | Ty Segall | 6.5

Para quem conhece Ty Segall só agora (e é meu caso), Goodbye bread pode reavivar as lembranças da fase mais doméstica de um Elliott Smith, de um Guided By Voices. Está certo que essa aparência de despojamento se transformou num clichê do indie rock, mas existe algo neste disco que nos deixa com a certeza de que ele foi gravado quase por acidente, em meio às atividades cotidianas do compositor (a canção que resume tudo, aliás, se chama Comfortable home). E também soa caseiro até pela forma meio despreocupada, às vezes óbvia, como ele vai perfilando as influências de Segall – e Fine, o desfecho, acaba saindo homenagem pra lá de digna à fase solo de John Lennon (ainda que a letra otimista pareça ter sido escrita por McCartney). No meio do caminho, psicodelia lavada a seco: My head explodes e I can’t feel it são canções enormes armazenadas sem muito cuidado, em pequenos recipientes. Tá certo: é só o começo de uma amizade.   

Demolished thoughts | Thurston Moore | 6

Pensando bem, e que tolice a minha!, nos anos 90 eu acompanhava os episódios da música pop como quem assistia a um filmezinho maniqueísta – grunge versus punk-pop, Nirvana contra Michael Jackson, Radiohead infinitamente mais legítimo que Muse. Nesse script, o Sonic Youth me parecia uma banda na contracorrente da década, e minha impressão era de que eles reagiam a absolutamente tudo o que era criado na época. Daí meu espanto ao ouvir um disco de Thurston Moore que não apenas tem a produção de um dos artistas-símbolo dos anos 90 (Beck Hansen, o mascote do pós-tudo) como não faz nadinha para destoar daquilo que a gente espera de um álbum-padrão de singer/songwriter. Polido, “delicado”, franco, direto (e inclua aí qualquer outro adjetivo que você aplicaria a um disco solo do Richard Ashcroft), Demolished thoughts é uma das maiores surpresas do ano. E tem baladas tocantes que machucam de verdade, como Illuminate. Atenção ao contraste brutal entre a interpretação distanciada de Moore e melodias tão afetuosas. Pena que, depois da terceira faixa, o álbum sinta a falta de canções mais duradouras – metade do disco parece Sonic Youth unplugged, faixas conhecidas num modelito diferente. E aí, meu filho, não há Beck Hansen que dê conserto.

All delighted people EP | Sufjan Stevens

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No dia 12 de outubro, Sufjan Stevens lança um disco novo. Por enquanto, sabemos duas ou três coisas sobre ele: que se chama The age of adz, que não tenta decifrar nenhum estado norte-americano, que faz uso pesado de efeitos eletrônicos e orquestra, que não é um “álbum conceitual”.

Mas, ao mesmo tempo, não temos certeza de coisa alguma. Uma das manias de Sufjan Stevens, lembre-se, é sabotar as nossas expectativas. Talvez seja isto o que mais queremos dele: o inesperado.

Stevens é o compositor de melodias tenras, pessoais. Também é o sujeito das ambições loucas, dos grandes planos, das ideias impraticáveis (um disco para cada um dos 50 estados americanos, por exemplo). Mas, além de tudo, é o songwriter autoirônico, que olha no espelho e ri da imagem que vê. O indie rock tem um quê patético (talvez por se levar excessivamente a sério, como um culto excêntrico disseminado em rituais on-line), e Sufjan entende a graça.

Daí que, antes de The age of adz, ele lançou um EP de oito faixas chamado All delighted people. Parece um aperitivo, uma distração, um brinde. Mas, quando você ouve o disquinho, descobre que se trata de um álbum completo, de quase 60 minutos de duração, robusto e cheio de si.   

Talvez Stevens queira que tratemos o disco com a leveza como tratamos EPs. Mas não dá. All delighted people pode até ser uma obra “menor” se comparada a álbuns como Illinois (2005) e Seven swans (2004). No entanto, é mais atrevido do que a maior parte dos discos lançados por qualquer outra pessoa em 2010.

As faixas do álbum foram construídas em torno da canção-título. Que é, segundo Stevens, uma homenagem “ao Apocalipse, ao tédio existencial e a Sounds of silence, de Paul Simon”. Cada um desses temas inspiraria um grande disco – o impressionante é que, na faixa, eles são explorados com a grandiosidade de uma ópera-prog, que vai do folk sessentista a Beatles e, é claro, Simon & Garfunkel. Stevens não quer pouca coisa: com cordas fulminantes, coros e solos de guitarra à space-rock, ele vai à lua e volta. Talvez não seja a melhor canção que gravou. Certamente é a maior.

É tão desregrada que se desdobra em duas. A primeira, de 11 minutos, vai se desdobrando feito um réquiem para o fim do mundo. Stevens resume toda uma longa trajetória em cenas curtas, enquanto o mundo explode. Já a segunda, de oito minutos (e apelidada muito marotamente de Classic rock version), parece celebrar a destruição com sopros e atmosferas roubadas de um disco do Pink Floyd. É como se Elliott Smith tivesse ouvido menos #1 Record, do Big Star, e mais Wish you were here

Uma canção FEROZ que provavelmente devoraria qualquer disco em que fosse incluída – o EP, portanto, é uma forma de enjaulá-la com o devido respeito.        

Mas o disco não é apenas isso (se fosse, já seria grande). Para equilibrar os excessos desse turbilhão pop, Stevens cria algumas das canções mais delicadas da carreira – com violão, voz, ecos e quase nada mais. A começar por Enchanting ghost, que cita explicitamente um arranjo de Elliott Smith como para simular uma sensação de intimidade, de confissão sussurrada. É comovente. Tanto quanto Heirloom, com violões dedilhados e uma voz que parece transmitida do fundo de um beco, e From the mouth of Gabriel, triste como poucas.

Como de costume, Stevens nos engana, nos atira no olho de um paradoxo: apesar do título, All delighted people fala sobre pessoas desencantadas, tateando um mundo que perdeu o sentido. Corações quebrados, medo disso e daquilo, incertezas, Paul Simon. E melodias tão assustadoramente macias.

Parece pop. Mas isto é hardcore.

EP de Sufjan Stevens. Oito faixas, com produção de Sufjan Stevens. Lançamento on-line da Asthmatic Kitty. 8/10  

2 ou 31 parágrafos | Lost, the end

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(Atenção: o texto a seguir pode conter spoilers e informações irrelevantes sobre o episódio final de Lost e sobre as manias de Tiago Superoito)

Sempre vou lembrar de três professoras de português.

Uma delas dizia: “Tiago, não comece uma história sem saber como terminar”. Eu, sete anos de idade, já era craque em parágrafos desregrados. Fluxos e mais fluxos de consciência. E ela me alertando, em agonia: menino, se ampare em vírgulas!, pontos finais são salva-vidas muito úteis! Muito teimoso (antes e hoje, sempre), nunca aprendi nenhuma dessas lições. Escrevo sem cuidado ou itinerário.

Lost highway.

A outra professora, que era a própria Afrodite, tentou me ensinar tantas fórmulas, truques, tantas manhas de redação! Tantas dicas que me salvariam de tantas gafes! Não ficou quase nada. Só uns flashes: o rosto rosado, a franja sobre os aros redondos dos óculos, a voz agudíssima (um terror) e o conselho: “na literatura, Tiago, tudo é possível”. E meu coração inflava: ah. Ela estava certa ou estava errada? Nunca nem refleti sobre o assunto. O que fiz foi acreditar, e acredito: no papel, tudo é possível.

A terceira e mais intrigante, cansada dos meus delírios imaturos, me orientou: “Termine o texto da forma como quiser, Tiago, mas com beleza“. Eu não entendi. A ideia sempre me pareceu um mistério e, no mais, eu terminaria os meus textos como eu bem entendesse. Tudo é possível, tudo é possível. Eu era (sou) um cabeça de pedra. Mas depois, anos e mais anos depois, entendi o que ela queria dizer: eu deveria terminar meus textos com graça e elegância, como quem se despede de alguém que se ama.

Também não me vejo cumprindo essas formalidades. Mas, desde que me entendo por leitor, sempre me assombro com os desfechos extraordinários. Os desfechos iluminados. Belos ou feios ou chocantes ou abruptos e antipáticos. Tanto faz. Dizem que os primeiros parágrafos são atestados de inteligência e bom senso. Sempre preferi as conclusões. 

Quando passo das cem páginas de um livro, me apresso para saber como ele vai terminar. Não me interessa exatamente o destino dos personagens. Quero saber como o livro termina. Como. Com que frase, adjetivo, interjeição, pensamento ou provocação. Um ponto final nunca é igual a um outro.

Voltei a pensar nessa minha mania quando ouvi os comentários sobre último capítulo de Lost. Os comentários dos outros e os meus comentários. Todos apaixonados, agressivos, furiosos, já que séries duradouras de tevê são como bandas de rock ou times de futebol. Nos afeiçoamos a elas. Dê três temporadas, apenas três temporadas, e elas grudarão na nossa parede feito fotografia de infância.

Um parêntese que explica a minha relação com séries: comecei a ver Lost ainda na primeira temporada, a contragosto. Minha namorada gostou e eu fui atrás. No início, me pareceu um show oportunista, mix de Survivor com Arquivo X. Nada especial. Na segunda temporada, eu já associava as aventuras de Jack, Sawyer e Locke ao jeito como a minha namorada deitava a cabeça no meu colo enquanto assistíamos aos episódios. Ao perfume, ao sofá da casa, ao barulho do ar condicionado. Na sexta edição, cada um dos capítulos me trouxe saudades dela, que hoje mora em outra cidade. Em mim, o seriado se transformou em uma espécie de souvenir, polaroide de uma época que passou.

Meio forte. E você entende?

Escrevi esse parêntese só para ilustrar como às vezes nos conectamos a esses programas muito tolos de tevê. Lost não é irrelevante, eu sei: poucas séries souberam brincar tão graciosamente com o tempo. Pretérito, presente do indicativo, futuro imperfeito. Muito se falou sobre os mistérios da ilha onde o avião da Oceanic se espatifou, mas o que me deslumbrou foi o jogo narrativo. Os flashbacks, flashforwards e flashsideways, soltos no ar.  

Os fãs têm uma relação extremamente passional com a série, a série é só deles, e entendo a origem desse fogo. Tem muito a ver com a cumplicidade que sentimos em relação aos nossos ídolos pop. Confiamos neles. Torcemos para que, em retribuição, eles nos sejam fiéis. Perdoamos tropeços. E, nas situações mais trágicas, reconhecemos que eles nos deixaram de coração partido.

Sem querer ser piegas, mas a season finale de Lost partiu o coração deste fã aqui.

E acho que por um motivo que me leva aos desfechos brilhantes de livros que amo: não há encanto, elegância, graça ou inteligência nessa conclusão. Pior: é uma conclusão translúcida, banal como um show barato de mágica. Deixo de me deslumbrar quando descubro por que o coelho sai da cartola. 

Eu acreditava – mesmo com todos os indícios de erro – que os roteiristas-ilusionistas seriam capazes de me assombrar. Mas aí a culpa é de quem? Minha, que esperava muito? Ou da série, que me ofereceu tão pouco?

Ou ninguém é culpado e o divórcio é amigável?

Não me pergunte. O curioso é que reagi às patetadas do episódio como um fã de rock que, num belo dia, recebe a notícia de que o ídolo decidiu se despedir do showbusiness com um disco ultraóbvio de canções natalinas.

The end me parece, sob todos os aspectos, um disco ultraóbvio de canções natalinas. Um episódio que nos chantageia, nos maltrata, nos subestima. Uma tortura em dó maior. Compartilho, até instintivamente, da irritação de alguns fãs: seis anos e isso? É muito tempo. Conheço gente que mudou três vezes de emprego nesse período de tempo. E os enigmas que não se resolveram? E os números? E o projeto Dharma? E os monumentos de pedra? E o Walt, coitado? E o nosso futuro?  

Séries de mistério são quase sempre uma armadilha. Veja o caso de Arquivo X. O vilão é o tempo, sempre ele. O suspense é prolongado excessivamente, a multiplicação de subtramas deixa inúmeras pontas soltas nos roteiros, a mitologia vira um fardo e toda tentativa de encontrar soluções para os enigmas da trama soam simplórias, apressadas. Estava escrito: Lost só agradaria à maior parte dos fãs se terminasse com um desfecho imprevisto e emocionante que nos fizesse repensar a nossa existência no planeta e os rumos da ficção.

Mas o que nos resta é um roteiro de Damon Lindelof e Carlton Cuse. 

Entendo que, para a dupla, deve ter sido uma jornada ainda mais complicada que a nossa. Imagine isso, conviver com todos esses personagens, definir os destinos de cada um deles. E pensar em malabarismos formais para espantar o nosso tédio e alimentar a nossa fome de fantasia. Deve ter sido dose. E mais: escrever um episódio-evento, um arranha-céu para a noite de domingo, atração imperdível para todas as idades e crenças. Quase uma mini-final de superbowl. Imagino que até eu, na pele deles, sentiria a obrigação de simplificar um pouquinho as coisas.

O episódio final de Lost, talvez aprisionado nesse jogo de pressões, soa tão singelo e descomplicado quanto o episódio-piloto. Perto dele, a quinta temporada fica parecendo um supletivo de física quântica. Há duas linhas narrativas: uma delas, sobre a luta do bem (Jack) contra o mal (Locke) na ilha da fantasia; a outra, sobre antigos amigos que se reencontram numa realidade movediça, onde os desejos aparentemente se realizam. Para o “leigo”, soa como uma ficção científica sentimental com a assinatura do protagonista de Dawson’s creek.

Já para os “fiéis”, trata-se de uma big despedida. A realidade “alternativa” mostra-se uma desculpa para uma reunião de elenco. A cada trombada dos personagens, flashbacks velozes pipocam na tela e nos fazem lembrar de todo o tempo que gastamos com a série. Caiu uma lágrima, arrancada pela útima tecnologia em chantagem sentimental.

Na ilha, a arquitetura do roteiro revela-se ainda mais grosseira. Um hipopótamo. Personagens correm para salvar o mundo, matam uns aos outros, provocam terromotos e tempestades, mergulham numa caverna dourada, manipulam uma rolha gigante (!) e resumem todos os dramas da série a uma perseguição de Tom vs. Jerry. O mocinho mata o vilão, beija a mocinha e se sacrifica por uma causa que ninguém sabe dizer se é nobre ou não. Whatever. Está claro que os roteiristas querem encerrar logo a epopéia e ir ao que interessa: a realidade paralela, onde tudo termina bem.

O que me incomoda (e aí aparecem os fios da narrativa e a picaretagem do empreendimento) é que esse tempo paralelo que tanto interessa aos roteiristas é uma criação da sexta temporada. Um truque de última hora inventado para nos surpreeender. Me pergunto se Damon e Carlton não poderiam ter encontrado uma surpresa aterradora sem abandonar o Grande Esquema das Coisas – isto é: dentro da ilha.  

Mas, novamente, saquei a estratégia. Os roteiristas tentaram usar uma das teorias mais difundidas entre os fãs (a de que todos os personagens estavam mortos) de uma forma que os enganassem (já que não é a ilha o purgatório, mas a “realidade alternativa”). Uma tentativa interessante. Mais curioso ainda é como, neste finale, os roteiristas invertem nossas expectativas: a ilha é o mundo real, enquanto que Los Angeles vira a cidade dos sonhos.

Fico muito satisfeito quando penso que os roteiristas realmente refletiram sobre tudo isso. Mas duvido muito que isso tenha acontecido, já que o episódio todo é desenvolvido com as fórmulas mais apelativas de dramalhões religiosos. Quando descobrimos que os personagens estão à caminho do céu – eles se reencontraram e, por isso, têm direito à liberação -, é inevitável pensar que a grande lição da série é algo como “a vida é uma aventura, mas o melhor está por vir.”

O que, para mim, é uma filosofia abominável. Eu é que não vou ficar esperando pelo dia em que a porta da minha igrejinha particular vai abrir. Não. Mas, ainda que eu tenha me decepcionado com a série também por conta disso (sério, Damon e Carlton, leiam qualquer textinho do Carl Sagan e entendam que a vida às vezes não faz sentido e é bonita mesmo assim!), não é, repito, o que mais me frustrou no desfecho. É que parece ter faltado aquele elemento misterioso que separa os livros inesquecíveis das bobagens de autoajuda, aquele toque sobrenatural que nos enche de entusiasmo, nem que por alguns minutos. Que renova a nossa fé na literatura.

Quando leio um bom livro ou vejo um bom filme, quero viver mais.

Com este episódio de Lost, meu único desejo: esmagar o televisor. Fulo e bronco feito um hooligan. Meus ídolos! Lembrei da minha professora: tudo é possível. E da outra: escreva desfechos com beleza. Depois, mais calmo, tentei me convencer de que o errado sou eu. Esta é a conclusão que soa bela para quem a escreveu. Eu é que não deveria ficar sonhando os sonhos dos outros.

End credits. Hora de acordar.