Superoito teenager

Os discos da minha vida (top 10)

Postado em Atualizado em

A maratona dos 100 discos que salvaram, infernizaram a minha vida segue no top 10. O destino: a minha ideia de paraíso. 

Uma viagem perigosa, sim. Voltar ao álbum desta edição, meus amigos, me deixou com muito medo do top 5. Porque, vocês sabem, perco um pouco a noção quando escrevo sobre o que amo loucamente.

008 | Doolittle | Pixies | 1989 | download

Antes dos Pixies eu já conhecia Nirvana, Beach Boys, Ramones, David Lynch, um pouco de Buñuel e um tantinho da Bíblia. Mas, ainda assim, eu não estava pronto para Doolittle.

Porque o álbum me parecia bizarro, só que de uma forma agradável. Ou, virando a frase de ponta-cabeça: agradável, só de que uma forma bizarra. Diante da criatura deformada (e bela), passei um tempo coçando a cabeça.

Eu conseguia, por exemplo, me identificar com a ansiedade de Black Francis (o homem, o personagem, o ogro, o serial killer, o comediante). E Doolittle é um disco ansioso. Ansiedade, esse sentimento que todo menino de 15 anos compreende intimamente.

Ao mesmo tempo, Doolittle soava como um disco que se esforçava para soar degenerado. Um jogo calculado para nos chocar. Trata de morte, surrealismo, suicídio em massa, macaquinhos mortos, Sansão & Dalila. Mas tudo acabava soando cômico, divertido. O horror convertido em farsa. “O conceito é entreter”, dizia Black, meio que para confundir as coisas.

Não sei ainda se entendo o cinismo do disco (ainda que me pareça muito clara a influência sobre Nevermind, outro álbum punk ultrasarcástico e juvenil, adulterado para soar pop), mas, mesmo polido, ele soa tão psicótico, tão esquizofrênico e lúdico quanto os versos de Black.

É um daquelas discos em que a produção colide (de propósito) com as melodias. As melodias, por sua vez, espelham as letras — que, por sua vez, compõem um território muito específico. É uma coleção perfeita, exatinha, de canções muito tortas. Um “tour” ordenado a uma mente caótica.

Começando pelo começo: descobri o disco em meados dos anos 90, numa época em que os CDs importados chegavam aqui a preços simpáticos (R$ 20, em média) e estavam disponíveis na lojinha da superquadra ao lado. Eu ia a pé (e, para isso, cruzava um terreno baldio, cheio de mato e barro) para visitar uma dessas lojas, quase todas as tardes.

Eu era um moleque enxerido e talvez curioso demais, que chegava mais cedo na Cultura Inglesa para ler os semanários de rock. Mas um moleque sem dinheiro. Um moleque tímido e sem dinheiro, mas enxerido e talvez curioso demais. Daí que, na loja de importados, eu pedia para ouvir os CDs antes de comprá-los. Pedia timidamente. Se eu gostasse dos discos, fazia anotações para pedir de presente de aniversário (ou de Natal).

Naquele período, anotei no caderninho: Slanted and enchanted, do Pavement, Mighty Joe Moon, do Grant Lee Buffalo, e Sister, do Sonic Youth. O balconista viu o papelzinho e soltou uma risada cruel. “Você só precisa de um CD. Este, irmão”, e apontou para Doolittle.

Não o levei muito a sério (o sujeito cantava numa banda de shoegazing, que na época eu detestava), mas, depois de ler um comentário muito positivo de Kurt Cobain sobre o disco, resolvi dar uma chance. Ouvi uma vez, achei engraçadinho, mas não comprei. Não me convenceu. Demorou para me convencer.

Alguns meses depois, cedi à insistência do amigo vendedor. E, graças a ele, a história começou.

Logo, fui fisgado. As músicas soavam imprevisíveis, cheias de surpresas, pecinhas de um quebra-cabeça genioso, o tipo de brincadeira que não cansa — e, claro, tão ansiosas quanto meu primo de cinco anos de idade. Mas o que me capturou foi o espírito enigmático da obra: decodificar o CD se transformou num hobby que ocupou praticamente um ano inteiro da minha vida.

Na pré-história da internet, antes do Napster e do Google, eu fuçava cada número amarelado des semanários à procura de informações sobre as músicas. Quando foi que Black Francis viu Um cão andaluz? O que representam as imagens fúnebres de Wave of mutilation? Monkey gone to heaven é mesmo uma canção ecológica? Perguntas e mais perguntas (algumas, resolvidas quase 10 anos depois).

Acabou que o disco foi perdurando enquanto outros passavam. Slanted and enchanted, apesar de fatal, passou. Mighty Joe Moon, que amo, não me intrigou de tal forma. E, aos poucos, fui criando uma relação com o Pixies que equivale ao fã de futebol: eu queria ter todas as camisas autografadas, todas as figurinhas (repetidas ou não), os singles, os pôsteres.

E, se o Nirvana era uma banda que me afetava na catarse, o Pixies alegrava minha imaginação. Era a trilha para Pierrot le fou, do Godard, que eu descobriria alguns anos mais tarde. Um e outro me pareciam obras aventureiras, destemidas, que iam ao inferno e voltavam com um sorriso e uma flor. E que, talvez contra minha vontade, soavam agradáveis. De um jeito louco que não consigo explicar. Top 3: Gouge away, Debaser, Tame.

Após o pulo, veja todos os discos que já apareceram nesta lista.

Leia o resto deste post »

Go tell fire to the mountain | WU LYF

Postado em Atualizado em

No meu caso, antes acontecia assim: quando eu resolvia escrever, as palavras iam aparecendo em grupos de vinte, trinta, quarenta, e chegavam com tanta ansiedade que eu achava mais sensato não acalmá-las nem ordená-las: elas iam caindo no teclado de qualquer jeito, de barriga, de costas, de cabeça pra baixo. Era o caos.

A maioria, é verdade, mergulhava para a morte e era sepultada em parágrafos grotescos, sujando o monitor com gosma e boas intenções. Quando eu era um pouco mais novo, escrever era ejetar todas as frases que superlotavam a minha cabeça e tensionavam meus dedos. Eu as abandonava mais ou menos como um caminhão que estaciona no terreno baldio para descarregar o lixo.

Hoje as palavras aparecem em grupos menores, acredito que de dez a quinze por vez. E não chegam com a mesma intensidade, nem com a mesma fúria. Há os dias em que não noto gana alguma no desembarque, e me pergunto: se elas não me afligem da forma que elas me afligiam quando eu tinha 16 ou 17 anos, por que ainda me preocupo tanto com elas?

Há algum tempo, eu estava certo de que seria um escritor. Agora não sei mais.

Talvez seja sinal de maturidade (e isso existe?). Escrever menos, sem ir com tanta sede ao pote, pode ser indício de rigor e elegância. Em tese, adultos são mais rigorosos que adolescentes. Também são mais elegantes. Sabem o que querem ser, até porque já cresceram. No mais, o senso comum alerta que escrever é cortar palavras, ser conciso, exato, poupar tempo. Finitude é o termo.

Sim, sim. Só que dá um baita de um incômodo quando ligo o computador e fico admirando a tela em branco, o cursor vertical piscando. Às vezes até quero escrever. Mas vivo me perguntando: escrever para quê? Para quem? Por quê? E não encontro soluções para nada disso. Porque às vezes parece que ninguém está lendo, que ninguém merece ler tanta bobagem. E às vezes sinto que estou apenas sequestrando e matando palavras, por esporte.

Escrevo porque posso, e não porque devo.

Ainda acredito, contudo, que existe sim uma arte perversa (mas admirável) na carnificina de sílabas, nesse uso exagerado e infantil de frases, no exagero de significantes, no ato desmiolado de escrever por escrever, de escarrar as palavrinhas, de esparramá-las em parágrafos longos e feios, toscos de tão imaturos. Francamente, detesto os blogs que eu escrevia aos 16, 17 anos. Mas percebo algo romântico neles. Eram textos suicidas, que cheiravam mal e iam apodrecendo em público.

Não eram nada apresentáveis. Nada saudáveis.

Há alguns dias tento entender o que tanto me atrai ao disco de estreia da banda inglesa WU LYF (sigla para World Unite! Lucifer Youth Foundation), e acredito que tenha algo a ver com os textos que eu escrevia aos 16, 17 anos. Tai um álbum que tenta agarrar as palavras com um pulso adolescente. Elas praticamente derretem nos nossos headphones, esquartejadas após a outra. É uma matança cruel.

Adianto aos mais sensíveis: é quase impossível entender a interpretação do vocalista Ellery Roberts. Nem faça esforço. Ele não canta; ele grunhe. E não estamos falando da aspereza vocal de um ogro do thrash metal. Fico com a impressão de que Ellery está forjando um idioma próprio. É como se vestisse a persona de um homem pré-histórico que, depois de muita relutância, decidiu finalmente sair da caverna. Ele olha para o mundo de uma forma bestial. O que vê, em compensação, não é exatamente civilizado.

Mas a performance de Ellery, apesar de repulsiva, não tem a intenção de nos afastar dos versos da banda. Pelo contrário. No site oficial, o WU LYF publica as letras das canções para orientar os ouvintes. E é aí que as coisas começam a ficar, no meu ponto de vista, mais fascinantes. São canções que soam como o fluxo de consciência de um menino atormentado por um enxame de palavras. Chegou a hora de soltá-las no ar.

E Go tell fire to the mountain é, antes de qualquer coisa, um disco de palavras. Palavras de ordem, de guerra, de desabafo, palavras que vêm e voltam em ciclos, palavras cuspidas do esôfago, palavras de desencanto e fervor. Se Ellery fosse um vocalista menos excêntrico, mais fluente, e se as melodias acompanhassem o vigor e  a vibração frenética das letras, estaríamos diante de uma banda comunicativa quanto um Arcade Fire. O WU LYF tem muito a falar.

É bem verdade que a garganta arranhada do vocalista colabora para que criemos toda uma mitologia em torno da banda, que bolou uma campanha misteriosa de marketing, na rebarba do Odd Future Wolf Gang Kill Them All. Também estamos falando de um coletivo que envolve músicos, artistas gráficos, cineastas etc; ainda que, no caso, o cerne do WU LYF seja um quarteto de rock até relativamente convencional.

Você ouve o disco e imagina um bando de bárbaros (e musicalmente, eles são pouco sutis – gostam de estrondo e da repetição de camadas de órgãos e guitarras; preferem a unidade à diversidade). Na realidade, o que temos são sujeitos de classe média alta, nascidos em Manchester. De qualquer forma, é muito convincente a fantasia criada pelo World Unite para capturar a nossa atenção.

E boa parte dessa ilusão é criada pelas letras, que conclamam o ouvinte a sair às ruas e mudar um mundo que, se levarmos a sério a ladainha da banda, está quase acabando. Um expediente até démodé, mas irresistível. O World Unite pede ao público para que “seja bravo”, para que “abandone as armas” e que viva intensamente, antes que a morte chegue e acabe com a festa.

São hinos, e não duvide disso. A banda cria uma sonoridade maciça, mas se aproxima do ouvinte como quem conta um segredo via MSN. “Ei, quantos de vocês têm medo da morte?”, eles perguntam, na faixa de abertura (que repete o bordão “te amo pra sempre”, sem perder a macheza). Na lista de agradecimentos do disco, que foi gravado numa igreja (naturalmente), citam Frida Kahlo e Tupac Shakur.

Não sei se o World Unite vai se transformar numa banda tão adorável, tão gente-como-a-gente quanto um Wolf Parade, um Hold Steady ou um Titus Andronicus, mas eles fazem o possível para se associar esse time de “adultescentes” que escrevem épicos para serem compactados em 160kbps. Spitting blood e We bros são faixas que fazem justiça a essa gangue de últimos românticos.

O diferencial, creio eu, está na fome de palavras que marca o disco do WU LYF. Em alguns momentos, mesmo diante das letras, me perguntei: sobre o que eles estão cantando? Para quê? E cheguei à conclusão de que, às vezes, não estão cantando sobre coisa alguma. São apenas palavras ocas, palavras suicidas, palavras em vão. Go tell fire to the mountain diz muito, exageradamente, talvez pelo prazer de dizer. O que ouvimos são palavras em pleno processo de digestão, retorcidas em suco gástrico, lambuzadas e incompreensíveis.

Acaba que não faz muito sentido. Mas a fricção entre a expressividade das palavras e a interpretação febril garante um sentido de urgência que nos emociona (mesmo quando não sabemos por que razão). Na última faixa, eles nos têm nas mãos. Mesmo quando notamos que os versos da banda não são muito diferentes do conteúdo de um blog juvenil – e daqueles ingênuos, desesperados, que nos fazem corar.

Primeiro disco do WU LYF. 10 faixas, com produção da própria banda e de Dave Jay. Lançamento L Y F. 8/10