Strokes
♪ | America Give Up | Howler
Enfezadinho com as semelhanças entre o primeiro disco do Howler e o repertório padrão das baladas rock ‘n’ rooool de Brasília em 2002 (quando Strokes e White Stripes estavam muito ocupados influenciando pessoas e, dizem, salvando o rock), este blogueiro tratou de arquivar America Give Up na gaveta dos itens descartáveis de 2012. Me perguntei: é só isso? E case closed. Mas, por uma dessas estranhas ocorrências da vida (em resumo: o CD-R ficou preso no aparelho de som do carro), acabei voltando ao disquinho tantas vezes — e sem franzir sobrancelhas! — que me obriguei a escrever um post para pedir desculpas à comunidade. Pois bem: aqui está ele.
Vou ser breve porque, no mais, este álbum é uma brevidade. Lembra sim a estreia do Strokes (e com exagero: uma das músicas faz cosplay de Modern Age), mas talvez positivamente. Mais animador que isso, aponta para toda uma tradição de first albums que já existia muito antes de Julian Casablancas nascer: registros extremamente compactos, como se gravados numa única sessão, mas cujas pequenas variações de ritmo, velocidade e melodia transformam cada faixa num hit em potencial. O primeiro do Ramones, claro, é uma referência inevitável: o Howler também atua dentro de limites estreitos, por opção.
Só que, como eles avisam, this one’s different. Talvez não muito diferente, ok, mas talvez devamos seguir o Howler para saber o que vai acontecer com esse interesse por combinar o “som de 2001” (decalcado de pós-punk, garage rock e congêneres) com um espírito ingênuo de entusiasmo pelas guitarras, sinceramente vintage, capaz de nos transportar ao comecinho do rock — não é para fazer cena que eles vampirizam Elvis Presley em I Told You Once. Daí que uma faixa como Back of Your Neck (minha preferida) pode soar simultaneamente como uma cópia preguiçosa de Libertines ou como um remix de alguma canção perdida do início dos anos 1960. Em qualquer uma das hipóteses, esses americanos parecem se divertir com o pouco que (por enquanto) eles têm.
Primeiro disco do Howler. 11 faixas, com produção da própria banda. Lançamento Rough Trade Records. B
What did you expect from the Vaccines? | Vaccines
Bom dia, muito prazer, meu nome é Tiago e levo uma vidinha comum.
Acordo às seis e meia, quando o sol ainda é um borrão alaranjado encoberto por nuvens. Quase me engasgo com as colheradas de cereal (estou com sono), faço a mochila, depois enfrento os religiosos 40 minutos de esteira ergométrica. Mais tarde vocês me encontram no trabalho e, ainda mais tarde, estou de volta ao meu apartamento pequeno. Faço uma coisa ou outra, aí durmo.
Na prática, é o que acontece.
Não há eventos extraordinários, heroicos, na minha rotina. Mesmo quando — entre a esteira ergométrica e as noites no meu apartamento pequeno — calho de entrevistar alguém importante ou apurar uma reportagem que me enche de orgulho, sei que não existe nada especial nisso. É o meu trabalho. É o que eu faço. No fim do dia, sou apenas um sujeito tão perdido e inseguro quanto você e seus amigos.
Outro dia, já há muito tempo, eu estava na fila do cinema conversando com um amigo meu quando uma mulher ouviu meu nome e perguntou: “Você é o Tiago? O Tiago que escreve no jornal?”
Eu, sempre muito tímido, respondi que sim, mas fiz um sorriso desconfortável, de menino quando é pego fazendo besteira. Ela foi muito espontânea: não escondeu, nem por um segundo, a decepção que sentiu com aquele encontro. “Eu jurava que você era mais alto, mais velho, óculos e barba, mais…”
E ficamos em silêncio.
Se eu não fosse um bicho-do-mato, teria achado graça naquele descompasso inevitável entre as expectativas da leitora e a realidade. Fiquei, na verdade, um pouco constrangido com a situação. Mas outras situações parecidas ocorreram em outros momentos. Não adianta, nunca adianta: sempre insistimos em criar expectativas que nunca serão correspondidas.
Lembrei do caso assim que bati o olho no título desta estreia do Vaccines. O disco poderia ser horrível, equivocado do início ao fim; mas o título continuaria soando, para mim, brilhante. “O que você esperava dos Vaccines?”, eis a questão.
É a pergunta que todos os discos (e livros, e filmes, e as pessoas) fazem silenciosamente quando os encontramos pela primeira vez: o que você esperava de mim?
Sem querer alargar demais a discussão, fico na música pop. Diante de um disco novo, antes de conhecê-lo, criamos expectativas às vezes muito altas, às vezes baixas. Às vezes ficamos indiferentes: pagamos para ver. Quando finalmente o ouvimos, o que se dá é um confronto entre as nossas expectativas e a matéria (as canções e a tessitura que as une).
Avaliamos os discos de acordo, em grande parte, com a forma como eles respondem às nossas expectativas. O quarto disco dos Strokes será avaliado com mais rigor do que, digamos, o primeiro disco do Yuck. Esperamos muito, talvez exageradamente, dos Strokes. Não esperamos nada do Yuck. (E isso tudo é muito óbvio, eu sei, mas precisa ser dito)
O Vaccines é um caso intermediário. Uma banda muito nova (formada em junho do ano passado) que foi adotada pela imprensa britânica como a salvação do rock. Alguém comparou aos Beatles. Alguém certamente comparou aos Strokes.
Ninguém precisa comprar esse tipo de invencionice da mídia (e o rock não precisa ser salvo, mas ameaçado; é do risco que nasce o conflito, o desconforto que nos interessa). Mas o Vaccines entende que esse marketing faz parte do jogo e responde com um disco que pergunta: o que você esperava da “maior banda da temporada”?
O título lembra outro, que acaba se enquadrando na mesma situação: Whatever people say I am, that’s what I’m not, do Arctic Monkeys. São dois títulos que resumem os desafios de duas bandas inglesas iniciantes — conscientes do fato de que, no hiperbólico pop inglês, as expectativas são sempre incompatíveis com a realidade.
Então, lá vamos nós: eu, particularmente, não esperava nada dos Vaccines. Da mesma forma como não esperava nada do Arctic Monkeys. Li um ou outro elogio exagerado ao quarteto, mas fiz que não era comigo. Desde a guerra encenada entre Oasis e Blur, lá nos anos 90, não dou muita trela ao oba-oba da imprensa inglesa. Quando se vende publicações semanais de música, é preciso assunto para preencher as páginas. Ouvi o disco, portanto, com expectativas quase nulas.
Mas entendo a decepção de quem buscou na banda um novo Strokes, um novo Libertines ou um novo Arctic Monkeys ou (deve ser o caso mais comum) uns novos heróis do Reino Unido. O Vaccines é um pouco disso tudo, mas não é nada disso. É, se descontarmos toda a aura que se criou para eles, uma banda iniciante, que gravou bons singles e agora os reúne num disco. O que você esperava deles?
As comparações com o Strokes procedem sim, é claro: a banda de Nova York está entre os ídolos do Vaccines (e a influência está óbvia em faixas como Post break-up sex) e este primeiro disco remete à estrutura de Is this it. São coleções compactas de singles. Até aí, no entanto, não vejo nada anormal. Que banda iniciante não exibe amor exagerado aos ídolos? Quantas bandas iniciantes não estreiam também na pressa, reunindo os singles para não perder o bonde do marketing?
Outra semelhança com Is this it é que este disco do Vaccines também apresenta uma banda muito jovem, imatura, ansiosa, apressadíssima (tudo no bom sentido, ok?), que soa como se estivesse atrasada para pegar o trem que vai partir em cinco minutos. Essa aflição transparece nas faixas, que soam muitíssimo mais vívidas, entusiasmadas, alegres que as novas do Strokes.
O disco flagra o nascimento de uma banda. Coisa boa de se ouvir. De imediato, dá para notar o gosto por versos mundanos porém nada triviais (rimar F. Scott Fitzgerald com Morning Herald, e dentro de uma faixa que soa como homenagem ao Ramones, é o tipo de bobagem inteligente que deixaria o Vampire Weekend feliz) e um interesse mais por simplicidade que por rebuscamento. É um disco que sabe muito claramente aquilo que quer para si — apesar dos objetivos limitados, da falta de ousadia, de um certo comodismo nas referências.
É um álbum, no entanto, que cumpre a intenção de descer como um “disco de verão”: os singles fortíssimos (Post break-up sex, Blow it up e If you wanna) são arejados por acenos ao pop sessentista (Wetsuit), guitarradas primárias, toscas, e a sensação de que estamos soltos numa colônia de férias patrocinada por tios punks. Na faixa de encerramento, o inverno chega; tudo o que resta é encostar a cabeça no ombro, à la Brian Wilson.
Os personagens das canções, aliás, não fazem grandes coisas. São tipos quase anônimos às voltas com as aventuras mais típicas. Anti-popstars. “O que você esperava de sexo pós-separação?”, eles ironizam, numa das faixas. Nada de glamour, portanto.
Não vai alterar o eixo do planeta, certo? Mas diga aí: o que você esperava deles? A resposta à pergunta vai definir a forma como você encara este disco. Que, para mim, soa como o diário de quatro sujeitos comuns, talvez nada especiais, se divertindo com o que tem para hoje.
Primeiro disco do Vaccines. 11 faixas, com produção de Dan Grech. Lançamento Columbia Records. 7/10
The Drums | The Drums
Fofofóbicos, tremei: The Drums não é uma banda para vocês.
Não é. Recomendo desistência por antecipação. Sei qual é a dos fofofóbicos, essa gente com aversão a fofuras e chamegos xaroposos e guti-gutis afins. Para eles, Belle and Sebastian, Camera Obscura, The Shins e Sufjan Stevens equivalem a ursinhos de pelúcia róseos e muito simpáticos e macios (simpáticos e macios demais, diriam). E Juno só seria um filme decente se banisse aquele nerd delicado, com hálito de suco de laranja. Irc.
Gente estranha. Não os entendo.
Quer dizer: tento entender. Tento porque convivo com eles. Tento porque sei o que eles detestam. E eu nem veria problema em apontar nomes, já que todos acreditam que meu blog é aprazível, delicadinho, emotivo e, por isso, abominável feito algodão-doce de morango.
Eu acho, sinceramente, que eles deveriam se tratar. O que seria do mundo sem os momentos de fofura, meus amigos? Eu nem quero saber.
Mas, como eu ia dizendo, tento entendê-los. E bandas como o The Drums me ajudam nessa luta. É uma banda muito fofa, aviso logo. Um doce. Fofíssima: dá vontade de pegar no colo. Ela é formada por quatro sujeitos que são ou extremamente cínicos ou perigosamente carentes. Nada de errado com carência. Todos nós, até os fofofóbicos, vivem dias, horas, segundos de carência. É claro: eles superam as agruras com três ou quatro abdominais ou barras de chocolate (meio-amargo). Nós, os tristes, descarregamos nossas pitangas na música pop.
E o curioso é que nós, os tolerantes a excesso de fofura, queremos sempre mais. Mais choro, mais desencanto, mais fragilidade, mais doçura, mais melancolia. Então não nos irrita o fato de que uma banda como o The Drums (e há tantas!) acabe soando como um encontro meio literal entre The Smiths e The Shins, com sintetizadores agradáveis que afagam a nossa nuca e um manto acolchoado de guitarras que nunca espeta nossas costas. Logo nos primeiros acordes, nos sentimos acolhidos, seguros.
Para quem congela só de ouvir a palavrinha “twee”, aviso: mantenha distância. The Drums soará simplesmente intratável. É uma daquelas bandas que aprenderam o bê-a-bá do “beach pop” (que vem lá dos anos 60, Beach Boys e congêneres) e o aplicam ao gosto de uma geração que traduz essas influências de uma forma estudada, meio blasé, autoirônica (mas sem se aproximar da autoparódia). Algo como os momentos mais delicados do Vampire Weekend e do Ra Ra Riot.
The Drums é assim: demonstra muito talento para usar aquele velho clichê californiano (versos tristes para melodias alegres) de uma forma que soa muito sincera. É um quarteto de Brooklyn, Nova York, e a procedência talvez explique por que eles às vezes deixam a impressão de participar de um grupo de estudos avançados sobre indie pop. E, se alguém tinha dúvidas sobre a origem da faixa mais grudenta do disco (Me and the Moon), está tudo lá: The Strokes via Phoenix.
Essa música, a mais animadinha (e a mais derivativa de todas), é desvio de rota num álbum até certo ponto monocórdico e (falsamente?) ingênuo. “Você é meu melhor amigo, então você morreu”, canta Jonathan Pierce na faixa de abertura, Best friend, que vai desfiando memórias da adolescência muito doloridas, embaladas em arranjo dance. Mais adiante, ele confessa que a vida vai ficando cada vez mais difícil. “Eu imaginava que ficaria mais fácil”, diz. E coisa e tal.
Lá nas últimas faixas, a banda acrescenta uns violões safados ao pão-de-ló sentimental. E aí entendo a birra dos fofofóbicos. Da mesma forma como nós, os sentimentais, reclamamos da dureza impassível de algumas bandas de heavy metal e de hard rock, eles também têm o direito de se irritar com os trejeitos frágeis dessa turma à flor da pele. Nos dois casos, existe uma fórmula em ação. Há truques e há golpes baixos. The Drums usa essa artilharia com eficiência (é um primeiro disco!), mas, admito, parece cuidadosamente adaptada para agradar a um público que sabe o que vai ouvir e, ainda assim, quer mais.
Numa pastilha (de uva): é previsível, sim. Mas os bons sentimentos me parecem verdadeiros. Ou muito bem encenados. E acredito que é por conta desse elemento secreto, misterioso, que esta banda consegue se destacar em meio a tantas outras. Não tem nada a ver com marketing, ó descrente. A fofura, em alguns momentos, nos comove, nos levanta um espelho. E aí é como se, de um jeito meio torto, acertasse nossos nervos.
Como explicar esse efeito a alguém que nunca se apaixonou terrivelmente por algo impossível, por uma fantasia? E como explicar tudo isso a alguém que nunca encontrou conforto nas melodias chorosas das love songs? Não dá.
A estreia do The Drums não é nada extraordinária. E nada medíocre. Não é o céu nem o inferno. É um purgatório em azul-bebê, digamos, com cheiro de lavanda, etc. Por isso, pode soar irritante ou apaixonante. Eu escreveria um longo texto negativo sobre este disco e provavelmente vocês concordariam comigo. Mas este não sou eu. Meu coração tem 12 anos de idade. E (perdão, fofofóbicos) ele bateu feliz com o que ouviu.
Primeiro disco do The Drums. 12 faixas, com produção de Jonathan Pierce. Lançamento Moshi Moshi e Island Records. 7/10
2 ou 3 parágrafos | Franz Ferdinande!
Depois de ter escrito um caminhão de abobrinhas sobre os shows do Guns N’ Roses e do a-ha, me sinto na obrigação de contar alguma coisa sobre a passagem diabólica (explico: fazia um calor infernal) do Franz Ferdinand por Brasília. Acontece que – a-há! – não tenho muito a dizer sobre a performance dos rapazes. Isso me deixa um pouco incomodado, já que foi um show muito, muito bom.
Não deixa de ser um negócio estranho: por que, no day after, bateu uma certa apatia. Teria sido um show apenas correto? Não pode: o Franz é uma das bandas mais precisas do mundo. Tudo está no lugar certo — o carisma do vocalista (que dá chutes no ar e sorri quando o fã salta do palco num mosh desengonçado, e diz ‘Franz Ferdinande!’ com sotaque carioca), o entusiasmo do baterista, os incríveis macetes do guitarrista (que manda muito bem nos sintetizadores), as jams hipnóticas (se bem que a batucada de Outsiders, marca registrada deles, já está virando um tique), o namorico com a dance music, o baixo pesadão, os hits poderosíssimos, a atitude invariavelmente cool (antes do show, eles aqueceram o público com quatro faixas do disco novo do Caribou!)…
De onde vem meu incômodo, então? Talvez tenha sido culpa do set list meio torto, que queima todos os hits bem antes do bis. Ou do uso desleixado do telão, jogado às traças. Ou nada disso. Talvez minha birra resulte de uma espécie de choque térmico: depois dos excessos (sentimentais, pirotécnicos, patéticos) do Guns N’ Roses e do a-ha, o Franz me pareceu carne crua, hambúrguer sem ketchup, biscoito sem recheio de marshmallow. Mas do que estou reclamando? É o que dá cair de barriga no século 21, sem asa delta. A filosofia da geração desse quarteto (e do Strokes, e do White Stripes) é podar a penugem e ir ao osso da canção, da atitude, da encenação, da pose (e há pose sim, como não?). O show deles deixou essa imagem: é ossudo. Cálcio à beça. Símbolo de uma época. E, possivelmente, um espetáculo que deveria ter feito de mim um sujeito realizado. Mas não foi bem o que aconteceu — e é bizarro, acreditem, não saber por que.
Phrazes for the young | Julian Casablancas
Se depender das listas de melhores discos da década que foram publicadas até agora, deveríamos chegar à seguinte conclusão: por acidente ou mágica, o Strokes concebeu um dos maiores álbuns dos últimos dez anos (a estreia, Is this it, de 2001) e, logo em seguida, provou ser uma banda de rock menos interessante do que imaginávamos. Em resumo: eles nos desapontaram. E, sem fôlego ou talento (ou ambos), acabaram pisoteados por contemporâneos como White Stripes e Yeah Yeah Yeahs.
É exatamente este o problema das listas de melhores: elas simplificam tudo.
A história, obviamente, não aconteceu dessa forma – ainda que possamos, e com razão, entender a saga dos Strokes como uma canção que começou em tom maior e, depois do primeiro refrão explosivo, acabou se desenrolando com alguma melancolia. Mas quem se prende ao impacto de Is this it perde uma parte dramática dessa trama: a partir do segundo álbum, os nova-iorquinos ressaltaram o tom confessional, dolorido, de um estilo que, até então, escondia essa carga de amargura e desespero sob camadas de (brilhantes) artifícios. A armadura cedeu.
Preste atenção sobretudo a Room on fire, de 2003, o segundo disco: é ali que o Strokes descobre em Julian Casablancas um band leader disposto a comparilhar angústia. O álbum abre com os versos “I wanna be forgotten, and I don’t want to be reminded” (“Eu quero ser esquecido, e não quero ser lembrado”), de What ever happened, e fecha com uma faixa intitulada I can’t win (Eu não posso vencer). Algo andava errado com Julian, mas estávamos todos entretidos demais para notar.
O disco seguinte, First impressions of Earth (2006), que soava como um esforço conjunto, amenizou a turbulência emocional do vocalista. Mas a crise criativa se fez mais audível que nunca num disco disforme, excessivamente longo, que lutou contra os limites da própria banda e perdeu a briga. Não é de se admirar que Julian tenha ficado em silêncio nos três anos seguintes, enquanto o guitarrista Albert Hammond Jr gravava dois trabalhos que, no máximo, provavam que era ele o autor de muitos dos riffs econômicos e afiados da banda. Mas e a alma do Strokes? A força vital que fazia da banda uma máquina dançante e agoniada? Rodrigo Amarante que me perdoe, mas não a encontramos em nenhum lugar.
É assim que finalmente chegamos a Phrazes for the young, um exercício de tentativa-e-erro que, apesar de todos os deslizes, mostra didaticamente a importância de Julian para o Strokes. Lembro que, no primeiro álbum da banda, muitos tratavam o vocalista como um garoto-propaganda, um poser bem-nascido que cumpria preguiçosamente o papel de frontman. Nada mais equivocado. No primeiro disco solo, ele não apenas demonstra um tipo raro de inquietação criativa (e acaba atirando para todos os lados, sem dó) como comprova que, sem ele, o Strokes seria uma banda estilosa, cool e divertidíssima, mas sem coração.
O disco abre, talvez para nos convencer disso, com uma faixa que parece dar sequência à fúria autodepreciativa de Room on fire: Out of the blue começa com o verso “Somewhere along the way, my hopefulness turned to sadness” (“Em algum ponto do caminho, minha esperança se transformou em tristeza”), o que soa, no mínimo, sintomático. A canção desce gloriosamente a ladeira com um misto de orgulho ferido, empáfia e franqueza. “É isso o que acontece com a maior parte das pessoas no mundo”, ele conta. Um príncipe caído. No final do disco, Julian diz sentir-se um turista em qualquer lugar onde vá. Não sei o que vocês pensam sobre isso, mas eu entendo. E é triste.
Acredito que poucos tenham se preocupado com as letras das canções gravadas pelos Strokes, daí a dificuldade de entender que elas carregavam um subtexto sombrio – eram, quando não se metiam em caminhos impressionistas, retratos de um certo desencanto com a idade adulta. O disco de Julian explicita essa sensação. “Estou a caminho de algum lugar. À esquerda e à direita no escuro”, admite, em Left and right in the dark.
Não é desta vez, no entanto, que Julian gravou um Blood on the tracks. A sonoridade que acompanha as letras é quase sempre luminosa, decalcada descaradamente de pop rock oitentista (o início de 11th dimension, por exemplo, lembra Van Halen) e com frufrus musicais que lembram luzes pisca-pisca, chamando repetidamente a nossa atenção para os efeitos especiais. Musicalmente, Julian parece ter desenhado o álbum como um antídoto aos discos do Strokes: as faixas são longas e rebuscadas, o tom é de experimentação (o miolo do disco é country rock desajeitado, talvez cortesia de Mike Mogis, do Bright Eyes, que colaborou na produção) e há até algumas bizarrices eletrônicas que lembram o Thom Yorke de The eraser (River of brakelights é o parente mais próximo), com loops repetitivos no lugar dos acordes de guitarra.
No fim da aventura (que, para o meu gosto, soa mais vibrante que o terceiro disco do Strokes), ficamos com um perfil contraditório de Julian: quando lemos os versos, encontramos a ressaca de um ídolo; se paramos de prestar atenção neles, ouvimos um disco tão hiperativo quanto o mais recente do The Killers. É isso e não é. A ambiguidade e a coragem de Julian fazem deste um álbum para colocarmos naquela prateleira quase vazia dos projetos solo que não se contentam com qualquer rascunho. É um disco completo, inteiro.
Podemos confiar em Julian. E, pelo menos aqui, ele nos deixa com a impressão de que o melhor está por vir.
Primeiro álbum solo de Julian Casablancas. 8 faixas, com produção de Jason Lader. Rough Trade/RCA. 7.5/10
50 discos para uma década (parte final)
Em Brasília, são 22h. Vamos terminar esta novela?
Primeiro, devo lembrar (até para os que chegarem depois) de mais uma fornada de discos que ficaram de fora da lista. Infelizmente, não tem lugar para todo mundo entre os meus 50 favoritos da década. Mas vejam a situação com otimismo: se muita coisa boa foi limada da lista, isso significa que vivemos uma década (musicalmente, pelo menos) muito inspirada e devemos ficar felizes com isso. Certo?
E, também para a posteridade: os vencedores foram anunciados ao vivo, com o apoio de uma conexão precária e ao som do greatest hits do Blur.
São eles (em ordem alfabética): Boy in da corner, Dizzee Rascal, For Emma, forever ago, Bon Iver, From a basement on the hill, Elliott Smith (hors-concours), The Futureheads, The Futureheads, Good news for people who love bad news, Modest Mouse, Heartbreaker, Ryan Adams, The hour of bewilderbeast, Badly Drawn Boy, In search of…, N.E.R.D., Jim, Jamie Lidell, Microcastle, Deerhunter, Myths of the near future, Klaxons, Parachutes, Coldplay, The runners four, Deerhoof, Since I left you, The Avalanches (heresia ter ficado de fora!), The Carter III, Lil Wayne, Vampire Weekend, Vampire Weekend, XTRMNTR, Primal Scream.
E prometo não demorar muito entre um post e outro (sabe como é: tem muito texto, isto deu um trabalhão e eu gostaria de verdade que vocês lessem pelo menos a primeira frase de cada um dos comentários, por favor).
10. Smile – Brian Wilson (2004)
A história ainda parece inacreditável: quase 40 anos depois, Brian Wilson finalmente concluiu uma das grandes obras fantasmagóricas da música pop. Só por isso – esse esforço obsessivo, heroico – Smile já seria um monumento. Mas não fica nisso. Os fãs dos Beach Boys já conheciam as músicas que estão no disco, mas não faziam ideia de um detalhe fundamental: juntas, as peças do quebra-cabeças finalmente se encaixam numa sinfonia pop que, além de soar deslumbrante do início ao fim, esclarece as ambições do projeto e (ainda que tardiamente) leva adiante as loucuras de Pet sounds. Curiosamente, em tempo de Flaming Lips, Animal Collective e Fiery Furnaces, as experiências de Wilson soaram novas. De novo.
9. Discovery – Daft Punk (2001)
“O disco tem muito a ver com a nossa infância e com as memórias que temos daquela época. É sobre nossa relação pessoal com aquele período. É menos um tributo a uma era musical (de 1975 a 1985) e mais a forma que encontramos de focalizar o tempo em que tínhamos menos de 10 anos de idade. Quando você é criança, você não julga ou analisa música. Você gosta porque gosta. Você não quer saber se é cool ou não é. Este disco encara a música de uma forma brincalhona, divertida e colorida. É sobre a ideia de olhar para algo com a mente aberta, sem fazer muitas perguntas. É sobre a relação verdadeira, simples e profunda que temos com a música”, Thomas Bangalter (e só tenho duas coisas a acrescentar: é o grande momento do Daft Punk e um modelo para quase tudo o que foi feito em electropop na década).
8. Merriweather Post Pavilion – Animal Collective (2009)
Uma lista séria sobre a década deve conter pelo menos dois álbuns do Animal Collective, uma banda que gravou o primeiro disco exatamente em 2000 e chegou madura a 2009. Além de Merriweather Post Pavilion, que é a obra-prima deles, eu escolheria Feels, o auge da psicodelia folk que eles experimentavam desde o início da carreira (e que deu no também genial Sung tongs). Em Strawberry jam, outra cria excelente, a sonoridade pesou num tom áspero, mecânico e quase sempre perturbador. Difícil escolher um só. Mas Merriweather, dois passos a frente dos outros, consegue sintetizar tudo o que eles fizeram e apontar para o futuro. Um disco que brinca com uma eletrônica feérica, eufórica, e explora o lado mais emotivo dos versos, que, mesmo quando voltam-se às memórias de infância, não deixam de enfrentar as incertezas do mundo. Uma banda em progresso, crescida, segura de si mesma – e ainda sim, ainda estamos assustados.
7. Funeral – Arcade Fire (2004)
Visto de longe, o primeiro disco do Arcade Fire não parece muito complicado: conhecemos muitos álbuns sobre a morte. Além do mais, os canadenses não foram os primeiros a fazer indie com escopo e vocação para estádios. Ainda assim, Funeral ainda soa como um disco peculiar, inimitável (e não foram poucos os que tentaram imitá-lo). Poucas obras confessionais têm um conceito tão bem definido – e todas as cinco primeiras faixas soam como a trilha de um filme – e um desejo tão intenso de criar melodias inesquecíveis, perfeitas (e aí vale citar Pixies, U2, pop francês, space rock americano e o diabo a quatro). Uma marcha fúnebre que celebra a vida – eis a bela contradição deste belo disco, uma surpresa que a banda não conseguiu superar (no segundo eles seguiriam um caminho mais dark e épico).
6. Yankee hotel foxtrot – Wilco (2002)
Até o fim dos anos 1990, o Wilco era uma banda de country rock insatisfeita com a camisa-de-força do gênero. Em Summerteeth, eles brincaram com a psicodelia sessentista, mas o resultado ainda soava polido, como se faltasse coragem para dar o grande salto. Ele viria com Yankee hotel foxtrot, um disco de certa forma maldito, já que rejeitado pela gravadora (dizem até que os executivos ouviram e acharam uma porcaria), e que mostra uma banda em transe. Foi lançado só depois de ter virado objeto de culto na internet, e ainda soa como uma espécie de milagre. Cada vez mais interessado no art rock dos anos 1970 (um estilo, nos discos seguintes, seria lentamente diluído em soft rock), Jeff Tweedy aproveitou-se da produção de Jim O’Rourke para criar uma obra instável, tortuosa, imprevisível e desiludida – um instantâneo da América do início do século. Ainda parece frustrante que a banda tenha optado por, depois disso, seguir um caminho confortável (ainda que o seguinte, A ghost is born, seja todo espinhoso e também belíssimo). Houve um momento, no entanto, em que eles encontraram a sintonia perfeita com o tempo em que vivem.
5. The grey album – Danger Mouse (2004)
Por que não? Essa perguntinha meio banal deve ter motivado o DJ Brian Burton (Danger Mouse) a cometer a heresia mais brilhante da década: arrombar o cofre dos Beatles, pilhar o tesouro mais sagrado da música pop e combinar os clássicos do Álbum Branco com os hits do Black album, recém-lançado por Jay-Z. Dois discos separados por algumas décadas, mas que, um menos explicitamente que o outro, sugerem uma mesma atmosfera de despedida. A mutação genética não é perfeita (e há faixas truncadas, tortas), mas tem um valor histórico que ainda não conseguimos medir. O disco que esfregou a era da internet na fuça das gravadoras? Um ato de vandalismo artístico? Uma amostra de que nada mais é sagrado? Sinal dos tempos (e apenas isso)? Quem não se importa com esse tipo de análise ainda leva de brinde algumas das canções mais divertidas de todos os tempos. É aquela coisa: proibido é mais gostoso, né não?
4. White blood cells – The White Stripes (2001)
O White Stripes é a melhor gag da década: um homem e uma mulher que se vestem de vermelho e branco e soam como se uma banda de garage rock tivesse resolvido fazer versões toscas para o repertório do Led Zeppelin. A fórmula de Jack e Meg White ilustrou perfeitamente uma época que elegeu o minimalismo ruidoso como sabor da estação e contraponto aos excessos do rock do final dos anos 1990 (de certa forma, essa foi a nossa interpretação para o punk dos 70 e o grunge dos 90). E, para nosso espanto, White blood cells trazia algo além de contenção e explosão: revelava uma banda de rock com tutano e ambição – e capaz de citar Cidadão Kane em meio a um esporro pós-punk (cinco pontos só por isso!). Os dois discos seguintes são tão bons e relevantes quanto, mas esta aqui é a cápsula que contém todos os segredos e manias do casal 2000. E nem preciso comentar Fell in love with a girl. Preciso?
3. Stankonia – Outkast (2000)
Olhe para a década: os grandes discos de hip hop lançados nos últimos 10 anos são os musicalmente irrequietos, que forçam os limites do gênero e saem furiosamente para a aventura. Jay-Z, Kanye West , à frente deles, o Outkast. Depois de ter implodido dentro de um maravilhoso e louco álbum duplo (Speakerboxxx/The love below), o duo acabou perdendo parte do poder de influência que tinha no início da década. Mas não custa lembrar: até 2003, eles ditaram quase todas as regras, até dominar o pop por completo (com o hit Hey ya!) e deixar a cena sorrateiramente.
Há quem prefira os primeiros álbuns, também alienígenas, mas Stankonia hoje soa como o auge criativo de Big Boi e André 3000 — numa comparação ridícula, é o Sgt. Pepper’s deles (e, naquela época, não conseguimos antever o Álbum Branco). E um período de colheita generosa, com 24 faixas, 74 minutos e clássicos absolutos como Mrs. Jackson e B.O.B. Já estavam claras as diferenças entre André (o soulman insano) e Big Boi (o mano apegado a boas tradições) — mas, ali, elas se uniam numa química imbatível. Um daqueles discos imensos que nos deixam muito pequenos.
2. Is this it – The Strokes (2001)
Lembro a primeira vez em que ouvi um single do Strokes (acho que The modern age): apaguei o arquivo de MP3 e fui procurar outro. A qualidade de som parecia terrível. Depois, envergonhado comigo mesmo, notei que o jogo era aquele: a atmosfera ruidosa das gravações (que pareciam saído de uma fita demo largada num estúdio abandonado de Nova York por volta de 1967) contava tanto, talvez mais, que as melodias e as letras. De qualquer forma, todos os elementos se complementavam. Sabemos tudo sobre o hype criado em torno deles — e provocado por uma imprensa inglesa que ainda era poderosa nesse ramo —, mas (ao contrário de queridinhos como The Vines e Kings of Leon) eles sobreviveram heroicamente a tudo.
Hoje, fica claro por que: Julian Casablancas honra a tradição dos grandes band leaders, sempre prontos a se rasgar de angústia diante do público (e o disco posterior, o ótimo Room on fire, aprofunda o tom desesperado e pessoal das composições) e Albert Hammond Jr entende tudo sobre o poder hipnótico de um riff palatável (o projeto solo do sujeito não nos deixa mentir). Uma banda simplesmente real. E oportunista, no bom sentido. Nenhum outro grupo soube aproveitar com tanta gana o revival do rock de garagem e do pós-punk: endividados tanto com o Velvet Underground quanto com o Ramones, eles restauraram Nova York como um fervilhante laboratório de rock. Taí, então: um dos poucos discos da década que merecem entrar numa lista não tão longa de grandes álbuns de todos os tempos.
1. Kid A – Radiohead (2000)
Não importa se você ouviu ou não ouviu Kid A (ou se você prefere Hail to the thief – ninguém é perfeito): nenhuma discussão sobre o rock do início do século se sustenta sem alguma referência a este disco. É grande assim. Produzido num período de transição para a indústria musical, foi um dos primeiros a se integrar intensamente à onda da troca de arquivos via internet (na lista de melhores discos de 2000, a revista Spin deu o primeiro lugar apropriadamente para o hard drive dos computadores dos leitores, e em segundo ficou Kid A) — e, para muitos fãs, o “último suspiro” da era do álbum. De qualquer uma das formas, é um triunfo do timing. O disco certo para um mundo errado.
Se Ok computer se deixa afinar por tradições do rock — o progressivo, o pós-punk, o goth rock dos anos 80 —, Kid A derruba os dogmas e barras de segurança em busca de uma sonoridade nova, radicalmente atual (e, com o excelente In rainbows, a banda novamente confrontou ideias dadas como intocáveis). Com o esforço de se reinventar, o Radiohead renasceu como um projeto de eletrônica e jazz-rock capaz de compor canções fragmentadas, tortas, que transportam para o processo de composição toda a confusão que Thom Yorke sempre imprimiu às letras de canções. Antes, ele comentava a paranoia urbana, a opressão tecnológica. Com Kid A, converteu todas essas angústias em pura música. Dos sintetizadores sufocantes de Everyting in its right place à metralhadora eletrônica de Idioteque, tudo é agonia. E o mundo (da música, pelo menos) acordaria perturbado desse pesadelo.